sábado, 25 de outubro de 2008

FERNANDO PESSOA (ELE MESMO) REVISITADO

         
     
FERNANDO PESSOA (ortónimo)
E OS ARTISTAS CONTEMPORÂNEOS
        
reescrita/prolongamento de versos
imitação de estilos do autor
transformação (pastichesparódias)
escrita motivada de poemas, cartas
. representações de Fernando Pessoa nas artes plásticas





        


POEMA QUE PESSOA NUNCA PÔS NA ARCA

   

   

De Álvaro sei como sei

desse latim do Ricardo

do pensamento de Alberto

luz incerta em gato pardo

sei de algum outro tão bem

como ele sabe de mim

e de quantos sei ainda

metidos na arca sem fim

e de Bernardo esquisito

como espelho em mim cravado

se quebra me quebro eu

mas sangue só de meu lado

sei com todo o pormenor

de tu do o que me nasceu

sei de toda a criação

só não sei o que sou eu.

 

    
Agostinho da Silva,
in Do Agostinho em torno do Pessoa, Ed. Ulmeiro, 1990.
     
     
     
       

     
     
     


     
     
    
O MENINO DA SUA MÃE

   
   
No plaino abandonado
Que a morna brisa aquece,
De balas trespassado-
– Duas, de lado a lado –,
Jaz morto, e arrefece.

Raia-lhe a farda o sangue.
De braços estendidos,
Alvo, louro, exangue,
Fita com olhar langue
E cego os céus perdidos.

Tão jovem! Que jovem era!
(agora que idade tem?)
Filho único, a mãe lhe dera
Um nome e o mantivera:
“O menino de sua mãe”.

Caiu-lhe da algibeira
A cigarreira breve.
Dera-lhe a mãe. Está inteira
E boa a cigarreira.
Ele é que já não serve.

De outra algibeira, alada
Ponta a roçar o solo,
A brancura embainhada
De um lenço… deu-lho a criada
Velha que o trouxe ao colo.

Lá longe, em casa, há a prece:
“Que volte cedo, e bem!”
(Malhas que o Império tece!)
Jaz morto e apodrece
O menino da sua mãe
   
    
Fernando Pessoa
No plaino abandonado
Que a morna brisa aquece
De varas trespassado
— Duas, de cada lado —
Jaz exposto e arreféce.

Raia-lhe a farda o sangue
Da quádrupla função.
Nórdico mouro exangue
Fita com olhar langue
O que ainda tem na mão.

Que varonil quimera!
Agora, que vara tem?
Filho único, a mãe lhe dera
Um nome, e o mantivera:
O menino de sua mãe.

Caiu-lhe da algibeira
A lapiseira breve.
Dera-lhe o pai. Está inteira
E boa a lapiseira,
Ele é que já não escreve.

De outra algibeira, alada
Espuma de porto covo,
A brancura manchada
De um lenço... Foi a criada
Quando êle era mais novo.

Lá longe — na Casa do Conto — há prece:
«Que morra cêdo, e bem!»
Malhas que o Império tece!
Ainda vive e parece
O menino de sua mãe.
   
Mário Cesariny Vasconcelos
O Virgem Negra, Assírio & Alvim, 1989
   


O SOLDADO MORTO

 

Os infinitos céus fitam seu rosto

Absoluto e cego

E a brisa agora beija a sua boca

Que nunca mais há de beijar ninguém.

 

Tem as duas mãos côncavas ainda

De possessão de impulso de promessa.

Dos seus ombros desprende-se uma espera

Que dividida na tarde se dispersa.

 

E a luz as horas as colinas

São como pranto, em volta do seu rosto

Porque ele foi jogado e foi perdido

E no céu passam aves repentinas.

