sábado, 14 de janeiro de 2012

DESCE POR FIM SOBRE O MEU CORAÇÃO O OLVIDO (Camilo Pessanha)

      
          No poema “Olvido”, do poeta português Camilo Pessanha, a paz da morte aquieta “por fim” o coração, extinguindo o desejo e a saudade.
         

 

Carolina Eyck (Facebook, 2022)


  
         
OLVIDO

Desce por fim sobre o meu coração
O olvido. Irrevocável. Absoluto.
Envolve-o grave como véu de luto.
Podes, corpo, ir dormir no teu caixão.

A fronte já sem rugas, distendidas
As feições, na imortal serenidade,
Dorme enfim sem desejo e sem saudade
Das coisas não logradas ou perdidas.

O barro que em quimera modelaste
Quebrou-se-te nas mãos. Viça uma flor...
Pões-lhe o dedo, ei-la murcha sobre a haste...

Ias andar, sempre fugia o chão,
Até que desvairavas, do terror.
Corria-te um suor, de inquietação...
             
Camilo Pessanha, Clepsidra, 1920.
       
           
o meu coração
Figura convencional do íntimo e do sentimento pessoal, o coração é também fonte de consciência e de memória.            
            
Através da imagem inicial do poema, somos levados a acompanhar o percurso de descida que o “olvido” faz até ao coração, como se de matéria tratasse. Ao colocar o sujeito da frase em último lugar, antepondo-lhe o verbo ”descer” e alargando-o com a locução adverbial “por fim”, provoca-se no leitor uma certa expectativa.
Eis que, finalmente, chega o esquecimento, o repouso. “Irrevocável. Absoluto.” Dois termos, cada qual constituindo uma frase exata. Aceita-se aquela descida sem ripostar. Aliás, a repetição do advérbio “por fim” (verso 1) e “enfim” (verso 7) leva-nos a afirmar que a morte já era ansiada pelo sujeito poético. O “olvido” é aqui metáfora da morte.
A atmosfera envolvente, “grave como o véu de luto”, é intensa, sendo desse mesmo modo recriada pela materialidade dos versos, principalmente quando se satura a primeira quadra do soneto com os termos mórbidos “luto”, “caixão” e, até, “corpo”. Obviamente, um corpo já cadáver, assim visto pelo poeta ao indicar-lhe eufemisticamente o lugar de repouso mediante o uso do verbo “dormir” nesta e na quadra seguinte. Sente-se como que uma necessidade em assegurar o aniquilamento total do corpo, sede de sentimentos e pensamentos. Por isso, ainda nos dois primeiros versos da segunda estrofe, o poeta parece comprazer-se em caracterizar “as feições” daquele corpo moribundo que finalmente atingiu o estado de serenidade tão contrário às movimentações intrínsecas do mesmo corpo em vida, sendo estas designadas no poema pelas palavras “desejo” e “saudade”.
O poema provoca-nos, assim, duas impressões: por um lado, a de que estamos perante alguém que descansa em paz; por outro lado, o poeta desdobra-se e dirige ao seu corpo em vida, transmitindo-nos a sensação de inquietação.
A partir do último verso da segunda quadra e nos dois tercetos seguintes, o poeta, dirigindo-se ainda ao corpo, convoca momentos seus em vida que não são eufóricos nem de prazer. O último terceto demonstra bem essa displicência levada ao extremo, visível no verbo “desvairar” e nos substantivos “terror”, “suor” e “inquietação” que, por sua vez, contaminam negativamente os verbos de movimento “andar”, “fugir” e “correr”.
Um corpo que em vida tinha uma ação nefasta sobre os objetos que tocava e modelava:
“Viça uma flor…
Pões-lhe o dedo, ei-la murcha sobre a haste…”
Quanto ao “barro” que havia modelado, “em quimera”, o mesmo se lhe quebrou nas mãos. Reconhecemos nesta alusão a imagem bíblica arquetípica da criação, aqui invocada talvez como metáfora da criação artística do próprio poeta. Em estado de quimera, diz ele. Em estado de devaneio amoroso? De qualquer modo, este estado visionário é o motor do ato impetuoso de modelar o barro, as palavras, a escrita...
Enfim, o exercício de recordar de que é constituído este poema não parece ser feliz para o poeta, pelo facto de os objetos de desejo e saudade serem, respetivamente, “coisas não logradas ou perdidas”, isto é decetivas. E assim se justifica, na segunda estrofe, a qualificação da “serenidade” da morte como imortal. A paz da morte aquieta “por fim” o coração, extinguindo o desejo e a saudade.
           
