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segunda-feira, 1 de janeiro de 2024

Receitas de Ano Novo e uma definição de Poeta

 


Receita de Ano Novo

Para você ganhar belíssimo Ano Novo
cor do arco-íris, ou da cor da sua paz,
Ano Novo sem comparação com todo o tempo já vivido
(mal vivido talvez ou sem sentido)
para você ganhar um ano
não apenas pintado de novo, remendado às carreiras,
mas novo nas sementinhas do vir-a-ser;
novo
até no coração das coisas menos percebidas
(a começar pelo seu interior)
novo, espontâneo, que de tão perfeito nem se nota,
mas com ele se come, se passeia,
se ama, se compreende, se trabalha,
você não precisa beber champanha ou qualquer outra birita,
não precisa expedir nem receber mensagens
(planta recebe mensagens?
passa telegramas?)
Não precisa
fazer lista de boas intenções
para arquivá-las na gaveta.
Não precisa chorar arrependido
pelas besteiras consumidas
nem parvamente acreditar
que por decreto de esperança
a partir de janeiro as coisas mudem
e seja tudo claridade, recompensa,
justiça entre os homens e as nações,
liberdade com cheiro e gosto de pão matinal,
direitos respeitados, começando
pelo direito augusto de viver.
Para ganhar um Ano Novo
que mereça este nome,
você, meu caro, tem de merecê-lo,
tem de fazê-lo novo, eu sei que não é fácil,
mas tente, experimente, consciente.
É dentro de você que o Ano Novo
cochila e espera desde sempre.

 

Carlos Drummond de Andrade, Discursos de Primavera e Algumas Sombras. São Paulo, Companhia das Letras, 1977

 

"Receita de Ano Novo" - ilustração de Sónia Oliveira (in Letras & Companhia 9, 2013)


Pode causar estranheza ao leitor porque a receita é um texto de caráter utilitário, normalmente utilizado para orientação de quem cozinha, e o título em causa pertence a um poema, que é um texto literário. Além disso, indica como se pode obter algo imaterial – um bom Ano Novo.

De acordo com o sujeito poético, quatro ingredientes um Ano Novo terá de ter para ser “belíssimo”: ter a cor do arco-íris ou a cor da sua paz; ser incomparável com outros anos mal vividos ou sem sentido; ser novo nas sementinhas e no coração, espontâneo; ser tão perfeito no dia a dia que passe despercebido.

O poeta dirige-se a quem pretende “ganhar um Ano Novo”, referindo, por exemplo, que não valerá a pena beber champanhe, enviar ou receber mensagens ou acreditar que, a partir de janeiro, as coisas mudam.

O interlocutor, para o conseguir, terá de lutar por ele, de merecê-lo e de procurá-lo dentro de si. 

Carla Marques e Inês Silva, Letras & Companhia - Português 9.º Ano. Lisboa, Edições Asa, 2013



Download do vídeo disponível aqui.

***


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Boas saídas e entradas

Ainda ontem

Tentei fazer uma crítica do que me aconteceu em 2023 como se estivesse a avaliar um telemóvel. De um lado do caderno listei os prós e, do outro, os contras.

Os prós esgotaram-se num instante e amaldiçoei a estrutura binária que dei à minha avaliação, levando ao desperdício da primeira metade do caderno, quase todo vazio.

E logo ali aprendi uma primeira lição. Esta mania dos prós e contras, de dividir tudo em dois, como se os positivos e negativos se equilibrassem e, pior ainda, como se fossem importantes, esta mania só mostra uma coisa: que já estamos a ditar a resposta que queremos (que é aquela que nos dá jeito, que dá pouco trabalho, e se compreende facilmente), mesmo antes de fazermos a pergunta.

Schopenhauer, condenado a ser lido quando estamos mais próximos dos vinte anos do que qualquer ser humano merece estar, fazia questão de dizer que o prazer, num mundo cheio de sofrimento, é apenas a ausência de sofrimento.

Mas que ausência! Que gloriosa ausência, a demonstrar a ironia daquele “apenas”!

Quando comecei a pôr nos “prós” os dias em que não acordei com dores, os dias em que não pus em causa o sentido da vida, e as manhãs e tardes em que nenhuma enxaqueca me visitou, o caderno encolheu de um momento para o outro.

É sempre bom ler os pessimistas. Mas há um género de pessoa que abomino: aquele que lê os pessimistas só para se sentir melhor. É o equivalente filosófico de começar a ler o jornal pela necrologia e pelas tragédias.

Essas pessoas não aguentam que haja quem seja menos miserável do que elas. Tendo os pessimistas por companhia exclusiva, asseguram-se que são os pintainhos menos deprimidos do curral.

Schopenhauer era um grande escritor, cheio de ideias, que falava de tudo e de alguma coisa, e que não tinha medo nenhum de se pronunciar sobre as grandes questões da vida. Foi condenado a ser julgado sem ser lido: uma tragédia (para os não-leitores) que nem o próprio Schopenhauer teria apreciado.

Boas entradas!

 

Crónica de Miguel Esteves Cardoso, jornal Público, 31-12-2023


***



Antes de acabar o ano gostaria de deixar uma definição de poeta que pode ajudar a enfrentar as agruras do próximo ano.

Poeta: pessoa que consegue tornar o dia, por mais chato que este seja, numa aventura cómica.

Obviamente haverá outras definições e também serão boas. Conheço muita rapaziada para quem poeta é quem está macambúzio, ou a vomitar as entranhas, de preferência à beira de uma sarjeta no Bairro Alto. Feitios.

E obviamente que ser poeta não nos protege de um tiro, uma conta da água, uma perna partida, uma expulsão do apartamento, uma perda de emprego, uma doença má tipo gripe, cancro ou joanetes.

Ainda assim, não desajuda. E com uma depressão é um pequeno mecanismo mental (traduzo para os mainovos: uma app) que pode fazer milagres, com a vantagem de não vir em comprimido. E o lado bom é que, com o treino, vicia.

