quarta-feira, 31 de dezembro de 2014

Dois satíricos do século 18 - Bocage e Pierre-Thomas-Nicolas Hurtaut

Textos burlescos, satíricos e eróticos ("soft porn") do século XVIII – os casos de Bocage e Pierre-Thomas-Nicolas Hurtaut.

Bocage (1765-1805)


[SONETO AO VIL INSECTO]

Emquanto a rude plebe alvoroçada
Do rouco vate escuta a voz de mouro,
Que do peito inflammado sae d'estouro
Por estreito boccal desentoada:

Não cessa a cantilena acigarrada
Do vil insecto, do mordaz bezouro;
Que à larga se creou por entre o louro
De que a sabia Minerva está c'roada:

Emquanto o cego atheu, calvo da tinha,
Com parolas confunde alguns basbaques,
Psalmeando a amatoria ladainha:

Eu não me posso ter; cheio de achaques,
Cansado de lhe ouvir — "Bravo! Esta é minha!"
Cago sem me sentir, desando em traques.

Soneto anónimo contra Bocage


Bocage assim que soube que fora expulso da Nova Arcádia, antes mesmo que atacasse cada um dos seus conhecidos antagonistas individualmente, fulminou-os em conjunto, chegando até à obscenidade.

Contra Elmano Sadino urrando avança
O estéril Corydon, o vão Belmiro,
Bernardo, o Nenias, lúgubre vampiro,
Que do extincto Miguel possue a herança;

O curto Quintanilha, o torpe França,
O tonsurado, retumbante Elmiro,
Vibram tiros ao vate, e é cada tiro
Mais froixo, que pedrada de criança.

Elmano solta um ….. eis foge tudo;
Eis os sócios ganindo ao som do traque,
Quaes do funil appenso os cães no entrudo.

Mas se inda a corja renovar o ataque,
Bocage que fará? Pôr-se de escudo,
Perder doze vinténs n'um Almanach.

Bocage, Soneto 193.
Porto, Livraria Chardron Casa Editora Sucessores Lello & Irmão, 1902