José Carreiro.
http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2012/01/14/Olvido.aspx
         
         
         
            


Realismo e simbolismo em Clepsidra
O ponto de partida do poema é a afirmação «Desce por fim sobre o meu coração/ O olvido». A expressão «por fim» remete para experiências anteriores e faz do momento em que é pronunciada uma conclusão (definitiva, como o prova o «Irrevocável. Absoluto.»; mas cada poema, apesar do que o liga aos outros e é repetição do já descoberto ou dito neles, é sempre um recomeço.). A comparação «como véu de luto» torna presente a ideia da morte; os versos seguintes descrevem-na imaginando-a. Mas o véu de luto cobre apenas o coração, pois é sobre ele que desce o olvido; ora bruscamente o poema fala da morte do próprio corpo e vai descrevê-la com certa minúcia. Interpretamos que morto o centro da sensibilidade e da afetividade é o próprio corpo que morre. A isso nos convida, pelo menos, o sujeito deste poema. É importante verificar, no entanto, que a morte é descrita como «imortal serenidade», como situação sem tensões em que não existem nem o desejo nem a saudade «Das coisas não logradas ou perdidas»; um tempo em que não existem o passado nem o futuro, nem as rugas que desenha na fronte a inquietação. As feições são aqui descritas simbolicamente (mas respeitando a tradição realista) como a parte visível dos sentidos, como uma manifestação do espírito.
Olvido, elogiando a morte, elogia Sobretudo a ausência das paixões (que a morte simbólica do coração implica e explica). Mas os tercetos continuam a explicar para o leitor o passado que conduziu ao «por fim» do primeiro verso. Aí nos é dito (aí o sujeito do poema se diz), numa linguagem ainda mais claramente simbólica, que o barro «que em quimera modelaste / Quebrou-se-te nas mãos»; que se toca uma flor, da «murcha sobre a haste»; que se ia andar, sempre lhe «fugia o chão». E que a consequência de tudo isto era: desvairar de terror, suar de inquietação. Só os dois últimos versos do poema parece aceitarem ao mesmo tempo uma leitura realista e uma leitura simbólica; nos outros a interpretação realista recua para o segundo plano e cede claramente o lugar à leitura simbólica, que generaliza o fracasso do sujeito que assim se exprime no poema. Se o olvido parece ser bem aceite («por fim» exprime também a satisfação de ter enfim atingido uma meta esperada ou desejada) é precisamente pelas razões evocadas nos dois tercetos; e a evocação do fracasso nestes seis versos explica as coisas «não logradas ou perdidas» da segunda quadra. O barro que se quebra, a flor que tocada murcha, o chão que foge sob os pés, aparecem como a constatação de um fracasso. Mas a importância destas expressões não residirá essencialmente em que elas denunciam a incapacidade ou a impossibilidade de acesso ao real, a distância que separa o sujeito do poema do mundo exterior e da própria existência que nele lhe é imposta? E de novo temos de sublinhar que a derrota só surge depois da tentativa de luta; e que ao aceitar a morte ou ao desejá-la (que mais não seja simbolicamente e em imaginação), o poeta parece admitir apenas a sua fraqueza, o desencanto, a sua impossibilidade de se opor a um mundo que tentou conquistar mas que se lhe revelou hostil.
João Camilo, «Realismo e Simbolismo em Clepsidra», Boletim de Filologia, tomo XXIX, Lisboa, Centro de linguística da Universidade de Lisboa, 1984, pp. 295-296.
         

