quarta-feira, 11 de setembro de 2013

OLHAI O VAGABUNDO QUE NADA TEM (Manuel da Fonseca)


  «Ação de Graças do Vagabundo», Maxfield Parrish
            
                 
SOL DO MENDIGO

Olhai o vagabundo que nada tem
e leva o Sol na algibeira!
Quando a noite vem
pendura o Sol na beira dum valado
e dorme toda a noite à soalheira...
Pela manhã acorda tonto de luz.
Vai ao povoado
e grita:
- Quem me roubou o Sol que vai tão alto?
E uns senhores muito sérios
rosnam:
- Que grande bebedeira!

E só à noite se cala o pobre.
Atira-se para o lado,
dorme, dorme...
                
Manuel da Fonseca, Rosa dos Ventos, 1940
Poema inserido na parte “O vagabundo e outros motivos alentejanos”
            

             


O VAGABUNDO E OUTROS MOTIVOS ALENTEJANOSUMA LEITURA DE «SOL DO MENDIGO»
            
Observamos nos versos desse poema uma constante musicalidade nas rimas (algibeira! / soalheira... / bebedeira!, tem, vem), além do uso de uma expressiva pontuação que contribui para reforçar a entonação, fazendo com que os versos terminem em um tom elevado e marcante, ampliando assim a sonoridade do poema. Nota-se também a utilização da letra maiúscula na escrita do vocábulo “Sol”. Isso se explica pela simbologia que este vocábulo representa para o personagem do poema: o vagabundo que sente amparado pela presença do sol. Nesse sentido, o sol pode ser considerado uma entidade protetora do vagabundo, que vive ao relento, enfrentando todas as consequências de viver sem rumo e sem acolhimentos.
Assim, apesar do vagabundo ser aquele que está destituído de bens materiais e morais, a presença do sol o torna um ser diferenciado dentro do poema tornando-o uma figura iluminada, poética, como se percebe na utilização das metáforas (leva o Sol na algibeira!, pendura o Sol na beira dum valado, acorda tonto de luz). O destaque a esse personagem se faz necessário também por ser uma figura desprezada pela sociedade, situação que fica bem clara pela forma como as outras pessoas o veem, como um bêbado, como se nota nesses versos:
Vai ao povoado
e grita:
- Quem me roubou o Sol que vai tão alto?
E uns senhores muito sérios
rosnam:
- Que grande bebedeira!
            
Ao colocar em relevo a atitude dos senhores ao ouvir o vagabundo, ou seja, o verbo “rosnam”, o poeta deixa evidente o desprezo e o deboche que cercam essa figura. É por isso que o poeta tenta exaltar, engrandecer essa figura e inicia o poema com um verbo no imperativo: “olhai”, isto é, o poeta pede para que a sociedade não tenha um olhar de indiferença, mas sim um olhar atento, de cuidado para com o ser humano.
O vagabundo de que fala o poeta Manuel da Fonseca é o homem alentejano, que sai de terra em terra em busca de trabalho e de pão. Nada tem de seu, apenas a força dos seus braços para trabalhar e o sol que ele “carrega na algibeira” para se aquecer nos longos e desamparados tempos de desemprego, de fome e de ira. E por trazer o sol na algibeira, o vagabundo traz também consigo a sua veia poética aquecida que se revela no seu grito: “Quem me roubou o Sol que vai alto?”.
                 
Dissertação de mestrado de Rosilda de Moraes Bergamasco, 
Universidade Estadual de Maringá, 2012, pp. 113-114.
             
              
OLHAI O VAGABUNDO QUE NADA TEM E LEVA O SOL NA ALGIBEIRA
            
Alongados sobre a planície do Alentejo, os poemas de Manuel da Fonseca apresentam uma característica muito peculiar: estão rodeados de personagens. Segundo Fernando Mendonça (A literatura portuguesa no século XX. São Paulo: HUCITEC, 1973, p. 113), os poemas têm “protagonistas – personagens em busca de romance”. Isso porque, vários personagens aparecem depois como heróis dos seus contos, como por exemplo:
«Maria Campaniça, um dos poemas de Rosa dos Ventos, é a protagonista de um dos contos de Aldeia Nova, tal como “o Jacinto Baleizão, que foi a África”, “o bêbado do Zé Limão”, ou Zé Gaio, que acreditou que a guerra salvaria o mundo, em Rosa dos Ventos, e acabou perdendo “o cheiro da casa”, em Aldeia Nova»(MENDONÇA, 1973, p. 113).
          
Desse modo, pode-se considerar que na produção literária de Manuel da Fonseca não é possível encontrar uma efetiva separação entre a sua poesia e a sua prosa de ficção, pois elas interpenetram-se, tornando-se integradas. Essa característica se revela tanto no aparecimento dos personagens dos poemas na prosa quanto na própria utilização de uma estratégia discursiva típica da narração – a presença de personagens – nos poemas. Estratégia essa que se configura como meio de expressão ideológica e é explorada pelo poeta desde Rosa dos Ventos e em Planície se torna ainda mais frequente.
Portanto, os personagens que passam pelas searas e charnecas da planície alentejana são campaniços, mendigos, vagabundos, malteses que não são meras figuras regionais, mas sim homens em conflito com um espaço físico e social adverso, como observa Fernando Mendonça (O romance português contemporâneo. São Paulo: Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Assis, 1966, p. 108) que “as personagens do Autor de Rosa dos Ventos não são de caráter regionalista: são homens nascidos e torturados numa terra madrasta, que lhes insufla a coragem e a decisão das castas em luta permanente.”
Na imensidão dos campos alentejanos vivem homens perseguidos pelas chuvas ou pelas secas intermináveis, sofridos com a miséria que lhes foi imposta, explorados pelas forças opressoras do latifúndio e do Estado. Uma gente rústica, árida e desolada, com seus sonhos insatisfeitos, isolados pela miséria, pela ignorância, por problemas de relação humana e pela precariedade de comunicação.
Homens que, apesar de todas as dificuldades, todas as provações e privações por quais são obrigados a passar, conservam uma dignidade e uma força que tornam o homem alentejano um ser humano digno de exaltação, como observa Miguel Torga(Portugal. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1996, p. 126) quando fala sobre o Alentejo e o homem alentejano:
«É preciso ter uma grande dignidade humana, uma certeza em si muito profunda, para usar uma casaca de pele de ovelha com o garbo dum embaixador.
Foi a terra alentejana que fez o homem alentejano, e eu quero-lhe por isso. Porque o não degradou, proibindo-o de falar com alguém de chapéu na mão.»
              
