sábado, 13 de agosto de 2011

POEMA-MONTAGEM (Raul Brandão/José Carreiro)

     
http://www.guayasamin.com/pages/index.html
                
     
      
I

Tem as mãos como cepos.
Para contar fio a fio a sua história
bastava dizer como as mãos se lhe foram deformando
e criando ranhuras, nodosidades, côdeas,
como as mãos se foram parecendo
com a casca de uma árvore.
O frio gretou-lhas,
a humidade entranhou-se,
a lenha que rachou endureceu-lhas.
Sempre a comparei à macieira do quintal:
é inocente e útil e não ocupa lugar,
e não vem primavera que não dê ternura,
nem inverno sem produzir maçãs.
            
Há seres criados de propósito para os serviços grosseiros.
Por dentro a Joana é só ternura, por fora a Joana é denegrida.
A mesma fealdade reveste as pedras. Reveste também as árvores.
              
Mal se compreende que depois de uma vida inteira
esta mulher conserve intacta a inocência de uma criança
e o pasmo dos olhos à flor do rosto.             
             

Recreação de Húmus, Raul Brandão
[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2011/08/13/humus.aspx]


     
exposición “CUBA PINTA A GUAYASAMÍN”
    
            
     
II

Todos nós somos árvores.
Há que tempos que deitamos flor
pelo lado de dentro.
Fomos sempre construções vivas,
árvores estranhas que bracejam para o interior
do tronco, ramos e tinta,
mais ramos desmedidos e tinta,
revestidos de casca pelo lado de fora.
Foi por dentro que crescemos,
e só por dentro nos era lícito crescer,
cada vez mais alto até a morte intervir.
           
Até as árvores estranhas, até as árvores só tronco,
que metiam os ramos e a tinta para o interior,
bracejam à custa de gritos ramos e tinta,
ramos desmedidos e tinta para o lado de fora.
               
Recreação de Húmus, Raul Brandão
[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2011/08/20/humus2.aspx]
  

               MANOS DEL TERROR - OSWALDO GUAYASAMÍN, MUSEO GUAYASAMÍN (QUITO, ECUADOR)
    
      
     
    
III

Continham-na arames enferrujados,
o medo da morte, o hábito de crer em Deus
(sabendo bem que deus já não existia),
fantasmas, cacos de armadura
que derruíram de um dia para o outro.
       
Descobrir que não há Deus,
que alegria! Põe a gente à vontade.
Respira-se de outra maneira.
Descobrir que a morte não é inevitável
endurece. O mundo muda de aspecto.
Agora é que eu contemplo a vida– e me perco na vida.
Eu sou a árvore e o céu, parte do espanto,
vivo e morro ligado a isto.
       
Com que destino rio ou choro
entre o enxurro de ouro
e os impulsos tremendos
que vêm não sei donde
e caminham desabaladamente
para um fim que não distingo.
       
Tenho medo de mim mesmo!
Que é isto, este sonho, esta dor,
esta insignificância entre forças desabaladas?
Onde hei-de pôr os pés?
Nunca o acaso pariu nada tão monstruoso
e tão grotesco como isto a que se chama a vida
Recreação de Húmus, Raul Brandão
[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2011/08/27/humus3.aspx}
  
  
*
  
  
Oswaldo Guayasamín, El grito II, 1983
   
     
      
E, todavia, sei-o hoje, só há um problema para a vida, que é o de saber, saber a minha condição, e de restaurar a partir daí a plenitude e a autenticidade de tudo – da alegria, do heroísmo, da amargura, de cada gesto.
Ah, ter a evidência ácida do milagre do que sou, de como infinitamente é necessário que eu esteja vivo, e ver depois, em fulgor, que tenho de morrer.
A minha presença de mim a mim próprio e a tudo o que me cerca é de dentro de mim que a sei – não do olhar dos outros.
Os astros, a Terra, esta sala, são uma necessidade, existem, mas é através de mim que se instalam em vida: a minha morte é o nada de tudo.
Como é possível?
Conheço-me o deus que recriou o mundo, o transformou, mora-me a infinidade de quantos sonhos, ideias, memórias, realizei em mim um prodígio de invenções, descobertas que só eu sei, recriei à minha imagem tanta coisa bela e inverosímil.
E este mundo complexo, amealhado com suor, com o sangue que me aquece, um dia, um dia – eu o sei até à vertigem – será o nada absoluto dos astros mortos, do silêncio.
     
Vergílio FerreiraAparição, 1959
      
   
Segundo Jean-Paul Sartre, o existencialismo parte exclusivamente do homem (O Existencialismo é um Humanismo). “Neste sentido, o existencialismo é um optimismo, uma doutrina de acção”. O que importa é o que o homem faz com o que fizeram dele. O homem, responsável pela sua existência, constrói, conscientemente, o seu próprio projecto de vida.
   
http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2007/02/28/morte.aspx