quinta-feira, 5 de dezembro de 2013

Rotas no Atlântico, «The sound of kuduro» em outra Angola


  
                 
Neste quadro de disseminação do kuduro pelas costas atlânticas, levado pela emigração de angolanos, surgiu, em 2006, o grupo Buraka som sistema, aludindo a um bairro de periferia da cidade periférica da Amadora. O Buraka, formado por três jovens, filhos de imigrantes angolanos que chegaram a Portugal em fins dos anos oitenta, são os maiores responsáveis, hoje, pela divulgação do kuduro. Responsáveis pela criação de vertentes mais ousadas desse estilo musical, inseriram o ritmo definitivamente no panorama internacional da música contemporânea. É preciso destacar que os rapazes do Buraka não se intitulam músicos, eles se reconhecem como DJs na medida em que suas composições são criadas através de recursos eletrônicos e digitais, com mixers e samplers, e muitas releituras, interpretações e realizações (featurings) com diversos artistas. O grupo, em 2008, alcançou um sucesso retumbante no mundo pop quando lançou a música “The soud of kuduro”, com a artista britânica, de origem tâmil, M.I.A, que, aliás, já incorporara o funk carioca em sua produção musical. O CD Black Diamond,lançado em 2008, além de M.I.A., contou com a participação do cantor de kuduro angolano Puto Prata, a MC angolana Pongolove e a cantora brasileira de funk Deise Tigrona. Assinala-se que, com ações promocionais da rede FNAC, o CD atingiu rapidamente a marca de 700 mil cópias. No entanto, fiéis ao princípio que rege as produções musicais atuais, encontra-se disponível para downloadno sítio oficial do Buraka. Os Buraka já vieram ao Brasil inúmeras vezes, inclusive com apresentação recente no Rock in Rio IV (2011) e, em outubro, lançaram seu último CD, Komba.
O material do Buraka não é, por razões óbvias, imediatamente cooptável pelos estudos literários. As letras de suas músicas, material que nos aproxima desses tipos de objetos, não estão constituídas por um modelo formal que nos inspira à sua leitura como a de um poema. A produção do material dos Buraka envolve outros elementos que se jutam às letras meio recitadas, meio cantadas (característica maior do rap), tais como os ritmos presentes que se misturam ao kuduro (samba brasileiro, techno, semba, salsa, entre outros), e aos roteiros dos vídeo-clips, divulgados pela Internet, via Youtube. A isso devem ser acrescidas as performances em palcos diversos que dão a cada apresentação um sentido único e irrepetível – nele se destaca o sucesso Kalemba (Wegue, wegue), que possui diferentes versões no cd Black Diamond, da qual assinalamos fortemente aquela interpretada pela MC angolana Pongolove.
          
 
          
Em sua interpretação, a letra convoca e traduz uma experiência feminina inédita no panorama angolano, se a compararmos ao que a Literatura Angolana vem destinando a esse público. Se pensarmos que podemos contar uma pouca expressão feminina naquela poesia, das quais se destacam Alda Lara, Maria Alexandra Dáskalos, Maria Amélia Dalomba, Maria Eugénia Neto ou Ana Paula Tavares, e que essa poesia costuma se espantar com os arroubos da dicção mais feminista, o recitativo e a performance de Pongolove ganham uma dimensão inédita para o panorama cultural angolano, comparável à mesma dimensão das cantoras cariocas de funk, notadamente, Tati Quebra-Barraco, Deise Tigrona ou Valeska Popozuda que decididamente invertem, em suas letras, toda e qualquer relação de poder que a tradição patriarcal do ocidente impôs ao feminino. Pongolove, sem disfarçar, impõe o mesmo pussy Powerreclamado e constituído pelas cantoras da periferia carioca. Mas é preciso deixar claro que Pongolove, ao invés de recorrer aos signos corporais e, portanto, sexuais, vai buscar na tradição cultural que engendrou a identidade nacional angolana a dicção mais acertada para o seu empoderamento.

KALEMBA (WEGUE WEGUE)


Wegue
Wegue wegue wegue
Wegue
Wegue wegue wegue
Quando eu entro o palco se move,
Talento aqui chove,
Claro que o povo me ouve
Sou pongolove
Estou com a buraka
Abro a fronteira
Não digo lixo
Nem digo asneira
No microfone sou a primeira
Vou levantar a minha bandeira
Angola o mundo cobiça
Mas é o povo que te enfeitiça
A pong no beat capricha
Porque sou rara tipo welwitchia
Sou mesmo eu a dama ngaxi muito agressiva
Me derrubar nem com macumba
Sou criativa
A buraka é que está a cuiar
Sai fora
Pongolove é que esta a bater
Vão se embora
Wegue
Wegue wegue wegue
São piadas
Wegue
Wegue wegue wegue
Novo esquema
Rima pesada
Tipo embondeiro
Eu faço o que eu quero
Canto para angola
E para o mundo inteiro
No kuduro impero
Sou palanca negra gigante
Sigo a passada de njinga mbandi
Sigo a corrente do dande
Logro o feitiço de tomé grande
Por no mapa oxaena
Terra de grandes nomes do semba
Arraso tipo kalemba
Sou de angola como a mulemba
Mano jukula
(kimbundu)
Mambo exclusivo
Toque de angola
(kimbundu)

A letra é simples, no entanto, contundente. O que Pongolove impõe? Somos obrigados a recorrer a teoria da performance e recuperar a coincidência entre o sujeito da enunciação e o sujeito do enunciado – observar no discurso e na performance no palco tudo o que está dito e entredito. Pongolove, junto aos Buraka, abre espaço para uma cultura e, consequentemente, um discurso que subvertem a ordem vigente dos gêneros e determinam uma outra forma de abordagem das relações socialmente constituídas. Ela chega, ela irrompe, ela se autoriza, conclamando os signos culturais da tradição, mas, evidentemente, subvertendo-a: Pongolove é o novo esquema! Um corte, uma ruptura, uma cisão! O que está por vir? Desse movimento quase caótico da cultura de massa, em que tudo se move, como Pongolove, o que será fixado? Será que ficará o que a literatura fixou ou fixará? O canônico? O celebrado? Mas Pongolove quer a sua celebração, mesmo sem sair da periferia da cultura! Como não observar esse movimento intenso, caótico, instável – pura kalemba – que move a cultura contemporânea? O que vem das periferias, do império, dos impérios, acaba por mover a cultura e dar-lhe novo revestimento e sentido para o mundo globalizado sem as fronteiras culturais tradicionais.       
«Rotas no Atlântico, “The sound of kuduro” em outra Angola» (Conferência apresentada no I Seminário África e Contemporaneidade, na Universidade de São Paulo, em novembro de 2011), Mário César Lugarinho, Uma nau que me carrega: rotas da literariedade em língua portuguesa. Manaus, AM: UEA Edições, 2012, pp. 178-181
         

       
[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2013/12/05/kalemba.aspx]

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