quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

SER SOLIDÁRIO | SER SOLITÁRIO (José Mário Branco)

  
     
      
Nunca, até “Ser Solidário”, um cantor se expusera desta maneira.
      
Quem assiste mais do que uma vez ao espetáculo vê a cena repetir-se, como um ritual, noite após noite. Num crescendo, a música vai conquistando espaço por entre a plateia, rendida em aplausos. Quase duas horas após o início, já num "estado de aquecimento emocional" (como lhe chamou José Mário Branco), o público exige o regresso do cantor ao palco.
      
É então que ele apresenta o tão ansiado "FMI".
        

     




          
“Um texto que eu escrevi de um só jorro, numa noite de Fevereiro de 1979”.

           
Começa irónico, mordaz, a provocar sorrisos de autocomplacência ou assentimento. Mas depressa imprime um pesado silêncio pelo tropel das palavras, o desafio, o insulto.

Partindo de um tema que no discurso musical lembra "Talking Union", de Pete Seeger, José Mário Branco evolui para algo muito próximo das invetivas radicais de Ferré ou da ironia provocatória de Almada Negreiros na "Cena do ódio".  Mas vai mais longe: como numa espiral, a raiva acumulada cede lugar ao choro, ao sussurro, ao desencanto. Não pode haver razão para tanto sofrimento, diz, em voz velada, exausto, passada a violenta tempestade de sentimentos contraditórios que o leva a gritar bem alto o seu ódio ao vazio: "Mãe, ó mãe!!/ Eu quero ficar sozinho/ Eu não quero pensar mais./ Mãe, eu quero  morrer, mãe/ Quero... desnascer/ Ir-me embora/ sem sequer ter de me ir embora...”

Mas a esperança subsiste para lá de todas as tempestades do espírito. E o deserto consente a miragem redentora, a vitória da luz sobre as trevas, o "d" de solidário a afastar o "t" de solitário (trocadilho presente na capa do disco e inspirado num conto de Camus) num abrir de braços para um futuro sem tempo, algures no cosmos: “O meu sonho é a luz que vem do fim do mundo, dos vossos antepassados que ainda não nasceram” Assim, “para lá da vida”. “Por sobre a morte”. Para concluir, na simplicidade da paz reencontrada: “Diz lá, valeu a pena a travessia?... Valeu, pois.”
     
Nascido na ressaca do processo de expulsão da Comuna, com retroativos por ter sido expulso do PCP(R) em 1979, o “FMI” surge para José Mário Branco da “necessidade de encontrar um sentido para a vida fora dos clichés ideológicos". E é, tal como a primeira peça do Teatro do Mundo ("A Secreta Família", estreada em Julho de 1979), uma espécie “de vómito” emotivo. “Um texto profundamente confessional e catártico, uma conversa que me é permitida exclusivamente com a gente da minha geração... E na qual as outras gerações (a de antes e a de depois) são só atingidas por tabela” (Expresso, 09-04-1982). Daí que, em 1982, o “FMI” surgisse num disco à parte, em maxi-single, e selado com a seguinte indicação: “Por determinação expressa do autor fica proibida a audição pública, total ou integral, deste disco”.
          
Eu Vim de Longe, eu Vou p’ra Longe (Chulinha)”: composta já no contexto do Teatro do Mundo, em 1979, é uma espécie de retrato pragmático do percurso político do cantor, das suas crenças e desilusões; um dos temas mais retidos à data da edição do LP, em concertos ou na rádio.
             
Nuno Pacheco, «O deserto e a miragem», apresentação do álbum, 1996.
      
      
      
      
      
EU VIM DE LONGE, EU VOU P’RA LONGE (CHULINHA)
Letra e música de José Mário Branco.
        
1.
Quando o avião aqui chegou
Quando o mês de Maio começou
Eu olhei p’ra ti
E então eu entendi
Foi um sonho mau que já passou
Foi um mau bocado que acabou
      
Tinha esta viola numa mão
Uma flor vermelha noutra mão
Tinha um grande amor
Marcado pela dor
E quando a fronteira me abraçou
Foi esta bagagem que encontrou
        
Refrão
        
  Eu vim de longe, de muito longe
  O que eu andei p’raqui chegar
  Eu vou p’ra longe, p’ra muito longe
  Onde nos vamos encontrar
  Com que temos p’ra nos dar
     
E então olhei à minha volta
Vi tanta esperança andar à solta
Que não hesitei
E os hinos que cantei
Foram frutos do meu coração
Feitos de alegria e de paixão
        
Refrão
       
2.
Quando a nossa festa se estragou
E o mês de Novembro se vingou
Eu olhei p’ra ti
E então eu entendi
Foi um indo sonho que acabou
Houve aqui alguém que se enganou
      
Tinha esta viola numa mão
Coisas começadas noutra mão
Tinha um grande amor
Marcado pela dor
E quando a espingarda se virou
Foi p’ra esta força que apontou
      
Refrão
      
E então olhei à minha volta
Vi tanta mentira andar à solta
Que me perguntei
Se os hinos que cantei
Eram só promessas e ilusões
Que nunca passaram de canções
      
Refrão
      
3.
Quando finalmente eu quis saber
Se inda vale a pena tanto q’rer
Eu olhei p’ra ti
E então eu entendi
É um lindo sonho p’ra viver
Quando toda a gente assim quiser
      
Tenho esta viola numa mão
Tenho minha vida noutra mão
Tenho um grande amor
Marcado pela dor
E sempre que Abril aqui passar
Dou-lhe este farnel p’ró ajudar
      
Refrão
      
E agora eu olho à minha volta
Vejo tanta raiva andar à solta
Que já não hesito
E os hinos que repito
São a parte que eu posso prever
Do que a minha gente vai fazer
      
Refrão (final)
      
      
         
      
ORIENTAÇÃO DE LEITURA 
    
Em Ser Solidário J.M.B. revela um desencanto relativamente a uma «travessia». Comente a posição do cantor.

Destaque expressões da letra da canção «Eu vim de longe...» que aludam a essa «travessia» e interprete-as.
          

          
Poderá também gostar de:
   
 Poesia útil e literatura de resistência” (A literatura como arma contra a ditadura e a guerra colonial portuguesas), José Carreiro

   
                

[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2011/12/14/FMI.aspx]

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