quinta-feira, 27 de maio de 2010

ANTERO

    
      
ANTERO
    
O reino que procuro é perdido
e vago, sombra de um sonho inquieto
em que me invento e me desfaço.
Ilhas que foram minhas, as despeço
    
por sobra de matéria e de concreto
 – estorvo de lava, sal, um sol finito
ferindo o puro brilho da Ideia.
Ao rosto que desenho sobre o vidro
    
responde um outro de perfil incerto
– anjo, demónio, cavaleiro ou morte.
E, neste jogo a que me entrego e lanço,
    
um fogo me consome em seu amplexo:
fosse eu como os demais, suor e sangue
e sexo!
    
Urbano Bettencourt
Antero (com desenhos de Alberto Péssimo)
Arganil, Editorial Moura Pinto, 2006
            
    
     
    
          
Colecção Antero de Quental (BNP)
    
     
      
                
      
         
        
O COMBOIO INEXISTENTE
       
Quando acabou de arrumar a bagagem, modesta, Antero sentou-se. Era o único passageiro do compartimento, mas este seria, seguramente, um luxo efémero. Lá fora, uma chuva miúda erguia uma cortina de poeira, através da qual uma luz tímida se infiltrava. Para lá dela pressentia-se talvez a extensão rumorosa do mar nesse início de Setembro. E perpassava em tudo um difuso sentimento de abandono e de perda, uma nostalgia sem razão aparente. Ou talvez a sua razão única e suficiente fosse precisamente o facto de alguém entrar num comboio e preparar-se para partir; neste caso, qualquer estação seria sempre um lugar de melancolia. Mas também isso não era assunto definitivo. Não estava ele ali, pronto a arrancar e levado por um projecto optimista que o enchia de esperança no futuro e nos trabalhadores da sua ilha?

Na plataforma em frente, havia agora uma agitação mais acentuada, os passageiros cruzavam-se desordenadamente, nalguns casos as malas chocavam entre si e o som que provocavam esbatia-se contra o gesto e o olhar irritado de quem se sentia perturbado na sua marcha. Um novo passageiro entrou no compartimento. Deixou no ar uma saudação esquiva e sentou-se também, mergulhando na leitura do jornal. Antero pôde, por isso, reparar nos seus olhos claros sobre um rosto oblongo e no tom ruivo da barba e dos cabelos crespos. Traços não muito vulgares a sul, antes fariam pensar num remoto parentesco flamengo. Mas a associação talvez fosse uma simples consequência das indagações que desenvolvia sobre a própria ascendência.

Não esperava grande troca de palavras com o homem diante de si, um pouco à esquerda. O Castelo Branco gostava de repetir que o comboio viera combinar o desfrute da paisagem com o gosto da conversação. Mas a paisagem em si mesma não comovia Antero por aí além; melhor dizendo, só o comovia enquanto objecto já transfigurado pela imaginação lírica. E, quanto a conversas, sentiu de súbito uma saudade imensa e funda do Castelo Branco. Precisava tanto de tê-lo ao seu lado naquele momento, com a têmpera de combatente e a força do coração que lhe davam ânimo e fulgor, quando ele, Antero, se via frente a frente com a realidade. Que falta lhe fazia o Castelo Branco! Só ele lhe preenchia o vazio de senso prático e sabia traçar os rumos concretos para as suas construções abstractas; só no seu ombro encontrava apoio, quando em redor todos os mundos ruíam em cadeia. Um ligeiro soluço marcou o arranque do comboio, depois um andamento hesitante e, finalmente, a marcha normalizada. As imagens do exterior deslizavam sobre a janela como o cenário de um sonho que ele próprio tivesse inventado.

O desconhecido esboçou, então, uma tentativa de comunicação, com umas frases entrecortadas e quase em surdina. E deixou no ar um nome, de que Antero apenas reteve o extremo final, Del Giudice. Sentiu um ligeiro estremecimento interior, a sonoridade fê-lo pensar em Garibaldi... o velho sonho de alistar-se no seu exército. Onde isso já ia... Mas decorreu ainda algum tempo antes que um e outro pudessem chegar ao ponto de falar dos motivos ou acasos da vida que os tinham feito encontrar-se no compartimento de um comboio.

