segunda-feira, 23 de novembro de 2015

VICENTE, um palimpsesto torguiano


Arca de Noé, ilustração de Marta Madureira (2012) para o conto Vicente.


     Intertextualidade – os textos podem manter com outros relações intertextuais, por meio da citação ou da imitação criativa. O conto de Miguel Torga estabelece uma relação intertextual direta com um episódio da Bíblia e subtilmente convoca versos da Mensagem de Fernando Pessoa.


O corvo da liberdade.
Combate entre criador e criatura.

Mensagem, Fernando Pessoa
“Vicente” in Bichos, Miguel Torga
“O Encoberto” - título da III Parte da Mensagem

“O Encoberto” -  Quinto Símbolo  da III Parte

Terceiro Aviso da III Parte:
Quando virás a ser o Cristo
De a quem morreu o falso Deus,
E a despertar do mal que existo
A Nova Terra e os Novos Céus?


Quando virás, ó Encoberto,
Sonho das eras português,
Tornar-me mais que o sopro incerto
De um grande anseio que Deus fez?


como que guiada por um piloto encoberto
HORIZONTE

Ó mar anterior a nós, teus medos
Tinham coral e praias e arvoredos.
Desvendadas a noite e a cerração,
As tormentas passadas e o mistério,
Abria em flor o Longe, e o Sul sidério
'Splendia sobre as naus da iniciação.

Linha severa da longínqua costa –
Quando a nau se aproxima ergue-se a encosta
Em árvores onde o Longe nada tinha;
Mais perto, abre-se a terra em sons e cores:
E, no desembarcar, há aves, flores,
Onde era só, de longe a abstracta linha.

O sonho é ver as formas invisíveis
Da distância imprecisa, e, com sensíveis
Movimentos da esp'rança e da vontade,
Buscar na linha fria do horizonte
A árvore, a praia, a flor, a ave, a fonte – 
Os beijos merecidos da Verdade.

Os olhos cravavam-se na distância

Terra! Nem planaltos, nem veigas, nem desertos. Nem mesmo a macicez tranquilizadora dum monte. Apenas a crista de um cerro a emergir das vagas.

À medida que a barca se aproximava, foi-se clarificando na lonjura a sua presença esguia, recortada no horizonte, linha severa que limitava um corpo, e era ao mesmo tempo um perfil de vontade.
O MOSTRENGO

O mostrengo que está no fim do mar
Na noite de breu ergueu-se a voar;
À roda da nau voou três vezes,
Voou três vezes a chiar,
E disse: "Quem é que ousou entrar
Nas minhas cavernas que não desvendo,
Meus tectos negros do fim do mundo?"
E o homem do leme disse, tremendo:
"El-Rei D. João Segundo!"


"De quem são as velas onde me roço?
De quem as quilhas que vejo e ouço?"
Disse o mostrengo, e rodou três vezes,
Três vezes rodou imundo e grosso.
"Quem vem poder o que só eu posso,
Que moro onde nunca ninguém me visse
E escorro os medos do mar sem fundo?"
E o homem do leme tremeu, e disse:
"El-Rei D. João Segundo!"



Três vezes do leme as mãos ergueu,
Três vezes ao leme as reprendeu,
E disse no fim de tremer três vezes:
"Aqui ao leme sou mais do que eu:
Sou um Povo que quer o mar que é teu;
E mais que o mostrengo, que me a alma teme
E roda nas trevas do fim do mundo,
Manda a vontade, que me ata ao leme,
De El-Rei D. João Segundo!"
onde está o meu servo Vicente?

a voz de Deus ribombou de novo pelo céu imenso, numa severidade tonitruante.
– Noé, onde está o meu servo Vicente?

E a palavra de Deus, medonha, toou de novo pelo deserto infinito do firmamento.

duelo entre Vicente e Deus

Três vezes uma onda alta, num arranco de fim, lambeu as garras do corvo, mas
três vezes recuou. A cada vaga, o coração frágil da Arca, dependente do coração resoluto de Vicente, estremeceu de terror. A morte temia a morte.