 

Sophia de Mello Breyner Andresen, Mar Novo, Lisboa, Guimarães Editores, 1958


     
   

Jaz morto e arrefece o menino da sua mãe” (1973)
 escultura de Clara Menéres



     
     
        
   
Ela canta, pobre ceifeira,
Julgando-se feliz talvez;
Canta, e ceifa, e a sua voz, cheia
De alegre e anónima viuvez,

Ondula como um canto de ave
No ar limpo como um limiar,
E há curvas no enredo suave
Do som que ela tem a cantar.

Ouvi-la alegra e entristece,
Na sua voz há o campo e a lida,
E canta como se tivesse
Mais razões p'ra cantar que a vida.

Ah, canta, canta sem razão!
O que em mim sente 'stá pensando.
Derrama no meu coração
A tua incerteza voz ondeando!

Ah, poder ser tu, sendo eu!
Ter a tua alegre inconsciência
E a consciência disso! Ó céu!
Ó campo! Ó canção! A ciência

Pesa tanto e a vida é tão breve!
Entrai por mim dentro! Tornai
Minha alma a vossa sombra leve!
Depois, levando-me, passai!
    
Fernando Pessoa, 1914
in Athena, nº 3, 1921
ele dorme, pobre ceifeiro, quando
a goiva e o formão
lhe encontraram
   
o corpo circunscrito sob
o lenho supérfluo.
desbastando-o

a mão obediente
seguia o intelecto
ao talhar-lhe outro reino

que é da serenidade
deste mundo, pátria às vezes
sensível, melhorável.

dorme no seu anonimato, não
vai enlevado para
parte nenhuma.

seu corpo se fez sono
e deus, ou seja,
a palavra poética

ao fim de tudo, é uma
questão de técnica
e de melancolia.
   
   
Vasco Graça Moura,
in Poesia 1963-1995
Ed. Círculo de Leitores
    
   
     
     
   
   
APÓCRIFO PESSOANO
   
O eu sentir quando penso
e pensar enquanto sinto
origina um labirinto
onde me perco e convenço
de que tudo é indistinto,

do que o mundo se organiza
desorganizadamente
nos recônditos da mente
como uma ideia imprecisa
que quando se pensa, sente

e quando se sente, pensa,
numa confusão total,
num processo irracional
em que se esfuma a diferença
entre o que é ou não real.

Dos meandros disso tudo
nasce apenas um desejo:
distinguir o que não vejo
e é talvez o conteúdo
deste infinito bocejo

a caminho não sei de onde,
à espera não sei do quê.
Quem me ouve? Quem me vê?
A vida não me responde
e, afinal, ninguém me lê.
   
   
Fernando Pinto do Amaral
in A Escada de Jacob, Assírio & Alvim, 1993
     
Num poema como “Apócrifo pessoano”, de Fernando Pinto do Amaral, o que sobressai é a componente lúdica do trabalho intertextual, aqui, mais próximo, nos seus resultados, do pastiche, irónico, obviamente, do que da paródia, através de uma adequação ao estilo do ortónimo e a alguns dos temas mais recorrentes da poética pessoana, como a dialéctica do “pensar” e do “sentir”, a “confusão” entre o “real” e o irreal e o “labirinto” da “mente” onde o eu se perde (cf. Martinho: http://www.letras.puc-rio.br/catedra/revista/4Sem_08.html)
   
   
     
     
     
   


PARA FERNANDO PESSOA

   

Acendo um cigarro e esquecido a olhar
entredentes me alheio sem querer
Sobeja de mim o que não sou
Para além disso tudo é demais
(De resto só pensamentos são
o que o pensar apenas alcança)
Cansa a companhia do querer
ao que no pensar está
como o incómodo breve duma agitação
d’alma que logo a si regressa
Sossega ó eternidade
que te seja leve a agrura do tempo
o malquerer dos dias
a fadiga de sonhar caminhos
Apaga-se-me o cigarro entrededos
e estranho de mim extingo-me
como coisa de quase nada

   
Fernando Martinho Guimarães,
 in apenas um tédio que a doer não chega, Edições Fluviais, 2005
   