- Vou à procura de uma mulher que saiu de casa atrás de um verso de treze sílabas - declarou Del Giudice, enquanto tentava surpreender no rosto do outro o efeito dessa confissão.

- Não creio que seja uma boa razão para viajar.

- A da mulher ou a minha?

- A sua. Perseguir um verso pode ser um projecto de vida, mesmo que se trate de um verso funesto. Mas lançar-se no encalço de uma mulher por causa disso já me parece intriga de novela de mistério.

E se fosse mesmo? E se um homem decidisse refazer no terreno o roteiro de uma personagem, deixando-se guiar por ela, tentando decifrar aquilo que o seu olhar e o do perseguidor tinham entrevisto? Mesmo sabendo que, no final, a mulher continuará por encontrar.

- O desfecho seria decepcionante.

- Não acho. A própria viagem já seria uma conquista. - E depois de uma breve hesitação: - Mas continuo sem saber que razão ou razões o levam a partir...

- Observações, apenas. Quero avaliar as possibilidades do comboio como meio de propaganda e difusão da revolução. Esta formidável invenção dos tempos modernos poderá contribuir para o esclarecimento e a libertação do povo proletário. Não esqueço que foi através do comboio que a minha geração tomou contacto com as preocupações intelectuais e sociais do nosso tempo. Gostaria de lançar esse projecto na minha ilha.

- Não deixa de ser uma utilização extravagante do comboio.

- Já imaginou o que seria percorrer de comboio uma ilha industriosa como a minha, promovendo sessões com os trabalhadores, levando-lhes as luzes da revolução e fazendo-os aderir às grandes causas e noções de hoje?

E eles estarão dispostos a isso? No final, o desfecho da sua viagem futura talvez venha a ser mais decepcionante que o meu. Vou atrás de uma mulher que existe, e para sempre, desde o momento em que um autor lhe deu vida pela escrita. Você vai atrás de uma vaga figura possível, a revolução. Uma figura tão abstracta como os deuses que você rejeita e para os quais encontrou um sucedâneo que é a sua cópia.

- Aí é que se engana. Com o empenhamento dos espíritos esclarecidos e a preparação da consciência pública, a revolução será uma realidade concreta, transformando a sociedade no ponto de vista político, económico e religioso!

- Gostava de partilhar desse entusiasmo, mas não é fácil. Aliás, já vi escrito em qualquer lado que uma única revolução é possível ou antes inevitável em Portugal: é a revolução anárquica da fome, mas essa não precisa que ninguém a promova, nem pode ser matéria de programas políticos.

- Todos passamos por momentos de desânimo - condescendeu Antero, por fim, antes de os dois se remeterem de novo ao silêncio.

O comboio atravessava agora uma zona de neblina que reduzia o mundo exterior a uma tela cinzenta, sobre a qual um perfil de fantasma irrompia, a espaços, para logo se esfumar na voragem da velocidade. O rumor regular dos rodados produzia no compartimento uma atmosfera de bolha submersa, incapaz de subir à superfície. Sem o saberem, avançavam ambos como se a noite fosse um destino.
      
Urbano Bettencourt, “O comboio inexistente”
in Comboio com Asas (org. Antonio Fournier)
Funchal, Funchal 500 Anos, 2008.
     