Repito, até porque a repetição faz parte da poesia:

Poeta: pessoa que consegue tornar o dia, por mais chato que este seja, numa aventura. De preferência, cómica.

Rui Zink, https://www.facebook.com/rui.zink.7/posts/10160374955862968, 30-12-2023



quinta-feira, 14 de dezembro de 2023

Poética (Manuel Bandeira)


 

Poética

 

Estou farto do lirismo comedido

Do lirismo bem-comportado

Do lirismo funcionário público com livro de ponto expediente protocolo e

[manifestações de apreço ao sr. diretor

 

Estou farto do lirismo que pára e vai averiguar no dicionário o cunho

[vernáculo de um vocábulo

 

Abaixo os puristas

 

Todas as palavras sobretudo os barbarismos universais

Todas as construções sobretudo as sintaxes de exceção

Todos os ritmos sobretudo os inumeráveis

 

Estou farto do lirismo namorador

Político

Raquítico

Sifilítico

De todo lirismo que capitula ao que quer que seja fora de si mesmo

 

De resto não é lirismo

Será contabilidade tabela de co-senos secretário do amante exemplar com

[cem modelos de cartas e as diferentes maneiras de

[agradar às mulheres, etc.

 

Quero antes o lirismo dos loucos

O lirismo dos bêbedos

O lirismo difícil e pungente dos bêbedos

O lirismo dos clowns de Shakespeare

 

— Não quero mais saber do lirismo que não é libertação.

 

BANDEIRA, Manuel, Melhores poemas, 17.ª ed. – São Paulo: Global, 2015, p.64

 



 

Manuel Bandeira e a Metapoesia

Ao longo de sua carreira, Manuel Bandeira escreveu vários poemas que podem ser considerados “poéticas”, ou seja, eles tratam do “fazer poesia”, ora dizendo para quê a poesia serve, ora dizendo como ela deve ser. Este trabalho apresenta um estudo sobre seis destes poemas, procurando verificar as diferenças e semelhanças entre eles e, ainda, se o que o poeta preconiza é o que ele faz nos próprios poemas. […]

“Poética” integra o quarto livro de poemas de Manuel Bandeira, intitulado Libertinagem e publicado em 1930. Podemos perceber que nele o autor expressa como deveria ou não deveria ser a poesia, de acordo com a sua perspectiva, paralela aos preceitos modernistas. Dentre os poemas de Bandeira que podem ser considerados uma ars poética, talvez este seja o mais conhecido e aclamado. Quanto a isto, citamos o crítico Ivan Junqueira, quando afirma que «‘Poética’ não é apenas um dos melhores poemas do autor, mas também um dos mais importantes que escreveu, talvez o mais significativo no que se refere ao discurso metalingüístico e à síntese de seus procedimentos líricos» (2003, p.107).

Quanto ao poema estar de acordo com os preceitos modernistas, vale ressaltar que isto é o que ocorre em todo o livro em que se insere, já que os poemas de Libertinagem foram escritos entre 1924 e 1930, período de muita força do movimento. O próprio Bandeira admite, no Itinerário de Pasárgada, que esses foram « os anos de maior força e calor do movimento modernista. Não admira, pois, que seja entre os meus livros o que está mais dentro da técnica e da estética do modernismo» (1984, p.91).

De acordo com “Poética”, a poesia deve ser “livre”. Livre das formas preestabelecidas, das palavras empertigadas, dos modelos tradicionais. Livre para falar de qualquer tema. Desta forma, “Poética”, assim como “Os sapos”, soa como um grito de libertação. Grito que, na verdade, perpassa todo o livro Libertinagem, desde seu título, pois libertinagem aqui não tem o significado associado à “prática do libertino”, mas sim, a uma “irreverência com relação a dogmas e crenças oficialmente aceitos” (Dicionário Houaiss), uma vez que o próprio Bandeira, ao comentar o seu livro anterior (O ritmo dissoluto), afirma que nele alcançou uma “completa liberdade de movimentos” e complementa: “liberdade de que cheguei a abusar no livro seguinte, a que por isso mesmo chamei Libertinagem” (1984, p.75). Ou, como disse Ribeiro Couto, “libertinagem de temas, de matéria. Total liberdade” (apud JUNQUEIRA, 2003, p.89). Ao comentar Libertinagem na sua História concisa da literatura brasileira, Alfredo Bosi afirma que o livro apresenta “um fortíssimo anseio de liberdade vital e estética” (2006, p.363).

Observamos que há um enunciado no qual um sujeito estava em conjunção com um objeto de valor não desejável (o lirismo comedido, bem-comportado, namorador, etc.) e em disjunção com o objeto de valor desejável (o lirismo dos loucos, dos bêbados, etc.). Os valores não desejados são aqueles que estão de acordo com a “poesia tradicional”. Ao dizer que está farto de determinado tipo de lirismo, o sujeito rompe com o contrato antes estabelecido com tal poesia e passa a querer estar sob o signo da “poesia modernista”. Em termos passionais, temos, numa primeira fase, um sujeito da liberalidade ou do desprendimento, uma vez que ele quer-não-estar em conjunção com o objeto de valor (neste caso, o lirismo comedido), e um sujeito da revolta, ou seja, um sujeito que se volta contra os valores de seu destinador (a poesia “tradicional”). Em seguida, o que figura é um sujeito do desejo, ou seja, aquele que quer-estar em conjunção com o objeto (ou seja, o “lirismo livre”). Assim como em “Os sapos”, o sujeito, ao propor uma ruptura com os valores preestabelecidos e acolher, logo sem seguida, novos valores, está afirmando a descontinuidade. Tal ruptura vai ao encontro de um dos ideais no movimento modernista que, nas palavras de Mário de Andrade, era uma estética renovadora. Segundo ele, «o modernismo no Brasil foi uma ruptura, foi um abandono de princípios e de técnicas conseqüentes, foi uma revolta contra o que era a Inteligência nacional (...)» (2002, p.258).