     
        

   
   
     
     
     
AUTOPSICOGRAFIA

O poeta é um fingidor
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente
 
E os que lêem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm
 
E assim nas calhas de roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda  
Que se chama coração
   
Fernando Pessoa
in PresençaAbril de 1932
   
   
   
   
   
   
   
   
O POETA É UM FINGIDOR

Entreteço palavras
na malha áspera destes versos
e a tessitura triste que faço
mais esmorece no azul baço
do papel. Entristeço então
a alma numa renda miúda
e apertada de ponto incerto
e complicado. Estabeleço assim
dois mundos convergentes:
A textura entristecida dos versos
e a tristeza entretecida da alma.
E logo esqueço onde tudo isto
teve começo:
Se de entristecer palavras,
se de entretecer sentimentos,
se de constranger a alma, 
se de contristar palavras:
se me contristei constrangendo,
se me constrangi contristando.

Sei que me contristo entretecendo
E me entreteço de tristeza.
   
Rui Knopfli,
in Mangas Verdes Com Sal (1969)
    
    
    
     
     
Também no poema "Dores", constituído por uma breve estrofe de quatro versos, Alexandre O'Neill alude ao texto poético da "Autopsicografia", operando uma irónica reinterpretação da complexa teoria do fingimentoracionalista pessoano. O excessivo celebralismo pessoano não se coaduna com uma estética surreal, valorizadora do fantástico e do maravilhoso, nem com o humor magoado de O'Neill.(http://alfarrabio.di.uminho.pt/vercial/letras/candid04.htm)
    
   
   

     
   
DORES

Às dores inventadas
Prefere as reais.
Doem muito menos
Ou então muito mais...
     
   
Alexandre O’Neill,
 in No Reino da Dinamarca, Guimarães Ed. 1958





FERNANDO PESSOA, 1925
Fernando Pessoa descendo o Chiado (Lisboa) com Augusto Ferreira Gomes.

Cinco fotografias instantâneas transformadas em cinco fotogramas - a única filmagem conhecida de Fernando Pessoa.

c. 1925
              

       
[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2008/10/25/revisitarpessoaortonimo.aspx]                    


 

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Fernando Pessoa - Apresentação crítica, seleção, notas e sugestões para análise literária da obra de Fernando Pessoa, por José Carreiro. In: Lusofonia, https://sites.google.com/site/ciberlusofonia/PT/literatura-portuguesa/fernando_pessoa, 2021 (3.ª edição) e Folha de Poesia, 17-05-2018. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2018/05/fernando-pessoa-13061888-30111935.html

                         

sábado, 18 de outubro de 2008

FERNANDO PESSOA REVISITADO


evocações
FERNANDO PESSOA
E OS ARTISTAS CONTEMPORÂNEOS 
             
               
       
   
         
           
           
CARTA À MEMÓRIA DE FERNANDO PESSOA
     
     
     
     
Meu querido Fernando: Imagina você a falta que nos faz? Ainda há poucos dias, numa rua onde parámos a falar de si, o Almada me disse: O Fernando faz muita, muita falta! Na mágoa deste desabafo, pareceu-me reconhecer a mesma inconfessada sensação que a sua ausência, algumas vezes, me dá: a de ter feito uma partida que os seus amigos não mereciam. Quase apetece acusá-lo, gritar à sua memória: Você não tinha o direito de nos deixar tão cedo!
     
Mas o seu mestre Caeiro é quem tinha razão:
     
Passa a árvore e fica dispersa pela Natureza.
Murcha a flor e o seu pó dura sempre.
Corre o rio e entra no mar e a sua água é sempre a que foi sua.
Passo e fico, como o Universo.
     