BOCAGE: A SÁTIRA E A POESIA ERÓTICA

A tradição crítica sempre tem considerado a poesia lírica de Bocage de valor poético preponderante em detrimento da sua poesia satírica e “pornográfica”, de modo que podemos sugerir que essa tradição permanece com a mesma estética moralizante dos censores portugueses que proibiram seus ditos versos “libertinos” e prenderam-no nas masmorras inquisitoriais por heresia e devassidão. Parece que os críticos e estudiosos da literatura tradicionais dogmáticos jamais se desprenderam de suas máscaras morais ao analisar a obra dita “depravada” do poeta Bocage. Talvez eles sentiram uma repugnância refinada, própria dos moralistas, lançando a poesia erótica de Bocage para debaixo do tapete, voltando apenas seus olhos para os sonetos líricos que neles subjaz um fundo psicologicamente conflituoso, nos quais se encontra esfacelado o espírito agônico do poeta. Na verdade, é preciso realizar um estudo entre esses sonetos e a poesia erótica, pois ambos se completam e fazem parte do mesmo espírito criador.
Por conseguinte, antes de nos determos na poesia pornográfica bocageana, é preciso rebater o conceito pornografia imposto pela tradição dogmática e que pode soar, pejorativo nas bocas desatentas de alguns leitores. O que é que o conceito “poesia pornográfica” quer sugerir? Será que é a falta de uma interpretação coerente entre o homem-artista Bocage, sua obra e o meio em que viveu? Não há dúvidas de que o conceito “poesia pornográfica” visa desmerecer um trabalho artístico que trata da sexualidade de um modo irreverente com o intuito de romper as barreiras da hipocrisia moral. Tal conceito já traz implícito um juízo moral da obra, fundado em valores preestabelecidos. Assim, na visão incoerente do dogmatismo tradicional “poesia pornográfica” não passa de panfletos “obscenos” e “grotescos” e, portanto, distante da verdadeira poesia fundamentada na poética do belo em si: afirmamos sempre que todas as palavras belas e decentes escondem feios pensamentos. Renegar e ter a poesia erótica de Bocage como planfetária é entendê-la como uma obra da depravação dos bons costumes do status quo. Denominá-la “pornográfica” é já atribuir um valor moral como poesia da sordidez, escatológica, do baixo calão. Essa tradição crítico-dogmática e acadêmica não compreendeu que a arte de um modo geral deve estar isenta e livre de qualquer crítica ou valor moral. Moralizar a arte é assassiná-la no pior sentido do termo.
Ao contrário dessa tradição crítico-estética, percebemos que a poesia satírica e “amorosa” de Bocage é belamente rica porque está transplantada em uma linguagem viva e humanista, apesar de um certo retoricismo, que reflete o calor das ruas, a acrimônia do moralismo da saciedade servindo como desmascaramento da tartufice, da corrupção e do sistema político e social que reprime o natural instinto da sexualidade através de suas instituições; porque mostra que a sexualidade é vista pela sociedade e, principalmente, pela Igreja como uma atividade suja e ímpia e, portanto, antinatural de modo que notamos na sociedade de um modo geral uma espécie de neurose religiosa impregnada em seu inconsciente coletivo. Neurose esta já diagnosticada por Nietzsche em sua Genealogia da Moral.
Um exemplo clarividente desse desmascaramento social é a “Pena de Talião” e a “Epístola a Marília” seguida de outras entre as amigas Olinda e Alzira. A “Epístola a Marília” rendeu a Bocage a censura e a masmorra pelas irreverências antimonárquicas e anticatólicas, por parte da Intendência Geral da Polícia Portuguesa. No tocante à “Pena de Talião”, Bocage deu a luz a esta sátira na Taverna do Nicola entre copos de vinho e tragos de cigarros e cuja crítica ácida está dirigida ao padre José Agostinho de Macedo que havia censurado Bocage por conta do tom egolátrico do prólogo à tradução dos “Jardins” de Delille. Aqui, além de um desafeto pessoal, trata-se de um embate entre duas tradições diferentes: o padre-poeta que parece pertencer ao dogmatismo estético de um lado, e do outro, Bocage que pertence à tradição pródiga como um Gregório de Matos e muitos outros. A sátira ao padre não é só a crítica à pessoa do padre, mas a toda tradição que ele representa e como tal à própria sociedade que nela jaz enraizada. É a crítica aos bons costumes e suas etiquetas refinadas, aos eruditos que escrevem com esmero “palavroso” destituído de qualquer ética entre ação e pensamento: “segue o que tens de cor mas não praticas / serás o que não és, o que não foste”, satiriza Bocage o representante sacerdotal e guia dos aparatos e bons costumes sociais que age e fala com denodo e racionalidade.
Com relação à “Epístola a Marília” seguida das “Epístolas Entre as Amigas Olinda e Alzira, o poeta critica o sistema político-social que oprime com seu “dogma funesto” o natural instinto sexual. Este sistema pode ser entendido como as várias instituições que compõem a sociedade como o Estado, a Igreja e a família, cuja mentalidade esta cristalizada pelos valores católicos de repressão moral à sexualidade, desvelando, ao mesmo tempo, a hipocrisia e as contradições entranhadas no corpo dessas instituições.
Da mesma forma que “sistema da política opressora”, que inventou o “freio” para a “Boçal credulidade”, a sociedade como um todo, os pais, como está explícito em algumas passagens das epístolas, coagem suas filhas, utilizando-se da “triste educação” para impedir que elas descarreguem os seus “transportes”, os seus desejos de amor. Mais vitais. No matrimônio, mesmo assim, com toda a pureza possível. Ora, essas moças com seus desejos, seus “transportes” reprimidos, impossibilitados de amar e saciar o instinto natural, acabam se atormentando psicologicamente, “funesto”. E para complicar, elas tinham de unir seus umbigos com alguém de sua classe social, principalmente as moças da nobreza e da burguesia com um jogo de interesses por trás.