     
Manuel Urbano Bettencourt Machado (1949), professor, escritor, poeta. É natural da ilha do Pico e reside em Ponta Delgada
        


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PODERÁ TAMBÉM GOSTAR DE:

  Apresentação crítica, seleção, notas e sugestões para análise literária de textos de Antero de Quental, por José Carreiro. In: Lusofonia – plataforma de apoio ao estudo da língua portuguesa no mundo, 2021 (3.ª edição) <https://sites.google.com/site/ciberlusofonia/PT/Lit-Acoriana/antero-de-quental>


       

[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2010/05/27/Antero.aspx]

sexta-feira, 21 de maio de 2010

AZOREAN TORPOR


Ao longo de oitocentos, o arquipélago dos Açores foi visitado por vários viajantes e naturalistas estrangeiros que escreveram diários, memórias, livros de viagem e estudos científicos. Divulgou-se, então, a ideia do Azorean torpor como uma forma de atavismo característica dos micaelenses, apontando-se o clima, a religião católica e a ignorância dos senhores da terra como possíveis responsáveis por tal pasmaceira. No entanto, os diversos textos são contraditórios, pois ora criticam a indolência e a languidez das atitudes sem pressa, ora elogiam o árduo e rude trabalho da população micaelense.               
“Pasmaceira e Azorean Torpor“ in Dicionário sentimental da ilha de São Miguel de A a Z, 
Fátima Sequeira Dias, Ponta Delgada, Publiçor, Janeiro 2011 (1ª edição)
           


               
 Azorean Torpor é um termo que foi inaugurado pelos irmãos Joseph e Henry Bullar, no livro A winter in the Azores, and a summer at the baths of the Furnas e refere-se ao entorpecimento e apatia que se instalava nos visitantes, por causa do clima, do isolamento, da vastidão. O termo foi reutilizado por Vitorino Nemésio, por Alice Moderno e outros.

            
AZOREAN TORPOR 
       
Onde a vaga retumba eram as obras do porto:
Roldanas, guinchos, cais, pedras esverdeadas
E, na areia da draga, ao sol, um peixe morto
Que vê passar na praia as damas enjoadas.
             
A cidade? Esqueci… Um poeta é sempre absorto;
De mais a mais - talvez paragens abandonadas.
O que é certo é que entrei um dia naquele porto
Em que as próprias marés parecem arrestadas.
             
Porque a mais leve luz que se embeba na Barra
Embacia os perfis dos cais e dos navios
Em frente à linha do horizonte que se perde…
             
E um desconsolo, um não-partir paira nos pios
Das gaivotas sem céu que o vento empluma e agarra
Estilhaçando o arisco mar de vidro verde.
             
Vitorino Nemésio, O bicho harmonioso
Coimbra, Revista de Portugal, 1938 (1.ª ed.)






LINHAS DE LEITURA DO POEMA “AZOREAN TORPOR”

• Caráter descritivo da poesia (mundo concreto de raiz marítima);
• relação de causalidade: o ambiente atua sobre as pessoas e condiciona o seu comportamento;
• insularidade;
• condicionalismos da interioridade; 
• …
  
      
              

      
[MAU TEMPO NO CANAL | AZOREAN TORPOR]

O verão, nas ilhas, não vem com este calor seco e vibrado que no Continente péla os campos e cobre as cidades de um halo dourado de canícula1. Em Lisboa, as cervejarias enchem-se de uma multidão burocrática e postiçamente feliz nos tormentos que lhe traz a teimosia da lã, e que só um ou outro casaco alvadio2 atenua com ar de clown3 metido em procissão de penitência. Mas em vão o Serviço Meteorológico dos Açores, orgulhoso do seu comando europeu de anticiclones e de alísios, telegrafa aos guardiães do teórico turismo insular as médias aritméticas de uma temperatura de encomenda. Não se pode escrever dos Açores (apetece dizer, à moda de Camilo, como os leitores viram pelos precedentes capítulos...); não se pode escrever dos Açores, como no BAEDEKER4 da Madeira: clima marítimo temperado, benigno de inverno, suave e fresco no verão. Jamais alguém viu um inglês vestido de branco em dezembro nas ruas pacatas da Horta, ou tomar sorvetes num hotel de Ponta Delgada ou das Furnas, como já tem acontecido no Monte, no Funchal, na noite de Ano Bom, enquanto as sereias dos paquetes urram aos novos doze meses e os cachos de fogo-de-artifício transfiguram um céu de Cítera5.
(Olá, Veloso amigo! Aquele outeiro
          É
 melhor de descer que de subir?)
Um céu de algodão sujo tolda o arquipélago das nove ilhas; o «mormaço»apaga os contornos do mar e da terra, e, amolecendo os pastos à custa da pele do proprietário e do pastor, dilui e arrasta as vontades, dá a homens e a coisas uma doença quase de alma, a que os ingleses, médicos do bem-estar, puseram uma etiqueta como quem descobre uma planta nova neste mundo seco e velho: azorean torpor.
        