Na verdade, a fixação da nossa presença física, seja em que forma for, é o que tem menos importância; e vem daí, por certo, o enorme esforço que tenho de fazer para recordar a sua. Não sei que névoa me afasta da próxima realidade dela. É uma imagem embaciada, talvez pela comovida lembrança da sua delicadíssima discrição. O Fernando passou por aqui em bicos de pés, coerente com o conselho dado às companheiras por uma das veladoras do seu "Marinheiro": « – Não rocemos pela vida nem a orla das nossas vestes.»
     
Em nada do que você usava se reflectia a fútil premeditação de exibicionismo. No entanto, toda a sua vulgaríssima indumentária, desde o chapéu aos sapatos, era, não sei porquê, espantosamente diversa da de toda a gente. Sei lá que tinha? Uma expressão inconfundível, um jeito especialíssimo, dado por si, sem querer.
     
Os seus gestos nervosos, mas plásticos e cheios de correcção, acompanhavam sempre o ritmo do monólogo, como a quererem rimar com todas as palavras. De quando em quando, pequenos risos (risinhos, é que diz bem), de criança triste a quem fazem cócegas, vinham festejar, alegremente, as descobertas do espírito – suas ou alheias, porque o Fernando não sabia reprimir o prazer que lhe causava a graça ou a simples alegria dos seus amigos.
     
A sua ironia, também de qualidade sui generis, era aguda, intencional, oportuna, mas sempre delicada e transparente, sem crueldades felinas. Nunca ouvi ninguém queixar-se de ter sido atingido por ela, nem assisti a que fizesse, na susceptibilidade de quem quer que fosse, a mais leve arranhadura. Era como aqueles gatos de boa raça que metem as unhas para dentro, quando brincam...
     
No acaso dos diálogos – aos quais nunca impunha, ditatorialmente, a direcção do seu espírito –, esperava que coubesse aos outros a sua vez de falarem para os escutar com atenção. Porém, no seu olhar, lia-se qualquer coisa parecido com o receio de que o supusessem perscrutador.
O seu discreto temperamento ajudava-nos pouco o desejo de lhe fazermos qualquer pergunta mais familiar, mais íntima. Como inquirir-lhe da saúde, sem ter medo de magoá-lo em qualquer parte da alma? Era difícil, sabe? Quanto mais perguntar-lhe: Que faz esta noite? Aparece amanhã? Chegava a ter a impressão de devassar-lhe a intimidade, quando o encontrava, às vezes, na rua...
     
Quando ia só, ou como se o fosse, apesar de não ser o que se chama, em linguagem doméstica, um abstracto ou distraído (pois a sua atenção, por mais repartida que estivesse, era sempre suficiente para apreender o que se passava à sua volta), costumava aflorar aos seus lábios estreitos o sorriso de quem lê uma carta confidencial, amiga e interessante.
     
Nada em si afastava quem o procurasse; antes pelo contrário – a não ser, a alguns dos mais orgulhosos ou tímidos dos seus amigos, a certeza de que você era incapaz, sem fortes razões justificadas, de procurar fosse quem fosse.
     
O seu sentimento de intimidade não era fruto de egoísmo nem de vulgar misantropia: era-o, sim, do profundo respeito que o Fernando tinha por si próprio e pelo que nos outros estimava que também fosse respeitável. Daí, a impossibilidade de abrir à curiosidade dos seus mais assíduos companheiros uma fresta por onde pudessem espreitar a sua vida sentimental:
     
«Não há quem saiba se eu gosto de ti ou não porque eu não fiz de ninguém confidente sobre o assunto.» Esta frase, cujas palavras sublinhadas o foram por si, é de uma das primeiras cartas que o Fernando dirigiu àquela a quem escreveu nove anos mais tarde: «... Se casar, não casarei senão consigo. Resta saber se o casamento, o lar (ou o que quer que lhe queiram chamar) são coisas que se coadunem com a minha vida de pensamento.»
     
As suas cartas de amor! Porque você amou, Fernando, deixe-me dizê-lo a toda a gente. Amou e – o que é extraordinário – como se não fosse poeta. Na evidente espontaneidade dessas cartas, que o Destino quis pôr nas minhas mãos, não se encontra um vestígio de premeditação formal, de voluntária intelectualidade.
     