Bocage, no entanto, percebe que toda essa repressão sexual que a sociedade impõe à suas famílias é em vão, porque para ele os instintos naturais da sexualidade brotam da própria natureza, como claro está nas epístolas: “Pensam os rudes pais, que sopeá-las / alcançam extinguir o voraz fogo / que sobra da natureza e que ela ateia” (Epístola VI – Alzira a Olinda). Assim, essa repressão sexual, que é fundamentalmente de cunho religioso, só faz arraigar o remorso e os tormentos e, como bem notou Nietzsche, os instintos que não se descarregam para fora, interiorizam-se e conseqüentemente rebelam-se contra si mesmos. Isso porque a opressão pesa o corpo psicofisiologicamente fazendo com que todo o mecanismo fique envenenado consigo e com o mundo. Daí, o sentimento de culpa e o pessimismo como sintomas dessa opressão, como foi visto nas cartas de Mariana do Alcoforado com seu conflito entre carne e espírito, entre a mulher e a beata.
A exaltação do amor físico (na verdade, não vemos outro amor elevado que o amor físico) percorre as epístolas IV, V, VI e VII com relatos de atos e prazeres amorosos entre Olinda e Alzira, longe do platonismo fictício de uma sociedade que enxergava pecado e imoralidade em tudo o que não fosse convenientemente escondido. Nesses relatos, Bocage despoja-se de qualquer preconceito ou depravação pelo fato de ele naturalizar a sexualidade e não vê-la como suja e pecaminosa. Aliás, depravados e preconceituosos foram os seus censores que viram mal em algo tão natural. Os relatos amorosos das amigas não são atos moralmente libidinosos ou doentios. Ao contrário, Bocage pretendia mostrar quão benéfica é a sexualidade para o animal homem que lhe proporciona um estado de bem-estar, fruto da catarse do êxtase amoroso, tornando-o mecanismo fisiológico leve e satisfeito por ser a sexualidade uma necessidade vital, jamais um crime. Esse pensamento está explícito nas palavras de Olinda a sua amiga Alzira: “Agora, e só agora me parece/ que começo a existir: reproduzir-me uma total mudança na minha alma. / o mundo para mim já tem encantos; sob outras cores vejo mil objetos, / que a fantasia me pintou tristonhos: / propício amor abriu-me os seus tesouros, / a natureza seus tesouros me abre”. Alzira convertida pela a amiga do pecado (acreditamos que a origem da neurose sexual do ocidente encontra-se neste símbolo de decadência da humanidade ‑ o pecado): “Sei que o primeiro ensaio dos prazeres / em vez de sufocar ativas chamas / centelhas transformou em labaredas / infundiu-lhes vigor inextinguível. / a ardência dos desejos combatia receio oculto, sem nascer do pejo.” Eis a conversão de Alzira, na visão de Bocage, ao instinto natural da sexualidade deixando de preocupar-se com as diatribes da sociedade moralista.
Nessas epístolas poéticas, Bocage parece buscar o retorno do homem e da mulher à natureza, à inocência da sexualidade sem a neurose do pecado, fruto da moral ocidental, como opressão da sexualidade: “Se existe um Deus, a natureza o oferece; / tudo o que é contra ela, é ofendê-lo”. Parece evidenciar que Bocage desejava a revalorização das paixões tão caras à civilização grega antiga, a qual via sexualidade como símbolo vital de perpetuação da vida, apesar de Bocage ter uma concepção de natureza muito próxima a concepção de Roussean, mais como uma natureza deísta, com certos elementos cristãos. Mas o que importa era o naturalismo de Bocage, livre de qualquer valor moral, em relação à sexualidade, obscurecido e não compreendido pela sociedade da época setecentista.
Portanto, como vimos, na poesia dita “pornográfica” de Bocage considerada de menor valor poético pela tradição crítica despótica, foi apreciada por nós como uma obra de suprema beleza pelas concepções apresentadas nas suas entrelinhas. Nós que não apreciamos a arte com olho moral mediante etiquetas prescritas do eruditismo de favhada. Numa sociedade tartufos, Bocage foi o único espírito autêntico, pois sua poesia foi feita, não pelo intelecto fingidor, instintivos. Além do que foi exposto aqui, acreditamos que a sátira e as epístolas como toda a obra de Bocage precisam de uma interpretação mais abrangente para ser compreendida como um todo, e assim se compreenda o espírito, o Dáimon do poeta.
Infelizmente, Bocage não resistiu. O belo animal em Bocage foi domado pelos mercadores de alma da religião. O genioso poeta foi vencido como o foi Gregório de Matos pelos hipócritas moralistas. Tornou-se um pecador arrependido dando razão aos seus algozes, renunciando aos valores cristãos. Tudo o que ele disse embelezou em suas criações poéticas foi-se pelo ralo. No fundo, o seu arrependimento significou a negação de tudo que ele acreditava anteriormente. Mas talvez ele não tenha sido o culpado. Talvez o único culpado pela sua genuflexão tenha sido a própria sociedade que o gerou... O importante é que sem Bocage não teríamos conhecido a sociedade mesquinha de sua época, nem tampouco refletiríamos a nossa moderníssima sociedade com a triste conclusão de que as gerações passam, mas o espírito de porco permanece o mesmo. Para que destruamos esse espírito talvez seja necessário outros Bocages mais duros e inocentes, “além do bem e da moral”.

