sexta-feira, 10 de novembro de 2017

O mar jaz; gemem em segredo os ventos (Ricardo Reis)

Ego Rodriguez, Neptuno


III - O MAR JAZ; GEMEM EM SEGREDO OS VENTOS [1]
O mar jaz; gemem em segredo os ventos
                Em Éolo cativos;
Só com as pontas do tridente as vastas
                Águas franze Neptuno;
E a praia é alva e cheia de pequenos
                Brilhos sob o sol claro.
Inutilmente parecemos grandes.
                Nada, no alheio mundo,
Nossa vista grandeza reconhece
                Ou com razão nos serve.
Se aqui de um manso mar meu fundo indício
                Três ondas o apagam,
Que me fará o mar que na atra praia
                Ecoa de Saturno?
6-10-1914
Odes de Ricardo Reis . Fernando Pessoa. (Notas de João Gaspar Simões e Luiz de Montalvor.) Lisboa: Ática, 1946 (imp.1994). 
 - 50.
1ª publ. in Atena , nº 1. Lisboa: Out. 1924.
http://arquivopessoa.net/textos/2938



Esta ode é porventura uma das odes mais clássicas, em forma e conteúdo, de Ricardo Reis.
Aparentemente de difícil análise, deve ser lida cuidadosamente, revelando-se então em toda a sua real simplicidade.
O tema desta ode é a grandeza do mundo face à pequenez do homem. Reis aproveita este tema e desenha uma belíssima imagem poética (porventura ao nível dos poemas mais belos e requintados de toda a obra de Fernando Pessoa). Como faz veremos de seguida, tentando deslindar cuidadosamente o lindo rendilhado que ele construiu.
Imaginemos um mar parado. “O mar jaz”, ou seja, o mar está quieto perante a presença do poeta. Os ventos que normalmente sopram, “gemem em segredo (...) em Eolos cativos”, ou seja, estão presos por Eolos (deus do vento) e não sopram.
Como o vento está calmo, quase não existe, a superfície da água está quieta. Reis constrói uma metáfora para que melhor compreendamos essa quietude, quando nos diz que apenas as “pontas do tridente” de Neptuno frazem “as vastas águas” – Neptuno, rei dos mares não perturba as águas com o seu tridente.
Esta quietude é reforçada depois com a imagem da praia branca (alva) que brilha ao sol claro. Passa também, embora  subrepticiamente, a noção de que ninguém está naquela praia, que a quietude é sinónimo de solidão, de individualidade. O que está quieto e o que está são equiparados.
Para quê?
Para que Reis opere uma comparação posterior. É o quieto, só, que se compara ao que não é quieto e só.
É ao definir um modelo fixo (neste caso de solidão) que Reis melhor passa a hipérbole de exagerar essa solidão ao máximo – comparando-a com o seu extremo oposto.
“Inutilmente parecemos grandes”, começa por dizer. É a ilusão da grandeza que melhor caracteriza a atitude humana, num mundo que, por outro lado lhe parece alheio. Este mundo alheio é o mundo que é estranho à vontade humana de mudança – um  mundo que não pode ser mudado ou dominado pelo homem (é um mundo em que governa o Destino).
“Nada, no alheio mundo, / Nossa vista grandeza reconhece / Ou com razão nos serve.” – Reis continua reforçando a atitude humana, de superioridade, mas que é ao mesmo tempo uma atitude ilusória.
Qual é verdadeiramente a realidade?
“Se aqui de um manso mar meu fundo indício / Três ondas o apagam, / Que me fará o mar que na atra praia / Ecoa de Saturno?” – a verdade é que os homens não deixam a sua marca no mundo, por muito que pensem o contrário. O “fundo indício” deixado por Reis, a sua marca, logo é apagada por três ondas breves. E se é assim, o que acontecer| “na outra praia”?
Que outra praia é esta?
É a praia onde o “mar (...) ecoa de Saturno”. É o mar do tempo (ver a ode “Antes de nós mesmos arvoredos…”), o mar de Cronos – o  deus  do tempo que devora os seus próprios filhos – a água que corre e que se escoa num relógio liquido, ampulheta divina que conta as gotas que constituem as curtas vidas humanas.
Como vemos, a complexidade escondia uma simples mensagem: de que o homem deve assumir a sua pequenez, porque mesmo que acredite no  contrário, a sua ilusão, como a sua presença, desaparecerá com as ondas do mar do tempo.

À Distância de um Horizonte. Uma análise das “odes” de Ricardo Reis, Nuno Hipólito, 2007-2010. URL: http://www.umfernandopessoa.com/uploads/1/6/1/3/16136746/a-distancia-de-um-horizonte.pdf


AEOLUS, https://jonathanvair.deviantart.com/art/Aeolus-290213323, 13-03-2012



O MAR JAZ. GEMEM EM SEGREDO OS VENTOS [2]
O mar jaz. Gemem em segredo os ventos
Em Éolo cativos,
Apenas com as pontas do tridente
Franze as águas Neptuno,
E a praia é alva e cheia de pequenos
Brilhos sob o sol claro.
Eu quisera, Neera, que o momento,
Que ora vemos, tivesse
O sentido preciso de uma frase
Visível nalgum livro.
Assim verias que certeza a minha
Quando sem te olhar digo
Que as cousas são o diálogo que os deuses
Brincam tendo connosco.
Se esta breve ciência te coubesse,
Nunca mais julgarias
Ou solene ou ligeira a clara vida,
Mas nem leve nem grave,
Nem falsa ou certa, mas assim, divina
E plácida, e mais nada.
6-10-1914
Odes de Ricardo Reis . Fernando Pessoa. (Notas de João Gaspar Simões e Luiz de Montalvor.) Lisboa: Ática, 1946 (imp.1994). 
 - 186.
http://arquivopessoa.net/textos/435

 

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Fernando Pessoa - Apresentação crítica, seleção, notas e sugestões para análise literária da obra de Fernando Pessoa, por José Carreiro. In: Lusofonia, https://sites.google.com/site/ciberlusofonia/PT/literatura-portuguesa/fernando_pessoa, 2021 (3.ª edição) e Folha de Poesia, 17-05-2018. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2018/05/fernando-pessoa-13061888-30111935.html

 


O mar jaz; gemem em segredo os ventos (Ricardo Reis)” in Folha de Poesia, José Carreiro. Portugal, 10-11-2017. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2017/11/o-mar-jaz-gemem-em-segredo-os-ventos.html


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