terça-feira, 31 de dezembro de 2013

CREPUSCULAR (Camilo Pessanha)



CREPUSCULAR

Há no ambiente um murmúrio de queixume,
De desejos d’amor, d’ais comprimidos…
Uma ternura esparsa de balidos
Sente-se esmorecer como um perfume.

Às madre-silvas murcham nos silvados
E o aroma que exhalam pelo espaço
Tem delíquios de gozo e de cansaço,
Nervosos, femininos, delicados.

Sentem-se espasmos, agonias d’ave,
Inapreensíveis, mínimas, serenas...
Tenho entre as mãos as tuas mãos pequenas,
O meu olhar no teu olhar suave.

As tuas mãos tão brancas d’anemia...
Os teus olhos tão meigos de tristeza...
É este enlanguecer da natureza,
Este vago soffrer do fim do dia.
   
    
        
Camilo Pessanha. Clepsydra; poemas de Camilo Pessanha. Estabelecimento de texto, introdução, crítica, notas e comentários por Paulo Franchetti.
Campinhas: Editora da Unicamp, 1994, pp. 89-90.
        
        
        

TEXTOS DE APOIO
        

Aspetos estilísticos da obra de Pessanha: a musicalidade, Barbara Spaggiari (1982)

Pseudo-ápice, Gilda Santos e Izabela Leal (2007)

Uma poética do signo, da imagem e da sugestão, Fernanda Maria Romano (2013)
        
        


 Melencoliah
        
        
        

ASPETOS ESTILÍSTICOS DA OBRA DE PESSANHA: A MUSICALIDADE

Em «Crepuscular», o tom da poesia é atenuado, como um instrumento que toca em surdina. A atmosfera é abafada e submissa, mas também um pouco triste e banhada de inquietude. Nas primeiras duas estrofes domina entre vogais tónicas o u (murmúrio, queixume, ternura, murcham). E a murmúrio ―onomatopaico ― corresponde no início da segunda estrofe o aliterante murcham, que indica a percentagem de decomposição inerente ao ambiente descrito.

O simbolismo na obra de Camilo Pessanha,
Barbara Spaggiari. Lisboa, ICALP, 1982. Colecção Biblioteca Breve - Volume 66, p. 68.

          

*

          
PSEUDO-ÁPICE

Em “Crepuscular” finalmente tem-se um eu e um tu reunidos […]

Eu e tu surgem cercados de “murmúrio de queixume”, “desejos de amor”, “ais comprimidos”, “aroma” com “delíquios de gozo e de cansaço”, “espasmos”, mãos entre mãos e olhos nos olhos... Isto nas três primeiras estrofes. Mas, quando se pensa tratar-se do encontro amoroso entre homem e mulher, logo surge a suspeita de que aqueles dados sensuais não existam senão “no ambiente”, na natureza tão envolvente que é capaz de motivar os arroubos humanos. E passa-se à última estrofe, que caracteriza a mulher com mãos anémicas e olhos tristes, num “enlanguescer da natureza” e “vago sofrer do fim do dia” (observem-se os clichés da estética romântica), confirmando uma atmosfera de melancolia e fenecimento já prenunciada em madressilvas que murcham e agonias de aves. Recupera-se, pois, o título do poema: tudo se passa ao crepúsculo. Mas que crepúsculo? Só o agonizar do dia? Não será também o crepúsculo de uma relação a dois, de um amor? E este amor existiria mesmo fora da atmosfera lânguida e onírica suscitada pelo crepúsculo?

Ao que tudo indica, mais uma ilusão a desfazer-se… Como no soneto “Floriram por engano as rosas bravas”.

Camilo Pessanha em dois tempos, Gilda Santos e Izabela Leal,
Rio de Janeiro, 7Letras, 2007, pp. 51-52.

         
          

*

         
          

UMA POÉTICA DO SIGNO, DA IMAGEM E DA SUGESTÃO

Já em “Crepuscular”, outro poema de Pessanha, há toda uma expressão sinestésica da hora do ocaso em imagens fortalecidas pelos signos que as constituem.

Logo, na primeira estrofe, a audição mescla-se ao olfato. O sujeito percebe que “há no ambiente um murmúrio de queixume”. Esse rumor que parece ser contínuo e sussurrante, “de ais comprimidos”, sente-se esmorecer como um perfume”. Tal sensibilidade olfativa permanece na segunda estrofe pelas “madre-silvas” e “o aroma que exalam pelo espaço”. Na terceira estrofe, o toque físico parece simultâneo à troca de olhares na declaração do sujeito: “tenho entre as mãos as tuas mãos pequenas / o meu olhar no teu olhar suave”. Notamos, nesse poema, também, um jogo de signos e imagens que culminam nos dois últimos versos da quadra final, onde temos uma grande metáfora para expressar a intensa significação que o poeta dá ao crepúsculo: “é este enlanguecer da natureza,/ este vago soffrer do fim do dia”.

Assim como o ocaso sugere a passagem do dia para noite, fazendo dele um momento efémero, o outono, também presente na obra desse nosso poeta, indica um período de transição entre o verão e o inverno. Se tomarmos, por exemplo, o primeiro quarteto do soneto “Passou o outono já, já torna o frio”, perceberemos que são reveladas, nesse poema da Clepsydra, as imagens de um outono que se rende ao inverno e de um Sol que perde sua intensidade, na mesma transitoriedade das águas límpidas dos rios. Vejamos:

Passou o outomno já, já torna o frio...
— Outomno de seu riso maguado.
Algido Inverno! Oblíquo o Sol, gelado...
— O Sol, e as águas límpidas do rio.



Tese de doutorado apresentada na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da
Universidade de São Paulo, 2013, pp. 114-116.

        
        
        
QUESTIONÁRIOS
        

I

Camilo Pessanha é considerado o expoente máximo da poesia simbolista portuguesa. Os seus versos reúnem o que há de mais marcante nesse estilo de época por traduzirem sugestões, imagens visuais, sonoras e estados de alma, além de notória ausência de elementos que se detenham em descrição ou em referência objetiva.

É correto afirmar que os versos do soneto “Crepuscular” transcritos nas opções, a seguir, traduzem as considerações postas nesses comentários, com exceção de:

(A) “Uma ternura esparsa de balidos,”
(B) “As madressilvas murcham nos silvados”
(C) “É este enlanguescer da natureza,”
(D) “Há no ambiente um murmúrio de queixume,”
(E) “Este vago sofrer do fim do dia.”



        
        

II

Tempo e espaço diluem-se na poesia de Camilo Pessanha, como índice de duração e de impressões confusas. Observa-se, então, em seus versos, uma espécie de nostalgia e de dolorosa sensação de não pertencer a lugar nenhum, sem qualquer possibilidade de assegurar futuro e sucesso. Destaque e comente dois versos que justifiquem essa afirmativa.