Bibliografia:
BOCAGE, Manoel. Antologia Poética. Org. Maria Lajolo. São Paulo: Nova Cultural, 1991.
NIETZSCHE, Frederico. Genealogia da Moral – 2ª dissertação. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.

Pirro Korisco,
https://pt.scribd.com/doc/144803079/RESENHA-BOCAGE-A-SATIRA-E-A-POESIA-EROTICA#download








A ARTE DE DAR PEIDOS
Ensaio teórico-físico e metódico de 1751


História de um peido que fez fugir o Diabo, pondo-o a fazer papel de parvo.

Um homem, que o Diabo atormentava há já algum tempo, não conseguindo resistir às insistências desse espírito maligno, cedeu-lhe mas com três condições:
1.º Pediu-lhe uma grande quantidade de ouro e prata, e o Diabo trouxe-lhe tudo o que pediu.
2.º Exigiu ser tornado invisível, e o Diabo ensinou-lhe como fazê-lo.
Finalmente, não sabendo o que lhe exigir como terceira condição e querendo colocar o Diabo numa situação que ele não conseguisse resolver, e não estando a sua esperteza a ajudá-lo, viu-se assaltado por um medo excessivo, e foi esse medo que, por acaso, lhe forneceu a solução. Conta-se que, nesse momento crítico, lhe saiu um peido ditongo, cujo estampido parecia o de um tiro de morteiro. Aproveitando ajuizadamente a ocasião, disse ao Diabo: «Enfia, se conseguires, este peido no buraco de uma agulha, e serei teu». Evidentemente, o Diabo não conseguiu fazê-lo, apesar de o tentar, enfiando o peido de um lado e puxando do outro lado com toda a força dos seus dentes. Para mais, assustado com o estrondo de tal peido, que o eco avolumara, confundido e envergonhado por ter feito figura de parvo, fugiu a toda a pressa e libertou assim o desgraçado do perigo iminente que correra.*

_____________________
* Na versão portuguesa desta hisria, o homem pede ao Diabo: «Agora, pinta-o de verde». (NT)



Problema

Permitam-me, antes de concluir, que coloque aqui uma questão.
Perguntam-me, em nome dos músicos, quantos tipos de peidos existem no que se refere às diferenças de som.
Resposta: Sessenta e dois. Já que, segundo Cardan, o traseiro produz e forma quatro modos simples de peidos. A saber, o agudo, O grave, o reflectido e o livre. Estes modos decompõem-se em cinquenta e oito. Se acrescentarmos os quatro primeiros, obteremos sessenta e dois sons ou espécies diferentes de peidos.
Quem quiser que os conte.