Vitorino Nemésio, Mau tempo no canal,
Lisboa, Bertrand, 1944 (1ª ed.)
               
_____________________
(1) Calor.
(2) Esbranquiçado.
(3) (do inglês) palhaço.
(4) Guia de turismo de um editor alemão.
(5) Ilha da Grécia.
(6)Tempo húmido e quente, amodorrante, que produz torpor.
       
        

LEITURA ORIENTADA DO EXCERTO DE MAU TEMPO NO CANAL
       
1. O clima dos Açores e os seus efeitos sobre os homens e as coisas constituem o tema central do texto de Vitorino Nemésio.
1.1. Releia com atenção todo o texto e transcreva seis expressões ou frases ligadas ao tema referido.
1.2. Quando descreve o verão no Continente e a passagem do ano na Madeira, o narrador está também a descrever sobre o clima dos Açores. Explique o processo utilizado e as ideias que permite exprimir.
2. O segundo período do texto refere-se à Lisboa das primeiras décadas do século XX.
2.1. Que aspetos ressaltam no comportamento dos lisboetas dessa época, durante o verão?
2.2. Como se evidencia o ponto de vista irónico do narrador nesta descrição? Exemplifique com elementos do texto.
3. Releia o último parágrafo e explique, de forma sucinta, a relação que o texto estabelece entre condição climática e comportamento das pessoas.
              
         
EXPLICITACÃO DE CENÁRIOS DE RESPOSTA
       
1.1. Na sua resposta deve apresentar um elenco de citações (no mínimo seis) que cubra as duas componentes referidas (clima e efeitos).
- Caracterização do clima açoriano:
• "O verão, nas ilhas, não vem com este calor seco e vibrado (...)";
• "(...) Serviço Meteorológico (...)";
• "(...) de anticiclones e alísios (...)";
• "(...) temperatura de encomenda (...)";
• "não se pode escrever dos Açores (...) clima (...) benigno de lnverno, suave e fresco no verão";
• "Um céu de algodão sujo (...)".
- Efeitos sobre os homens e as coisas:
• "(...) apaga os contornos do mar e da terra (...)";
• "(...) amolecendo os pastos (...)";
• "(...) dilui e arrasta as vontades (...)";
• "(...) uma doença quase de alma(...)";
• "(...) azorean torpor".
       
1.2. O narrador recorre ao processo contrastivo, isto é, define o clima dos Açores por oposição às características do verão no Continente e do inverno na Madeira:
- por um lado, ao descrever o verão no Continente, caracterizado pela intensa luminosidade, pela secura e pela aridez da natureza, o narrador sublinha alguma amenidade do verão açoriano;
- por outro lado, na perspectiva do narrador, o inverno dos Açores é destituído da suavidade climática que esta estação tem na Madeira onde, contrariamente ao que ocorre no arquipélago açoriano, a temperatura amena permite vestir "de branco em dezembro", ou "tomar sorvetes (...) na noite de Ano Bom", vendo o espetáculo do "fogo de artifício".
       
2.1. As pessoas acorrem às cervejarias - espaço de descontração, associado ao verão – mas envergam trajes convencionais, em nada conformes com a estação estival e mais apropriados ao inverno. O uso generalizado de vestuário pesado e escuro confere um ar inusitado e ridículo a quem, adequando o vestuário a estação, use roupas mais ligeiras e claras.
       