            
A construção do sujeito poético e a noção de tempo na poesia de Camilo Pessanha
A perspectiva pessimista, base do Simbolismo e do Decadentismo, provoca nos sujeitos a vontade de deixar de viver. O desejo de morte é constante. Esse põe fim aos sofrimentos do indivíduo porque o devolve a sua condição originária, entendida como unidade primigênica, em que todas as coisas estão em comunicação. A concepção positiva da morte como libertação dessas “inúteis agonias” é expressa neste outro poema de Pessanha. [“Olvido”]
O poema causa em nós, leitores, duas impressões, a primeira é que estamos diante de um indivíduo que está morto e , por isso, agora, pode descansar em paz; a outra, talvez a mais forte e também oposta à primeira, é a sensação de inquietação, sobretudo devido ao último verso, que parece contaminar a nós, leitores. Essas duas impressões contrárias devem-se justamente ao trabalho poético empreendido por Pessanha, tanto no campo semântico, como no sonoro, o que permite a simultaneidade de contrários para ir além do tradicional e dizer o que é indizível. Segundo Octavio Paz:
Há imagens que realizam o que parece ser uma impossibilidade tanto lógica quanto lingüística: as núpcias dos contrários. Em todas elas – apenas perceptível ou inteiramente realizado –  observa-se o mesmo processo: a pluralidade do real manifesta-se ou expressa-se como unidade última, sem que cada elemento perca sua singularidade essencial (...) O dizer poético diz o indizível. (Octavio Paz, Os filhos do barro. (Trad. Olga Savary). Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1984, p. 49)
Assim, apoiando-se nessa afirmação de Paz, se pode dizer que o poema repousa sobre dissonâncias de sensações do sujeito poético e isso ocorre por meio da escolha de elementos e imagens dissonantes que, por sua vez, evocam no leitor o mesmo estado de espírito dividido entre tranqüilidade e perturbação.
A metáfora de morte, já que o sujeito diz que o olvido, isto é, o repouso desce sobre o seu coração, abre o primeiro quarteto. No segundo verso, através dos pontos finais no meio do verso, o poeta qualifica o olvido como irrevocável e absoluto e isola as duas idéias. Tendo em vista que o olvido é metáfora de morte podemos pensar que essa se caracteriza como algo que não se pode revogar ao contrário é soberana e toma o eu de modo absoluto, ou seja, pleno, não só o coração do sujeito, mas todo seu ser, pois nos outros versos temos a descrição das feições e da fronte tranqüilas apossadas pela morte.
A escolha pelo verbo descer é explicada pelo verso seguinte, no qual o sujeito afirma que o olvido desce sobre o seu coração e o envolve com um véu. Portanto, através dessa imagem, a morte é metaforizada pelo baixar o véu do adormecimento sobre o coração. Por isso, o sujeito pode dizer ao seu corpo que a hora de descansar “enfim” chegou; o advérbio “enfim” evidencia que a morte já era ansiada pelo sujeito. Essa analogia da morte como adormecimento faz-se presente nestes outros versos de Pessanha:
Porque melhor, enfim,
É não ouvir nem ver...
Passarem sobre mim 
E nada me doer! 

Sorrindo interiormente, 
Co’ as pálpebras cerradas, 
Às águas da torrente
Já tão longe passadas. ‑

Rixas, tumultos, lutas, 
Não me fazerem dano... 
Alheio às vãs labutas,
Às estações do ano.
 