Pierre-Thomas-Nicolas Hurtaut, 1751





Incrédulo, o leitor interrogar-se-á: mas então, dar peidos também é uma arte? Se a curiosidade o levou a pegar neste pequeno livro, a resposta está nas suas mãos. E garanto-lhe: a incursão por estas páginas revelar-se-á tão divertida como instrutiva. Fica, porém, o aviso: talvez o opúsculo lhe dê mais para pensar do que está à espera, pois o que se passa no nosso corpo diz mais sobre nós do que estamos preparados para admitir.
Publicado pela primeira vez em 1751 numa edição anónima, A Arte de Dar Peidos teve tanto sucesso que o autor a reeditou várias vezes até à sua morte (que ocorreu em 1791). Com o tempo, a dissertação tornou-se num clássico da literatura cómica, escatológica e pseudo-científica, existindo actualmente incontáveis as edições e traduções da obra no mundo inteiro. Já veremos porquê.
Filho de um comerciante (negociava cavalos), Pierre-Thomas-Nicolas preferiu dedicar-se ao ensino (professor de latim na Escola Militar) e, mais tarde, à literatura, em vez de seguir as pisadas do pai, como este desejava. A sátira não era o seu único domínio. Latinista e gramático encartado, assinou obras de literatura Le Voyage d’Aniers, 1748), de história (Dictionnaire historique de la ville de Paris, escrito em colaboração com o seu amigo Magby, em 1779), de filologia (Dictionnaire des mots homonymes de la langue française, 1775), e até de «medicina» (Essais de médecine sur le flux menstruel, 1754).
Foi, contudo, graças ao texto que o leitor tem entre mãos que Hurtaut se tornou imortal, inspirando mesmo um escritor como Frank Érvart a escrever: «nesta obra mundana e libertina, sopra o vento do espírito das Luzes».
Este falso cientista, mas verdadeiro filósofo, leva a paródia às suas últimas consequências pois, no fundo, quer lembrar-nos que por baixo das rendas e dos perfumes, temos vísceras como qualquer outro animal e que não devemos envergonhar-nos do que somos, antes vivê-lo com bom humor. Tanto mais que, como afirma, o peido é uma necessidade da natureza, uma condição de boa saúde, que pode e deve ser assumido como uma fonte de prazer. E até de arte, pois dar peidos não custa, custa é saber dá-los.
Erudito, Hurtaut cita abundantemente os autores clássicos (Aristófanes, Cícero e Horácio, entre outros), mas também pensadores mais contemporâneos, para nos lembrar que um bom peido, ou uma sucessão deles, pode ser uma fonte de brincadeira e de prazer, mas igualmente uma arma de guerra ou uma declaração de independência. Além de que um peido dado na boa altura é capaz de virar uma situação a nosso favor, como se verá na histórias do «pobre» Diabo e do Príncipe Peido-Airoso.
A arte de dar peidos é, pois, uma ocasião rara para aprofundar um assunto sobre o qual poucos se debruçam em boa verdade. Hurtaut procura dar a volta à questão, esgotá-la sob todos os aspectos. E se é verdade que, tal como lembra o seu subtítulo, o livro foi escrito contra os sisudos, os preconceituados e os hipócritas (para não falar dos que têm prisão de ventre, ou diarreia, mental), a sua utilidade é inquestionável. 
O que cheira verdadeiramente mal, diz ele, é o preconceito. E a incapacidade de rirmos de nós próprios, das nossas debilidades. Ou seja, o que o peido tem de dramático (ou trágico-cómico, se preferirem) é vir lembrar-nos que somos imperfeitos e mortais. Que algo está podre dentro de nós, mesmo ainda antes de morrermos. E contra isso, só há um remédio: rir, mas rir com arte.
A Arte de Dar Peidos não se limita a ser uma obra satírica. Tem uma dimensão sociológica a que só serão sensíveis os narizes mais finos e os ouvidos mais sagazes. Essa é uma das razões porque o livro não perdeu actualidade. A outra é o facto inegável do peido permanecer hoje uma manifestação tão desconhecida da generalidade das pessoas como o era no século XVIII.~
Por isso, não venham dizer que a matéria do texto é de mau gosto. Deixem-me recordar que este hino aos gases internos vem lembrar-nos que o peido pode ter uma força expressiva extraordinária. Ele está para o corpo como o vento está para o mundo. É um sopro e, logo, divino. Se Deus o criou, ele lá sabe. A Natureza não se engana e os homens mais felizes são os que se soltam sem vergonha. Reter um peido não é bom para a saúde. Todos são bons, defende Hurtaut, porque todos têm a sua razão de ser.
Para além do mais, a escrita de Hurtaut é uma preciosidade, a obra de um virtuoso da escrita satírica, que sabe variar de estilo para criar um verdadeiro mosaico de citações e anedotas inesquecíveis. Ele maneja a língua francesa com uma musicalidade admirável e com a elegância dos escritores da época. 
Roland Barthes escreveu um dia: «Por escrito, a merda não cheira mal». Não sei se concordo, há textos que fedem, e ao dizer isto estou-me a lembrar essencialmente de discursos políticos. A Arte de Dar Peidos, pelo contrário, não ofende nem o olfacto nem a inteligência. Ao transformar o ruído e o mau cheiro numa manifestação de bom gosto e erudição, Hurtaut fez obra de alquimista, defendendo, por exemplo, que não há no mundo som mais mavioso do que o peido de uma virgem. Não admira que a sua obra continue a suscitar a nossa curiosidade e aplauso.
De resto, este poeta dos gases, este sábio da flatulência, deixa expresso o mais louco dos desejos: o de assistir um dia a um concerto de peidos, concebido por um compositor capaz de transformar em música os sons mais viscerais. Em suma, decerto já o perceberam: a matéria do livro é, nem mais nem menos, do que um dos vários capítulos da mais difícil e exigente das artes: A Arte de Viver.
“Preâmbulo”, Jorge Lima Alves, Lisboa, 5 de outubro de 2010.
Lisboa, Orfeu Negro, 2010.


domingo, 28 de dezembro de 2014

ADOLESCENTES REPENTINOS (Herberto Helder)







Adolescentes repentinos, não sabem, apenas o tormento de um excesso
giratório. Com as cabeças zoológicas.
Os anéis nas patas.
Oprime-os para dentro um clarão dançante.
Aquilo que são fora.
A cegueira dos chifres que levantam
como uma enorme estrela
desabraçada. A sua ligeireza busca o peso
da pedra. E o peso que têm
de pura luz sem peso, o movimento sinistro
no chão,
o terror, uma
riqueza violenta — buscam alguém que os toque.
Na boca.