2.2. Ao descrever o comportamento dos lisboetas no verão, o narrador fá-lo com ironia, destacando, através da inadequação entre o vestuário e a estação do ano, a mentalidade rígida e convencional que lhe subjaz:
- num registo humorístico, o narrador salienta a falsa felicidade ("postiçamente feliz") dos lisboetas e associa-os a penitentes que, sofrendo os "tormentas" que lhes traz "a teimosia da Iã", formam uma "procissão de penitência";
- o ridículo desta situação atinge o seu auge, segundo o ponto de vista do narrador, quando este regista o "ar de clown" que, ao olhar dos outros, adquire quem se veste de acordo com a estação do ano ("um ou outro casaco alvadio").
       
3. Estabelece-se uma relação de causalidade, pois o clima actua sobre as pessoas e condiciona o seu comportamento. Com efeito, o "mormaço" gera um ambiente pardacento e depressivo:
- regista-se a perda de vontade própria ou, segundo o narrador, instala-se "uma doença quase de alma";
- a reacção das pessoas e de tal modo determinada pela especificidade das condições climáticas dos Açores que os ingleses a designaram por "azorean torpor''.
    
Prova Modelo do Exame Nacional do Ensino Secundário nº 139 (Português B 12º Ano), Lisboa, GAVE, 1998.
        
José Carreiro, Sete Cidades, 2006-11-18

    
          


  
SPLEEN
             
Dezembro, dia pluvioso. Vem
Deste céu de burel um spleen mortal
Onde as almas se atolam como alguém
Que caísse num vasto lodaçal.
             
Olho em torno de mim: as cousas mesmas
Têm um ar de desgosto sem remédio...
E as horas vão, morosas como lesmas,
Rastejando por sobre o nosso tédio.
             
O véu cinzento e denso que se espalha
 por fora, empanando as perspetivas.
Dir-se-á também que as almas amortalha
E afoga as suas vibrações mais vivas.
             
Roberto de Mesquita (Flores, 1871-1923),
Almas Cativas e Poemas Dispersos 
Lisboa, Edições Ática, 1973 (1.ª ed.)
                     
       
    
                                                              *


    
Hoje madruguei em Angra, a velha cidade açoriana ainda adormecida no seu bioco de névoas.
    
Não é o nevoeiro conhecido das nossas latitudes continentais europeias, nem o nevoeiro londrino, envolvente e raso ao solo, que refrange a luz a amarelo e se faz solidário com tudo.
    
É uma massa de vapor de água esparso em véus, que se ajeitam às formas arredondadas dos montes de pedra-pomes e se esparramam aqui e acolá em estratos – ora movediços, ora estáticos - compondo de repente uma espécie de campânula sobre a ilha.
    
Essa tampa de terrina tanto pode abafar-nos por uns dias como durar apenas uma manhã ou uma tarde - ou, ainda, resolver contrair-se e cobrir só um recanto do ambiente, e finalmente dissipar-se, deixando em seu lugar um amplo azul-celeste, cortado a tons de opala, que uma ou outra nuvem leitosa e meio esvaída vem manchar.
       
Vitorino Nemésio, Corsário das Ilhas
Segundo corso (Os moinhos do donatário)
Lisboa, Bertrand, 1956 (1.ª ed.)
             