Passar o estio, o outono, 
A poda, a cava, e a redra, 
E eu dormindo um sono 
Debaixo de uma pedra.
Da mesma maneira que no soneto, nesses versos, o sujeito poético deseja dormir o sono da morte, pois já se acha cansado das “vãs labutas” bem como de “rixas, tumultos e lutas”. As “vãs labutas” ilustram, tal qual em “Foi um dia de inúteis agonias” a concepção da inutilidade da vida. Por isso, a morte, ao invés de aterrorizadora, é benéfica e vem possibilitar sossego ao sujeito atormentado pelas frustrações da vida.
Voltemos ao soneto. O verbo descer, que inicia o primeiro quarteto (“ Desce enfim sobre o meu coração”), relaciona-se com o caixão, última palavra da estrofe, visto que o corpo morto no caixão deve ser baixado à cova.  No entanto, assim, como a imagem da morte, o caixão, objeto mórbido no qual se deposita o corpo para, assim, ser sepultado, é despojado de sua significação corrente para despontar outro significado, que o aproxima do leito de dormir, cristalizando a imagem da morte como adormecimento.
Os sons vocálicos repetidos no quarteto, a assonância das vogais /e/, /u/ e /o/, sugerem idéia de algo escuro e de morte, justamente a significação dessa estrofe, na qual o sujeito afirma que o corpo, defunto, pode “dormir” no caixão.  Nesse mesmo quarteto, tem se ainda a rima interna dos vocábulos “meu” “véu” e “teu” que criam eco que reitera o anseio de morte do sujeito poético: “meu coração”, “véu de luto” e “teu caixão”. Aliás, o poema contém muitas palavras com a sílaba tônica na vogal fechada e velar /u/: “meu”, “absoluto”, “véu”, “luto”, “teu”, “rugas”, “quebrou”, murcha e “suor”. Esses vocábulos guardam o sentido do poema e o enfatizam, já que a vogal /u/ provoca a sensação em quem a articula de objetos fechados e de morte, como o caixão de que trata o primeiro quarteto.
A musicalidade é colocada a serviço do conteúdo e o enforma também: a insistência sobre tais grupos de fonemas é devida ao fato de que o som pode evocar ou acentuar imagens e sensações. Segundo Antonio Candido, “nós sentimos uma tal eficácia no efeito sonoro, que somos levados a perguntar, de novo, se no caso do signo literário, e sobretudo poético, não ocorreria uma espécie de arbítrio dentro do arbítrio”(Antonio Candido, O estudo analítico do poema. São Paulo, Editora da FFLCH/USP, 1967, p. 29). Nesse poema, bem como em muitos outros de Clepsidra, a motivação dos signos, ou seja, a relação significado/significante atinge tamanha eficácia que parece, em parte, contradizer a arbitrariedade saussuriana do signo. No entanto, o valor de escuridão e morte não se produz apenas no som da vogal, mas em toda a sonorização do tema, ou seja, na simbiose entre expressão e conteúdo. Portanto, a imagem no poema precisa das duas esferas do signo para ser suscitada, porque, apesar de aquela ser sensação visual, o apelo aos outros sentidos, sobretudo à audição, contribui para sua evocação.
Nessa primeira estrofe, temos a presença direta e íntima do sujeito poético, ilustra da pela expressão “meu coração”, como se vê abaixo:
Desce enfim sobre o meu coração
O olvido. Irrevocável. Absoluto.
Envolve-o grave como véu de luto.
Podes, corpo, ir dormir no teu caixão.
Na verdade, o sujeito poético é construído no poema metonimicamente, conhecemos suas partes: coração, mãos, fronte, feições, dedo e até mesmo seu suor. O sujeito dá-se a conhecer “aos pedaços” porque as partes apresentadas representam intensamente o eu. Além disso, a composição fragmentada do sujeito poético, acentuada, também, pela sintaxe construída por frases curtas e estanques, deve -se ao fato de o Eu estar fragmentado como já comentado anteriormente na análise de “Foi um dia de inúteis agonias”.
A elasticidade de ritmos é proporcionada por esse tipo de sintaxe utilizada nos versos em estudo: frases breves, períodos interrompidos ou deixados em suspenso. Essa sintaxe com frases estanques e os versos com certos enjambements permitem efeito rítmico inovador. O processo de liberdade rítmica, bem como o de todas as intensificações dos recursos sonoros, ilustram a importância da presença da música na poesia para os simbolistas; ilustra, além disso, a renovação métrica proposta pelo Simbolismo que culminará, mais tarde, no verso livre modernista.
Embora o poema seja um soneto petrarquiano com versos decassílabos, o poeta inova na acentuação, na cadência dos versos. Mesclam-se dois tipos de decassílabos clássicos, o heróico e o sáfico, com outros de acentuação deslocada e com acentos secundários, como podemos observar abaixo:
Desce enfim sobre o meu coração
O olvido. Irrevovel. Absoluto.
Envolve-o grave como véu de luto.
Podes, corpo, ir dormir no teu caixão.

A fronte já sem rugas, distendidas
As feições, na imortal serenidade,
Dorme enfim sem desejo e sem saudade
Das coisas não logradas ou perdidas.

O barro que em quimera modelaste
Quebrou-se-te nas mãos. Viça uma flor...
Pões-lhe o dedo, ei-la murcha sobre a haste...