Que os torne transparentes, circulatórios.
E quando as turquesas se cruzam de mão a mão, deixando-as
em brasa,
vê-se que são anjos tocados pelas víboras, anjos
anatómicos e atrozes.
Expostos à lua como animais. Que são escuros
nas espáduas.
Devastam o mundo só de olhá-lo com força.
O sono que os ataca mostra-os
cheios de artérias. E então a delicadeza pesa-lhes
como a morte. Basta tocá-los na cara para que fiquem
brancos. Atravessá-los com o sangue venoso
da insónia, da nossa matéria.

E então a sua carne é uma estrela suada.


Herberto Helder, Flash. Abril 1980.
Apud Poesia Toda, Lisboa, Assírio & Alvim, 1990.




*


Os “[a]dolescentes repentinos”, mesmo que pessoas, são animais, e saliento que a única logia deste fragmento de Flash é a que se lê em “zoológicos”. Animalizados, portanto, os “adolescentes” não sabem, como Patrícia, “nada, nada, nada!”, “apenas o tormento de um excesso/ giratório”, ou seja, apenas a condição debruçada de sua própria condição excessiva, portanto dionisíaca, fundida à natureza. 
Luís Maffei, Do mundo de Herberto HelderRio de Janeiro, Faculdade de Letras, UFRJ, 2007.








[Publicação simultânea em: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2014/12/27/adolescentes-repentinos.aspx]

sábado, 20 de dezembro de 2014

quinta-feira, 18 de dezembro de 2014

Fala da padeira em "A morte sem mestre".




Se um dia destes parar não sei se não morro logo,
disse Emília David, padeira,

não sei se fazer um poema não é fazer um pão

um pão que se tire do forno e se coma quente ainda por entre as linhas,

um dia destes vejo que não vou parar nunca,
as mãos súbito cheias:
o mundo é só fogo e pão cozido,
e o fogo é o que dá ao mundo os fundamentos da forma,
pão comprido nas terras de França,
pão curto agora nestes reinos salgados,
se parar não sei se não caio logo ali redonda no chão frio
como se caísse fundo em mim mesma,
a mão dentro do pão para comê-lo
‑ disse ela.


Herberto Helder, A MORTE SEM MESTRE, 2014.



*

Herberto Helder avisa, em nota prévia, que tudo o que possa parecer acidental neste livro é, na verdade, intencional. E depois, logo no começo, uma poesia diz que todos os erros ortográficos ou de sentido são propositados, "um grão de sal aberto na boca do bom leitor impuro", versão herbertiana do "leitor hipócrita, meu semelhante, meu irmão".
Que coisas serão essas que podem parecer acidentais mas não o são? A mudança de chancela, da clássica Assírio para a Porto Editora? A capa personalizada, com a caligrafia do autor? O CD que acompanha o livro e onde Herberto lê alguns poemas com voz cansada, ansiosa e tranquila? E o que são os "erros ortográficos", além dos habituais acentos de uso idiossincrático, ou talvez de uma resistência ao acordês? Finalmente, o que significa um "erro de sentido", para mais num poeta onde nunca é exactamente o "sentido" (discursivo) que nos fascina? Tantas advertências servem talvez para nos recordar que, mude o que mudar, estes são ainda "poemas quando se vai com a mão/ e bufam e arranham logo", poemas indóceis, não domesticáveis, soberanos.
Tudo parece aqui intencional, incluindo os supostos "erros", incluindo esta visibilidade invisível da última fase, que começou há uns bons anos com as fotografias de um Herberto mais velho do que aquele que conhecíamos de outras imagens; com as sucessivas antologias e poemas escolhidos, completos ou rasurados; com as edições pequenas que esgotam logo e se tornam um "fenómeno"; e nestes últimos dois livros, assumidamente pré-póstumos, com uma referencialidade inédita. Há telemóveis nestes poemas e discursos vários políticos: "uma reforma de pilha-galinhas", "não me queixo de nada no mundo senão do preço das bilhas de gás", e esse divertido "aparecem em toda a parte uns gajos que, faz favor", "desde o Cristo Cunhal até ao Jotinha". Esses são os poemas mais curiosos, mas não os mais fortes. Curioso também, ou mais que isso, é o facto de Herberto dizer que nunca tentou sequer um "resquício metafísico" e depois escrever um poema em que Jesus é personagem. Curiosa, ou mais, é a confissão de que os seus poemas são "seus" de um modo que os filhos nunca podem ser, uma vez que os poemas não são entidades diferentes mas uma única pessoa (o que é, aliás, um resquício metafísico).
Porém, no essencial, "A Morte sem Mestre" é um prolongamento temático de "Servidões".
O poeta canta "o alvoroço mental deste fim de idade", e várias vezes diz que o "velho" é um "estupor", um "cabrão", lembra-nos os seus 83 anos, mas também declara: "é que eu estou vivo e estremeço ainda". Mais do que um manual de morte, de Tanatos, esta colectânea é uma celebração de Eros: grande parte dos poemas são odes priápicas, de linguagem entusiasta e desabrida, exclamativa e vernácula, reiterativa e quase bíblica, quase "poema sumério", ou quase Bataille, odes vorazes a mulheres, meninas e putas, "femeazinhas" de todo o género e feitio, longilíneas, espessas, sedosas, árduas, amaras, bravas, humílimas, subtis, nuas, vestidas, violentas, descalças, catorzinhas, inspiradas, revoltas. Herberto evoca uma "primeira noite no começo do mundo" e outros dias e noites, antigos e modernos, e nesses poemas a "coisa amada" é ainda uma labareda, um nó de sangue na garganta de um homem velho, uma "verdade última", uma última ciência.