Constatamos que o tema principal deste texto é, obviamente, o “fazer poesia”, o que fica evidente desde o seu título, dado que poética é “o estudo da criação poética em si mesma” (ARISTÓTELES apud KOSHIYAMA, 1996, p.83). Ao longo do texto o narrador enumera características disfóricas ou eufóricas para a poesia, representada aqui pelo lexema lirismo, que aparece doze vezes. As características disfóricas são introduzidas por expressões como estou farto, abaixo e de resto não é, que “acentuam o caráter contestatório do poema” (BRANDÃO, 1987, p.22). O poema pode ser dividido em blocos, sendo que em cada um deles determinadas figuras se agrupam formando um percurso figurativo. Desta forma, o primeiro percurso figurativo observado é aquele composto por comedido, bem-comportado, funcionário público, livro de ponto, expediente, protocolo e manifestações de apreço ao sr. diretor. Este é o percurso figurativo do “ajustado e rotineiro” (Cf. BRANDÃO, 1992, p.124). Já as figuras dicionário, puristas, barbarismos universais, sintaxes de exceção e ritmos inumeráveis compõem o percurso figurativo do purismo de linguagem. No bloco que se inicia com o verso “Estou farto do lirismo namorador”, os termos namorador, político, raquítico e sifilítico formam o percurso figurativo do lirismo interesseiro. Por fim, o último bloco com características disfóricas é aquele que contém as figuras contabilidade, tabela de co-senos, secretário do amante exemplar, modelos de cartas, que compõem o percurso figurativo da mecanização ou do excesso de rigidez formal, no sentido da utilização de moldes preestabelecidos. Observamos, ainda, que neste último bloco são expandidas tanto a série do “lirismo rotineiro”, quanto a do “lirismo interesseiro”. O poema sugere que há, na poesia disforizada, uma poderosa conexão com a tradição, o que não permite a experimentação de novas formas artísticas.

Os quatro percursos figurativos apontados estão, na verdade, interligados, remetendo a um único tema que é o da opressão. Todas as figuras remetem, de alguma forma, a um tipo de aprisionamento. O lirismo associado a tais figuras é um lirismo oprimido, preso a comportamentos, formas, modelos, convenções, etc. De acordo com Brandão (1987, p.23), este poema “recusa as manifestações líricas que se caracterizam seja pela contenção, pela disciplina ou por estarem a serviço exclusivo de interesses outros”. Por outro lado, na penúltima estrofe, as figuras loucos, bêbedos e clowns de Shakespeare formam o percurso figurativo da liberdade – corroborado pelo último verso: Não quero mais saber do lirismo que não é libertação –, uma vez que estes papéis não estão presos às convenções sociais. Basta lembrar que os bêbados e loucos usufruem de certa licença para fazer qualquer coisa sem censura. Temos, pois, dois percursos figurativos em oposição, dados que eles recobrem dois temas antagônicos: a opressão e a liberdade do “fazer poético”.

Diante do que foi exposto até aqui, percebemos que o poema euforiza um lirismo livre, uma poesia “livre das amarras” e propõe uma ruptura (conforme comentamos quando da análise do nível narrativo) com a poesia dita tradicional. A crítica de “Poética” se dirige mais especificamente à poesia parnasiana e pós-parnasiana (cujos preceitos principais eram o purismo, a supervalorização das formas, a perfeição) e à poesia romântica, visto que «o lirismo namorador / raquítico / sifilítico compõe um conjunto que tem sua referência na temática romântica. O poeta questiona aqui alguns dos motivos mais utilizados por nossos românticos, o amor inconseqüente, o patriotismo, o estado doentio» (BRANDÃO, 1987, p.24).

Com relação ao plano da expressão, salta aos olhos que o poema é composto com uma “liberdade de formas”, isto é, com divisão entre estrofes irregular, versos livres, ritmo irregular, versos “muito longos”, etc.

 

Dayane Celestino de Almeida, Revista Eutomia Ano I – Nº 01 (215-247) 227. Disponível em: https://periodicos.ufpe.br/revistas/EUTOMIA/article/view/1984

 




Questionário sobre “Poética”, de Manuel Bandeira

1. Com base na leitura do poema, podemos afirmar corretamente que o poeta:

A) Critica o lirismo louco do movimento modernista.

B) Critica todo e qualquer lirismo na literatura.

C) Propõe o retorno ao lirismo do movimento clássico.

D) Propõe o retorno do movimento romântico.

E) Propõe a criação de um novo lirismo.

 

Resposta: Alínea E.

Ao nos atermos aos pressupostos ideológicos que demarcaram a estética modernista, todas as proposições, exceto a letra “E”, consideram-se como incoerentes, uma vez que um dos posicionamentos de Manuel Bandeira era de extrair poesia das coisas mais banais da realidade, renegando assim o sentimentalismo exacerbado dos românticos (por isso, ele não retoma ao movimento), bem como repudiando quaisquer traços formais em termos de estética, razão pela qual se pautava, sobretudo, pelo uso do verso livre (por isso, não retomou ao movimento clássico).

Dessa forma, o porquê de a letra “E” ser considerada correta deve-se ao fato de que a nova proposta não era a de abominar a poesia, tanto é que, como expresso anteriormente, a temática por ele explorada se originava das coisas corriqueiras da vida.

(ENEM. Disponível em: https://exercicios.brasilescola.uol.com.br/exercicios-literatura/exercicios-sobre-modernismo-no-brasil.htm)

 

2. Assinale a alternativa incorreta em relação à obra Melhores poemas, Manuel Bandeira, e ao poema intitulado “Poética”.

A) No poema, o poeta faz uso do verso livre e de uma pontuação não tão usual na língua culta, estas características associam o poema a correntes de vanguarda.

B) Nos versos “Todas as palavras sobretudo os barbarismos universais” (8) e “Todas as construções sobretudo as sintaxes de exceção” (9) o poeta faz uso da função metalinguística, embora haja no poema a predominância da função poética.