“Há no ambiente um murmúrio de queixume,
De desejos de amor, d´ais comprimidos...
Uma ternura esparsa de balidos,
Sente-se esmorecer como um perfume.
……………………………………………
Sentem-se espasmos, agonias d´ave,
Inapreensíveis, mínimas, serenas...
‑ Tenho entre as tuas mãos pequenas,
O meu olhar no teu olhar suave

As tuas mãos tão brancas d´anemia...
Os teus olhos tão meigos de tristeza...
É este enlanguescer da natureza,
Este vago sofrer do fim do dia.”


PESSANHA, Camilo. Clepsidra . Lisboa, Ática, 1975.

        
            
PODERÁ TAMBÉM GOSTAR DE:
      
 Vida e obra de Camilo Pessanha: apresentação crítica, seleção, notas e linhas de leitura / análise literária de Clepsidra e outros poemas, por José Carreiro. In: Lusofonia – plataforma de apoio ao estudo da língua portuguesa no mundo, 2021 (3.ª edição).

 

[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2013/12/31/crepuscular.aspx]

segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

FOI UM DIA DE INÚTEIS AGONIAS (Camilo Pessanha)


  
          
Foi um dia de inúteis agonias, 
Dia de sol inundado de sol.
Fulgiam nuas as espadas frias,
Dia de sol inundado de sol.

Foi um dia de falsas alegrias: 
Dália a esfolhar-se, o seu mole sorriso. 
Voltavam os ranchos das romarias, 
Dália a esfolhar-se, o seu mole sorriso.

Dia impressível mais que os outros dias, 
Tão lúcido, tão pálido, tão lúcido!
Difuso de teoremas, de teorias,

O dia fútil mais que os outros dias.
Minuete de discretas ironias!
Tão lúcido, tão pálido, tão lúcido!
Camilo Pessanha



Nota bibliográfica coligida por J.G. Elzenga:
Manuscrito de 1908, que pertencia ao espólio de Carlos Amaro, com a anotação "(forma definitiva”) 1908, e a assinatura, com uma anotação de Amaro: “Disse-me o Camilo Pessanha que isto era a mais perfeita da sua obra”.
 idiógrafo de 1916, que se conserva no espólio da Biblioteca Nacional de Lisboa;
João de Castro Osório afirma ter sido o soneto ditado em 1916, e depois revisto e corrigido pelo poeta O manuscrito do espólio da BN corrobora essa afirmação, pois é com certeza um idiógrafo, enquanto que as correções nos atestam a revisão de Pessanha. Aliás, a caligrafia não é, de maneira nenhuma, de João de Castro Osório (como afirma Franchetti).
Publicações anteriores:
 O Progresso, de Lamego, (6 de Abril de 1895),
 Ave Azul, de Viseu (15 de Junho de 1899),
 Centauro (Dezembro de 1916).



TEXTOS DE APOIO
[Dissonância entre um estado de espírito de desalento e uma paisagem festiva], Lilás Carriço (1977)
Da teoria à prática: várias ‘formas’ de poesia como reinvençãoChimena Barros da Gama (2008)
A construção do sujeito poético e a noção de tempo na poesia de Camilo Pessanha, Melissa Andrea Marietti (2008)
Camilo Pessanha, Cruz e Sousa e as poéticas da modernidadeAnnie Gisele Fernandes
O “eu” revelado e as máscaras do “eu”José Eduardo Ferreira (2011)


 


[DISSONÂNCIA ENTRE UM ESTADO DE ESPÍRITO DE DESALENTO E UMA PAISAGEM FESTIVA] 
«Foi um dia de inúteis agonias» oferece-nos o contraste entre o dia cronológico inundado de sol no plano natural e o dia psicológico (que ele viveu ou supôs viver), para ele de inúteis agonias, de espadas frias, fulgentes, ostensivamente a exteriorizar a luta vivida de falsas alegrias, impressível, fútil (contrastantemente com o seu prolongado sofrer), minuete de discretas ironias para os outros(?); os ranchos que voltavam das Romarias, a dália a esfolhar-se e o seu mole sorriso (associação do momento vivido à sua possível causa). Recordamos, neste momento, de Camões, ‑ «O céu, a terra, o vento sossegado...» a sugerir uma natureza indiferente, muda, e «Aquela triste e Ieda madrugada» animizada e participante no seu sofrimento. Note-se no soneto o predomínio da frase elíptica, reticente, exclamativa; com repetições a permitir a visualização desse dia de sonhos desfeitos, algumas sugestões como a da alveolar vibrante múltipla r (ranchos ‑ que até recebe o acento principal ‑ romarias) a sugerir barulho festivo. 
Lilás Carriço, Literatura Prática 11º Ano. Porto, Porto Editora1986 (4ª ed.) (1ª ed. 1977)
          
          
*
          
          
DA TEORIA À PRÁTICA: VÁRIAS ‘FORMAS’ DE POESIA COMO REINVENÇÃO
Caso talvez mais emblemático do que chamamos “imagem acústica” está na obra de Camilo Pessanha, que, como simbolista, pareceu saber como quase nenhum outro poeta lusitano, o segredo de se despertar a “mímesis” pelo som. Leiamos um soneto do autor: 
Foi um dia de inúteis agonias,
- Dia de sol, inundado de sol.
Fulgiam nuas as espadas frias.
- Dia de sol, inundado de sol.

Foi um dia de falsas alegrias.
- Dahlia a esfolhar-se o seu molle sorriso.
Voltavam os ranchos das romarias.
- Dhalia a esfolhar-se, o seu molle sorriso.

Dia impressível mais que os outros dias.
Tão lucido, tão pallido, tão lucido!
Diffuso de theoremas, de theorias...

O dia futil, mais que os outros dias,
Minuete de discretas ironias...
Tão lucido, tão pallido, tão lucido!
(1995, p.100)