Crítica literária de Pedro Mexia, Expresso, 2014-06-13




O trabalho da morte




Herberto Helder aproximou-se, como nunca antes, do inumano e do Mal, traduzindo o sensível em demoníaco e encarando a morte sem elevações poético-metafísicas.

Neste novo livro de Herberto Helder, a poesia está do lado da exigência de tudo dizer. De dizer, antes de mais, o que faz estremecer os homens: a morte. Chamemos-lhe uma exigência inumana, também sobre-humana, para afastarmos do horizonte qualquer hipótese de, em qualquer momento do livro, haver uma porta de entrada para o humanismo — muito poético e muito tagarela — da morte amestrada. A morte sem mestre é outra coisa, é uma “porcaria obscena”, como dizia Bataille, autor que, juntamente com Sade, muito facilmente podemos fazer comparecer na leitura destes poemas. “Sade e Bataille, meus próximos”, seria uma epígrafe plausível para este livro, onde Herberto Helder parece ter radicalizado e gritado em voz alta uma prescrição que já tinha sido sussurada em Servidões, e que consiste em baixar a metafísica. Baixar a metafísica significa, neste caso, seguir as vias de um baixo materialismo e permanecer nesse nível de baixeza. Se pensarmos na elevadíssima entoação órfica a que acedeu desde o início a poesia de Herberto Helder, à altura de conceitos cheios de sublimidade como o de “poesia absoluta”, se pensarmos que ela permitia uma equiparação entre a metáfora e a metafísica, então é obrigatório reconhecer que estamos agora num mundo completamente diferente — um mundo que, inaugurando-se com uma invocação obscena, “Oh Anjo Príapo, oh Nossa Senhora Côna!”, tem no seu centro a dimensão burlesca da carne e do corpo. Até ao limite de um poema que fala da soberania de um “rei terrífico com voz política”: “tragam-me as putas todas, religiosas, profanas ou outras,/ o meu pénis tem o tamanho de um ceptro/ (e ergue o ceptro que tem cerca de metro e meio,/ e na verdade o sexo dele é até maior um pouco),/ traspasso-as da côna ao coração/ (e que mulher não tremeria de pânico e oculto gozo?),/ e assim passa ele o tempo e o medo e o mundo”. E, a seguir, este curto poema: “e eu que me esqueci de cultivar: família, inocência, delicadeza,/ vou morrer como um cão deitado à fossa!”.
A morte sem mestre, que se manifesta cruamente sem mediações nem idealizações, suscita o tema obsceno e jocoso, como nalguma poesia trovadoresca. E faz emergir a questão de uma “eloquência vulgar”, própria da comédia — e não da tragédia — da vida e da morte (De Vulgari Eloquentia, recordemos, é um título de Dante, quase um tratado sobre a commedia). E, retomando a alusão à poesia trovadoresca, talvez seja pertinente recordar que o “poema contínuo” herbertiano pode muito bem referir-se à oda continua da poesia occitana, que designava a estrutura métrica e musical de um canto, onde era impossível encontrar um ponto onde quebrar ou dividir a stanza. A Morte sem Mestre, apesar das divisões, pode ser lido como um poema único. Digamos assim: como o corpo das “fêmeas ininterruptas” (também esta assimilação do poema a um corpo se encontra na poesia trovadoresca). Há uma regra biopoética aqui formulada que está não do lado da vida, mas do lado do “trabalho artesanal da morte”: “filhos não te são nada, carne da tua carne são os poemas/ que escreveste contra tudo, pais e filhos,/ lugar e tempo,/ filha é aquela que despes dos pés à cabeça,/ perdendo os dedos nos nós que tem pelo cabelo abaixo,/ e só pelo desejo que te traz de viver ou morrer dela,/ desejo de ser o mesmo punho de cinza/ deitado à espuma nos extremos da terra,/ filha é a palavra carregada que arrancas aos dicionários quando dormem (…)”.
Os poemas são escritos “contra” todas as regras da bienséance e as disposições humanistas. Chegado a este livro, Herberto Helder mostra, com toda a clareza que o abaixamento da metafísica permite, o seu lado de poeta-energúmeno (não, isto não é um insulto), solitário, singular e sem família poética, tendo como únicos ascendentes os poemas escritos numa língua morta. O genial poeta-energúmeno concebe a poesia como uma forma aguda do Mal. E o Mal tem para ele um valor soberano. O Mal é o que dia-boliza o sím-bolo. Devemos, pois, levar muito a sério estes dois versos: “o poema agora por exemplo não tem simbolismo nenhum,/ morro dentro dele sem força para respirar”. E, perante este livro, muito desorientados se deverão sentir os leitores que não passam sem os bons ofícios simbólicos da poesia. O Mal é a força informe que trabalha a língua e lhe dá a sua violência; o Mal é o inumano que habita, como um fundo inapagável, o humano, é a sua miséria “natural”, a sua perversão polimorfa de criança mal-educada que resulta em poeta-energúmeno entregue à tarefa prostitucional da poesia. Este poeta do Mal, demoníaco, entrega-se ao trabalho da morte, com uma ira errante dirigida à sua época, e escreve o seu próprio epitáfio, em tom jocoso, no final de uma elegia: “e aqui jaz, acomodado, oitenta e três, parece que pelo/ menos sem grandes achaques físicos, o todo vosso/ burro com palha pouca e fora de uso, quer dizer:/ uma reforma de pilha-galinhas e poeticamente/ enterrado vivo (….)”.
Nota: Este livro é incomensurável, no modo como se expõe. No mais alto grau, não lhe servem nenhumas estrelas, mesmo que o critério seja o da comparação com livros anteriores do autor.

