quarta-feira, 25 de abril de 2007

GUERRA COLONIAL & GUERRA DE LIBERTAÇÃO NACIONAL

por: José Maria de Aguiar Carreiro


                              

                 

GUERRA DE LIBERTAÇÃO NACIONAL
               
             
Não foi pacificamente que os governantes portugueses cederam às pressões dos povos africanos, quando estes, conscientes do seu direito à autodeterminação, exigiram a devolução das suas terras colonizadas.
             
A guerra eclodiu em 1961, mas desde cedo conheceu os seus opositores quer na sociedade portuguesa quer na comunidade internacional. Recusou-a o bom senso das novas gerações universitárias impelidas para uma guerra que não era a sua e governadas por uma entidade não disposta a escutar nem a dialogar com mentes rebeldes e desordeiras. Não admira, pois, que o governo tivesse sido alvo de conspirações e, por isso, desde logo estendido o seu braço da censura à intelligentia da época.
             
Estava atento a casos como o do escritor Luandino Vieira que, radicado em Angola, intensificara a expressão da problemática africana, assumindo a própria língua autóctone. Foi ele quem mais longe chegou na informação estética da angolanidade e foi, sem dúvida, um eco de Angola perigoso ao regime. Notado pelo seu trabalho, foi, por um lado, preso pela PIDE e, por outro, premiado, em 1965, pela Sociedade Portuguesa de Autores pela escrita do seu livroLuuanda. Essa ousadia em apoiar literatura comprometida politicamente pagou-a a SPA com o seu encerramento por ordem governamental.
             
No ultramar, grupos de trabalho empenhavam-se em começar a escrever a sua própria História numa perspectiva decididamente pragmática. É disso exemplo um manual da História de Angola escrito para “revolucionários”, publicado em Argel, no mês de Julho de 1965 e editado, dez anos mais tarde, pela Afrontamento, na sua colecção “Libertação dos Povos das Colónias”:
             
Emblema da UPA (União das Populações de Angola)
              

             
“É necessário que um revolucionário conheça a história do seu país. Muitos revolucionários dos nossos dias estudaram as grandes batalhas dos tempos antigos e aprenderam métodos de luta (tácticas) que foram muito úteis nas guerras revolucionárias do nosso tempo.
             
Se um militante estudar a história do seu país, aprenderá como é enorme a força e a coragem das massas populares; aprenderá como elas sabem encontrar maneiras inteligentes e habilidosas de se defenderem e derrotarem os seus inimigos. O militante aprenderá a conhecer quem são os mais fiéis amigos das massas populares, ou então aqueles que mais facilmente podem traí-las, ou ainda aqueles que são seus inimigos.” (MPLA)
             
Assiste-se ao nascimento de uma consciência nacional, nos espaços luso-africanos, também verificável nas manifestações literárias da época: a começar pela geração da “Mensagem” (anos cinquenta) que, ao entoar o novo canto da angolanidade, via os seus escritores mais empenhados a serem progressivamente eclipsados por um aparelho policial, garante legal do obscurantismo instalado na colónia.
             
As vozes de denúncia não se calaram, antes se ergueram para reclamar justiça: num crescendo de significado, a poetisa caboverdiana Alda do Espírito Santo, em 1958, começa por exigir que se castigue os carrascos da sua terra:     
        