C) No poema, o autor ressalta como temas a precariedade de sentimentos, a transitoriedade de afetos, revelando um eu–lírico desiludido, destituído de sentimentos.

D) A leitura dos versos da quinta estrofe, reforçados pelo uso de adjetivos, leva o leitor a inferir que o poeta Manuel Bandeira, ironicamente, faz crítica aos aspetos abordados pelos poetas românticos.

E) No poema, Manuel Bandeira faz uso do verso livre, não utiliza as regras convencionais tanto na escrita quanto na métrica – versificação – caracterizando o versilibrismo, deixando à mostra a rutura com a poética e com a língua tradicionais, caracterizando um poema pertencente à estética Moderna.

Resposta: alínea C.

 

3. Analise as proposições em relação à obra Melhores poemas, Manuel Bandeira, e ao poema acima transcrito, e assinale (V) para verdadeira e (F) para falsa.

(   ) A leitura da estrofe sete leva o leitor a inferir que o poeta dá preferência ao lirismo mais autêntico, dos loucos, dos bêbedos e dos clowns, não preso a valores sociais, em detrimento de um lirismo tradicional.

(   ) Nos versos “Quero antes o lirismo dos loucos” (20) e “O lirismo difícil e pungente dos bêbedos” (22) se os vocábulos destacados forem substituídos por pelos, não há prejuízo quanto ao sentido original do texto e quanto à regência.

(   ) Nos versos “Será contabilidade tabela de cossenos secretário do amante exemplar com” (17) e “cem modelos de cartas e as diferentes maneiras de” (18) os vocábulos assinalados, embora possuam classificação gramatical diferente, não se flexionam para indicar o gênero masculino ou feminino, sendo que a indicação de gênero ocorre por meio de modificadores.

(   ) O sinal gráfico ( [ ) nos versos 4, 6, 18 e 19, usado para intercalar as estruturas poéticas – versos, assume uma outra função, a de reforçar o descomprometimento com as regras gramaticais, conferindo à nova forma de escrever também um novo valor poético e literário.

(   ) No verso “Quero antes o lirismo dos loucos” (20) o verbo, quanto à transitividade, é bitransitivo, pois tem como complementos verbais objeto direto – lirismo, e objeto indireto dos loucos.

 

Assinale a alternativa correta, de cima para baixo.

A) F – F – F – V – F

B) V – V – V – F – F

C) V – V – F – V – F

D) V – F – V – V – F

E) F – F – V – F – F

Resposta: alínea D.

(Universidade do Estado de Santa Catarina/UDESC. Questões 38 e 39 do vestibular 2018.1, de 26 de novembro, disponível em https://www.udesc.br/arquivos/udesc/id_cpmenu/5978/CADERNO_MANH__COM_GABARITO_15117379179292_5978.pdf; gabarito disponível em https://arquivos.qconcursos.com/prova/arquivo_gabarito/58486/udesc-2017-udesc-vestibular-primeiro-semestre-manha-gabarito.pdf?_ga=2.69263824.1987684596.1702589541-1009661154.1702589541)





Proposta de escrita criativa

Já estudamos a construção e o objetivo de um manifesto. A proposta de produção será: vamos reescrever o “Poema-manifesto” de Manuel Bandeira. Sabemos que o poeta, quando escreveu o poema, estava farto das propostas que representam o pensamento estético predominante na época. E, hoje, o que nos deixam fartos, quais situações de nossa época estamos condenando. Considere a estrutura do poema, a nossa realidade, faça as suas críticas e adaptações no poema.

 

Poética ou ____________

Estou farto ____________

Do(da) ____________

Do (da) ____________

Estou ____________

Abaixo os(as) ____________

[...]

Quero ____________

O(a) ____________

O(a) ____________

O (a) ____________

- Não quero mais saber do(da) ____________

 

(Josely Cristiane Telles, Formação continuada – SEEDUC. Disponível em https://canal.cecierj.edu.br/012016/47e2af0d48886eb3d1feff02a52356e8.pdf)

 



sexta-feira, 25 de agosto de 2023

és o cacto que organiza os pensamentos do dia (Marcelo Torres)


 

PEQUENOS BUDAS DO NORDESTE


Talvez seja assim
você se afasta sofrendo
têm duas mãos trêmulas juntas
com elas pode tocar
o outro que não está
nem na rua
nem na padaria
és o cacto
que organiza
os pensamentos do dia

 

Marcelo Torres, Infernos Fluviais e Por que nunca conversamos sobre Nick Cave?, São Paulo, Editora Clóe, 2023

 


quinta-feira, 20 de julho de 2023

Biblioteca Verde, Carlos Drummond de Andrade

 


BIBLIOTECA VERDE

– Papai, me compra a Biblioteca Internacional de Obras Célebres.
São só 24 volumes encadernados em percalina verde.
– Meu filho, é livro demais para uma criança.
– Compra assim mesmo, pai, eu cresço logo.
– Quando crescer eu compro. Agora não.
– Papai, me compra agora. É em percalina verde,
só 24 volumes. Compra, compra, compra.
– Fica quieto, menino, eu vou comprar.

– Rio de Janeiro? Aqui é o Coronel.
Me mande urgente sua Biblioteca
bem acondicionada, não quero defeito.
Se vier com arranhão recuso, já sabe:
quero devolução de meu dinheiro.
– Está bem, Coronel, ordens são ordens.

Segue a Biblioteca pelo trem-de-ferro,
fino caixote de alumínio e pinho.
Termina o ramal, o burro de carga
vai levando tamanho universo.
Chega cheirando a papel novo, mata
de pinheiros toda verde.

Sou o mais rico menino destas redondezas.
(Orgulho, não; inveja de mim mesmo.)
Ninguém mais aqui possui a coleção das Obras Célebres.

Tenho de ler tudo. Antes de ler,
que bom passar a mão no som da percalina,
esse cristal de fluida transparência: verde, verde...
Amanhã começo a ler. Agora não.