Vicente, ilustração de Marta Madureira, 2012


VICENTE
Conto

Naquela tarde, à hora em que o céu se mostrava mais duro e mais sinistro[1], Vicente[2] abriu as asas negras e partiu.[3] Quarenta[4] dias eram já decorridos desde que, integrado na leva[5] dos escolhidos, dera entrada na Arca[ 6]. Mas desde o primeiro instante que todos viram que no seu espírito não havia paz. Calado e carrancudo, andava de cá para lá numa agitação contínua, como se aquele grande navio onde o Senhor guardara a vida fosse um ultraje[7] à criação. Em semelhante balbúrdia – lobos e cordeiros irmanados no mesmo destino –, apenas a sua figura negra e seca se mantinha inconformada com o procedimento de Deus. Numa indignação silenciosa, perguntava: – a que propósito estavam os animais metidos na confusa questão da torre de Babel?[ 8] Que tinham que ver os bichos com as fornicações[9] dos homens, que o Criador queria punir? Justos ou injustos, os altos desígnios que determinavam aquele dilúvio batiam de encontro a um sentimento fundo, de irreprimível repulsa. E, quanto mais inexorável[10] se mostrava a prepotência, mais crescia a revolta de Vicente.
Quarenta dias, porém, a carne fraca[11] o prendeu ali. Nem mesmo ele poderia dizer como descera do Líbano[12] para o cais de embarque e, depois, na Arca, por tanto tempo recebera das mãos servis de Noé a ração quotidiana. Mas pudera vencer-se. Conseguira, enfim, superar o instinto da própria conservação, e abrir as asas de encontro à imensidão terrível do mar.[13]
A insólita partida foi presenciada por grandes e pequenos num respeito calado e contido. Pasmados e deslumbrados, viram-no, temerário[14], de peito aberto, atravessar o primeiro muro de fogo[15] com que Deus lhe quis impedir a fuga, sumir-se ao longe nos confins do espaço. Mas ninguém disse nada. O seu gesto foi naquele momento o símbolo da universal libertação[16]. A consciência em protesto ativo contra o arbítrio[17] que dividia os seres em eleitos e condenados.
Mas ainda no íntimo de todos aquele sabor de resgate, e já do alto, larga como um trovão, penetrante como um ralo[18], terrível, a voz de Deus[19]:
– Noé, onde está o meu servo Vicente?
Bípedes e quadrúpedes ficaram petrificados.
Sobre o tombadilho[20] varrido de ilusões, desceu, pesada, uma mortalha[21] de silêncio.
Novamente o Senhor paralisara as consciências e o instinto, e reduzia a uma pura passividade vegetativa[22] o resíduo da matéria palpitante.
Noé, porém, era homem. E, como tal, aprestou as armas de defesa.
– Deve andar por aí... Vicente! Vicente! Que é do Vicente?!...
Nada.
– Vicente!... Ninguém o viu? Procurem-no!
Nem uma resposta. A criação inteira parecia muda.
– Vicente! Vicente! Em que sítio é que ele se meteu?
Até que alguém, compadecido da mísera pequenez daquela natureza, pôs fim à comédia.
– Vicente fugiu...
– Fugiu?! Fugiu como?
– Fugiu... Voou...
Bagadas de suor frio alagaram as têmporas do desgraçado. De repente, bambearam-lhe as pernas e caiu redondo no chão.
Na luz pardacenta do céu houve um eclipse momentâneo. Pelas mãos invisíveis de quem comandava as fúrias, como que passou, rápido, um estremecimento de hesitação.
Mas a divina autoridade não podia continuar assim, indecisa, titubeante[23], à mercê da primeira subversão. O instante de perplexidade durou apenas um instante. Porque logo a voz de Deus ribombou de novo pelo céu imenso, numa severidade tonitruante.[24]
– Noé, onde está o meu servo Vicente?
Acordado do desmaio poltrão[25], trémulo e confuso, Noé tentou justificar-se.
– Senhor, o teu servo Vicente evadiu-se. A mim não me pesa a consciência de o ter ofendido, ou de lhe haver negado a ração devida. Ninguém o maltratou aqui.
Foi a sua pura insubmissão que o levou... Mas perdoa-lhe, e perdoa-me também a mim... E salva-o, que, como tu mandaste, só o guardei a ele...
– Noé!... Noé!...
E a palavra de Deus, medonha, troou de novo pelo deserto infinito do firmamento.
Depois, seguiu-se um silêncio mais terrível ainda. E, no vácuo em que tudo parecia mergulhado, ouvia-se, infantil, o choro desesperado do Patriarca, que tinha então seiscentos anos de idade.
Entretanto, suavemente, a Arca ia virando de rumo. E a seguir, como que guiada por um piloto encoberto, como que movida por uma força misteriosa, apressada e firme – ela que até ali vogara indecisa e morosa ao sabor das ondas –, dirigiu-se para o sítio onde quarenta dias antes eram os montes da Arménia.
Na consciência de todos a mesma angústia e a mesma interrogação. A que represálias recorreria agora o Senhor? Qual seria o fim daquela rebelião?
Horas e horas a Arca navegou assim, carregada de incertezas e terror. Iria Deus obrigar o corvo a regressar à barca? Iria sacrificá-lo, pura e simplesmente, para exemplo? Ou que iria fazer? E teria Vicente resistido à fúria do vendaval, à escuridão da noite e ao dilúvio sem fim? E, se vencera tudo, a que paragens arribara? Em que sítio do universo havia ainda um retalho de esperança?
Ninguém dava resposta às próprias perguntas. Os olhos cravaram-se na distância, os corações apertavam-se num sentimento de revolta impotente, e o tempo passava.
Subitamente, um lince de visão mais penetrante viu terra. A palavra, gritada a medo, por parecer ou miragem ou blasfémia[26], correu a Arca de lés a lés como um perfume. E toda aquela fauna desiludida e humilhada subiu acima, ao convés, no alvoroço grato e alentador[27] de haver ainda chão firme neste pobre universo.
Terra! Nem planaltos, nem veigas[28], nem desertos. Nem mesmo a macicez[29] tranquilizadora dum monte. Apenas a crista[30] de um cerro a emergir das vagas[31]. Mas bastava. Para quantos o viam, o pequeno penhasco resumia a grandeza do mundo.