                                                                                            
O sangue caindo em gotas na terra
homens morrendo no mato 
e o sangue caindo, caindo...
Fernão Dias para sempre na história
da Ilha Verde, rubra de sangue,
dos homens tombados
na arena imensa do cais.
Aí o cais, o sangue, os homens,
os grilhões, os golpes das pancadas
a soarem, a soarem, a soarem
caindo no silêncio das vidas tombadas
dos gritos, dos uivos de dor
dos homens que não são homens,
na mão dos verdugos sem nome.
Zé Mulato, na história do cais
baleando homens no silêncio
do tombar dos corpos.
Aí, Zé Mulato, Zé Mulato.
As vítimas clamam vingança
O mar, o mar de Fernão Dias
engolindo vidas humanas
está rubro de sangue.
– Nós estamos de pé –
Nossos olhos se viram para ti.
Nossas vidas enterradas
nos campos da morte,
os homens do cinco de Fevereiro
os homens caídos na estufa da morte
clamando piedade
gritando p'la vida,
mortos sem ar e sem água
levantam-se todos
da vala comum
e de pé no coro de justiça
clamam vingança...
        ... Os corpos tombados no mato,
as casas, as casas dos homens
destruídas na voragem
do fogo incendiário,
as vias queimadas,
erguem o coro insólito de justiça
clamando vingança.
E vós todos carrascos
e vós todos algozes
sentados nos bancos dos réus:
– Que fizeste do meu povo?...
– Que respondeis?
– Onde está o meu povo?...
E eu respondo no silêncio
das vozes erguidas
clamando justiça...
Um a um, todos em fila...
Para vós, carrascos,
o perdão não tem nome.
A justiça vai soar,
E o sangue das vidas caídas
nos matos da morte
ensopando a terra
num silêncio de arrepios
vai fecundar a terra,
clamando justiça.
É a chamada da humanidade
cantando a esperança
num mundo sem peias
onde a liberdade
é a pátria dos homens...
                 




             

Depois, o poeta-militante Agostinho Neto, no poema “Luta”, anuncia:
         
             
Violência
vozes de aço ao sol
incendeiam a paisagem já quente
             
E os sonhos
se desfazem
contra uma muralha de baionetas
             
Nova onda se levanta
e os anseios se desfazem
sobre os corpos insepulcos
             
E nova onda se levanta para a luta
e ainda outra e outra
até que da violência
apenas reste o nosso perdão.
             
      
       
E o verso de Jorge Rebelo faz-nos reparar na euforia do momento: «as balas começam a florir». De aí em diante, o tema da guerra nas literaturas africanas de língua portuguesa passaria a conferir aos textos uma tendência épica por assinalar o princípio da fundação de uma pátria. O soldado africano é apresentado como um herói libertador, confiante no devir.
             
Esta era, de resto, a “guerra justa”, um instrumento que não se discute.
             
Da literatura produzida na zona de guerrilha, destaca-se Pepetela, pseudónimo de A. Pestana dos Santos. A narração de As Aventuras de Ngunga (1972) ensinava aos pioneiros doMovimento Popular para a Libertação de Angola as características do bom guerrilheiro. Funcionalidade moral que leva Mayombe (outra obra do prosador Pepetela escrita em 1971) a não centrar a sua atenção nas acções de combate, embora as descreva pontualmente. Esta é uma obra que apresenta múltiplas reflexões que procuram dar corpo aos pensamentos das diferentes correntes e aos sentimentos dos diferentes grupos étnicos, etários, sócio-políticos e culturais.
              
             
Pepetela
                      
              
             

             
EU, O NARRADOR, SOU TEORIA.
             
Nasci na Gabela, na terra do café. Da terra recebi a cor escura do café, vinda da mãe, misturada ao branco defunto do meu pai, comerciante português. Trago em mim o inconciliável e é este o meu motor. Num Universo de sim e não, branco ou negro, eu represento o talvez. Talvez é não para quem quer ouvir sim e significa sim para quem espera ouvir não. A culpa será minha se os homens exigem a pureza e recusam as combinações? Sou eu que devo tornar-me em sim ou em não? Ou são os homens que devem aceitar o talvez? Face a este problema capital, as pessoas dividem-se aos meus olhos em dois grupos: os maniqueístas e os outros. É bom esclarecer que raros são os outros, o Mundo é geralmente maniqueísta.
             
PepetelaMayombeLisboa, Edições 70, 1988, 3ª ed., p. 16.
             
             

Em Mayombe a noção de confiança é defendida como elemento imprescindível, comparável ao cimento que une as pedras de um edifício, isto é, os elementos de uma nação. É ela própria a força do grupo; é a necessidade de conquistar pessoas; é a direcção participada; é o necessitar de auscultar as opiniões dos outros; é, enfim, o saber estar colectivo na procura do equilíbrio. No fundo, Mayombe enaltece o povo angolano, justo e merecedor de uma paz duradoura, pelo passado sofrido da maioria dos seus habitantes. Merecedor de uma política consciente e de políticos honestos, hábeis construtores de uma nação equilibrada, onde se possa confiar numa justiça imparcial, racional, capaz de atenuar os efeitos das dissenções étnicas.
             