Ao lermos o poema, percebemos um ritmo lento, como que mole. Pela sua estrutura sintática (poucos verbos), o que nos “saltam” são impressões desse “dia impressível”, como o próprio poema diz. Com efeito, as sensações que nos deixa, não se dão apenas pela metaforização, mas também pelas repetições sonoras: a importante palavra “dia”, por exemplo – foco do poema, e da atenção do eu-lírico, ressoa em nossos ouvidos não apenas por sua repetição (ela aparece seis vezes na composição), mas também pelas rimas internas que com ela formam outras 7 palavras (“agonias”, “frias”, “alegrias”, “romarias”, “theorias”, “ironias”, “fulgiam”). Assim, a reiteração sistemática do hiato “ia”, “ia”, “ia”, torna-se monótona aos ouvidos, dando a impressão do dia fútil cantado pelo poeta. O som em si, pode parecer, pela abertura do “i”, alegre, mas é sua repetição exaustiva que reforça a certa idéia de mesmice.
Lembramos ainda que os estribilhos – repetições de versos inteiros, que são 3 – dão-nos a mesma impressão sonora que a outra repetição descrita; e a escrita das palavras “Dahlia” e “molle”, num mesmo verso, quase nos impulsiona a lê-las com mais vagar, beirando a inércia do “dia”. Aliás, essa alteração ortográfica tão freqüente na Clepsidra, além de ressaltar certa “raridade” da palavra, torná-la incomum, reflete na pronúncia, no som, dando-lhe importância. E o que dizer da aliteração em “l” nos versos em que surgem “Dahlia”, “esfolhar-se”, “molle”, consoante líquida que soa “languidez”? A salvação para essa quase liquidez do dia, essas “inúteis agonias”, talvez estivesse na lucidez, nos versos em que surgem as expressões “tão lúcidos” (aqui, cheios de luz), mas, confrontando ao termo a palavra “pálido” (na composição, sem acento e com dois “l”s), que lhe segue, o poeta mostra-nos uma alternância semântica entre luz (lucido) e falta de cor (pallido), oposição que também parece nos ser sugerida na alternância de vogais acentuadas, cujos sons são tão distintos, nas palavras: “lucido/ pallido”, ambas proparoxítonas.
Sobre este e vários poemas de Pessanha, é certo dizer que o som parece tanto motivar a significação – “impressiva”, neste caso – quanto o enunciado metafórico; não o som de uma palavra, ou de várias que se juntam a esmo, mas de palavras que dependem umas da outras, constituindo um discurso – poético – que se apresenta inseparável de sua matéria sensível: o som. E não podemos mesmo dizer que é possível se chegar a uma “imagem acústica” desse “dia” cantado pelo autor de Clepsydra?
Sentimo-nos então tentados a afirmar que todo poeta, quando se atém às minúcias da potencialidade sonora das palavras combinadas, parece querer mesmo aproximar som e sentido, e metaforizar a significação total de sua composição também pela matéria auditiva – tanto quanto pela construção da metáfora pulsante. O que não saberíamos dizer é se somos condicionados a relacionar assim o som com o sentido pelo fato de o sentido nos surgir primeiro, ou se foi a própria estrutura sonora que o reforçou, que nos impulsionou a pensar o poema como ele nos parece, conforme o pensa Jorge L. Borges: “suspeitei muitas vezes que o sentido é, na verdade, algo acrescentado ao verso” (2000, p.89).
Texto Poético. Revista do GT Teoria do Texto Poético (ANPOLL) (ISSN 1808-5385), volume 5, 2008
          
          
          