Ias andar, sempre fugia o chão,
Até que desvairavas, do terror.
Corria-te um suor, de inquietação...
Portanto, a musicalidade do poema é marcada, tanto pela alternância rítmica quanto pela recorrência de determinados sons. Além das assonâncias, é possível perceber a aliteração das consoantes oclusivas surdas /t, /c/ e /p/ e sonoras /d, /g/ e /b/ que imita ruído seco e repetitivo como, por exemplo, o bater de um coração. No entanto, essa repetição provoca dissonância se a aproximarmos da noção semântica do texto, visto que o coração do sujeito poético está em repouso, ou seja, não bate mais. Nesse caso a dissonância som/conteúdo, ao invés de prejudicar a significação do poema, serve para acentuar a desarmonia patente de repouso/inquietação construída pelo poeta. Outra vez são duas faces da mesma moeda. Tensão e dualidade que se completam e que não existem uma sem a outra. 
A idéia da morte como adormecimento e repouso é retomada no segundo quarteto. Aliás, como podemos observar, o único verbo conjugado em todo o quarteto é “dormir”, o que evidência a quietação e o sossego do sujeito poético:
A fronte já sem rugas, distendidas
As feições, na imortal serenidade,
Dorme enfim sem desejo e sem saudade
Das coisas não logradas ou perdidas.
As rugas da fronte já não são mais visíveis, pois essa se encontra distendida. As rugas apontam para as preocupações, para as marcas do tempo passado, do que foi vivido pelo sujeito. Além disso, com a morte, as feições encontram-se “na imortal serenidade”; já que nada mais pode causar sofrimento ao indivíduo, suas expressões faciais não podem ser alteradas. O desejo e saudade, característicos do ser humano, modificam nosso estado de espírito continuamente e nos fazem sofrer, tais preocupações e angústias na morte deixam de existir. As imagens de morte do primeiro quarteto dada pelos vocábulos “caixão”, “luto”, e “olvido”, e as imagens do segundo quarteto de serenidade apresentadas pela fronte sem rugas e pelo verbo dormir atuam na construção do sujeito poético que ao experimentar o estado de morto é tomado pela placidez.
A idéia da morte como ausência de sofrimento deve-se à concepção do sujeito poético de Clepsidra, para ele, a vida resume-se na decepção e na inutilidade de esforços; logo, o único caminho possível é a desistência e a resignação. Segundo Franchetti, esse é o “tom específico de Pessanha que a partir da experiência da decepção vai propagando imagens de quietação, da ausência do desejo, da morte que constituem o tecido simbólico mais característico de Clepsidra (Paulo Elias Allane Franchetti,Nostalgia, Exílio e Melancolia: Leituras de Camilo Pessanha, São Paulo, Edusp, 2001, p. 92). No poema em análise, deparamo-nos com o ápice da passividade e da inação, já que o sujeito encontra-se morto. Não há nem mesmo a ação passiva de contemplar a realidade, que é decepcionante, pois se resume em “coisas não logradas ou perdidas”. De fato, como afirma Seabra Pereira, a noção de passividade e aniquilação dos desejos é constante na poesia finissecular:
A aniquilação do sentir parece na poesia decadentista, o necessário caminho para abrandar a ulceração do ser humano, causada pela vibração infrutífera do amor, pela desgraça, pela agitação vã do espírito confiante ou pela angústia de mergulhar na complexidade do próprio íntimo. (Carlos Seabra Pereira, Decadentismo e Simbolismo na Poesia Portuguesa, Coimbra, Centro de Estudos Românicos, 1975p. 278.)
Devido a essa concepção da vida, presente no soneto em estudo, “Desce emfim sobre o meu coração”, o advérbio “emfim”, que aparece no primeiro verso desta composição, é repetido no sétimo, para enfatizar que, como a existência é dolorosa, a morte é esperada, ou, mais que isso, ansiada, pois emerge como libertação dos sofrimentos do eu. Viver no mundo é experiência trágica e dolorosa à qual a morte põe um fim, ou utilizando-se das próprias palavras do sujeito poético, a morte é o estado mais feliz no qual o indivíduo é libertado do desejo “das coisas não logradas ou perdidas”. Nesse estado de morto do sujeito poético, desaparece todo o sofrimento, como sugerem as feições que estão na “imortal serenidade”. De acordo com Schopenhauer:
até aqui o que resulta é que a morte, por mais temida que seja, não pode ser propriamente  mal algum. Muitas vezes ela aparece como um bem desejado, como uma amiga bem vinda. Qualquer um que se deparou com obstáculos intransponíveis para sua existência ou para suas aspirações, que sofria doenças incuráveis, ou desgostos inconsoláveis, tem como último refúgio, que muitas vezes se oferece por si mesmo o retorno ao ventre da natureza, do qual, como também toda outra coisa, por breve tempo emergira, seduzido pela esperança de condições mais propícias de existência do que as aí encontradas, e a partir da qual, o mesmo caminho de saída sempre lhe permanece aberto. Esse retorno é a cessuo bonorum.(SCHOPENHAUER, Arthur, Metafísica do Amor/Metafísica da Morte. Trad. Jair Barbosa. São Paulo, Martins Fontes [s/d], p. 71).
Portanto, como afirma Schopenhauer, o sofrer e a dor são intrínsecos à existência do ser humano. Essa idéia, que perpassa todo o poema, está presente também nestes versos, nos quais se afirma que a ausência de dor é também ausência de vida:
Porque a dor, esta falta de harmonia, 
Toda luz desgrenhada que allumia 
As almas doidamente, o ceo d’agora,
 