ilha do Corvo

Encarnava a própria realidade deles, até ali transfigurados em meros fantasmas flutuantes. Terra! Uma minúscula ilha de solidez no meio dum abismo movediço, e nada mais importava e tinha sentido.
Terra! Desgraçadamente, a doçura do nome trazia em si um travor[32]. Terra... Sim, existia ainda o ventre quente da mãe. Mas o filho? Mas Vicente, o legítimo fruto daquele seio?
Vicente, porém, vivia. À medida que a barca se aproximava, foi-se clarificando na lonjura a sua presença esguia, recortada no horizonte, linha severa que limitava um corpo, e era ao mesmo tempo um perfil de vontade.[33]
Chegara! Conseguira vencer! E todos sentiram na alma a paz da humilhação vingada.[34]
Simplesmente, as águas cresciam sempre, e o pequeno outeiro, de segundo a segundo, ia diminuindo.
Terra! Mas uma porção de tal modo exígua, que até os mais confiados a fixavam ansiosamente, como a defendê-la da voragem[35]. A defendê-la e a defender Vicente, cuja sorte se ligara inteiramente ao telúrico[36] destino.
Ah, mas estavam «rotas as fontes do grande abismo e abertas as cataratas do céu»! E homens e animais começaram a desesperar diante daquele submergir irremediável do último reduto[37] da existência ativa. Não, ninguém podia lutar contra a determinação de Deus. Era impossível resistir ao ímpeto dos elementos, comandados pela sua implacável tirania.
Transida, a turba[38] sem fé fitava o reduzido cume e o corvo pousado em cima. Palmo a palmo, o cabeço fora devorado. Restava dele apenas o topo, sobre o qual, negro, sereno, único representante do que era raiz plantada no seu justo meio, impávido, permanecia Vicente. Como um espetador impessoal, seguia a Arca que vinha subindo com a maré. Escolhera a liberdade, e aceitara desde esse momento todas as consequências da opção. Olhava a barca, sim, mas para encarar de frente a degradação que recusara.
Noé e o resto dos animais assistiam mudos àquele duelo entre Vicente e Deus. E no espírito claro ou brumoso de cada um, este dilema, apenas: ou se salvava o pedestal que sustinha Vicente, e o Senhor preservava a grandeza do instante genesíaco[39] – a total autonomia da criatura em relação ao criador –, ou, submerso o ponto de apoio, morria Vicente, e o seu aniquilamento invalidava essa hora suprema. A significação da vida ligara-se indissoluvelmente ao ato de insubordinação. Porque ninguém mais dentro da Arca se sentia vivo. Sangue, respiração, seiva de seiva, era aquele corvo negro, molhado da cabeça aos pés, que, calma e obstinadamente[40], pousado na derradeira possibilidade de sobrevivência natural, desafiava a omnipotência.
Três[41] vezes uma onda alta, num arranco de fim, lambeu as garras do corvo, mas três vezes recuou.[42] A cada vaga, o coração frágil da Arca, dependente do coração resoluto de Vicente, estremeceu de terror. A morte temia a morte.
Mas em breve se tornou evidente que o Senhor ia ceder. Que nada podia contra aquela vontade inabalável de ser livre.
Que, para salvar a sua própria obra, fechava, melancolicamente, as comportas[43] do céu.
Miguel Torga, Bichos, 1940.