      

      
  

             
            
«Azorean torpor», chama-lhe Vitorino Nemésio, o meu poeta português de cabeceira, com exactidão irónica, um pouco à moda de quem descreve o fado como “the sentimental song of Portugal”. Muito típico, “very typical “, ou seja, verdadeiro e falso ao mesmo tempo, vago, exagerado e certeiro, como todos os Clichés.
poema fala de uma placidez potenciada mas também esmagada por uma linha do horizonte sempre visível, uma condição insular, e isolada, que passa da geografia para a consciência individual. Segundo o dicionário, “torpor” é o “estado de diminuição da sensibilidade ou de movimento de alguma parte do corpo; adormecimento; (fig.) inacção da alma; indiferença”. Interessa-me o sentido literal, um certo adormecimento (que porém não me parece que implique “diminuição de sensibilidade”), um certo “tedium vitae”; mas registo sobretudo o sentido figurado, de “inacção da alma”, curiosa mistura de conceitos, que supõe que possa haver uma “alma”, coisa imaterial, cheia de “acção”.
Conheço uns quantos açorianos e estive em (apenas) duas ilhas dos Açores, mas as definições abrangentes do dicionário e os versos irónicos de Nemésio jogam bem com aquilo que tenho observado. Porque nenhum dos açorianos meus amigos ou conhecidos apagou por completo uma pontinha de tristeza que é umas vezes quase depressiva, outras apenas dormente, melancólica, entorpecida, justamente. Como se assumissem, mais do que a outra gente, a sua condição de ilha, ilha humana, um homem como uma terra rodeada de mar por todos os lados. Quase todos os açorianos com quem me cruzei são divertidos, sarcásticos, portam-se um pouco como se viessem “de fora” e quisessem acentuar esse estatuto. Mas todos são também um bocadinho desanimados, como se uma nuvem de chuva os perseguisse. E do que mais gosto neles, lembram-me os irlandeses, celtas ilhéus, gente que fez do torpor grande poesia.
E embora use aqui de forma abusiva o termo “açorianos”, como se houvesse um condicionamento geográfico da personalidade, a verdade é que encontrei em terras açorianas os mesmos paradoxos. A começar pela eventual contradição, que na verdade não é, de serem os açorianos orgulhosos da sua terra e cansados dela, teimosamente autonomistas e completamente portugueses. Quando, num poema de Sapateia Açoriana, Vitorino Nemésio diz que são “nossas” as furnas, as pipas do vinho velho, as carroças do peixinho, creio que ele diz que são “portuguesas”, ou seja, que é o poder central (à data, proto-comunista) que não está à altura das coisas portuguesas, das coisas “nossas”, e que por isso os Açores têm que zelar pela integridade das nossas coisas, incluindo, como se discutiu à época, através de um acto de independência, ou seja, serem independentes para melhor serem portugueses. Porque de um “torpor” acorda-se, o torpor não é um coma, está, quanto muito, entre comas.
Por isso valorizei sempre nos Açores e nos açorianos uma certa distância. Parece-me que os responsáveis açorianos não fazem questão de que o arquipélago se torne num destino turístico concorrido, talvez por considerarem o turismo um chinfrim que estraga a beleza e o sossego. E apreciei sempre nos açorianos uma certa insatisfação, mesmo quando triunfam no “continente”, fica-se com a ideia de que lhes importa mais o que pensam deles na sua ilha.
É como se um açoriano fosse um primo afastado, daqueles que têm a tristeza inexplicável das pessoas que conhecemos mal, mas que usam um nome igual ao nosso, um nome que vem de longe, e que eles usam com um orgulho de aristocrata.
          
           *


TORPOR

sobe um sussurro cinzento ao chão da baía

o remo remove carrancas
membros de duendes em coito furtivo de desvairo

abafa a barra pesada parda toldada
que amassa as nuvens maciças
lassa a força
safa o sol

cega a luz da sudação da terra

embala a vaga a bote

a ilha dorme


Vasco Pereira da Costa, Ilhíada
Angra do Heroísmo, SREC, 1981, p. 76.
  


     
            
"Azorean Torpor" dá título ao espetáculo do teatro toitoiÉ um espetáculo de inverno, de nevoeiro e chuva, resultante da impressão do grupo durante o mês de residência artística que fez na ilha de São Miguel. É um espetáculo-museu baseado em correspondência postal recolhido na ilha.



                               
           
SUGESTÕES DE LEITURA
      
       
       
          
      
    

     
[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2010/05/21/azorean.torpor.aspx]