Sem ella o coração é quase nada:
Um sol onde expirasse a madrugada, 
Porque é só madrugada quando chora.
(Camilo Pessanha, “Tenho sonhos cruéis: n’alma doente”)
Nesses versos, o poeta utiliza-se de uma maneira indireta de dizer que tudo é dor, que seu coração é somente dor. A imagem da madrugada ligada ao choro, ou seja a idéia de dor, evoca o terceto anterior, já que a dor é comparada às luzes irregulares, possivelmente, vindas das estrelas, que existem na madrugada. O poeta, ao dizer que só é madrugada quando chora, substitui a definição de dor, apresentada nos versos do primeiro terceto (“esta falta de harmonia/Toda luz desgrenhada que allumia/As almas doidamente, o ceo d’agora”) pelo verbo chorar, que expressa dor e tristeza. Assim, sem dor não há coração, como sem luzes irregulares, as estrelas, não existe madrugada. Essa perspectiva da dor indissociável do indivíduo é apresentada também pelo soneto “Desce emfim sobre o meu coração”, pois o coração, métafora do sujeito poético, só pode libertar-se da dor por meio do olvido, ou seja, por meio da morte.
Voltemos ao poema “Desce enfim sobre o meu coração”, deixado em suspenso. No primeiro terceto, o sujeito evoca imagens que indicam a transitoriedade da vida:
O barro que em quimera modelaste 
Quebrou-se-te nas mãos. Viça uma flor,
Põe-lhe o dedo, ei-la murcha sobre a haste...
O “modelar o barro em quimera” alude à fragilidade e ao caráter vão dos sonhos projetados pelo sujeito, os quais, como ele sugere, não foram concretizados, mas quebraram-se e perderam-se. Já a flor que murcha é representação da efemeridade das coisas frente ao fluir inexorável do tempo, ela é tão efêmera que basta um toque para murchá-la. A fugacidade dos sonhos e da vida é indicada, no campo sonoro, pela aliteração das sibilantes que apontam o esvair de algo, que pode ser o tempo, ou ainda, o esmorecimento e dissipação do próprio indivíduo, noção semântica de todo poema.
É interessante notar a oposição entre o tempo do indivíduo, que é lento, demonstrado pelo advérbio “enfim”, que aparece, como anteriormente notado, duas vezes, e o tempo breve das coisas, simbolizado pelo tempo da flor. Essa perspectiva temporal é construída, sem dúvida, pelo desencanto do sujeito poético com a realidade, que se resume à “coisas não logradas “ou perdidas” e pelo desejo constante de morte.
O indivíduo tem de esperar o transcorrer do tempo de toda a sua existência para “emfim”, morrer, e experimentar esse total estado de felicidade, enquanto a flor, rapidamente, viça e murcha. A espera pelo sereno repouso é dolorosa e cansativa para o sujeito, pois ele tem certo afrouxamento da noção temporal; esse descompasso do eu em relação ao tempo em que está inserido deve-se a sua inadaptação à realidade circundante, aos novos valores do mundo moderno. Tal idéia é expressa no último terceto:
Ias andar, sempre fugia o chão,
Até que desviravas, do terror.
Corria-te um suor, de inquietação...
O advérbio “sempre” ajuda na construção do sujeito poético como inadequado na medida em que intensifica esse desajuste, já que mostra um sujeito que, em momento algum, encontra lugar para si no mundo, ao contrário, ao, imbolizado, observar a realidade a perdia de vista e desvairecia, quer dizer, desorientava-se. O sentimento difuso de inquietação que este sujeito experimentava em vida é comum no final dos Oitocentos, conseqüência do estado irreversível de decadência de toda Europa. Na verdade, o progresso e as novas tecnologias não resolveram as dúvidas metafísicas, a que afligiam o homem, como comentado anteriormente, porém só destruíram antigos valores, fazendo-o experimentar intenso sentimento de crise e angústia.
Os tercetos do soneto opõem-se aos quartetos, quer pela escolha lexical, quer pela pontuação – os versos finais terminam em reticências, que indicam que o tom grave, sereno e tranqüilo dos quartetos desaparece e sobressai a angústia. A ausência de movimento ou, ainda, do passar do tempo, já que os verbos dos quartetos encontram-se no presente, sugerindo atemporalidade, cede lugar a verbos cujos tempos verbais indicam ação no passado e passagem do tempo. Além disso, “o suor de inquietação” é algo essencialmente de quem se encontra vivo e absolutamente oposto à imagem de tranqüilidade e serenidade dos quartetos. Assim, a imagem do presente, fixa, permanente, serena, do cadáver com as “feições distendidas”, que não podem ser mudadas, cede lugar ao passado, marcado pelo passar das coisas, noção sugerida pela efemeridade da flor, e por um sujeito absolutamente agitado. Essa justaposição de imagens enfatiza o sofrimento do sujeito em vida e sua felicidade plena experimentada na morte. Os quartetos que apresentam a noção de tranqüilidade referem-se ao presente, no qual o sujeito encontra-se já tomado pela morte, enquanto os tercetos tratam do passado, tempo de sofrimento do Eu.
Não por acaso, a derradeira palavra do último verso, “inquietação”, deixado em suspenso por meio de reticências, cria certa expectativa, que não é resolvida. Ao chegarmos ao fim da leitura, a inquietação parece tomar conta de nós; assim, o poeta demonstra que tal sentimento é parte da condição humana e que apenas na morte é possível esvaziar-se de todos os pensamentos que perturbam e “enfim” quietar-se – o que remete para o início do poema: “Desce emfim sobre o meu coração” é o anseio do eu inquieto, que somente tem paz no esquecimento e apaziguamento propiciado pela morte. Se essa leitura procede, o poema pode ser considerado numa perspectiva cíclica, de fim e recomeço, pois, na conjuntura poética simbolista, ao eu inquieto, dorido, sofrido, não resta saída melhor que descer o coração ao olvido.
A construção do sujeito poético e a noção de tempo na poesia de Paul Verlaine e na de Camilo Pessanha, Melissa Andrea Marietti. São Paulo, USP - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, 2008, pp. 77-87.
             