NOTAS:
[1] SINISTRO - assustador.
[2] VICENTE - do latim vincentius, relativo a palavra vincens, significa "aquele que vence", "aquele que conquista", "conquistador, "sedutor". Na gíria portuguesa significa “corvo”. O corvo é, simbologicamente, considerado uma ave de mau agouro, normalmente ligado à morte e desventuras, conforme é possível verificar nos apontamentos de Jean Chevalier e Alain Gheerbrant (Dicionário dos Símbolos, Lisboa, Teorema, 1994). Na passagem bíblica do dilúvio, o corvo é o primeiro animal que sai da arca para verificar se há terras emergentes. Vicente, opositivamente ao corvo bíblico, não sai da arca por uma decisão hierárquica, ele foge deliberadamente, no entanto, o conflito gerado por essa fuga proporcionará a realização do maior desejo de todos os tripulantes da arca, que é rever a terra.
[3] A primeira frase do conto introduz, sem preâmbulos, as duas presenças em conflito. ("Além, aqui e aquém em Miguel Torga: análise de «Vicente»", por Teresa Rita Lopes. In: Revista Colóquio/Letras. Ensaio, n.º 25, Maio 1975, p. 34-49. 
[4] QUARENTA - É o número da espera, da preparação, da provação ou do castigo. Não há dúvida que o primeiro aspeto é, ao mesmo tempo, o menos conhecido e, no entanto, o mais importante. Pode dizer-se que os escritores bíblicos marcam a história da salvação dando este número aos acontecimentos mais importantes; este número caracteriza as intervenções sucessivas de Deus, que se invocam uma à outra. Como Saul, também David reina quarenta anos (II Samuel, 5, 4); Salomão, a mesma coisa (I Reis, 11,42). A aliança com Noé acompanha os quarenta dias do dilúvio; Moisés é chamado por Deus aos quarenta anos; fica quarenta dias no cimo do monte Sinai. Jesus prega durante quarenta meses; o ressuscitado aparece aos discípulos durante os quarenta dias que precedem a Ascensão (Atos, 1, 3).
Muitas vezes acentua-se também o aspeto de provação ou de castigo: os Hebreus infiéis foram condenados a errar durante quarenta anos no deserto (Números, 32, 13). Quarenta dias de chuva puniram a humanidade pecadora (Génesis, 7, 4). Jesus, representando a nova humanidade, foi conduzido ao Templo quarenta dias depois do seu nascimento; saiu vitorioso da tentação por que passou durante quarenta dias(Mateus, 4, 2 e paralelos), e ressuscitou depois de 40 horas de permanência no sepulcro.
Segundo R. Allendy (ALLN, 385), este número marca a conclusão de um ciclo, de um ciclo, no entanto, que deve desembocar, não numa simples repetição, mas Sim numa mudança radical, numa passagem para uma outra ordem de ação e de vida. Por isso Buda e o Profeta começaram a sua pregação aos 40 anos; e a quaresmaque prepara a ressurreição pascal, dura 40 dias.
Entre os Africanos, principalmente entre os Fulas os funerais duram 40 noites, quando um boiultrapassa 21 anos e um homem 105 anos. Entre os Bambaras oferecem-se em sacrifício 40 caurins, 40 cavalos 40 bois, para a iniciação suprema do Kamo. A expressão «2 vezes 40» significa cem (HAMK, 23) ou o quase inumerável.
Este número desempenhou um papel particularmente importante nos rituais fúnebres de um grande número de povos. Com efeito, é o número de dias que são precisos para que os restos mortais sejam considerados como definitivamente livres de qualquer corpo vivo, por mais subtil que ele seja, isto é, de todas as suas almas. Um morto, segundo estas crenças, não está totalmente morto senão no fim deste tempo, e a cerimónia deste dia, a quarentena, é a que retira as ú1timas proibições do luto; é o tempo dapurificação.
E nesta altura que se realizam os ritos de purificação, os familiares do defunto ficam então desligados de toda a obrigação a seu respeito.
É o lapso de tempo que é preciso para desenterrar o cadáver, limpar os ossos e colocá-los na sua morada definitiva, para os povos que praticam o costume do segundo enterro, principalmente entre os Índios da América equatorial. Para os povos altaicos, é o dia em que a viúva pronuncia a fórmula ritual:Agora, abandono-te, que a torna livre para contrair segundas núpcias. E também o dia em que se procede à purificação da iurte (HARA, 227-228). O costume da quarentena provém da crença segundo a qual o número quarenta simboliza um ciclo de vida ou de não-vida.
Jean-Jacques Rousseau disse dos quarenta anos: É, a meu ver, a idade mais conveniente para reunir todas as qualidades que devem existir num homem de Estado. O direito feudal francês contemplava a quarentena do Rei, duração de quarenta dias estabelecido por Luís IX, durante o qual o ofendido não podia vingar a sua injúria.