Agora quero ver figuras. Todas.
Templo de Tebas. Osíris, Medusa, Apolo nu, Vênus nua...

 

Nossa Senhora, tem disso nos livros?!...
Depressa, as letras. Careço ler tudo.
A mãe se queixa: Não dorme este menino.
O irmão reclama: Apaga a luz, cretino!

Espermacete cai na cama, queima a perna, o sono.
Olha que eu tomo e rasgo essa Biblioteca
antes que pegue fogo na casa.

Vai dormir, menino, antes que eu perca a paciência e te dê uma sova.
Dorme, filhinho meu, tão doido, tão fraquinho.

Mas leio, leio. Em filosofias tropeço e caio,
cavalgo de novo meu verde livro,
em cavalarias me perco, medievo;
em contos, poemas me vejo viver.
Como te devoro, verde pastagem!...
Ou antes carruagem de fugir de mim
e me trazer de volta à casa
a qualquer hora num fechar de páginas?

Tudo que sei é ela que me ensina.
O que saberei, o que não saberei nunca,
está na Biblioteca em verde murmúrio
de flauta-percalina eternamente.

 

Carlos Drummond de Andrade, Boitempo II: menino antigo, 1973

 

 

“Iniciação literária”: a viagem do menino leitor

[…]

As experiências no Grêmio Literário e na escola fortalecem, paulatinamente, o leitor Drummond e alimentam o futuro escritor. Foi por essa idade que o menino-leitor fez um pedido ao coronel Carlos de Paula Andrade: que lhe comprasse a “Biblioteca Internacional de Obras Célebres, uma coleção de volumes, publicada pela “Sociedade Internacional” com sede e consultores, praticamente, pelo mundo inteiro e “no Brasil, José Veríssimo, João Ribeiro e Lindolfo Collor” (CANÇADO, 2003, p. 2003). O poema “Biblioteca Verde” (OC, 2002, p. 990- 992), seis estrofes, é o registro desse momento.

Na primeira estrofe, temos a insistência de Carlito para adquirir a Biblioteca Internacional de Obras Célebres. E o pai lhe diz “Meu filho, é livro demais para uma criança”. No entanto, ele já tem uma resposta pronta: “Compra assim mesmo, pai, eu cresço logo”. Ou seja, nada ficará perdido, porque à medida que eu crescer, ainda continuarei lendo. Mas o coronel, que via Carlito ainda “pequeno” para aquele tipo de leitura responde-lhe: “Quando crescer eu compro. Agora não”. Mas o filho não se dá por vencido e continua a insistir: “Compra, compra, compra”. O pai se dá, então, por derrotado e diz: “Fica quieto, menino, eu vou comprar”. Ser leitor é ser insistente.

Na segunda estrofe, o coronel liga para o Rio de Janeiro e com toda imponência compra os tão pedidos livros: “Me mande urgente sua Biblioteca / bem acondicionada, não quero defeito”. E do outro lado da linha alguém, servilmente, responde: “Está bem, Coronel, ordens são ordens”. O verso denota com precisão as relações hierárquicas entre o comprador (coronel) e o vendedor dos produtos. Na modernidade, para integrar-se à sociedade é preciso responder a ela modelando-se a suas regras.

Na terceira, os livros chegam “cheirando a papel novo” e o menino sente-se o mais rico “destas redondezas”, porque agora é detentor de uma pequena fortuna. O sentimento não é de orgulho, mas de inveja de si mesmo, porque “Ninguém mais aqui possui a coleção / das Obras Célebres”, por isso mesmo ele precisa “ler tudo”. Mas antes, o menino se delicia passando a mão no livro, cujo material é percalina, um “cristal / de fluida transparência: verde, verde”. O sentimento é de carinho e de ternura apodera-se desse leitor.

Na quarta estrofe, é o início de uma aventura: conhecer o “Templo de Tebas. Osíris, Medusa/Apolo nu, Vênus nua...”. O espanto é grande diante da nudez: “Senhora, tem disso nos livros?”. Não sabíamos, e não tínhamos como saber, que o menino que se espantava com o nu naquele momento, em meados dos anos 70 escreveria um tipo de poesia que escandalizaria leitores “tradicionais”, que pareciam desconhecer ou não vivenciar “o amor erótico”. O livro O Amor natural (1992) revelou as poesias eróticas que Drummond manteve ocultas durante anos e só aceitou publicar após a sua morte, pois tinha receio do julgamento alheio e de ser chamado de “velho bandalho”. Era tanto material a ser lido, que começa a incomodar a própria família: “A mãe se queixa: Não dorme este menino. / O irmão reclama: Apaga a luz, cretino!”. As leituras do menino leitor alteravam o cotidiano do clã dos Andrades.

Assim como o poeta lutou com as palavras, o menino lutou para ler sua Biblioteca “Mas leio, leio. Em filosofias /tropeço e caio, cavalgo de novo...”. Às vezes lia, não compreendia, mas permanecia firme diante de seu propósito. Só de uma coisa o menino tinha certeza “Tudo que sei é ela quem me ensina”. Nas palavras de Vicent Jouve [...] “É possível que a leitura – não exatamente a leitura, mas a cerimônia da leitura que a criança celebra com tanto gosto – seja um rito de introdução à intimidade. Ela é, ao mesmo tempo, seu meio, sua paródia, seu exercício real embora difícil” (JOUVE, 2002, p. 139-140). Esse ritual, no início, pode ser espinhoso, mas o hábito o torna prazeroso.

A Biblioteca era habilmente adaptada às necessidades dos leitores, com trechos e fragmentos da literatura e do pensamento filosófico, religioso e científico, seja “dos tempos antigos, medievais ou modernos”, a “Biblioteca acabava por ser uma compilação redonda e confiável da cultura humana” (idem, ibidem). Ela é sinônimo de liberdade, de conhecimento e de democratização do saber. Quanto mais contato com as bibliotecas, mais possibilidades de as crianças se interessarem pelos livros.