          
A CONSTRUÇÃO DO SUJEITO POÉTICO E A NOÇÃO DE TEMPO NA POESIA DE CAMILO PESSANHA
Nos poemas de Clepsidra, a relação do sujeito poético com o tempo é fundamental e aparece em todos eles, ora explicitamente, ora apenas sugerida por imagens que traduzem o état d’âme do eu. Além disso, os procedimentos formais colaboram para cristalizar a composição do sujeito poético em crise, bem como o passar do Tempo, criando quer pelo apelo sonoro, quer por recursos visuais, o retrato do indivíduo em crise do final do século XIX. Assim, afirma o crítico Seabra Pereira sobre as características dessa poesia:
Uma poesia anti-confessional e anti-didáctica, anti-oratória e anti-descritivista, comunica-se nos cheia de sentidos; uma poesia semeada de correlações e imagens negativistas, insinua-se-nos prenhe de uma alusiva e recôndita sabedoria; uma poesia de esteticismo implícito e incoercível, invade-nos com a serenidade da superação do niilismo pela justificação da existência no acabamento da obra e da beleza nela (…) incontornável assumpção da poiesis como fim. (José Carlos Seabra Pereira,Decadentismo e Simbolismo na Poesia Portuguesa, Coimbra, Centro de Estudos Românicos, 1975p. 153.)
De facto, como afirma Seabra Pereira, os poemas de Pessanha, muitas vezes, nos fascinam devido a suas correlações de imagens, que são sempre negativas pois, expressam o íntimo perturbado do sujeito poético. Essa poética anti-didática e anti-descritivista de Pessanha, que se vale dos elementos externos, não para descrever, mas para comunicar outra realidade, apresenta-se de maneira salutar nos versos de “Foi um dia de inuteis agonias”. […]
Ao terminarmos a leitura do poema, somos tomados por duas sensações: fascínio e desconcerto, ambas derivam do trabalho poético empreendido por Pessanha na construção dos significados, o qual passa pela desconstrução lógica dos elementos sensíveis e da realidade circundante e pelo estilhaçamento da sintaxe. Conseguimos, já na primeira leitura, perceber a sensação de monotonia que perpassa todo o poema, sem dúvida, devido às repetições lexicais e sonoras que parecem entorpecer o leitor; no entanto, a sua significação completa parece estar velada, como se, simultaneamente, o poema conseguisse cumprir duas funções paradoxais – exprimir e esconder. É exatamente esse paradoxo que nos seduz em muitos poemas de Pessanha, como corrobora Eugênio de Andrade:
sedução maior pelos poemas de Pessanha está na capacidade de sugerir, de insinuar, de não concluir o que fora começado a dizer, como se dizer não fora para Pessanha o que mais importava. Era a indecisão tornando matéria de poesia, criando-se com essa reticência um enleio, uma subtil cumplicidade com o silêncio entre pensar e sentir. (ANDRADE, Eugénio de, “Camilo Pessanha, o mestre”,Persona, Porto, Centro de estudos pessoanos, número 10, junho de 1984, p. 10.)
De facto, como aponta Fernando Guimarães em Simbolismo, Modernismo e Vanguardas, com o advento da Lírica Moderna, cria-se nova poética que se concentra na busca interior do Eu que conduz a total substituição da estética da mimese pela figuração, substituição que, como evidenciado no primeiro capítulo, já se faz sentir em Baudelaire e Cesário Verde.
No entanto do que trata o poema? De onde vem exatamente seu hermetismo e fascínio? Estamos diante de percepções fragmentadas de um sujeito que estático enxerga o tempo passar. A dificuldade de compreensão reside não no léxico do poema, como é comum em muitas obras simbolistas, nas quais se encontram muitos vocábulos raros; o hermetismo, nesse caso, deve-se aos traços mínimos e fragmentários da realidade. O poema de Pessanha constrói-se por meio de imagens que comunicam o íntimo do sujeito, que sugerem o que é incomunicável pela linguagem tradicional. A lúcida consciência estética dos simbolistas descobre na sugestão a nova linguagem, cabendo ao poeta, por meio dela, evocar uma emoção através de um objeto, ou evocar um état d’ ame:
“A sugestão pode o que não poderia a expressão. A sugestão é a linguagem das correspondências e das afinidades da alma e da natureza. No lugar de exprimir o reflexo das coisas, ela penetra-as e torna-se sua própria voz. A sugestão não é nunca indiferente, essencialmente, é sempre nova porque ela diz o escondido, o inexplicável e o inexprimível das coisas”. (MORICE, Charles, “Littérature de tout à l’ heure” (1889), p. 378, citado por MICHAUD, La Doctrine Symbolistep. 76)
Assim, embora o sujeito poético não apareça explicitamente no poema “Foi um dia de inuteis agonias”, a subjetividade lírica, a maneira de o Eu sentir e conceber o mundo, faz-se fortemente manifesta por meio de imagens; nesse poema plástico, a realidade é moldada e transformada de acordo com as percepções do indivíduo. A construção do sujeito poético no poema é dada pelas escolhas lexicais, sobretudo pela abundância de adjetivos, que traduzem o estado do indivíduo em crise como: “inúteis”, “falsas”, “molle”, “pallido”. Estabelece-se no poema a correspondência entre o interno e o externo, visto que o sujeito enxerga tudo com tal grau de apatia, porque se encontra, prioritariamente, apático, assim, as imagens externas são elementos de construção do sujeito poético que por meio delas é caracterizado como abúlico e desencantado.
A poesia sublima a linguagem e, mais do que isso, transcende seu próprio valor, na medida em que deixa de ser utensílio, isto é, não se comporta mais como conjunto de signos móveis e significantes para ser apenas, ou, sobretudo, poema. Por isso, segundo Octavio Paz, “a linguagem tocada pela poesia cessa imediatamente de ser linguagem” (PAZ, Octavio, Signos em Rotação. Trad. Sebastião Uchoa Leite), São Paulo, Editora Perpectiva, 1996, p.57). Assim, Pessanha, por meio de combinações inusitadas como “molle sorriso” ou “inuteis agonias” parece libertar as palavras da sua significação latente particular, para atingir outra, totalmente nova e só possível no poema.
O poema é a descrição de um dia observado por um sujeito que parece estar à margem da sociedade, não participar da realidade exterior, ou seja, os versos resumem-se na problemática da apreensão da realidade por um sujeito que contempla as coisas acontecerem ao seu redor. Nos dois primeiros quartetos, têm-se certos traços de acontecimentos típicos provincianos: pequeno movimento de pessoas que viviam em aldeias que podem estar voltando de uma jornada de trabalho ou, ainda, de reuniões típicas para rezas. Já nos tercetos, temos somente a caracterização deste dia. A composição inicia-se com o verbo ser no passado, o que indica que, provavelmente, este dia já acabou e está presente apenas na memória do sujeito que o descreve e o analisa:
Foi um dia de inuteis agonias, 
‑ Dia de sol inundado de sol. 
Fulgiam nuas as espadas frias, 
‑ Dia de sol inundado de sol
Embora se trate da descrição de determinado dia observado pelo sujeito poético, a realidade exterior é apresentada a partir de indícios mínimos e vagos. O que mais transparece no poema é o interior do Eu que viveu esse dia. Nesses primeiros versos, o leitor é comunicado apenas de que era um dia com muito sol, “inundado de sol”, e que havia espadas nuas e frias que brilhavam, provavelmente, devido aos raios solares que incidiam sobre elas, já que se encontravam nuas, ou seja, desembainhadas. A expectativa do leitor é quebrada, pois, após a afirmação inicial, esperava-se a explicação da razão das “inuteis agonias”, mas nada é dito claramente, o leitor deve interpretar e descobrir por meio dos indícios vagos dados pelas apreensões do sujeito poético.
A sinestesia aparente na imagem das espadas “nuas e frias”, visão e tato, implica nas espadas estarem visíveis, desembainhadas, e a frieza das lâminas, na possibilidade do sujeito as ter sentido. Ora, a espada é objeto que fere duplamente, corta e perfura; podemos dizer que essa simbologia de dor acentua a noção de sofrimento dos versos, prolongando o tema das “inuteis agonias”. Além disso, a frieza das espadas e a sensação de dor são sugeridas pelo elemento sonoro, a assonância da vogal /i/, que além de proporcionar musicalidade aos versos, evoca no plano sensível, na forma, o que é dito pelo tema, por exemplo, “inuteis”, “dia”, “agonia” e “frias”.
O segundo quarteto, também inicia com o verbo “ser” no passado, com estrutura semelhante a do primeiro:
Foi um dia de falsas alegrias, 
‑ Dahlia a esfolhar-se o seu molle sorriso. 
Voltavam os ranchos das romarias, 
‑ Dahlia a esfolhar-se o seu molle sorriso.
A diferença entre o primeiro verso desse quarteto se comparado com o primeiro verso do primeiro quarteto é a substituição de “inuteis agonias” por “falsas alegrias”; ambas as designações que auxiliam na composição do íntimo do sujeito poético. Essas expressões que se referem ao dia evidenciam a relação dolorosa do Eu diante da realidade circundante, pois apresentam o sujeito poético como alguém pessimista e desencantado diante da vida, pois ela se resume a inutilidades e ilusões; todas as alegrias, são falsas, constituem apenas ilusões que são destruídas rapidamente.
topos das ilusões desfeitas é prolongado e acentuado pelos versos pares do segundo quarteto, como vemos abaixo:
‑ Dahlia a esfolhar-se o seu molle sorriso.
O desfolhar evidencia o passar do tempo e a fugacidade das coisas, pois a dália é flor de características delicadas e sensíveis que perde as pétalas, ou seja, que morre, rapidamente. Essa efemeridade, bem como o passar do tempo, também é sugerida no plano sensível, pela aliteração das fricativas e sibilantes que perpassa todo o quarteto.
Outra perspectiva interessante que nos proporciona a imagem da dália é que seu desfolhar aponta também para o processo de “des-encanto”, pelo qual passou o sujeito poético, visto que as dálias são conhecidas justamente como flores das ilusões devido a sua beleza e baixa durabilidade. As ilusões, as “falsas alegrias”, enganam, são fugazes, duram pouco e desfazem-se rapidamente, tal qual o desfolhar da dália. Além disso, a escolha imagética da dália pelo poeta é extremamente genial e cuidadosa, visto que essa flor liga-se ao ambiente descrito pelo poema: as dálias são flores exóticas e delicadas que não resistem ao frio e necessitam de temperatura quente e luz intensa e difusa, ou seja, a atmosfera descrita pelo sujeito poético, “dia inundado de sol” e “difuso de teoremas e teorias”.
A imagem da dália destoa do acromatismo do poema. Sem dúvida, hoje em dia, existem dálias de várias cores, devido aos avanços da botânica; no entanto, se pensarmos que sua cor antigamente era, sobretudo, vermelho intenso, a escolha dessa flor torna-se interessante no contexto de Clepsidra. Lembremo-nos das duas últimas estrofes do poema “Branco e Vermelho”: 
A dor, deserto imenso, 
Branco deserto imenso, 
Resplandecente e imenso,
 Foi um deslumbramento. 
Todo meu ser suspenso, 
Não sinto já, não penso. 
Pairo na luz suspenso 
Num doce esvaímento. 