(In Dicionário dos Símbolos, de Jean Chevalier e Alain Gheerbrant, Lisboa, Teorema, 1994).
[5] LEVA: grupo.
[ 6] Texto adaptado do livro bíblico «Génesis»:
CORRUPÇÃO DA HUMANIDADE - O Senhor reconheceu que a maldade dos homens era grande na Terra, que todos os seus pensamentos e desejos tendiam sempre e unicamente para o mal. O Senhor arrependeu-se de ter criado o homem sobre a Terra, e o Seu coração sofreu amargamente.
DEUS DECIDE ELIMINAR AS SUAS CRIATURAS - E o Senhor disse: «Eliminarei da face da Terra o homem que Eu criei, e, juntamente com o homem, os animais domésticos, os répteis e as aves dos céus, pois estou arrependido de os ter feito». Noé, porém, achou graça aos olhos do Senhor.
Este é o relato da descendência de Noé. Noé era um homem justo e perfeito, entre os homens do seu tempo, e andava sempre com Deus. Noé teve três filhos: Sem, Cam e Jafet. (…)
A CONSTRUÇÃO DA ARCA - Então Deus disse a Noé: «Constrói uma arca de madeiras resinosas. Dividi-la-ás em compartimentos e calafetá-la-ás com betume, por fora e por dentro. Hás-de fazê-la desta maneira: o comprimento será de trezentos côvados, a largura de cinquenta côvados e a altura de trinta côvados. Ao alto, farás nela uma janela, à qual darás dimensão de um côvado. Colocarás a porta da arca a um lado, construirás nela um andar inferior, um segundo e um terceiro andar, pois vou lançar um dilúvio, que inundando tudo, eliminará debaixo do céu todo o ser animal, com sopro de vida».
A GRANDE INUNDAÇÃO - Tendo Noé seiscentos anos de vida, no segundo mês, no dia dezassete do mesmo mês, nesse dia romperam-se todas as fontes do grande abismo, e abriram-se as cataratas do céu. A chuva caiu sobre a Terra durante quarenta dias e quarenta noites. Naquele mesmo dia, Noé entrou na arca com Sem, Cam e Jafet, seus filhos, sua mulher e as três mulheres dos seus filhos; juntamente com eles, entraram os animais selvagens segundo as suas espécies, os animais domésticos segundo as suas espécies, os répteis que se arrastam pela terra, segundo as suas espécies e todos os animais voláteis, todas as aves, tudo quanto possui asas, segundo as suas espécies. (…)
Choveu torrencialmente durante quarenta dias sobre a terra. As águas cresceram e levantaram a arca, que foi elevada por sobre a terra. As águas iam sempre crescendo, engrossando e subiram muito acima da terra, e a arca flutuava à superfície das águas (…). Todas as criaturas que se moviam na terra pereceram (…).
O FIM DO DILÚVIO - Decorridos quarenta dias, Noé abriu a janela que havia feito na arca e soltou um corvo, que saiu repetidas vezes, enquanto iam secando as águas sobre a terra. Depois, soltou uma pomba, a fim de verificar se as águas tinham diminuído à superfície da Terra. Mas, não tendo encontrado sítio para poisar, a pomba regressou à arca, para junto dele, pois as águas cobriam ainda a superfície da Terra. Estendeu a mão, agarrou-a e meteu-a na arca.
Aguardou sete dias; depois soltou novamente a pomba, que voltou para junto dele, à tarde, trazendo no bico uma folha verde de oliveira. Noé soube, então, que as águas tinham baixado sobre a Terra. Aguardou ainda mais sete dias, depois tornou a soltar a pomba, mas, desta vez, ela não regressou mais para junto dele. (In: Bíblia Sagrada, Lisboa, Difusora Bíblica, 1994, pp. 9-11.)
[7] ULTRAJE: insulto.
[ 8] BABELepisódio bíblico; referência a um comportamento dos homens que levou Deus a castigá-los com o aparecimento de línguas diferentes: até tentarem construir a torre para atingirem Deus nos céus, os homens falavam todos a mesma língua.
[9] FORNICAÇÕES: termo usado na Bíblia para se condenar o que aí se considerava como imoralidades de cariz sexual.
[10]  INEXORÁVEL: impiedosa, a que não se pode escapar.
[11]  FRACA - a necessidade.
[12]  LÍBANO: região onde Vicente vivia antes do diluvio.
[13] Dividido entre a segurança na Arca e a liberdade, Vicente deixou-se embarcar. Todavia, o corvo não vivia em paz com a sua consciência, pois não se conformada com o “procedimento de Deus”. Como tal, mesmo correndo o risco de não sobreviver, optou por se evadir daquela servidão.


[14] TEMERÁRIO – arrojado, ousado, arriscado.
[15] MURO DE FOGO – obstáculo extraordinário criado por Deus para o impedir qualquer fuga.
[16] A expressão “símbolo da universal libertação” pode ser vista como uma alusão ao mito de Ícaro - “Ícaro é o símbolo da desmesura e da temeridade, a dupla perversão do juízo e da coragem.” (in Dicionário dos Símbolos, de Jean Chevalier e Alain Gheerbrant, Lisboa, Teorema, 1994).

