sábado, 11 de janeiro de 2020

A veste dos fariseus, Sophia M. B. Andresen



A VESTE DOS FARISEUS

Era um Cristo sem poder
Sem espada e sem riqueza
Seus amigos o negavam
Antes do galo cantar
A polícia o perseguia
Guiada por Fariseus

O poder lavou as mãos
Daquele sangue inocente
Crucificai-o depressa
Lhe pedia toda a gente
Guiada por Fariseus

Foi cuspido e foi julgado
No centro duma cidade
Insultos o perseguiram
E morreu desfigurado

O templo rasgou seus véus
E Pilatos seus vestidos
Rasgaram seu coração
Maria Mãe de João
João Filho de Maria

A treva caiu dos céus
Sobre a terra em pleno dia

Nem uma nódoa se via
Na veste dos Fariseus

Sophia de Mello Breyner Andresen, Grades
Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1970



O nome do poema faz referência ao antigo agrupamento religioso hebraico da época pós-exílica232 de Jerusalém, os fariseus. Nesse período da história, havia diversos grupos judaicos que divergiam em relação à doutrina religiosa, mas eles buscavam manter entre si alguns traços essenciais de sua crença. Os fariseus são uma vertente judaica que preza os rituais e os dogmas da Torá, livro sagrado do Judaísmo. Vincula-se a esse grupo a formação das sinagogas e, em 1 a.C., eram as lideranças desses templos religiosos. Estavam também associados ao ensino e ao culto do Judaísmo.
Para eles, seguir os ensinamentos sagrados já seria o suficiente para a salvação do homem. Nesse sentido, não criam, à época de Cristo, em um salvador como o messias, conforme observa Schubert.233 Assim, o grupo é reconhecido pela busca da pureza dos preceitos judaicos e, em razão disso, são vistos como fortes opositores ao Cristianismo. Dessa maneira, encontramos na Bíblia passagens em que os Fariseus desconfiam das atitudes de Jesus:
1. Jesus tomou de novo a barca, passou o lago e veio para a sua cidade. 2. Eis que lhe apresentaram um paralítico estendido numa padiola. Jesus, vendo a fé daquela gente, disse ao paralítico: "Meu filho, coragem! Teus pecados te são perdoados." 3. Ouvindo isto, alguns escribas murmuraram entre si: "Este homem blasfema." 4. Jesus, penetrando-lhes os pensamentos, perguntou-lhes: "Por que pensais mal em vossos corações? 5. Que é mais fácil dizer: Teus pecados te são perdoados, ou: Levanta-te e anda? 6. Ora, para que saibais que o Filho do Homem tem na terra o poder de perdoar os pecados: Levanta-te – disse ele ao paralítico -, toma a tua maca e volta para tua casa."234

“Escribas” são referencias aos Fariseus, pois muitos deles em suas origens tinham a profissão ligada à escrita dos manuscritos sagrados. Eles acreditavam que Jesus blasfemava ao falar com pecadores, como doentes, prostitutas e arrecadadores de impostos. Ainda segundo versículo catorze do 12.º capítulo do evangelho de Mateus, os fariseus tramam a morte de Jesus:
9. Partindo dali, Jesus entrou na sinagoga. 10. Encontrava-se lá um homem que tinha a mão seca. Alguém perguntou a Jesus: É permitido curar no dia de sábado? Isto para poder acusá-lo. 11. Jesus respondeu-lhe: Há alguém entre vós que, tendo uma única ovelha e se esta cair num poço no dia de sábado, não a irá procurar e retirar? 12. Não vale o homem muito mais que uma ovelha? É permitido, pois, fazer o bem no dia de sábado. 13. Disse, então, àquele homem: Estende a mão. Ele a estendeu e ela tornou-se sã como a outra. 14. Os fariseus saíram dali e deliberaram sobre os meios de o matar.235

De acordo com a Bíblia, os fariseus não toleravam as ações de misericórdia e compaixão de Jesus que transgrediam as leis de Moisés pregadas por eles. Para Jesus, o grupo de fariseus era visto como uma “geração adúltera e perversa”, os quais sempre insistem que o filho de Deus prove suas palavras, mostrando-lhes um milagre. Jesus ainda aconselhava a seus apóstolos a resguardarem-se da doutrina dos fariseus.
Entre a tensão que havia na pregação de Jesus e a busca pelo cumprimento das leis dos fariseus, encontramos não necessariamente uma disputa, mas, sim, a manutenção da força ideológica que as leis mosaicas tinham naquela época. Jesus, de facto, representava uma ruptura com os costumes e, assim, temos a oposição de muitos fariseus à sua missão, conforme apresenta a Bíblia.
Nesse sentido, podemos recuperar no poema “A veste dos fariseus” uma visão negativa desse grupo, pautada na ideia de hipocrisia, traição e busca pelo poder. O texto, que apresenta cinco estrofes formadas por versos em redondilha maior, mantém a voz poética descrevendo a cena da Paixão de Cristo, trazendo “um Cristo sem poder / Sem espada e sem riqueza” que é perseguido pela polícia “Guiada por Fariseus”. Em referência à cena bíblica de sua negação, o Cristo do poema é também negado por seus amigos antes do amanhecer. Como relata o texto sagrado, Jesus, após ser denunciado por seu discípulo Judas, é perseguido pelo exército romano e, em razão disso, Pedro, seu outro apóstolo, nega-o três vezes quando questionado.
No poema, Jesus é perseguido pela polícia, a qual é orientada pelos fariseus. É interessante observar que o termo “polícia” aparece como uma marca do tempo atual, pois Cristo é condenado e castigado pelo exército romano, não havia referência à polícia naquele momento histórico. A noção de força e poderio suscitada pela imagem da “polícia” se opõe à figura indefesa de Jesus “sem espada e sem riqueza”. Acima dessa oposição, está a influência dos fariseus que controlam ideologicamente a polícia que persegue o suposto messias, ressaltando o poder desse grupo judaico.
Na estrofe seguinte, é inserida uma segunda entidade histórica: a imagem de Pôncio Pilatos236 é trazida também a partir da noção do poder:
O poder lavou as mãos
Daquele sangue inocente
Crucificai-o depressa
Lhe pedia toda a gente
Guiada por Fariseus