Além do pai, o irmão Altivo, estudante de direito, também foi grande incentivador de Carlos – “Feliz o menino ou adolescente que pode contar com a ajuda de alguém mais velho para caminhar entre os sonhos confusos da imaginação literária” (ANDRADE, 2003, p. 1218). Para ele mandou revistas, jornais, livros e o oportunizou a conhecer muitos escritores, dentre eles Fialho d’ Almeida (1857-1911) e Eça de Queirós (1845-1900). “Passar de Fialho a Eça foi um salto de vara curta: fiquei freguês do segundo, e, pela graça de Deus, cheguei cedinho a Machado de Assis. Deste não me separei nunca [...]” (idem, ibidem). Segundo Drummond, o irmão foi o responsável por conduzi-lo ao “país da literatura” [...] “A literatura vivia em mim, não existia lá fora” (idem, ibidem). A declaração do poeta nos revela que ele concebia a literatura como um conjunto de obras lidas que transformaram sua vida. Era uma experiência interna que ocorria entre ele, na condição de leitor, e o livro.

De leitor de revistas à Biblioteca Internacional: estamos diante de um leitor múltiplo, eclético. Sua entrada no “tamanho universo” da “Biblioteca Internacional ainda hoje tem, de cara, um efeito alucinatório, paralisante, próprio da chamada de submissão ao mundo duro, severo, impessoal da chamada “literatura sapiencial” que abre a coleção [...]” (CANÇADO, 1993, p. 47). O contato com tantas obras estrangeiras não tornou o menino um leitor deslumbrado com a cultura do colonizador. Pelo contrário. A obra drummondiana enaltece seu país e seu povo.

Todas essas obras contribuíram para criação de um leitor maduro e arguto, pronto para sair pelo mundo, como observamos em “Iniciação Literária” (OC, 2002, p. 989):

 

Leituras! Leituras!
Como quem diz: Navios...Sair pelo mundo
voando na capa vermelha de Júlio Verne.
Mas por que me deram para livro escolar
a Cultura dos Campos de Assis Brasil?
O mundo é só fosfatos – lotes de 25 hectares
– soja – fumo – alfafa – batata doce – mandioca –
pastos de cria – pastos de engorda.
Se algum dia eu for rei, baixarei um decreto
condenando este Assis a ler a sua obra.

 

Quando o matemático Arquimedes encontrou a solução para um dos problemas que resolvia, gritou: “eureka”. Quando o menino leitor descobre o mundo maravilhoso da arte de ler, ele diz: “Leituras. Leituras”. E compara sua descoberta às da personagem Phileas Fogg e seu valete, Passepartout, de circum-navegar pelo mundo em oitenta dias, de Júlio Verne.

Todavia, o prazer da leitura torna-se um desprazer, pois ao menino foi dado um livro de Assis Brasil, onde “O mundo é só fosfatos – lotes de 25 hectares / – soja – fumo – alfafa – batata doce – mandioca – / pastos de cria – pastos de engorda”. O diálogo com outros autores, a intertextualidade, que trabalhamos no terceiro capítulo, é parte do poema. Na primeira estrofe, o poeta faz uma referência ao escritor francês Júlio Verne (1828-1905) e sua obra A volta ao mundo em oitenta dias (1872). Na segunda, o homenageado é o escritor brasileiro Francisco de Assis Almeida Brasil (1932) e a obra Cultura dos campos (1977).

O sujeito lírico questiona por que lhe foi dado o “livro escolar / a Cultura dos Campos de Assis Brasil?”, cujo assunto é desestimulante para sua idade e que o afastava da obra minando seu interesse em continuar lendo. Ler por obrigação é o modo mais rápido de criar não leitores.

Quanto à leitura de um poema, Ítalo Moriconi (1992) afirma que ele sempre está aberto à interpretação do leitor. Acrescenta que “Toda leitura, sendo ato de amor pelo poema é, também, ato de posse sobre ele” (p. 18). Nesse sentido, acabamos por cometer um ato de traição. Contudo, antes de ser “vitimado por uma traição, o poema é que é infiel por natureza, pois não abre mão de estar disponível para o exercício de infinitos e anônimos atos de amor” (idem, p. 18-19). Esse é o único caso que a exclusividade absoluta seria limitadora, triste e reducionista.

Em outras palavras, o ato de ler é uma relação puramente dialógica com seu leitor. Ler é ser capaz de criar sentidos e significados. Esse significado, o menino Drummond encontrou em Júlio Verne, mas não o encontrou em Assis Brasil.

Esse distanciamento de Carlito com a obra indicada para a leitura fez com que ele chegasse a uma resolução: “Se algum dia eu for rei, baixarei um decreto / condenando este Assis a ler a sua obra”. Ou seja, Assis Brasil lerá sua própria obra, enquanto ele, Carlos, lerá aquilo que para ele faz sentido, assume significado, como é o caso de Júlio Verne. Sem significado, não há prazer em ler. A vontade de ser rei também se fez presente em outro poema “Para Sempre” (OC, 2002, p.491) - “Fosse eu rei do mundo /Baixava uma lei: / Mãe não morre nunca / Mãe ficará sempre / Junto de seu filho”. Ler o que não se gosta e ter as mães para sempre são dois desígnios que poderiam perdurar em qualquer circunstância.

Essa reação é de um leitor maduro, que cedo despertou para a leitura, que leu aquilo que lhe interessava. Não estava disposto, assim, a ler um livro que para ele não fazia o mínimo sentido. Até porque “Cada leitor, para cada uma de suas leituras, em cada circunstância, é singular” (idem, ibidem). É preciso se identificar com o que se lê, caso contrário, a leitura tornase um desprazer.