EX06 (untitled). Artist:  Tomasz Alen Kopera. Movement:  magical realism. Type:  oil on canvas. Dimensions:  100x120cm / 39x47in. Year:  2021


Uma segunda hipótese de interpretação alusiva é lembrarmo-nos de Prometeu, pois “foi preciso arrancar dos deuses a sobrevivência, o direito a existir. Existirmos é um gesto de rebeldia, contra a arrogância dos deuses que nos criaram e que nos podem destruir por capricho. Também antigos mitos nos contam como à força e à violência divinas se opôs a dignidade humana. Entre eles, a história de Prometeu que, comovido pelos sofrimentos dos homens, lhes trouxe o domínio do fogo, fonte de todo o progresso humano e símbolo universal da razão. O fogo, charneira entre a selvajaria e a civilização. O fogo, que permitiu a olhos humanos penetrarem pela vez primeira na escuridão e no desconhecido. O fogo, que nos fez maiores do que éramos. Por esta oferta, que baralhou os dados originais da criação, ao tornar os homens semelhantes aos deuses, Prometeu foi punido por Zeus. Foi acorrentado às montanhas do Caucaso, onde uma águia (o pássaro que é identificado com o próprio Zeus) lhe devora, todos os dias o fígado. Surge muito claramente, nas várias fontes (Ovídio, Ésquilo, Hesíodo, Byron) que mencionam este mito, a revolta pela crueldade e injustiça desta punição. O mitógrafo clama contra a "Hubris" divina. À força e à violência que o prendem ao rochedo do suplício, Prometeu opõe a razão e a determinação. A dignidade. A única arma.” (“Vicente e Prometeu”, por Tiago R. In: http://os-olhos-de-ulisses.blogspot.pt/2007/01/vicente-e-prometeu.html)
No conto “Vicente”, defende-se a liberdade de escolha. Assim, a partida do corvo corresponde ao desejo de todos os animais que compartilham com ele o sentimento de revolta por terem sido fechados na Arca, como se fossem condenados, mas não têm coragem para partir.
Este é o último conto de Bichos e, tendo em consideração a sua data de publicação, 1940, poderemos também ver nele um recado político de Miguel Torga: a vida só vale a pena com liberdade, a liberdade de sermos nós com ou sem Deus, a liberdade de sermos nós com ou sem um ditador. Esta mensagem de consciência ocorreu frequentemente na literatura portuguesa de intervenção.
[17] ARBÍTRIO – parecer, juízo, vontade, determinação; tirania.
[18] RALO – ruído forte.
[19] As manifestações do Criador no conto, assemelham-se às características da concepção de Deus, conforme com o Velho Testamento bíblico, em mistos de sensações de temor e de vingança, manifestados, principalmente, pelos fenómenos naturais.
[20] TOMBADILHO – parte elevada da coberta do navio compreendida entre o mastro de gata e a popa.
[21]  MORTALHA – lençol ou túnica que envolve um cadáver.
[22] VEGETATIVA – relativo às funções vitais e às atividades fisiológicas involuntárias. O estado vegetativo é uma desordem de consciência em que pacientes com dano cerebral severo permanecem num estado de vigília parcial em vez de consciência plena.
[23] TITUBEANTE – hesitante, incerta.
[24] TONITRUANTE – trovejante, estrondosa, muito ruidosa.
[25] POLTRÃO – covarde, medroso, receoso.
[26] BLASFÉMIA – dito insultante contra o que se considera como sagrado.
[27] ALENTADOR – aquele ou aquilo que dá ânimo.
[28] VEIGA – planície cultivada e fértil.
[29] MACICEZ – qualidade do que é maciço, compacto, sólido.
[30] A “crista de um cerro” é a parte mais alta de um monte.
[31] Avistaram simplesmente um “penhasco”, isto é, um pequeno cimo de um monte que sobressaia das águas, que, embora não passando disso, era uma promessa de terra, do fim do sacrifício de 40 dias na Arca.
[32] TRAVOR – o mesmo que travo, sabor que causa um aperto na língua; sabor amargo.
[33] Intertextualidade - sente-se nesta passagem do conto uma imitação criativa de versos da Mensagem de Fernando Pessoa. Quer no conto de Miguel Torga quer no poema “Horizonte” de Pessoa, a distância e a linha fria/severa do horizonte sugerem a possibilidade de passarmos do desconhecido ao conhecimento de nós mesmos e colhermos disso a recompensa merecida – o prazer da procura e da descoberta, onde a verdade concreta do que somos reside.
[34] Os passageiros da Arca estão admirados e felizes por constatarem que o ato de rebelião de Vicente – afinal um deles! – os vingava da provação sofrida.
[35] VORAGEM – abismo, redemoinho; ruína, desgraça.
[36] TELÚRICO – relativo à terra, ao solo.
TELURISMO - Influência do solo de uma região nos costumes, no carácter. Ao lermos a poesia de Miguel Torga, observamos que o Homem deve ser capaz de realizar-se no mundo, deve unir-se à terra, ser-lhe fiel, para que a vida tenha sentido e o sagrado se exprima. É na terra que a vida acontece e é aí que se deve cumprir. É nela que está a origem da vida e dos tempos. Por isso, a terra surge, em Torga, como um ventre materno e a tarefa do Homem é orientar-se para esse sentido criador, genesíaco. O telurismo de Torga exprime-se no seu apego à terra, na sua fidelidade ao povo, na sua consciência de ser português. Mas o poeta não se contenta em elogiar a terra, na medida em que sente a condição humana cheia de limitações. De qualquer modo, o sentimento telúrico presente na sua obra revela bem a ligação entre o espírito genesíaco e o sentido do sagrado.
[37] REDUTO – refúgio.
[38] TURBA – multidão.
[39] GENESÍACO – relativo a geração; criador.
[40] OBSTINADAMENTE – teimosamente.
[41] Uso simbólico do número TRÊS – O três é, universalmente, um número fundamental. Exprime uma ordem intelectual e espiritual, em Deus, no cosmos ou no homem. Sintetiza a tri-unidade do ser vivo ou resulta da conjunção de I e 2, produto, nesse caso, da União do Céu e da Terra. O Tao produz um; um produz dois; dois produz três... (Tao-te King, 42). Mas, na maioria das vezes, o 3 como número, o primeiro ímpar, é o número do Céu, o 2 o número da Terra, porque o I é anterior à sua polarização. O 3, dizem os Chineses, é um número perfeito (tch'eng), a expressão da totalidade, da conclusão: nada lhe pode ser acrescentado. E o acabamento da manifestação: o homem; filho do Céu e da Terra, completa a Grande Tríade. E, aliás, para os Cristãos, a perfeição da Unidade divina: Deus é Um em três Pessoas. […] Os contos tradicionais expõem a bravura do herói nos combates corpo a corpo por um gesto simbólico: o herói levanta o seu adversário e fá-lo girar três vezes por cima da cabeça; só depois deste gesto é que o deita por terra. (in Dicionário dos Símbolos, de Jean Chevalier e Alain Gheerbrant, Lisboa, Teorema, 1994)O número 3 é reconhecido como central no esoterismo.
[42] Intertextualidade com a Mensagem de Fernando Pessoa – quer no conto de Miguel Torga quer no poema “Mostrengo” de Pessoa encena-se uma oposição entre o herói terreno e as forças poderosas em que o protagonista sai vencedor. Em ambos os textos há uma dinâmica agressiva: o mostrengo, "imundo e grosso", comunica utilizando expressões carregadas de mistério-terror; por sua vez, a personagem Deus do conto “Vicente” manifesta-se com uma voz “larga como um trovão, penetrante como um ralo, terrível”, “numa severidade tonitruante”. Nos dois textos referidos, privilegia-se o mistério de ultrapassagem de que o número “três” é símbolo. O Mostrengo, embora associado à representação do denominado Cabo das Tormentas, tal como o Adamastor de Os Lusíadas, são personificações do medo e do receio que os navegadores revelavam ao enfrentar o desconhecido e o nunca antes navegado. Simbolizam também as histórias fantásticas relacionadas com seres monstruosos que habitavam os mares e que destruíam todos aqueles que tivessem a ousadia de entrar nos seus domínios, histórias essas em que os navegadores da época acreditavam. O monstro representa ainda o guardião, que se encontra a impedir o acesso ao "tesouro", obrigando assim o homem a praticar um ato heroico e a vencer o medo.
[43] COMPORTAS – portas móveis que contêm as águas de uma barragem.