A relação dos Fariseus e de Pôncio Pilatos é explicitada nessa estrofe, mostrando, por um lado, o poder da coerção – efetuada pelo exército e governo romano – e por outro o poder da ideologia – alusão aos fariseus, que seriam os mentores religiosos dos judeus. Assim, o poder é associado à injustiça – “O poder lavou as mãos / Daquele sangue inocente” – e à busca incessante por sua manutenção implícita na figura dos fariseus, que têm seu poder questionado com a vinda de um homem que se declara filho de Deus. Somente a morte de Cristo poderia assegurar que o poder da religião e da lei se reintegrasse.
Se Pôncio Pilatos lava as mãos em relação à crucificação do homem que se apresenta como filho de Deus, os fariseus tampouco aparecem explicitamente como culpados ou responsáveis pelo que se passa. Essa ideia aparece nos versos finais do poema: “Nem uma nódoa se via / Na veste dos Fariseus”. Suas túnicas não estavam manchadas pelo sangue do homem que condenaram injustamente. Não há culpa assumida. Esse aspecto é ressaltado em Grades, pois a imagem da ausência de mancha aparece destacada na estrutura do texto pelo dístico final. Em Livro Sexto238, do qual o poema é extraído, os dois dísticos finais aparecem unidos em uma quadra que encerra o texto.
Nesse sentido, o poema alude a aspectos ligados à corrupção moral, à mentira e, em especial, à injustiça e à busca constante pela manutenção do poder. Pela simbólica construção por meio dos fariseus, temos a denúncia de um tempo marcado pela não integridade ética e pela não compaixão. Sophia Andresen, assim, delata por sua poética a manipulação de opiniões e a inverdade entre os homens e aqueles que têm o poder.
Em Grades, a autora busca, por meio da poesia, denunciar a corrupção e a injustiça mascaradas no âmbito político de civilizações importantes para o desenvolvimento do Ocidente, como Roma, pela grandeza de seu império e pela importância do Direito romano, que é base para a elaboração do Direito de diversas nações ocidentais, e Jerusalém, pelo Cristianismo. Além dessas sociedades, Sophia Andresen também traz o universo de Portugal, pois essa nação se consolida historicamente como importante para o mundo ocidental a partir das grandes navegações entre os séculos XV e XVI e a reorganização mundial decorrente delas.

Grades: uma leitura do projeto po-ético de Sophia de Mello Breyner Andresen, Nathália Nahas. Dissertação de mestrado apresentada à Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, 2015

______________
232 Esse período compreende, aproximadamente, os anos de 333 a.C. a 70 d.C., iniciado com a conquista da Pérsia por Alexandre, o Grande. Após a sua morte, em 323 a.C., seu império foi dividido entre seus generais e governantes. Os exílios do povo judeu ocorrem entre os anos 586 e 333 a.C., na Babilônia e na Pérsia. Havia ainda uma grande comunidade de judeus que partiram para o Egito nesse período.
233 SCHUBERT, Kurt. Os partidos religiosos da época Neotestamentária. 2.ª ed. São Paulo: Paulinas, 1979, p. 32.
234 Evangelho de São Mateus, capítulo 9. In: Bíblia Sagrada. Versão Eletrônica.
235 Ibidem, capítulo 12.
236 Pôncio Pilatos foi prefeito romano da província da Judeia do ano 26 ao 36 d.C. Entre seus encargos de prefeito, estavam as atividades administrativas e econômicas do território, mas era sua função também assegurar a ordem na cidade, sendo sua responsabilidade o aspecto judicial. Ele é mencionado nos evangelhos por ter mandado executar Jesus de Nazaré, que se proclamava filho de Deus, por uma proposição do sinédrio local, ou seja, o grupo de autoridades judaicas da província. Pilatos é representado por sua suposta ação de lavar as mãos quando decide executar Jesus, o que simboliza sua não responsabilidade pela condenação, a qual recairia sobre o povo judeu. Informações extraídas de: CARTER, Warren. Pontius Pilate: portraits of a Roman Governor. Estados Unidos da América: Liturgical Press, 2003 e Evangelho de Mateus. Português. In: Bíblia Sagrada.

238 Segundo consta na Obra Poética, edição de Carlos Mendes de Sousa, 2011, p. 434

 

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CARREIRO, José. “A veste dos fariseus, Sophia M. B. Andresen”. Portugal, Folha de Poesia, 11-01-2020. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2020/01/a-veste-dos-fariseus-sophia-m-b-andresen.html


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