https://www.publico.pt/culturaipsilon/noticia/o-trabalho-da-morte-1659005






Novo livro de Herberto Helder surpreende, deslumbra e irrita

quinta-feira, 27 de novembro de 2014

É um outono que não é outono. (Natália Correia)


Parque Terra Nostra, Furnas, ilha de São Miguel


É um outono que não é outono.
Tampouco a estação por que se espera
na dor de nos deixarem ao abandono
as ninfas que são flores na primavera.

No entanto nas coisas o segredo
de uma só alma põe a sabedoria
dando à terra repouso no arvoredo
de que o cedro é a sagrada biografia.

 

Natália Correia, “A recusa das imagens evidentes – III”
 in Dimensão encontrada (1957)

 

 

No verso inicial, "É um outono que não é outono", o sujeito poético manifesta uma contradição intrigante. O outono, geralmente associado à queda das folhas e ao declínio da natureza, parece não se enquadrar no padrão esperado.

O sujeito poético continua a explorar essa ideia de contradição e ambiguidade ao afirmar que "Tampouco a estação por que se espera", sugerindo que as expectativas não estão a ser cumpridas. Isso pode ser lido como uma metáfora para a vida, onde nem sempre as coisas acontecem conforme planeado ou esperado.

A seguir, o sujeito poético alude à dor de sermos "deixados ao abandono", uma sensação de desamparo e solidão que muitas vezes acompanha as transições na vida. As "ninfas que são flores na primavera" representam a juventude e a beleza que eventualmente desaparecem, deixando-nos em um estado de desolação.

Na segunda quadra, a voz poética revela que há um segredo nas coisas, que só pode ser descoberto por uma alma única e sábia. Esse segredo é o de dar à terra repouso no arvoredo, ou seja, de aceitar a natureza como ela é, sem lhe impor uma imagem idealizada. O arvoredo representa a diversidade e a riqueza da vida, que se manifesta em diferentes formas e cores. O cedro é a sagrada biografia do arvoredo, pois é uma árvore nobre, forte e duradoura, que simboliza a resistência e a permanência.

Apesar das aparentes contradições e desilusões da vida, há uma sabedoria subjacente que reside na unidade e na harmonia da natureza e do mundo.

O "cedro" mencionado no poema pode ser visto como um símbolo dessa sabedoria, representando a resistência e a longevidade da natureza.








CARREIRO, José. “É um outono que não é outono. (Natália Correia)”. Portugal, Folha de Poesia: artes, ideias e o sentimento de si, 27-11-2014. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2014/11/cibertertulia-sobre-um-verso-de-natalia.html