sábado, 21 de novembro de 2015

LLANSOL, Llansolianos & Espaço Llansol

Espaço Llansol
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POEMA PARA EMILY DICKINSON

Há um barco que espera por um barco,
Um recado para este mensageiro
Um tão grande recado,
Que se ignora onde o barco foi lançado ao mar.
Na tempestade que surgiu,
Só o leme do barco destroçado veio dar ao poema.

LLANSOL, Maria Gabriela. Onde vais, drama-poesia?
Lisboa: Relógio d’água, 2000



*











O fulgor de Maria Gabriela Llansol contado pelos seus amantes


Criadores contemporâneos (llansolianos assumidos ou não) falam ao Ípsilon da sua relação de encantamento com Maria Gabriela Llansol, um "animal de escrita" que permanece misterioso. É já no domingo que o Centro Cultural de Belém inaugura a exposição Sobreimpressões"
Sobre Maria Gabriela Llansol (1931-2008) disse Eduardo Lourenço que será, depois de Fernando Pessoa, "o próximo grande mito literário da literatura portuguesa": "Nunca será uma autora fácil e consensual. É uma espécie de fenómeno misterioso. Alguém vindo de uma outra espécie de planeta. Quem a encontra é difícil não ficar fascinado por essa escrita."
Esse fascínio é partilhado pelos escritores, artistas e cineastas com quem o Ípsilon falou sobre Maria Gabriela Llansol - leitura de cabeceira à qual recorrem, encantados pelo fulgor do texto, por um universo único, ou pelo desafio de ler em liberdade desafiando os cânones.
O que é ser llansoliano (ainda que poucos admitam sê-lo)? O llansoliano não é só o académico que estuda a obra ou que pertence ao Grupo de Estudos Llansolianos, criado em Sintra ainda a escritora era viva, e que hoje preserva e divulga o seu espólio. Como explica João Barrento (um dos responsáveis pelo Espaço Llansol), ser llansoliano "é ter aderido a um determinado universo e a um modo de estar no mundo".
E que mito é este em torno da figura de Maria Gabriela Llansol? Diz-se que lia à luz das velas e que escrevia em torrente como um "animal de escrita" (Barrento). Da impossibilidade separar o real e o texto ficou a aura de escritora inacessível, inclassificável, figura silenciosa, rodeada por um pequeno grupo de admiradores a que Eduardo Lourenço chamou "uma espécie de seita".
Hoje Llansol continua a ser uma (quase) ilustre desconhecida em Portugal e no estrangeiro. Mas talvez a exposição que se inaugura no Centro Cultural de Belém (CCB) este domingo (que será "Dia Llansol", com leituras e música) contribua para levantar o véu sobre esta escritora misteriosa. "Sobreimpressões. Maria Gabriela Llansol: Uma visão da Europa" é um roteiro por algumas das principais figuras europeias e pelos lugares da obra (e alguns da vida) de Llansol. Paralelamente, haverá em Abril, na Cinemateca, um ciclo sobre algumas dessas figuras. E Llansol continua, com uma exposição de Ilda David que acompanhará a reedição de "O Livro das Comunidades", e o lançamento de um volume sobre a temática da Europa (Assírio & Alvim) e de outro compilando as principais recensões na imprensa da época (Mariposa Azul).
Na exposição estarão trabalhos de artistas com ligações à obra da Llansol, como a peça de Rui Chafes sobre a figura de Fernando Pessoa, ou a de Pedro Proença sobre a metamorfose de D. Sebastião. E o texto, explica Barrento, "vai estar lá em fragmentos, com muitos papéis avulsos, peças originais dos cadernos, algumas nunca vistas", à mistura com "peças da casa da autora e objectos relacionados com os seus livros".
Culto e afecto
Hélia Correia, escritora: "Llansoliana não sou porque isso implicaria uma prática de trabalho de estudo e de relação mais operacional com aquele texto, que não é a minha. Não sou uma estudiosa da obra da Llansol, mas sou uma amante, isso dá-me muito mais liberdade."
Miguel Gonçalves Mendes, realizador: "Não sou llansoliano, de todo. Para mim, a Llansol é um autor que escrevia livros de que eu gosto. Há um lado de mitificação das coisas que acho até muito doentio e nem sei se ela própria simpatizaria com isso."
André e. Teodósio, encenador: "Sou um llansoliano. Reescrevo, aproprio-me de frases dela. É uma das figuras que convoco sempre. Sou contingente dela. Os llansolianos podem querer tampar-me a boca, mas eu não posso fugir a isso."
Paula Sá Nogueira, actriz: "Não diria que sou llansoliana. Sou leitora. A minha aproximação ao mundo é olhar: a Llansol é uma das coisas para que eu olho."
Aqui: afirmação e negação do que é ser llansoliano. E ainda assim todos se dizem amantes fascinados por essa força fulgurante do texto. Não é uma contradição. Como diz Hélia Correia, o culto, a ser feito, sê-lo-á "sobre o esplendor do seu texto, tão vivo como uma árvore, atravessada por uma seiva, com tanto alimento do espírito que será impossível e até indesejável que haja um controlo a respeito dele. O texto não pede isso. Que o culto seja um culto de luminosidade, de afecto generoso".
Hélia Correia conheceu Maria Gabriela Llansol por via de uma amiga comum. Esse encontro "abriu caminho a uma relação muito especial e muito privada": "Uma relação muito forte e muito preciosa para mim", conta. Também com o texto de Llansol a relação é "de uma grande intimidade": "É um texto a que volto sempre. Já há muito tempo que isso não significa ler um livro completo, é abrir um livro aqui e acolá, ler passagens, como fazíamos quando nos encontrávamos. É um texto que está sempre presente. Não faço isso com mais texto nenhum."
A escritora admite que a existência de culto à volta do texto e da figura de Llansol não lhe "parece ofensiva" ("Compreendo e não sinto como abuso"), mas acrescenta que "essa personagem adorada é já uma outra". A imagem projectada por Llansol, explica, "é tão rica e tão textual, e dada a várias leituras, que há realmente uma imagem dela que se pode projectar como imagem de culto". Hélia Correia, contudo, quer preservar o espaço íntimo da sua relação com Llansol, até fisicamente: "Defendo como um cão de guarda o meu espaço, do qual sou muito ciosa e que não quero ver atravessado por visitantes ou apreciadores da obra dela. Aí está a grande diferença entre a minha felinidade e o espaço dos estudiosos, que fazem um trabalho grandioso a que estou infinitamente grata".
Um texto que espicaça
É esse afecto que une a leitora Hélia à obra "Amar um Cão": "Nem preciso de dizer que é o meu texto. Apropriei-me dele. É com ele que há uma relação de afecto, de memória." Para além de Melissa, uma das gatas de Llansol que Hélia adoptou, tudo o que era do Jade (o cão de Llansol) ficou com ela. "Esse texto sai do conjunto grandioso da alta e perturbadora literatura que é a obra da Maria Gabriela, que eu peguei ao colo e trouxe para a minha salinha, como a Melissa e outras memórias e objectos", diz.