Ó morte, vem depressa, 
Acorda, vem depressa, 
Acode-me depressa, 
Vem-me enxugar o suor, 
Que o estertor começa. 
É cumprir a promessa. 
Já o sonho começa... 
Tudo vermelho em flor...
 
Nessas estâncias, o acromatismo perpassa toda a composição até o último verso, no qual a coloração vermelha de uma flor aparece. Além disso, a relação dor e luz também é a mesma de “Foi um dia de inúteis agonias” visto que o excesso de luz, símbolo do exagero de conhecimento, pode ofuscar e causar dor, como apontam os tercetos do soneto. Assim, podemos dizer que a imagem da dália, flor vermelha, tal qual acontece no último verso de “Branco e Vermelho”, destoa do sentimento de luz e dor, desenvolvidos em todo o soneto “Foi um dia de inúteis agonias” e evoca outra realidade, mais agradável, que passa pelo interior do eu. Num nível de significação ainda mais alegórico, se pode pensar que a dália, vermelha, evoca pela intensidade desta cor, a vida, o sangue, que é seiva da vida. Se essa leitura é possível, a dália a esfolhar-se é ainda sinal de vida que se esvai lentamente. Nessa perspectiva, a possível contradição é desfeita, pois, se a vida vai se desfazendo como a dália a esfolhar-se, o indivíduo vai perdendo a cor, a intensidade do sangue, e assumindo a transparência, a brancura excessiva, que evoca o “dia de sol inundado de sol”.
Nos tercetos do soneto “Foi um dia de inuteis agonias”, a caracterização do dia continua e torna-se ainda mais subjetivada, já que os traços da realidade exterior parecem evanescer-se ainda mais. Lembremo-nos dos versos: 
Dia impressível, mais que os outros dias, 
Tão lucido, tão pallido, tão lucido!
Difuso de teoremas e teorias, 

O dia fútil, mais que os outros dias 
Minuete de discretas ironias! 
Tão lucido, tão pallido, tão lucido!
 
