segunda-feira, 26 de agosto de 2013

PRIMEIRA CANÇÃO DA VIDA (Manuel da Fonseca)


 
              
              
SETE CANÇÕES DA VIDA
PRIMEIRA
          
Vida:
sensualíssima mulher de carnes maravilhosas
cujos passos são horas
cadenciadas
rítmicas
fatais.
A cada movimento do teu corpo
dispersam asas de desejos
que me roçam a pele
e encrespam os nervos na alucinação do “nunca mais”.
Vou seguindo teus passos
lutando e sofrendo
cantando e chorando
e ficam abertos meus braços:
nunca te alcanço!
Meu suplício de Tântalo.
Envelheço...
E tu, Vida, cada vez mais viçosa
na oscilação nervosa
das tuas ancas fecundas e sempre virgens!
À punhalada dilacero a folhagem
e abro clareiras
na floresta milenária do meu caminho.
Humildemente se rasga e avilta
no roçar dos espinhos
minha carne dorida.
E quando julgo chegada a hora
meu abraço de posse fica escancarado no ar!
Olímpica
firme
gloriosa
tu passas e não te alcanço, Vida.
Caio suado de borco
no lodo...
O vento da noite badala os ramos
sarcasmos canalhas.
Não avisto a vida!
Tenho medo, grito.
Creio em Deus e nos fantásticos ecos
do meu grito
que vêm de longe e de perto
do sul e do norte
que me envolvem
e esmagam:
‑ maldita selva, maldita selva,
antes o deserto, a sede e a morte!
                  
Manuel da Fonseca, Rosa dos Ventos, 1940.
                  
                      
Vida! Essa é a palavra que pode ser considerada a temática central da produção poética de Manuel da Fonseca. Uma vida que o tempo todo é buscada e desejada com grande ansiedade, mas que escapa por entre os dedos e não permite que seja vivida. De acordo com Mário Dionísio (in “Prefácio” a Obra Poética, Manuel da Fonseca, 1984, 7ª ed. Revista pelo autor, p. 37),
Toda a temática de Manuel da Fonseca se reduz a dois motivos, intimamente solidários, que, em vários tons e andamentos, sem cessar se repetem: uma ansiedade de viver em conflito com uma realidade social que torna essa vida impossível de ser plenamente vivida e uma decisão de intervir nos destinos do mundo, o que, optando por um ato de desespero, acaba por esbarrar com a sua própria ineficácia que, entretanto, se não reconhece como tal e torna, assim, possível o constante recomeço. Do primeiro ao último dos poemas de Fonseca, incluindo tudo o que na sua prosa é ainda poesia, esses dois motivos maiores, desdobrados, ou reduzidos a pequenas sínteses, se entrecruzam e repetem.
              
A ânsia de viver do eu-lírico se revela no primeiro poema – Primeira – da primeira parte intitulada Sete canções da vidado livro Rosa dos Ventos. Este poema é praticamente um hino à vida.
Neste poema, o eu-lírico compara a vida à mulher, uma bela mulher com movimentos sensuais que despertam o seu desejo de vivê-la em plenitude. Para caracterizá-la, o poeta se utiliza de expressiva adjetivação, qualificando-a como “sensualíssima”, de “carnes maravilhosas”, cujos passos são como as “horas”: “cadenciadas”, “rítmicas”, “fatais”. E a cada movimento do “corpo” dessa mulher, da vida “dispersam asas de desejos” que “roçam a pele” do eu-lírico e fazem seus “nervos” se encresparem em uma alucinação de que “nunca mais” conseguirá captar aquele momento, aquele movimento, aquela sensação. O desejo, a obsessão por “possuir” essa mulher, essa vida são ressaltados pelas ações que o eu-lírico empreende com essa finalidade:
Vou seguindo teus passos
lutando sofrendo
cantando 
chorandoe ficam abertos meus braços:
nunca te alcanço!
                