             



GUERRA COLONIAL
             
Por outro lado, ao lermos a literatura portuguesa saída da guerra colonial, notamos que ela recria uma experiência africana violenta e fantasmagórica, de modo algum eufórica. Autores comoAlmeida FariaLobo Antunes e João de Melo, entre outros, insistem numa visão trágica e dorida por aqueles que, à força, foram combater para um espaço desconhecido e inóspito, com o qual não se identificavam. Não habitam heróis nas obras destes autores, mas anti-heróis fadados para o destino de uma guerra sem saída.
             
             


             

             
Jaz morto e arrefece o menino de sua mãe” (1973) escultura de Clara Menéres    
             
(Fonte: Panorama da arte portuguesa do século XX, Fernando Pernes
Porto, Campo das Letras, 1986, p. 265.)
             

*

             
Jaz morto e arrefece o império de sua mãe.”
             
Margarida Calafate Ribeiro
              
             

"Les disparus ne sont pas des absents", Cimetière Montparnasse

             
             
OS CORPOS
             
vede
que jazem
à minha frente
             
a pele citrina
da morte
biliosa
os habita
             
espécie de pacto
sobre tudo isto que vedes
a maneira de olhar
o sangue
             
calar a revolta
este pânico entreaberto
nos olhos dos cadáveres
e os coágulos duros deste sol
             
há uma mentira acreditável
em quem vê as armas caídas
ao lado destes corpos
             
cumplicidade de admitir nos mortos
a espera da nossa morte
             
vede que jazem
estes membros como insónia
sobre os corpos destruídos das granadas
perfil rígido
das metralhadoras
para sempre presas no sovaco
             
cratera da nossa boca
de comer e tanto vomitar a guerra
             
mas vede também
que ira interrompida
se morde contra a morte
sobre estes mortos
             
João de Melo, Navegação da terra
Lisboa, Editorial Vega, 1980, 1ª ed.
             
             
             
             

             


             
             


             
            
ATÉ HOJE: MEMÓRIAS DE CÃO
            
Não seria nome de guerra — Uíje — pintadas letras negras no casco cinzento, letras simples, másculas, a boca espremida no contra-senso da pronúncia — Uíje — os lábios contraídos, aguados. Seria nome de rio, de província com rio, sabor exótico, leito imprevisível com margens insondáveis, cacofonia de África portuguesa em pé de guerra, de derrames viscerais de culturas anti-natura, os longos e duros séculos coloniais em ressaca. Nem nome de guerra, rio, província, seria aquele “Uíje”, agora em aspas, enorme batelão desgraçado de luxos e cruzeiros. Era nome de barco por conta do Exército, com os porões desventrados, sorvia batalhões de homens forrados de moreia, empilhados, náusea sobre náusea, o oxigénio consumido, suor destilado, uvas na prensa — vinagre ou fel do cálix português na viagem incolor de encontro à guerra. la-se naquele barco com a alma dependurada no gancho da dúvida. 1253 homens carregados em Alcântara. Nem todos voltariam — sabia-se. A guerra era a guerra, cosida com as linhas da morte. Cobras, escorpiões, jacarés, o micróbio das águas, as febres — cuidado! A cobra vê-se, o jacaré avista-se, o escorpião sente-se. “Não bebam água sem ser filtrada”, mesmo quando filtros não há. “A sede não mata, a febre palúdica derruba-se com quinino”. Nem uma palavra sobre os efeitos da bala, do cogumelo de estilhaços da granada, das razões que assistem ao poder do canhão. “O inimigo não conta! Mata-se, simplesmente... É lorpa! O inimigo é preto por ignorante, sinónimo de escravo por vocação...” O arrazoado seguia monótono e talvez cabal, contraditando notícias, relatos, o número dos mortos, as zonas impenetráveis, o internacionalismo do problema. Beberam ódio em doses maciças contra o inimigo de quem não sabiam nem a forma nem a força.
             