Nota-se nesse trecho que as características do homem alentejano estão intrinsecamente ligadas ao espaço em que está inserido, principalmente pelo isolamento que essa região proporciona em relação às outras regiões do país. É esse homem que por mais simples que seja “leva o Sol na algibeira” e não se deixa curvar diante das dificuldades enfrentadas que Manuel da Fonseca procura retratar e enobrecer nos seus poemas. Além disso, o poeta procura retratar a vida pobre dos trabalhadores rurais e das classes marginalizadas das planícies alentejanas, de forma a realçar, em especial, a sua luta contra as injustiças.
Com o propósito de denunciar as injustiças sofridas pelas classes mais oprimidas, o poeta privilegia o emprego da personagem tipo, ou seja, uma subcategoria da personagem que pode ser entendida como
«personagem-síntese entre o individual e o coletivo, entre o concreto e o abstrato, tendo em vista o intuito de ilustrar de uma forma representativa certas dominantes (profissionais, psicológicas, culturais, econômicas, etc.) do universo diegético em que se desenrola a ação, em conexão com o mundo real com que estabelece uma relação de índole mimética» (REIS, Carlos e LOPES, Ana Cristina M. Dicionário de teoria da narrativa. São Paulo: Ática, 1988., p. 223).
             
Por isso, a personagem tipo, de acordo com Lukács (apud REIS e LOPES, 1988, p. 223), é uma síntese que reúne ao mesmo tempo o universal e o particular e nela, pelo seu caráter dialético, “convergem e reencontram-se todos os elementos determinantes, humana e socialmente essenciais, de um período histórico”. Portanto, através da criação de tipos torna-se possível mostrar “esses elementos no seu grau mais alto de desenvolvimento, na revelação extrema das possibilidades que neles se escondem, nessa representação extrema dos extremos que concretiza ao mesmo tempo o cume e os limites da totalidade do homem e do período”. Considerando tais características da personagem tipo nota-se que a preferência de Manuel da Fonseca por ela revela muitos aspectos relevantes da sua produção poética:
«Para se ver como em Manuel da Fonseca a predileção pelo tipo não é meramente pontual, basta assinalar que já em Rosa dos Ventos, ele aparecia com alguma insistência: aí, o vagabundo, o mendigo e o maltês mais não fazem do que anunciar a projeção futura de um procedimento de representação literária não só dotado de inegáveis virtualidades de expressão ideológica, mas também capaz de apontar para a pertinência de estratégias discursivas de pendor narrativo em que essas virtualidades serão amplamente exploradas. Em Planície, esta dinâmica de amadurecimento estético avança consideravelmente» (Carlos Reis. O discurso ideológico do neo-realismo português. Lisboa: Almedina, 1983.p. 459).
            
Nesse sentido, as personagens prediletas dos poemas de Manuel da Fonseca são figuras marginais, como o vagabundo, o mendigo e o maltês que representam ao mesmo tempo a impossibilidade de viver uma vida plena, por serem vítimas da sociedade e a revolta que nasce em decorrência das condições de vida que são submetidas. Por essa razão essas personagens vivem em constante conflito com a sociedade que as cerca, fazendo com que se elevem, “sozinhas, armadas apenas com a força do seu amor ou da sua raiva, dispostas a tudo” (Mário Dionísio, Prefácio a Obra Poéticade Manuel da Fonseca, Lisboa, Editorial Caminho, 1984, 7ª ed. revista pelo autor, p.35).
Ou seja, a busca insaciável do poeta por uma imagem ideal de vida, de liberdade se relaciona inteiramente com o partido que este toma por figuras que por alguma razão e de algum modo estão à margem da sociedade e que sempre tiveram suas presenças esquecidas e suas vozes caladas. Por isso, colocar em relevo essas personagens e dar voz a elas representa ao mesmo tempo fazer justiça e contribuir para que as transformações no campo social se efetivem. Assim, a admiração que o poeta sente por essas figuras faz com elas sejam retratadas em seus poemas de forma a enobrecer as suas atitudes, como pode ser percebido nos versos do poema “Sol do mendigo, que é de um lirismo ímpar.
                 
Dissertação de mestrado de Rosilda de Moraes Bergamasco, 
Universidade Estadual de Maringá, 2012, pp. 110-113.
             
             
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 Apresentação crítica, seleção, notas e sugestões para análise literária de textos de Manuel da Fonseca, por José Carreiro. In: Folha de Poesia, 2018-05-04, disponível em https://folhadepoesia.blogspot.com/2018/05/manuel-da-fonseca.html

 Poesia útil e literatura de resistência” (A literatura como arma contra a ditadura e a guerra colonial portuguesas), José Carreiro


[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2013/09/11/sol.do.mendigo.aspx]

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