Os tercetos iniciam-se com a afirmação do sujeito poético de que este dia de que trata no poema é “impressível”, mais que os outros. Ora, esse dia, comum e tedioso, destaca-se dos restantes, justamente, por ser o dia que o sujeito descreve e analisa, tendo em vista não o exterior, mas o estado interior do indivíduo. Portanto, da mesma maneira que nas composições de Verlaine, em todo o poema constrói-se o movimento de vai e vem, de dentro para fora, do íntimo torturado do eu para o mundo. Nessa oscilação entre eu e mundo, o que mais avulta é o interior do sujeito; logo, as marcas do “dia impressível” fazem-se presente, não devido aos acontecimentos externos, comuns e provincianos, mas porque o eu mergulha-se no seu íntimo em crise. Além disso, o dia de “inuteis agonias” é visto de modo a ajudar na construção do caráter estático do sujeito poético: as cenas acontecem, os eventos do dia se sucedem, como de costume, mas tudo parece dar-se em câmera lenta e num grau de insignificância - aspectos que derivam da percepção do eu, do seu estado de alma, da relação que o eu tem como o mundo. O “timing” com que o sujeito poético olha o mundo é completamente diferente do “timing” do mundo e das coisas. Tudo adquire lentidão, hieratismo.
A noção do dia claro, iniciada nos quartetos, é prolongada nos tercetos, pois apesar de não haver mais referências ao sol, o sujeito afirma que os dias são lúcidos, mas também pálidos. Podemos pensar que lúcido refere-se ao externo que está “inundado de sol”, enquanto pálido, ao interno, ou seja, ao íntimo do eu que se encontra sem vida, apático, possivelmente, devido ao desencanto e frustrações evidenciadas pelas expressões “falsas alegrias” e “inuteis agonias”.
A imagem do dia claro, cheio de sol, é forte, mas não tem força suficiente para mudar o que está pálido; ao contrário, a claridade chega a acentuar o sofrimento do Eu, tornando o sujeito completamente apático e desiludido. Apesar de Camilo Pessanha, neste poema, subverter a imagística decadente-simbolista – a qual se apóia em imagens de outono e poente, na meia-luz –, a claridade do poema serve justamente para acentuar a decadência do sujeito que não consegue expressar nem mínima vontade, ao contrário; a sua situação de crise é tão intensa, que contamina todo o ambiente ao seu redor.
O “dia lucido”, cheio de luz, aponta também para o excesso de conhecimento do sujeito, que sofre por isso. O excesso de luz do dia, marcado pelo sol excessivo, torna tudo pálido, já que a luz excessiva ofusca a visão. Assim, a luz excessiva simboliza o excesso de conhecimento do sujeito poético que, por isso, enxerga as coisas de maneira diferente, pálida. O indivíduo fica a pensar as coisas, criando, como os versos afirmam, teoremas e teorias, ao invés de participar da realidade. Além disso, o vocábulo “difuso” empregado nos tercetos liga-se ao campo semântico de luz de todo o poema, visto que a difusão consiste no espalhamento de raio luminoso através de meio irregular, da mesma maneira que o sol do poema ilumina de modo desigual, idéia traduzida pelos traços soltos e irregulares da realidade.
A falta de ação, característica do sujeito poético, é sugerida pela escassez de verbos do soneto; nos quartetos há apenas três verbos de ação: “fulgiam”, “esfolhar-se” e “voltavam” e o verbo de ligação “ser” conjugado no passado, bem como o particípio passado “inundado” – que, entretanto, pode ser tido como verbo adjetivado. Já nos tercetos, os verbos estão totalmente ausentes, todos os versos são sintagmas nominais. A falta de verbos acentua o caráter abúlico do sujeito, bem como a monotonia e o tédio.
A repetição e o léxico limitado do soneto “Foi um dia de inúteis agonias”, ou seja, a insistência nas mesmas palavras, acentuam a monotonia e evidenciam o tédio do sujeito poético que enxerga tudo sempre igual. Da mesma maneira que o sujeito está cansado porque enxerga tudo sempre igual, o leitor também experimenta um pouco desse cansaço, na medida em que, ao ler o poema, depara-se com palavras e estruturas repetidas. O dia fútil transparece um sujeito entediado que perde um pouco a noção temporal. O sujeito tem clareza mental, analítica: sabe que esse dia engana, em razão de ser o dia que ele analisa, podendo, então, se tornar especial, embora ele saiba que o dia evocado é como todos os outros dias, já que o sujeito poético tem a noção temporal deturpada pelo tédio, que torna os dias iguais, sensações sem fim.
Embora a composição seja um soneto petrarquiano com versos decassílabos, ele não segue o modelo de tese, antítese e síntese, desenvolvendo-se a partir de fragmentos de percepções sensoriais: fragmentos do sentir íntimo do sujeito, como “inúteis agonias” e “falsas alegrias”; fragmentos do ver, como “lúcido” e “fulgiam as espadas”; e, por fim, fragmentos do tato: espadas “frias”, mole sorriso” que são apresentados segundo a lógica íntima de percepção do mundo e das coisas; portanto, sem encadeamento lógico e seqüencial, visto que as imagens dos quartetos podem ser postas em qualquer ordem, pois são estilhaços da realidade. Assim, o sujeito poético mostra o externo e o seu íntimo a partir de fragmentos.
No poema, a sintaxe apresenta-se fragmentada e “picada”; cada verso é estanque, não há articuladores coordenativos, nem subordinativos. Tal qual a realidade e o íntimo do sujeito, a sintaxe fragmenta-se e o processo de subordinação dos versos tem de ser construído mentalmente pelo leitor. O processo de fragmentação da sintaxe evidencia o eu que percebe o mundo por fragmentos e estilhaços, pois, segundo Spaggiari “a realidade refrange-se como num espelho partido: assim dissociada e fragmentada, oferece os seus fragmentos cortantes para construir correlações e analogias”(SPAGGIARI, Bárbara, O simbolismo na obra de Camilo Pessanha, Lisboa, Ministério da Educação e das Universidades,1982, p. 48).
As imagens fragmentadas como estilhaços do sentir íntimo do sujeito poético bem com a sintaxe “picada” permitem a construção do Eu como indivíduo fragmentado, pois a realidade e as sensações estilhaçadas apenas podem ser percepções de um sujeito que também se encontra “aos pedaços”.
Essa técnica de fragmentação da sintaxe não implica em quebra da musicalidade; é justamente a desarticulação do verso que permite a elasticidade da acentuação dos decassílabos do soneto, deixando todo o poema mais fluido. Embora o fato de o soneto ser composto por versos decassílabos possa evidenciar certo classicismo, essa idéia é desfeita quando examinamos a acentuação simbolista; o poeta combina dois decassílabos clássicos, o heróico e o sáfico, com o “decassílabo modernizado”, que aparece, por exemplo, nos versos pares dos quartetos, nos quais a acentuação é deslocada para a 4ª; 7ª; e 10ª sílabas poéticas. Se recortarmos as palavras acentuadas do soneto, temos a noção principal do poema, como por exemplo, no primeiro quarteto: “inuteis”, “agonias”, “nuas”, “frias”, “sol”, “inundado”, “sol”.
Essa acentuação ternária dos versos liga-se ao campo semântico do último verso do soneto: “Minuete de discretas ironias!”. O minute ou minueto abarca duas significações, primeiramente é uma dança em compasso ternário de origem francesa, popular no século XVIII; no entanto, posteriormente, tornou-se hábito dos grandes compositores, como Mozart, Beethoven, incluir minuetos nas suas sonatas e sinfonias, para expressar grande sentimento de angústia. A segunda designação é a que mais avulta no poema, pois o minuete pode representar a própria composição do poeta, ou seja, seu poema, com musicalidade abundante que expressa a angústia do sujeito poético.
O homem, no contexto do século XIX, na sociedade da Reificação, deixou de ser visto como elemento constituído de humanidade e passou a ser considerado como peça de uma máquina, perdendo-se assim a noção de totalidade. Na medida em que o processo capitalista foi se expandindo, as idéias de reificação e fragmentação foram ampliadas; cada indivíduo comporta-se como mônoda. As mônodas são pequenas esferas que se chocam, mas que são incapazes de se fundir. Assim, como afirma João Camilo, a respeito da poesia de Pessanha, a fragmentação dos versos implica apresentar este mundo do final do século XIX em crise:
A não expressão das relações lógicas entre as diferentes partes do discurso dá origem a uma poesia essencialmente fragmentária, em que os diversos elementos ficam a pairar numa liberdade relativa no poema como totalidade fechada sobre si mesma. As relações entre as partes do poema tornam-se em muitos casos puramente implícitas e cabe ao leitor pressenti-las, e se necessário através de varias tentativas encontrá-las (...) O poema perde desse modo em parte a capacidade de nos relevar sentidos claros, de se nos impor como a ilustração de uma visão de mundo transparente. Mas a época de Camilo Pessanha é de crise (crise de valores, pessimismo ontológico) e em vez de apresentar uma visão de mundo ou de propor para o leitor elementos para uma biografia do poeta, os simbolistas pretendem simplesmente, ou antes de mais nada, comunicar impressões, sugerir ambientes. Encarada deste ponto de vista a estética do fragmento implicada pela não expressão parcial ou total das relações lógicas no interior do poema aparece antes de mais nada como uma técnica de composição adaptada à expressão de um estado de espírito determinado pelas condições sócio históricas.(CAMILO, João, “A Clepsidra de Camilo Pessanha”, in Persona , nº10, p. 21.)
O contexto de crise de individualização excessiva e de fragmentação do eu, típicos do final do século XIX, geram outro tema importante: a busca pela unidade perdida é patente na poética simbolista e só pode ser alcançada com a morte; por isso, a imagem da Ofélia morta sobre as águas é cara a essa poética e está presente em mais composições, como nos versos abaixo: 
Ficae, cabellos d’ella fluctuando, 
E, debaixo das águas fugidias, 
Os seus olhos abertos e scismando... 
Onde ides a correr, melancolias? 
E, refractadas, longamente ondeando, 
As suas mãos translúcidas e frias…
(Camilo Pessanha, “Paisagens de Inverno II”)

A Ofélia morta nas águas representa o homem em constante conflito com a sociedade; além disso, o Simbolismo possui predileção por tal imagem porque simboliza a reintegração do homem ao cosmos. A Ofélia está boiando e forma-se ao seu redor um halo para sugerir que ela está lentamente sendo desfeita, decomposta pela água. Nesse sentido, a morte adquire concepção positiva porque é a libertação dos sofrimentos. O sujeito mostra-se desencantado com a realidade e frustrado, de modo que a vida é vista sob a perspectiva pessimista de sucessão de impossibilidades ou perdas irreparáveis, ou, ainda, como o sujeito poético afirma no soneto “Foi um dia de inuteis agonias”, a vida limita-se a “inuteis agonias”, a “falsas alegrias” e a “dias futeis”.
No soneto “Foi um dia de inuteis agonias”, os recursos estilístico-formais, sobretudo a sintaxe fragmentada e a repetição, contribuem para expressar a construção do sujeito poético e sua condição de crise, já que aparece mergulhado em “inúteis alegrias” e em “dias fúteis”, ou seja, numa realidade circundante que lhe é desagradável e lhe causa sofrimento. Essa frustração do Eu é decisiva na perspectiva temporal deturpada, pois faz o indivíduo sentir que o tempo passa lento demais para si mesmo e rápido demais para as coisas.
Melissa Andrea Marietti. São Paulo, USP - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, 2008, pp. 64-77.
          