Ler significa entendimento e questionamento de si e do mundo. A leitura sempre esteve presente na vida do menino Carlos Drummond de Andrade. O poder aquisitivo de sua família permitiu que tivesse acesso não só a livros e a jornais, mas a revistas, como a Tico-Tico e a Fon-Fon. Participou de um grêmio literário e na mocidade, integrou um grupo, Estrelas, de rapazes que também desenvolveram o gosto pela leitura. Iniciou lendo o mundo através das imagens e registrou-as em forma de poesia, de contos e crônicas. Foi um leitor solitário, astucioso e inteligente. Cedo leu os franceses, os ingleses, os portugueses, os brasileiros, leu por prazer e leu por obrigação.

O facto de se opor a um movimento elitista, como o Parnasianismo, não diminuiu sua admiração por Olavo Bilac (1865-1918), ou mesmo pelos simbolistas, tais como Alberto Moreira (1857-1937) e Alphonsus de Guimaraens (1870-1921). Todas essas leituras certamente contribuíram para o seu processo de escrita, logo é primordial entender como o poeta leu e foi lido.

 

Carlos Drummond de Andrade: O poeta na condição de leitor, Luciana Silva. Fortaleza, Universidade Federal do Ceará, Centro de Humanidades, Programa de Pós-Graduação em Letras, 2021.

 

quarta-feira, 19 de julho de 2023

Soneto da Loucura, Carlos Drummond de Andrade

“Dom Quixote de Cócoras com Ideias Delirantes”, Portinari, 1956

http://www.portinari.org.br/#/acervo/obra/1215/detalhes


SONETO DA LOUCURA

A minha casa pobre é rica de quimera
e se vou sem destino a trovejar espantos,
meu nome há de romper as mais nevoentas eras
tal qual Pentapolim, o rei dos Garamantas.

Rola em minha cabeça o tropel de batalhas
jamais vistas no chão ou no mar ou no inferno.
Se da escura cozinha escapa o cheiro de alho,
o que nele recolho é o olor da glória eterna.

Donzelas a salvar, há milhares na Terra
e eu parto e meu rocim, corisco, espada, grito,
o torto endireitando, herói de seda e ferro,

e não durmo, abrasado, e janto apenas nuvens,
na férvida obsessão de que enfim a bendita
Idade de Ouro e Sol baixe lá das alturas.

Carlos Drummond de Andrade,
D. Quixote, Cervantes, Portinari, Drummond. Rio de Janeiro: Diagraphis, 1973, p. 12

 

A dicotomia devaneio x realidade

Ao buscar as produções de Drummond e Portinari, a que primeiro se encontra é o “Soneto da Loucura”, ladeada pelo desenho de Portinari correspondente ao poema.

Está-se, portanto, diante de duas criações que estabelecem relações intertextuais que instigam a examiná-las. Tome-se como objeto de análise, o desenho “Dom Quixote de cócoras com idéias delirantes”.

Encontra-se, neste desenho, um Dom Quixote muito magro e solitário, sentado de cócoras com as mãos postas acima dos olhos, como se estivesse fixando seu olhar ao longe. A imagem de Dom Quixote pode causar estranheza logo em um primeiro olhar, pois transmite uma sensação de desequilíbrio e desalinho ao mesmo tempo. O desequilíbrio pode ser percebido na sua posição e na falta de harmonia do seu conjunto. A dimensão deste desenho plástico-pictórico é de 20x30cm, sendo vinte centímetros de largura e 30 de altura, porém, estabelecendo-se um ponto médio que localize o ponto central entre largura e altura, percebe-se que este se localizará próximo à axila esquerda de Dom Quixote, conforme se vê abaixo.

Imagem de Dom Quixote


Nesta divisão, pode-se visualizar que o corpo de Dom Quixote não está centrado. A maior parte do seu corpo encontra-se, quase que em sua totalidade, ao lado direito, no entanto, em vez desse posicionamento centralizá-lo neste lado da imagem, sua perna e braço esquerdos invadem o espaço esquerdo e são desproporcionais em relação aos mesmos membros do outro lado. Percebe-se uma textualidade visual que possibilita a construção de sentidos, principalmente ao observar as formações eidéticas – linhas –, assim como as formas que compõe uma assimetria, transmitindo, assim, uma idéia de desproporção dos membros que constituem uma percepção de instabilidade que fortalece a sensação de desequilíbrio (DONDIS, 1997), já que, aparentemente, o corpo tenderia a tombar para o lado, principalmente se for levado em consideração que seus braços, mãos e pernas não estão nivelados, o que por si só já causaria certa dificuldade para a sustentação e equilíbrio de alguém que se encontre nessa mesma posição, materializando, desta forma, a imagem de um ser em desarmonia.

O desequilíbrio das linhas também é mantido pelo pintor no olhar de Dom Quixote. Seus olhos estão como que arregalados e fixos no horizonte, porém, não passam a sensação de estarem realmente vendo algo, pelo contrário, parecem fixar o longe e o nada ao mesmo tempo. Sua postura demonstra que está à procura de algo, como se pode perceber pelas suas mãos, em posição característica de apoio à visão, demonstrando uma busca. Percebe-se que o negro de seus olhos ressalta o “vazio” presente no branco de suas pupilas. Este detalhe lhe confere um olhar de alucinação, de quando o indivíduo já não tem noção do seu eu, de forma que este olhar desvairado demonstra que alguma coisa se perdeu, ou seja, sua razão. Também se pode considerar que neste olhar visionário, é como se, na verdade, olhasse para um outro mundo à procura de algo. Seja qual for, parece tratar-se de uma busca apaixonada, o que se pode inferir pela vermelhidão intensa de seu rosto, que denota sua característica sangüínea.