Que admirável exemplo de humana integração no organismo da Vida! Lê-se qualquer delas – escolhida, ao acaso, entre as dezenas que a totalidade constitui – e logo nos ocorre esta pergunta, forrada de espanto: Como teria sido possível ao mais poeta dos homens e ao mais intelectual dos poetas portugueses (e, aqui, a palavra portugueses tem uma importância muito especial) libertar a tal ponto o coração da literatura?! (...)
     
Boa noite, Fernando. Não preciso dizer-lhe que sinto, nem por que sinto saudades suas. Mas não lhe peço que volte. Que temos aqui, que possa interessá-lo ou, o que é mais triste, merecê-lo? Não temos nada, bem sabe, de que você não conheça já melhor do que nós, o vazio sem fundo, a mentira sem remédio, a trágica inutilidade...
     
     
Carlos Queirós, «Carta à memória de Fernando Pessoa»
in Presença, nº 48, Julho de 1936 (extractos)
       
        
Carlos Queiroz - Homenagem a Fernando Pessoa – Maquete. Maquete original da obra de Carlos Queiroz “Homenagem a Fernando Pessoa” com diversas alterações e anotações quer no corpo da letra quer na ortografia. O exemplar constitui a prova tipográfica (com a capa desenhada a tinta azul e negro) da obra de Carlos Queiroz e está encadernado. Junto com o livro propriamente dito, edição Presença, Coimbra, 1936. In 8° de 48-II págs. Ilustrado com um retrato de Fernando Pessoa por Almada Negreiros. E. , junto com a maquete com 49-IIII págs. Primeira edição. Dedicatória do autor no anterrosto. Encadernação meia francesa preservando todas as capas de brochura quer do livro quer da maquete. (Disponível em: https://www.bestnetleiloes.com/pt/leiloes/livros-manuscritos-e-postais/carlos-queiroz-homenagem-a-fernando-pessoa-maquete, consultado em 10/07/2023)

 

     
À MEMÓRIA DE FERNANDO PESSOA
     
     
Se eu pudesse fazer com que viesses
Todos os dias, como antigamente,
Falar-me nessa lúcida visão —
Estranha, sensualíssima, mordente;
Se eu pudesse contar-te e tu me ouvisses,
Meu pobre e grande e genial artista,
O que tem sido a vida — esta boémia
Coberta de farrapos e de estrelas,
Tristíssima, pedante, e contrafeita,
Desde que estes meus olhos numa névoa
De lágrimas te viram num caixão;
Se eu pudesse, Fernando, e tu me ouvisses,
Voltávamos à mesma: Tu, lá onde
Os astros e as divinas madrugadas
Noivam na luz eterna de um sorriso;
E eu, por aqui, vadio da descrença
Tirando o meu chapéu aos homens de juízo...
Isto por cá vai indo como dantes;
O mesmo arremelgado idiotismo
Nuns senhores que tu já conhecias
— Autênticos patifes bem falantes...
E a mesma intriga; as horas, os minutos,
As noites sempre iguais, os mesmos dias,
Tudo igual! Acordando e adormecendo
Na mesma cor, do mesmo lado, sempre
O mesmo ar e em tudo a mesma posição
De condenados, hirtos, a viver —
Sem estímulo, sem fé, sem convicção...
Poetas, escutai-me: transformemos
A nossa natural angústia de pensar —
Num cântico de sonho!, e junto dele,
Do camarada raro que lembramos,
Fiquemos uns momentos a cantar!
          
