quarta-feira, 7 de agosto de 2013

OS POETAS SÃO OS PRÓPRIOS VERSOS DOS POEMAS (Sidónio Muralha)



Sidónio Muralha, por Júlio Pomar

              
SONETO IMPERFEITO DA CAMINHADA PERFEITA

Já não há mordaças, nem ameaças, nem algemas
que possam perturbar a nossa caminhada,
em que os poetas são os próprios versos dos poemas
e onde cada poema é uma bandeira desfraldada.

Ninguém fala em parar ou regressar.
Ninguém teme as mordaças ou algemas.
- O braço que bater há-de cansar
e os poetas são os próprios versos dos poemas.

Versos brandos... Ninguém mos peça agora.
Eu já não me pertenço: Sou da hora.
E não há mordaças, nem ameaças, nem algemas

que possam perturbar a nossa caminhada,
onde cada poema é uma bandeira desfraldada
e os poetas são os próprios versos dos poemas.
               
Sidónio Muralha, “Passagem de Nível” (1942) 
in Obras Completas do Poeta. Lisboa, Universitária Editora, 2002.
             

Sidónio Muralha encara a sua escrita como uma espécie de caminhada em que autor e texto são indissociáveis.
Por isso mesmo, o poeta transforma-se nos próprios versos que escreve e o poema “é uma bandeira desfraldada”. Esse percurso conjunto já não pode ser perturbado por “ameaças”, “algemas”, “mordaças” porque o medo foi debelado (repare-se na anáfora do pronome indefinido “Ninguém”) e por mais que o “braço que bate” persista nessa atuação, ele “há-de cansar” dado que “os poetas são os próprios versos dos poemas”. Tal como o próprio texto, o poeta deixou de pertencer a si próprio, ele é “da hora” e os seus versos não podem ser “brandos” já que o momento exige um outro tipo de intervenção. Neste poema é evidente a existência de uma qualquer força opressora que urge combater, que ao poeta compete unir-se ao que escreve e, nessa simbiose (evidenciada no uso do encavalgamento), extrapolar a sua atuação para além do próprio papel que usa para escrever.
                 
Portugal sob a égide da ditadura: o rosto metamorfoseado das palavrasTese de mestrado de Paula Fernanda da Silva Morais. Universidade do Minho – Instituto de Letras e Ciências Humanas, julho de 2005.
           
    
           

PROFECIA

Cada gesto de ódio
cada gesto de prepotência
cada gesto para amordaçar a verdade
cada gesto para amparar a mentira
cada gesto que suprime outro gesto
cada gesto – indigesto

‑ voltará implacável como um «boomerang»
e ninguém escapará a essa lei.
           
               
Sidónio Muralha, “Passagem de Nível” (1942) 
in Obras Completas do Poeta. Lisboa, Universitária Editora, 2002.
             
                 
Conscientes dessa missão que competiu desempenhar à poesia durante cerca de quarenta anos, os poetas não deixaram nunca de ser a voz da esperança, de proclamar a sua crença na vitória da liberdade e no castigo que seria infligido a todos os que ousaram dominar e controlar o veículo de comunicação entre os homens: a palavra. Esses textos surgem como breves profecias, a antecipar os acontecimentos que ocorrerão a 25 de Abril de 1974.
Este poema constrói-se com base numa enumeração anafórica da expressão “Cada gesto”. A partir desse membro são justapostas várias circunstâncias / sentimentos típicos do Portugal salazarista: a prepotência (do aparelho de Estado e seus agentes), o ódio, a mentira, a ausência de verdade, a supressão dos gestos indigestos(gerados em cada homem pela censura e pelo medo dos delatores). São, desta forma, referidas algumas situações que serão devolvidas ao seu emissor dado que a nova lei a instaurar funcionará como um “boomerang”. Essa comparação, associada ao efeito visual do objeto selecionado, intensifica os atributos que lhe são imputáveis: ser implacável e ninguém poder escapar a ela. Essa impossibilidade de fuga dos criadores da clausura é evidenciada pela ausência de pontuação, com exceção do ponto final que a encerrar o poema e o circuito de retorno do “boomerang”.
                
Portugal sob a égide da ditadura: o rosto metamorfoseado das palavrasTese de mestrado de Paula Fernanda da Silva Morais. Universidade do Minho – Instituto de Letras e Ciências Humanas, julho de 2005.
           
           
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  Poesia útil e literatura de resistência” (A literatura como arma contra a ditadura e a guerra colonial portuguesas), José Carreiro

 
[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2013/08/07/sidonio.muralha.aspx]

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