O encadeamento das ações através do uso dos verbos no gerúndio dá a ideia de uma continuidade indefinida das ações empreendidas pelo eu-lírico para prender em seus braços essa mulher, essa vida tão desejada. No entanto, apesar de todos os seus esforços, ele não consegue alcançá-la e essa impossibilidade, essa frustração é enfatizada pelo uso do advérbio “nunca”. Considerando tal contradição, o eu-lírico pensa estar vivendo o suplício de Tântalo, figura da mitologia grega, filho de Zeus, que após cometer muitas maldades foi castigado pelos deuses com o suplício de fome e sede eternas. Roque Schneider (in A fascinante Grécia: seus jogos olímpicos, seus heróis e sua mitologia. São Paulo: Edições Loyola, 2004, p. 76) descreve o suplício de Tântalo desse modo:
               
Um rio roçava seu pescoço, mas quando se inclinava para beber, as águas retrocediam, baixavam.
Esplêndidos galhos, carregados de suculentas frutas, balançavam-se à sua frente. Quando alongava os trêmulos braços para colhê-las, o galho se afastava, escapando do seu alcance.
Desespero maior ainda: um enorme rochedo pendia sobre sua cabeça indefesa, ameaçando desabar a qualquer momento. E o medo da morte passou a atormentá-lo, a tirar-lhe o sono, dia e noite.
Faminto, sedento e mortalmente atormentado, Tântalo gemia inconsolável: - Ingrato e cruel destino... Infeliz o dia em que nasci!
             
Essa alusão ao suplício de Tântalo no poema é bastante coerente. Afinal, assim como o personagem mitológico que sente fome e sede e não consegue se alimentar, pois apesar de a comida e a bebida “parecerem” estar ao seu alcance elas escapam ao toque das suas mãos, o eu-lírico do poema se sente, do mesmo modo, em relação à vida. Ele tenta ardentemente alcançá-la, mas não consegue e a vida assim passa pelo eu-lírico, deixando-o marcado pelo tempo. Por outro lado, a vida continua cada vez mais bela, mais fértil e intacta:
Envelheço...
E tu, Vida, cada vez mais viçosa
na oscilação nervosa
das tuas ancas fecundas e sempre virgens!
              
Mas o eu-lírico não desiste de tomar posse dessa mulher, dessa vida tão desejada e por isso luta ferozmente para atingir tal objetivo:
À punhalada dilacero a folhagem
e abro clareiras
na floresta milenária do meu caminho.
Humildemente se rasga e avilta
no roçar dos espinhos
minha carne dorida.
              
A ferocidade com que o eu-lírico explora a “floresta” é notada através dos vocábulos utilizados pelo poeta para descrever a exploração: “à punhalada dilacero a folhagem” “e abro clareiras”, chegando até a sua “carne” se rasgar e aviltar ao “roçar os espinhos”. Mas, quando o eu-lírico supõe que enfim conseguirá apreender a vida, o seu “suplício de Tântalo” persiste. A vida, por outro lado, mantêm-se intocável e vigorosa, como é ressaltada pelo uso dos adjetivos “olímpica”, “firme” e “gloriosa” para caracterizá-la:
E quando julgo chegada a hora
meu abraço de posse fica escancarado no ar!
Olímpica
firme
gloriosa
tu passas e não te alcanço, Vida.
              
Diante desse conflito existente entre a ânsia de viver e a impossibilidade de vivê-la em decorrência da realidade social adversa, o eu-lírico se cansa: “Caio suado de borco / no lodo...”, perde-se da vida: “Não avisto a vida!” e é tomado pelo desespero. E assim como o personagem mitológico Tântalo que diante do seu suplício maldiz o dia em que nasceu, o eu lírico do poema também acaba preferindo a morte, já que não consegue viver intensamente.
Tenho medo, grito.
Creio em Deus e nos fantásticos ecos
do meu grito
que vêm de longe e de perto
do sul e do norte
que me envolvem
e esmagam:
‑ maldita selva, maldita selva,
antes o deserto, a sede e a morte!
             
Essa ânsia de viver e a sua impossibilidade fazem com que o poeta sinta necessidade de agir para que essa vida tão intensamente desejada torne-se realidade e não somente uma idealização.
                 
Dissertação de mestrado de Rosilda de Moraes Bergamasco, 
Universidade Estadual de Maringá, 2012, pp. 77-80.
               
                
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 Apresentação crítica, seleção, notas e sugestões para análise literária de textos de Manuel da Fonseca, por José Carreiro. In: Folha de Poesia, 2018-05-04, disponível em https://folhadepoesia.blogspot.com/2018/05/manuel-da-fonseca.html

   
                 
[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2013/08/26/primeira.cancao.da.vida.manuel.da.fonseca.aspx]

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