     
António Botto
In Antologia de poemas portugueses modernos
por Fernando Pessoa e António Botto.
Coimbra, Nobel, 1944. pp.189-190.
Reeditado em Canções e Outros Poemas, Edições Quasi, 2008
              
          


     
     
       



PESSOA REVISITED
     
     
Esta noite encontro-te, poeta.
Esta noite, que não é antiquíssima,
nem idêntica por dentro
ao silêncio,
sendo apenas o lúcido abismo
da minha insónia,
sigo da margem
o rio dos teus versos.
Alguma vez todos os poetas
se encontram contigo.
Mesmo os menores como eu
ou o meu vizinho do lado,
que é contabilista, não faz versos
e arrepela violino nas horas de lazer.
Esta noite olho e penso
os versos reaccionários,
em que reinventaste o sentido das palavras
e te negavas.
Negavas-te na irónica contradição
dos conceitos escalpelizados
e até
na matemática escorreita da correspondência comercial,
com o mesmo à vontade
com que um Einstein especula com espaços interestelares
e a diurna e esquisita noite galáctica.
O teu génio desmedido
frustrava em ti
o burocrata para uso externo.
E rias, alto
como um insulto amargo,
por detrás
do Álvaro de Campos snob,
ou oculto
na frieza geométrica e longínqua
do Ricardo Reis.
Cerebrais, frios, são,
dizem,
os teus versos.
São-no como quem fala, lenta,
pausadamente,
dissimulando na garganta o nó da angústia.
Diante
da alheia ignorância do tempo absurdo,
com a miopia e o bigode estreito
do manga de alpaca a fingir cabotismos,
habitavam
o génio e a náusea.
Com o gesto banal e repetido de quem
acende o cigarro
abriste as portas do espanto
e fizeste acreditar que eram as da dispensa.
Por isso
hoje nos limitamos a entrar,
por isso dormimos hoje com a cabeça
nos teus versos,
falamos com ar despreocupado
no Pessoa, à hora do café
e visitamos-te com secreta religiosidade.
Agora que tu te foste,
sem que déssemos por tal,
desapercebido, caminhando nos bicos dos pés,
como o fazias em vida,
em vão te buscamos,
em vão rezam por ti compridas laudas
em jornais a ressumar cultura,
em vão te imitamos,
em vão a estridência do nosso arrependimento.
 onde moras não há som
e nem sequer te incomodam no leito
as duras pedras e a terra húmida das raízes.
No dia 30 de Novembro de 1935
aqui fazia sol
e eu, na beira do passeio,
via passar os eléctricos sem os entender
e resumia o sonho à nitidez gulosa
do pão com manteiga,
sentado a milhares de quilómetros da tua morte.
Perdoa pois se não fui
ao teu enterro anónimo.
     
     
     
Rui Knopfli, in O País dos Outros (1959)
Memória Consentida. 20 Anos de Poesia 1959/1979, I.N.-C.M., 1982.
         
       
  
        
        
PESSOA
     
     
Onde tu estás, sem teres nunca voltado de parte nenhuma,
sem vontade de partir para onde nunca chegarás, porque aí
é já ontem, encontro-me contigo. Mandas-me sentar: e ambos,
à mesa de um dos cafés da Eternidade, escrevemos cartas que
nunca ninguém irá receber. Mas tu ris-te, sabendo que Ele,
o inCógnito, as está a ler, e também possivelmente a escrever,
através de ti, para um outro que tem o teu rosto e as tuas mãos,
e no entanto não és tu, e me está a olhar, agora. E tu dizes-me:
é um fantasma! E ris-te mais, nesse limbo onde começa a descer
um crepúsculo a que, noutro lugar. se chamaria a Morte: mas que
tu sabes ser mais do que a morte e, ao mesmo tempo, uma vida
a que ninguém ousará aspirar.
E fazes um silêncio, pensando naquela a quem escreveste as
cartas que nunca ninguém leu além de ti, nem ela própria, que
tu olhavas, num escritório cheio de sol e de vento, pensando em
barcos e em velas, enquanto ela pensava no que tu sentirias por
ela, sem saber que o que tu sentias só ela o podia sentir, nesse
reflexo de um tempo onde ela seria, apenas, a sombra de alguém
que poderia ter sido. (E essa súbita sombra turva a tua sombra,
que eu olho, e me assombra.)
     