Álamo Oliveira, Até Hoje: Memórias de Cão
Lisboa, Edições Salamandra, 2003, 2ª ed. (Ulmeiro, 1986, 1ª ed.)
             
        



     
 


             
Para finalizar este post, remeto os leitores para o Diário de um combatente, uma página online sobre a guerra colonial, com fotos da época, poemas e diário de guerra em Angola, entre Abril de 1961 e Março de 1963. O ex-combatente é Joaquim Coelho.
             
             
Do Caxito até Quitexe – ATRIBULAÇÕES
              
No posto de controlo do Cacuaco, enquanto as viaturas pararam até à abertura da cancela, alguns pára-quedistas saltaram para o campo de cana-de-açúcar e colheram troncos de cana que guardaram na mochila. Os mais experimentados sabem que, nos dias de jejum passados nas matas dos Dembos, as canas vão saber a pão-de-ló. Os comandantes de pelotão aproveitaram a paragem para acertar as últimas estratégias contra os possíveis ataques da guerrilha.
[…]
O Alfredo diz guardar todo o seu fogo e desejo para a Maria Isabel, sua noiva. Mas não deixa de assediar as jovens negras que vão à porta do acampamento entregar as roupas lavadas. Tem um poder extraordinário para cativar as gajas, que na conversa lhe pedem mais uns centavos e ficam na brincadeira até se zangarem, quando o Alfredo lhes passa a mão por baixo da capulana e apalpa a carapinha entufada. Elas são recatadas e riem muito, dizendo:
             
– Ih! Alfredo quer é foder a gente.
             
Sempre a rir e a pregoar, lançou o aviso:
             
– Ainda é menina e não quer home p’ra fodê.
             
Mas algumas já deliravam quando sentiam as mãos a espremer os mamilos, e com o calor da descarga que lhes inundava a passarinha. Esfregam-se bem, antes de entesarem o parceiro, e gemem com uma boa penachada. Andam por ali a cirandar, logo bamboleando as ancas como um chamariz que desperta a atenção dos soldados que acompanham as colunas de reabastecimento. Às vezes até são descaradas na forma de mostrar o decote, despertando a libido que está ao rubro, intensificando o desejo e as emoções dos soldados, que ficam sem controlo. Elas riem, percebendo que o membro ganha volume e os pensamentos “mergulham” no meio das coxas de qualquer mulher! A gente assim carente logo quer tocar nas peles acetinadas e apalpar as mamas avantajadas para manter o diálogo de volúpia e conquista... Mesmo no divertimento com o membro entesado, elas riem. As químicas do amor carnal também cristalizam os sonhos de amores ausentes, e não têm limites na relação corporal. Os prazeres estão nas coisas simples e são temperados pelos gestos dos corpos que levam ao êxtase das infinitas delícias da vida.
             
             
              

             
             
             
       
O ÚLTIMO GOLPE DE MÃO  
       
Na estrada do Piri, aos solavancos
     para as matas do Quitexe   
as viaturas loucas avançam...
atentos ao bandido que ainda mexe
vão os soldados de fatos às cores
só para se confundirem no capim.
             
Para trás deixam os tenros amores!
as bebedeiras de poeira sem fim
obrigam ao silêncio das gargantas,
em cada curva da picada sinuosa
o perigo esconde-se nas plantas!
              
Os gananciosos obreiros coloniais
Já não se afoitam como dantes...
recolhidos ao aconchego da cidade,
vivem rodeados de criados e amantes.
              
E nós, combatentes e detestados,
estamos a comer o pó do sertão,
enquanto caminhamos sufocados
até ao derradeiro golpe de mão!
                    
(Quibaxe)
Joaquim Coelho
O Despertar dos Combatentes. Fotos com estórias em Angola

Clássica Editora, 2005
             
             


CARREIRO, José. “Guerra Colonial & Guerra de Libertação Nacional”. Portugal, Folha de Poesia: artes, ideias e o sentimento de si, 25-04-2007. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2007/04/guerra-colonial-guerra-de-libertacao.html (2.ª edição) (1.ª edição: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2007/04/25/guerra-colonial-e-guerra-de-libertacao-nacional.aspx)