Para o compositor João Madureira, 39 anos, autor da ópera "Metanoite" (encomenda da Gulbenkian em 2007, com libreto de João Barrento e encenação de André Teodósio), "Amar um Cão" também é a obra de eleição, "pela forma como combina simplicidade e um lado mais enigmático e reflexivo da sua escrita, que parece aí encontrar um equilíbrio muito especial." O que mais o atraiu em Llansol "foi a convicção de que a língua portuguesa necessitava absolutamente de uma reinvenção formal para exprimir as suas ideias". Estava perante alguém "que não reinventava a língua em que se exprimia por puro prazer ou capricho académico, mas por uma consciência profunda de que a língua com que nos exprimimos habitualmente condiciona aquilo que queremos dizer". Musicalmente, sublinha, o texto de Llansol é muito estimulante também, "tanto no seu aspecto sintáctico, como no seu aspecto formal: por vezes ele parece articular-se como colecção de fragmentos vários constituintes de um todo, e não de uma forma puramente linear".
Este é o legado do texto de Llansol: mais do que as figuras que invoca ou do que os espaços que habita, é o processo de escrita do texto, literalmente com as costuras à mostra, que faz com que muitos vejam nela uma fonte de inspiração ou de desafio. A realizadora Cláudia Tomaz, 38 anos, por exemplo, tem há vários anos o projecto de documentário "Os Vivos", sobre a obra de Llansol. "Criar um filme completo que trate toda a extensão da obra de Llansol é impossível. À extensão, prefiro a profundidade. Quero fazer uma obra humana seguindo o percurso da escrita de Llansol. Filmar, com o mesmo olhar com que ela escrevia. Vejo uma imagem nómada, silenciosa, de uma estranheza íntima", explica. Não é fazer simples "ilustração nem colagens poéticas": "Para mim a poesia tem que vir de dentro e é nesse caminho que encontro Llansol."
O mesmo se passa com Paula Sá Nogueira, 55 anos, do grupo de teatro Cão Solteiro: "Há uma série de autores que lemos e que formam uma espécie de universo que acaba por ir parar aos espectáculos [da Cão Solteiro]." Demorou imenso tempo a lidar com a espiritualidade da autora: "Não sou católica e faço reacção a tudo o que o seja. Mas comecei a perceber que aquele texto é de uma profunda espiritualidade." É a liberdade do universo de Llansol que a convida a entrar: "Gosto da reacção química que aquele universo provoca com o meu. Não me preocupo em saber se aquilo que estou a ler é o correcto. A escrita dela tem tanta liberdade que me permite fazer isso. Se não tudo aquilo parece um universo fechado, com metáforas difíceis. Essa é a postura de quem pega num livro para lhe explicarem alguma coisa. Isso não acontece com ela. Os livros dela espicaçam-me."
O artista plástico Manuel Santos Maia, 40 anos, acrescenta que o que o fascina em Llansol é a forma "quase catalisadora" como ela "fala nos objectos", que "acelera o processo de criação". "É um diálogo que eu encontro com a escrita, que levanta questões e não dá certezas. Esse é que é o desafio." Uma das peças do artista, sobre a questão do exílio e de Portugal, com objectos da casa de Llansol, estará no CCB.
Ler em liberdade
O texto continua vivo, mesmo após a morte (real) da autora. Era isso que interessava ao realizador Miguel Gonçalves Mendes, 32 anos, que, com a coreógrafa Vera Mantero, fez o documentário/performance "Curso de Silêncio" para o Festival Temps d'Images (2007), a partir de "Amigo e Amiga". "Creio que o que interessava mais à Vera era a cena fulgor. A mim, era questão da morte dele [Augusto Joaquim], e de como alguém se confronta com o mundo real e com esse luto." O livro de Llansol permitiu a Mendes trabalhar "as contradições da mente humana": "Estamos a falar de alguém com aquele universo particular que a morte do marido põe em causa. É isso que torna esse livro especialmente bonito. Ela não se nega a si própria. Continua na sua procura do belo através do processo de criação. Faz o luto através do livro."
Em Llansol, o realizador admira "a recusa de metáforas". Nesse sentido, Mendes reconhece que a leitura do texto llansoliano foi útil para o seu trabalho: "Naquele filme, senti que estava realmente livre através da exploração da intensidade da imagem, dessa explosão visual. A liberdade é o gozo que a literatura dela dá, consegues ler uma página, um fragmento, e aquilo vive por si. Ler fragmentariamente é ler em liberdade."
Mas Llansol não é só livre: é real. "A escrita dela é fantástica, ensaística, poética, artística: é a pós-modernidade ao máximo. Não é ficcional, é monstruosamente real. Tem a ver com a constatação do mundo, as artimanhas ficcionais do mundo e a sua monstruosidade. Está-nos sempre a tirar o tapete, para nos pôr a pensar, para nos abstrairmos. Não há voto, não há discurso; o prosaico sobre o mundo não está ali, não é metafórico", diz André Teodósio. Os livros de Llansol, continua, não se podem ler "como se lê uma tese, como quem procura a forma canónica da poesia ou uma fórmula matemática". Precisamente porque o texto é livre, não se pode instaurar uma maneira de o ler. "Ela não diz: é assim. Ela constata. Sabe que o mundo está em colapso. Não usa artimanhas intelectuais." Para Teodósio, Llansol é como Adília Lopes, "é o mesmo tipo de raciocínio e de posição no mundo, estar no mundo de uma forma contemporânea mas sem tempo, porque o tempo delas é o de deus".
Esse tempo de deus, um espaço místico espiritual, também seduz o actor Miguel Loureiro, 40 anos. Descobriu Llansol aos 24, com "uma paixão que vivia na altura, com quem trocava livros dela". Comprava-os num alfarrabista, num vão de escada ao pé do Teatro da Trindade. Foi então que descobriu que havia "alguém no romance português que falava de uma série de coisas próximas de deus". Para Loureiro, "Llansol é um lugar muito repousante". Quando a leu, sentiu "um enorme descanso relativo a tudo o que tinha lido antes, mas ao mesmo tempo um sentimento de inquietação. Parecia que estávamos dez anos atrasados em relação ao que andávamos a ler. Aquela escolha de palavras, a linguagem, dava a sensação de que ela estava a sabotar tudo o que escrevia." Llansol ficou-lhe como uma reserva, não como referência: alguns dos seus textos estão lá, "ao pé da cama, para adormecer, para voltar a ler, para voltar a aprender". A sua obra, diz, "é uma oferenda ao leitor": "Cada vez que a leio encontro sempre coisas novas".
No fundo, é só preciso deixar de ter medo. "Quando comecei a ler senti uma certa frustração: o meu entendimento falhava, mas continuava a seguir as linhas. Lembro-me do que ganhei quando deixei de me preocupar em perceber. Vinha formatado pela narrativa. Tinha de aprender a estar no texto", diz.
Maria Gabriela Llansol esperou sempre pelos que estão do outro lado. Tinha um desejo: "Encontrar alguém que me ame com bondade, e saiba ler. (...) Alguém que deixe espaços entre as palavras para evitar que a última se agarre à próxima que vou escrever. Alguém que admita que a cartografia dos animais e da pontuação não está ainda estabelecida. Alguém que eu possa ler diferentemente depois de me ler."
Ei-los aqui, amantes do fulgor do seu texto.

(actualizado às 
http://www.publico.pt/culturaipsilon/noticia/o-fulgor-de-maria-gabriela-llansol-contado-pelos-seus-amantes-280062