          
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CAMILO PESSANHA, CRUZ E SOUSA E AS POÉTICAS DA MODERNIDADE
Vê-se, aqui, o princípio simbolista, que antecipa em muitos anos o Círculo Lingüístico de Praga, de que a linguagem deve ser considerada em sua dupla composição de significado e significante: o primeiro, como reitera René Ghil, “é a representação figurada da Idéia”; o segundo, a materialidade, o aspecto físico, dos signos. Quer da perspectiva do significado, quer da perspectiva do significante, os vocábulos existem em intrincada relação analógica uns com os outros – relação que tanto pode manter indissociáveis significado e significante (simbolismo universal e simbolismo textual, para retomar Baudelaire e Fernando Guimarães) como pode gerar uma das tensões possíveis na composição poética simbolista ao permitir leituras diferentes e às vezes conflitantes entre significado e significante, entre textualidade e materialidade dos signos.
Esse processo é evidente, por exemplo, em um poema como “Foi um dia de inúteis agonias”, de Camilo Pessanha, cujos primeiros versos seriam já significativos para o demonstrar: 
Foi um dia de inuteis agonias
Dia de sol, inundado de sol
Fulgiam nuas as espadas frias
Dia de sol, inundado de sol.
... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ...
(PESSANHA, 1994, p. 109).

A sintaxe fragmentada sugere, metaforicamente, a maneira fragmentada com que o sujeito poético apreende o mundo, o real circundante; as aliterações (/f/, /s/, /d/, /m/, /n/) e assonâncias (/i/ e /u/) aproximam analogicamente, pela sonoridade, vocábulos de significado muito diferentes, como “dia”, “inundado”, “fulgiam”, “frias”, e colaboram para a manutenção do estado de dor, de agonia – pelo fechamento e agudização das vogais e pela sensação de prolongamento que as nasais e líqüidas possibilitam. As rimas internas (dia e agonias, no v. 1; fulgiam e frias, no v. 3; inúteis, inundado, nuas e inundado, v. 1 a 4) e as rimas externas (ABAB), bem como as repetições (os versos 2 e 4 são idênticos; o vocábulo “dia” é empregado nos versos 1, 2 e 4) efetivam a ligação material entre versos, sons e imagens – ligação que coesiva e coerentemente muito pouco aparece na composição. As imagens suscitadas por cada verso são tão estilhaçadas quanto cada verso – que, sintaticamente e do ponto de vista da coerência argumentativa, se encerra em si mesmo – e apenas pela figuração (que evoca e reúne os procedimentos estético-formais acima arrolados) é que se estabelece nexo entre as imagens e alcança-se significado possível. 
          