                            
                              

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 Vida e obra de Camilo Pessanha: apresentação crítica, seleção, notas e linhas de leitura / análise literária de Clepsidra e outros poemas, por José Carreiro. In: Lusofonia – plataforma de apoio ao estudo da língua portuguesa no mundo, 2021 (3.ª edição).

       

sábado, 7 de janeiro de 2012

TIAGO NA TOCA E OS POETAS

             

      
Só nós dois é que sabemos
O quanto nos queremos bem
Só nós dois é que sabemos
Só nós dois e mais ninguém
Só nós dois avaliamos
Este amor, forte, profundo...
Quando o amor acontece
Não pede licença ao mundo.

Anda, abraça-me... beija-me
Encosta o teu peito ao meu
Esquece o que vai na rua
Vem ser minha, eu serei teu
Que falem não nos interessa
O mundo não nos importa
O nosso mundo começa
Cá dentro da nossa porta.

Só nós dois é que sabemos
O calor dos nossos beijos
Só nós dois é que sofremos
As torturas dos desejos
Vamos viver o presente
Tal-qual a vida nos dá
O que reserva o futuro
Só Deus sabe o que será.
            
“Só nós dois”, poema e música de Joaquim Pimentel.
Do álbum/ livro: Tiago na Toca e os Poetas
            
                                         Tiago na Toca e os Poetas
        
                  
Tiago na Toca e os Poetas
O álbum reúne poemas que Tiago Bettencourt musicou no Verão de 2008, entre os álbuns Jardim e Em Fuga
            
O músico Tiago Bettencourt lança esta semana Tiago na Toca e os Poetas, um álbum no qual canta poemas de autores portugueses na companhia de amigos, e que surge acompanhado de um livro.
           
“Tiago na Toca e os Poetas é um projeto à parte — não é um disco, ou um livro, ou um personagem. É apenas o nome que dei ao conjunto de experiências que faço por intuição ou acaso, distintas dos meus discos de carreira”, refere o músico no texto de apresentação do projeto. Tiago na Toca e os Poetas reúne poemas que Tiago Bettencourt musicou no Verão de 2008, entre os álbuns Jardim e Em Fuga.
      
O disco é composto por 13 temas, entre eles, “Cavalo à Solta”, um poema de José Carlos Ary dos Santos, que Tiago Bettencourt canta com Fernando Tordo, e “X”, de Florbela Espanca, que o músico interpreta com a fadista Carminho. No álbum, participam ainda Camané, Mafalda Nascimento, Inês Castel-Branco, Pedro Castro, Pedro Gonçalves (Dead Combo), Dalila Carmo, Tiago Maia e Pedro Puppe (Oioai). A solo, ou com companhia, Tiago Bettencourt canta também poemas de Sophia de Mello Breyner Andersen, Alexandre O’Neill, Fernando Pessoa e David Mourão Ferreira, entre outros.
     