     
Nuno Júdice,
in Um Canto na Espessura do Tempo, Quetzal, 1992
          
            

        
FERNANDO PESSOA
     
     
Vem ver agora o meu país que já
não tem Camões nem Índias para achar
 tem Pessoa e o império que não há
sentado à mesa como em alto mar.
A viagem que faz é só por dentro
e escreviver-se a única aventura.
No pensamento é que lhe dá o vento
ele é sozinho uma literatura.
Eis vida vidinha cega e surda
ditadura do não do só do pouco.
Ser homem (diz Pessoa) é ser-se louco.
Heterónimo de si na hora absurda
viajando no sentir escreve sentado.
E é Pessoa: “futuro do passado”.
     
     
     
Manuel Alegre,
in Sonetos do Obscuro Quê, Publ. Dom Quixote, 1993
          
              
          
FERNANDO PESSOA
     
     
Oculto no seu corpo e no seu nome
(Aranha que negava a própria teia
Que tecia),
Poeta da Poesia
Sibilina e cauta,
Foi o vidente filho universal
Dum futuro-presente Portugal
Outra vez trovador e argonauta.
     
     
Miguel Torga,
 in Poemas Ibéricos, Ed. de Autor, 1965
          


         
A FERNANDO PESSOA (ELE MESMO)

Cada verso é uma esfinge ter falado.
Mas quanto mais explícito ela o diz,
Mais tudo permanece inexplicado
E menos se apreende o que ela quis.

Erra um sussurro, tão etéreo e alado
Que nem mesmo silêncio o contradiz.
E o ouvi-lo, ou ávido ou irado
Na busca dum segredo sem raiz,

É como se em pensar - um descampado -
Passasse fugitiva e intensamente
O Tempo todo inteiro projectado

E a sombra ali marcasse, na corrente
Do nada para o nada, inda passado
E já futuro, a ficção do presente.

Reinaldo Ferreira, in PoemasVega, 1998
            
        
       
            
          



F. P.
       
       
De rosto em rosto a ti mesmo procuras
e só encontras a noite por onde entraste
finalmente nu – a loucura acesa e fria
iluminando o nada que tanto procuraste.
       
        
Eugénio de Andrade (5-4-1978)
 in O Outro Nome da Terra, 1988



         
      
             
     
 
              
                


FERNANDO PESSOA
       
       
Teu canto justo que desdenha as sombras
Limpo de vida viúvo de pessoa
Teu corajoso ousar não ser ninguém
Tua navegação com bússola e sem astros
No mar indefinido
Teu exacto conhecimento impossessivo.

Criaram teu poema arquitectura
E és semelhante a um deus de quatro rostos
E és semelhante a um de deus de muitos nomes
Cariátide de ausência isento de destinos
Invocando a presença já perdida
E dizendo sobre a fuga dos caminhos
Que foste como as ervas não colhidas.
       
       
Sophia de Mello Breyner Andresen,
in Livro Sexto, Ed. Salamandra, 1962
      
      

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Fernando Pessoa - Apresentação crítica, seleção, notas e sugestões para análise literária da obra de Fernando Pessoa, por José Carreiro. In: Lusofonia, https://sites.google.com/site/ciberlusofonia/PT/literatura-portuguesa/fernando_pessoa, 2021 (3.ª edição) e Folha de Poesia, 17-05-2018. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2018/05/fernando-pessoa-13061888-30111935.html

 



CARREIRO, José. “Fernando Pessoa revisitado”. Portugal, Folha de Poesia: artes, ideias e o sentimento de si, 18-10-2008. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2008/10/fernando-pessoa-revisitado.html (2.ª edição) (Última atualização: 10-07-2023). (1.ª edição: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2008/10/18/revisitarpessoa.aspx)