          
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O “EU” REVELADO E AS MÁSCARAS DO “EU”
Este capítulo versará sobre a escrita intimista de Camilo Pessanha pela perspectiva “[...] segundo a qual atentamos para o privado que pode ser observado através do domínio reservado do indivíduo, através do psicologismo ou através da representação do íntimo” (FERNANDES, 2005, p. 185). Além disso, empreenderá todo o esforço na compreensão e leitura do texto para depreender como se constitui formal e estilisticamente o sujeito poético: como se autorrepresenta, o que de si conhece (ou busca conhecer) e como o processo de memória torna-se importante para a sondagem íntima.
Vale frisar, ainda mais uma vez, que não discorreremos sobre o eu biográfico de Pessanha, nem procuraremos subsídios extraliterários para análise do texto. Dito isso, a primeira questão que nos preocupará será a da importância dos mecanismos da memória para a e na construção do “eu”.
Vejamos um primeiro exemplo da relevância da memória para a constituição do sujeito no poema “Foi um dia de inúteis agonias”.
O processo de captação da realidade ou, melhor dizendo, a percepção do real que se depreende do texto de Pessanha, é bastante estilhaçada. Prova isso o facto de o poema ser composto, quase que inteiramente, por orações sintaticamente soltas. Além disso, o poeta lança mão de diversos tipos de repetição ao longo do texto. Notamos que há certo padrão nesse processo: há paralelismo nos versos que abrem os quartetos, assim como naqueles que abrem os tercetos o segundo e quarto versos são literalmente reproduzidos nas duas primeiras estrofes, bem como o segundo verso do primeiro terceto é idêntico ao derradeiro verso do poema. Os únicos versos que não são reproduzidos nem paralelística nem literalmente são os terceiros versos dos quartetos, o último do primeiro terceto e o segundo da última estrofe. Ora, mesmo assim, percebe-se que não se trata de uma disposição gratuita ou repetição meramente refrástica. Percebe-se, também, uma recorrência bastante contundente das consoantes fricativas e das oclusivas linguodentais. Essas reiterações dão acentuada sensação de tédio na relação que esse sujeito tem com o mundo que ele observa.
O verso que abre o poema, semanticamente, aponta já para o tédio do eu lírico. O termo “agonia” significa dor, física ou de alma, daquele que está na iminência da morte. O verbo que inicia o poema (“Foi”) está no pretérito. Lembremos que o tempo passado é o da narrativa. Nesse poema, entretanto, o passado nos chega por um vínculo narrativo quase nulo: em um ou outro verso, há pequenas inserções que podem se aproximar do narrável, mas de forma tão vaga, tão imprecisa, que não os ligamos a trama alguma. Os versos “Fulgiam nuas as espadas frias” e “Voltavam os ranchos das romarias” são, na nossa leitura, os resíduos desse tempo passado que se recusa a tomar forma (na memória e na palavra).
O dia, rememorado por uma voz quase emudecida (porque não narrada) é de “inúteis agonias”, isto é, a dor presente como realidade objetiva nas coisas e nos seres significa que, no limite, pensar que não há razão para a agonia, que não faz sentido ter agonia. Dizer que o sofrimento é inútil ou que a agonia é inútil significa pensar outra coisa: as pessoas sofrem, agonizam, mas isso é inútil, não leva a lugar nenhum. Tal perspectiva torna tudo mais trágico, porque desprovida de qualquer esperança. Na conjuntura cristã, por exemplo, ou mesmo platônica, sofrer significa passar por um processo catártico, de purificação. Ao afirmar que a agonia é inútil — ou que sofrer é inútil — o sujeito indica que não há qualquer perspectiva de evolução espiritual, de qualquer ascese. Numa vertente do simbolismo, isso é perfeitamente possível e compreensível, já que se deseja tão somente retornar ao Mundo Natural, à pátria primigênica.
Outro componente do poema que chama a atenção é a atribuição invertida, quase antitética, que ele dá à concepção de claridade. Se “luz” é, normalmente, imagem para razão, esclarecimento, calor (=luz solar) e, de alguma forma, elevação, esse sujeito poético percebe a luz como obstáculo para a visão, pois um dia com muito sol, com muita claridade, faz com que apareça uma espécie de véu pela própria luminosidade. Ou seja: excesso de luz também não deixa ver bem. Não se mira diretamente o sol, pois a intensidade de seu brilho impede o olhar direto para o centro irradiador de luz. Analogamente, o homem, encerrado em sua caverna, longe do ideal, não consegue contemplar senão sombras. Além do sol, outra imagem de luz que ocasiona ou perda momentânea da visão, ou, pelo menos, o desvio do olhar de quem a contempla é o brilho de “espadas frias”.
Nada do que dissemos, contudo, parece penetrar no âmago do poema. Aparentemente, é esse o horizonte do texto. A claridade que tanto possibilita a visão, quanto, em excesso, pode prejudicá-la, é a relação que se estabelece entre poema e leitor na abordagem do texto feita até aqui. Para o “eu” que presencia a cena que suscita o desencadeamento imagético do texto, a luz abunda. Para quem lê, míngua. Míngua porque o que nos oferece esse eu lírico distante, indiferente, são pequenos fragmentos estilhaçados de uma cena aparentemente provinciana.
Sentimos estranhamento ao ler esse texto porque a forma de captação do real desse eu lírico é, na verdade, uma tentativa vã de absolutizar em fragmentos a fluidez das imagens do mundo. Incapaz de retê-las, sobra a melancolia que brota dessa visão em pedaços de quem não consegue transformar em “ação real” a percepção do ambiente. Bergson, em Matéria e Memória, dá uma explicação que nos parece apropriada ao que vimos considerando: 
Em nossa percepção entrará, portanto, algo de nosso corpo. Todavia, quando se trata dos corpos circundantes, eles são, por hipótese, separados do nosso corpo por um espaço mais ou menos considerável, que mede o afastamento de suas promessas ou de suas ameaças no tempo: é por isso que nossa percepção desses corpos só desenha ações possíveis. Ao contrário, quanto mais a distância diminui entre esses corpos e o nosso, tanto mais a ação possível tende a se transformar em ação real, a ação tomando-se mais urgente à medida que a distância decresce. E., quando essa distância é nula, ou seja, quando o corpo a perceber está em nosso próprio corpo, é urna ação real, e não mais virtual que a percepção desenha. Tal é precisamente a natureza da dor, esforço atual da parte lesada para recolocar as coisas no lugar, esforço local, isolado e por isso mesmo condenado ao insucesso num organismo que já não é mais apto senão aos efeitos de conjunto. A dor, portanto, está no local onde se produz. como o objeto está no lugar onde é percebido. Entre a afecção sentida e a imagem percebida existe a diferença de que a afecção está em nosso corpo, a imagem fora de nosso corpo, E por isso a superfície de nosso corpo, limite comum desse corpo e dos outros corpos, nos é dada ao mesmo tempo na forma de sensação e na forma de imagem (BERGSON, 1999. P. 273). 
Para Paulo Franchetti, esse poema é “o melhor exemplo — o mais puro, talvez — do predomínio do olhar melancólico na poesia de Camilo Pessanha” (FRANCHETTI: 2001, p. 115)O efeito dessa visão melancólica são, na nossa leitura, as marcas desse sujeito que se recusa a aparecer citado no texto. É o que, nesse capítulo, chamamos de “máscaras do eu”. O sujeito não se faz dizendo “eu sou”, mas se constitui num aparente distanciamento e/ou ausência. Para Michael Hamburger: 
Os simbolistas propriamente ditos não permitiam que o eu empírico entrasse na poesia; por mais que a obra deles seja “subjetiva”, a única coisa que não deveria aparecer nela era a pessoa do dia-a-dia, o cidadão e o empregado, o chefe de família ou o poète maudit que talvez não tivesse nenhum empregado para ganhar a vida para ele. A alienação dos poetas românicos quanto à sociedade, e quanto a seus eus sociais, estava longe de ter sido superada, mas devia ser dada por certa, não confessada, nem meditada, nem lamentada na poesia — exceto sob uma máscara que servisse para torná-la impessoal. Isso, de novo, não significa que as dúvidas sobre a identidade pessoal estivessem resolvidas (HAMBURGER. 2007, pp. 84-5). 
Escusando-nos “do risco grosseiro” de associar a poesia de Pessanha a um comentário generalizante sobre “os simbolistas”, entendemos que a observação de Hamburger capta bastante bem a tendência da poesia europeia de fins do XIX para a despersonalização ou dispersão do eu. No fundo, no entanto, a problemática romântica acerca da individualidade e da identidade continua. Assim é no poema de Pessanha: nenhum “eu” se manifesta em tom de confessionalismo (não há nenhuma marca gramatical em todo o poema que remeta ao sujeito), as impressões são vagas e imprecisas (do ponto de vista espacial e temporal, não do poético) e a melancolia denota uma indiferença resignada do existir. As paisagens evocadas no texto e a intersecção de planos interior / exterior, contudo, mostram que, apesar de não se mostrar, o sujeito se constitui nesse confronto.
O verso inicial da segunda estrofe parece acentuar ainda mais a melancolia do sujeito: “Foi um dia de falsas alegrias”. Ora, se as “agonias” são “inúteis”, as “alegrias’, “falsas”. Essa visão de mundo também não é estranha à poesia do fim do século XIX, notadamente a simbolista: numa leitura schopenhauriana do mundo, as alegrias são apenas um conforto momentâneo para o sentimento de dor. Enquanto há vontade, há dor. Alcançar o ideal, no entanto, não é sinônimo de felicidade, pelo contrário: é esvaziar-se, pois, ideal alcançado = ideal perdido (a leitura que fizemos, no capítulo “Intimismo e Modernidade”, do poema “Depois da luta e depois da conquista” aponta mais claramente para isso). Por isso o paralelismo desses dois versos (o 1º da primeira quadra e o 1º da segunda): as “falsas alegrias” são o gatilho das “inúteis agonias”, embora se possa, também, dizer o contrário: as “inúteis agonias”, que podem ser as “vontades”, são as alegrias do deserto: miragens. O verso que se repete nesta estrofe (“Dália a esfolhar-se, seu mole sorriso”) é aquele que ilustra as “falsas alegrias” do dia. Deve-se notar que esse verso, em sua primeira ocorrência, vem precedido pelo verso “Foi um dia de falsas alegrias” que é encerrado por dois pontos. As “dálias” são, por conseguinte, a imagem cristalizada para as “falsas alegrias”.
Em vista de tudo o que afirmamos, percebe-se que no processo de internalização das imagens do mundo, na percepção direta das coisas, entre as camadas do “eu” e do “mundo”, alguma coisa fez com que esse sujeito se rompesse em pedaços. Só isso parece nos explicar o porquê da distinção desse dia em relação aos demais (“Dia impressível, mais que os outros dias”). Na última estrofe, o dia que era “impressível” metamorfoseia-se em “fútil” (notemos, mais uma vez, a estrutura paralelística dos versos). A dança arrastada das vicissitudes do referido dia (“minuete”) não pode devolver, ao sujeito, seus pedaços, suas pequenas substâncias perdidas, e, por isso, não teremos no poema uma visão totalizante de um “eu”. Vemos o sujeito pela sua fragmentação.
São Paulo: Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, 2011. 
Dissertação de Mestrado em Literatura Portuguesa, pp. 56-61.

             
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[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2013/12/30/foi.um.dia.de.inuteis.agonias.aspx]