Além de um álbum, Tiago na Toca e os Poetas é também um livro, que o músico elaborou em conjunto com o ilustrador Mário Belém. “O ‘Tiago na Toca’ deixou de ser apenas um álbum de música e passou a ser um objeto único, limitado, especial. Cada poema está acompanhado de um texto escrito por mim com o relato de cada gravação. O meu pai escreveu um prefácio”, refere o músico.
     
O disco/livro está à venda em exclusivo nas lojas FNAC e todo o lucro das vendas reverte a favor da Associação Ajuda-me a Ajudar.
    
       
Tiago na Toca e os Poetas
       


Poema: “A Pedra”, José Blanc de Portugal
Música: Tiago Bettencourt
Do álbum/ livro: Tiago na Toca e os Poetas

           
           
                 
Tiago Bettencourt
Espreitámos a sua toca, os seus poetas
          
Tem um disco lá dentro, mas parece um livro. É um livro, mas vive de poemas musicados e cantados. Tiago na Toca e os Poetas é um objeto artístico híbrido, que apetece ter nas mãos.
           
É uma espécie de pausa na discografia oficial do ex-vocalista dos Toranja, que se dedicou a (re)visitar os seus poetas, em registo lo fi. Depois de ter passado por três hotéis (em Arganil, Évora e Sagres) em concertos superintimistas, Tiago Bettencourt, 32 anos, vai apresentar este disco-livro em janeiro, em palcos de Lisboa, Porto e Coimbra.
           
Apresenta este novo trabalho pela negativa: «Não é um disco, ou um livro, ou um personagem.» É o quê?
Gravei este material entre o meu penúltimo e o meu último álbum [O Jardim, de 2007, e Em Fuga, de 2010], porque queria fazer o que me apetecesse, experimentar com total liberdade... Primeiro, pensei em disponibilizar estes temas só na net, mas, depois de musicar alguns poemas, senti que estava ali um conjunto de canções engraçado, que podia ser editado. É um bocado a minha persona mais indie, fora da indústria...
         
Como é essa toca? É a sua casa?
Sim, o disco foi todo gravado num estúdio caseiro, que hoje é muito fácil de conseguir, centrado num computador. Podem ouvir-se os vizinhos a jantar, ou a campainha a tocar... Todas as faixas foram gravadas em takes contínuos, num registo muito lo fi, muito distante das grandes produções...
         
Musicou poetas que o fizeram «começar a escreve». Que nomes lhe ocorrem logo?
Sophia ‑ o meu pai tinha várias primeiras edições dela, que me marcaram muito... ‑, David Mourão Ferreira, Pedro Homem de Mello, Florbela Espanca, Pessoa e outros...
         
Refere também o fado. Foi uma porta importante para a literatura e a música?
Sim, sem dúvida. Houve uma altura, por volta dos meus 15/16 anos em que comecei a ouvir fado todos os dias. Ainda mais do que a partir da leitura, fiz ali um autêntico curso de poesia, e de como cantar boas letras em português.
         
Tiago na Toca e os Poetas vai pagar IVA reduzido, como um livro, ou a taxa normal, como um disco? Acha que essa distinção faz sentido?
Não sei... Mas isso não faz mesmo sentido nenhum. Acho que toda a gente concorda que os discos são cultura. Essa distinção só pode ter a ver com interesses paralelos, que nem sei quais são, a pequenez dos interesses que tantas vezes ganha importância em Portugal.
        
Pedro Dias de Almeida entrevista Tiago Bettencourt
Visão nº 981, 22 a 28 de Dezembro de 2011 (secção “Cultura/Pessoas”, p. 112)
         


Poema: “X”, Florbela Espanca
Do álbum/ livro: Tiago na Toca e os Poetas
Voz: Carminho
Piano: Tiago Bettencourt
Música: Tiago Bettencourt


         
X
Eu queria mais altas as estrelas,
Mais largo o espaço, o Sol mais criador,
Mais refulgente a Lua, o mar maior,
Mais cavadas as ondas e mais belas;

Mais amplas, mais rasgadas as janelas
Das almas, mais rosais a abrir em flor,
Mais montanhas, mais asas de condor,
Mais sangue sobre a cruz das caravelas!

E abrir os braços e viver a vida:
- Quanto mais funda e lúgubre a descida,
Mais alta é a ladeira que não cansa!

E, acabada a tarefa... em paz, contente,
Um dia adormecer, serenamente,
Como dorme no berço uma criança!
         

   


 [Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2012/01/07/TiagonaTocaeosPoetas.aspx]