Um dos aspectos que mais chama a atenção no desenho, além da própria posição e postura da personagem, é o cromatismo. Quanto às cores, prevalecem os fundos amarelo e vermelho das partes descobertas do corpo de Dom Quixote. Estes cromas incluem-se na classificação das cores quentes, sendo o amarelo a mais quente e ardente das cores, característica seguida pelo vermelho, cor da paixão (ROUSSEAU, 2004). É o amarelo que é usado como pano de fundo para a imagem do protagonista. Isto não ocorre por acaso, visto esta ser a mais expansiva das cores. A esse respeito, Barros afirma que cada cor suscita “um movimento, uma temperatura, [...] um ‘estado de espírito’” (2006, p. 184). Em seus estudos, ao falar sobre a teoria das cores de Kandinsky, diz que, quanto a amarela, a mesma

identifica a força impactante de um movimento horizontal na direção do espectador. Ele [Kandisnky] também chama esse movimento de corporal, pois vem em direção ao nosso corpo físico. O movimento irradiante do amarelo é excêntrico e representa, nas palavras do próprio artista: ‘um salto para além do limite, a dispersão da força em torno de si mesma. (Ibidem, p. 185)

Quanto ao simbolismo desta cor, ela explica que, para o estudioso, “a dispersão excêntrica do amarelo confere a ele um aspecto superficial [...]. É uma cor fascinante e extravagante, uma explosão de energia, um desperdiçar das forças e, portanto, uma cor sem profundidade” (p. 186). Já no que se refere ao estado de espírito suscitado, trata-se da “cor que melhor representa a loucura e o delírio na visão de Kandinsky” (p.187). Percebe-se também o alto grau de luminosidade do croma amarelo no desenho de Portinari, o que fortalece seu movimento excêntrico. Assim, ocorre a prevalência de uma cor quente e expansiva acompanhada pela cor do fogo, da paixão e da impulsividade. O amarelo pode ser considerado como um vermelho mais luminoso (ROUSSEAU, 2004), pois ambas as cores, amarelo e vermelho, se harmonizam com os devaneios da personagem, à procura de algo irreal e inatingível. Apreende-se que os cromas são convergentes, visto que ao mesmo tempo que o amarelo aponta para o devaneio, no sentido de fuga do real, tanto ele quanto o vermelho – como cores quentes – suscitam e exprimem ardor, força e poder, entre outras coisas. Observa-se que uma parte da simbologia da cor vermelha também pode ser atribuída à amarela; contudo, a amarela distingue-se da primeira pelo seu caráter luminoso que o aproxima da inteligência (Idem, p. 100), que, por sua vez, pode-se dizer tratar-se de um dos atributos de Dom Quixote, homem culto e com vasta leitura.

Já nas vestimentas quixotescas há a presença do verde, azul, rosa e preto. O azul do seu tronco, principalmente por ser a mais fria e imaterial das cores, contrasta com o vermelho e o amarelo. Mas, ao invés de divergir da significação delas, ele as fortalece, pois é o azul que representa o caminho do infinito, onde o real se torna imaginário, uma vez que ele é o caminho da divagação. E quando ele se escurece, de acordo com sua tendência natural, torna-se o caminho do sonho (BARROS, 2006). Esta cor está mesclada com a cor verde, mediadora entre o calor e o frio, cor que também estará presente em suas calças. Há, ainda no tronco, mesclas de rosa compostas do vermelho e do branco, ou seja, da paixão e da pureza, e, finalmente o preto, cor que pode se situar nas duas extremidades, tanto na quente quanto na fria, mas que também simboliza a inexistência de luz ou de sombra.

No que se refere ao poema “Soneto da Loucura”, percebe-se que o título em si, ao mesmo tempo que remete a um prenúncio do seu conteúdo, também aguça a curiosidade do leitor em conhecer a matéria poetizada. No primeiro verso constitui-se um “eu lírico” representado por Dom Quixote, que declara que sua “casa pobre é rica de quimera”, ou seja, embora sua casa seja despojada de bens materiais valiosos, ela é “rica de quimera”, ilusões/sonhos. Percebe-se a oposição entre a pobreza e a riqueza. Mais ainda: entre o mundo empírico, do objeto, e o mundo da fantasia. Nessa linha de raciocínio, pode-se dizer que o nome “casa” acaba funcionando também como metonímia do sujeito. Opõe-se, portanto, neste passo, uma aparência de descompasso entre aquilo que se vê – o real empírico –, e aquilo que se imagina – a quimera –, ambos constituindo o modus vivendi do sujeito que também está configurado na geometria quixotesca.

É possível dizer que, desde o início, o sujeito posiciona-se diante do mundo dos sentidos e de si mesmo em uma atitude avaliativa. Ele apreende o que o cerca e o que acredita atribuindo-lhes valores distintos. É desta posição judicativa que nasce a dicotomia Devaneio x Realidade. Assim, encontra-se um eu lírico que, em síntese, além de ser contraditório desde a sua apresentação, também euforiza o devaneio em contraste com a realidade. Toma-se, aqui, o conceito devaneio, conforme o entendimento de Bachelard (1944), mencionado anteriormente. É justamente este devaneio que leva o eu lírico a declarar que vai “sem destino a trovejar espantos”, ou a não se mostrar passivo diante dos acontecimentos. Nota-se que, ao falar da sua posição diante do mundo, ele também se refere a esse estar no mundo como sendo “sem destino”. Ele trovejará, atuará, pois busca uma participação ativa onde quer que seja necessário. Seu mundo é em qualquer lugar, não há um local determinado, não há um destino marcado. Desta forma, através de seus feitos, espera que seu nome rompa “as mais nevoentas eras,/ tal qual Pentapolim, o rei dos Garamantas”. Nesse passo o eu lírico revela que deseja alcançar a glória e a fama de seus heróis. É interessante que ele cite justamente um herói que exista apenas em seus sonhos e que representa o ideal (anacrônico) da cavalaria andante. Pentapolim, uma personagem da obra mestra, é um rei cristão que luta em defesa de sua filha donzela e se recusa a entregá-la a Alifanfarrão, um imperador pagão. A menção desse pai zeloso converge com sua intenção de “trovejar espantos”, principalmente atentando-se para o sentido moral de “trovejar”, como indignar-se, que nesse caso implica que atuará contra o que fere a ordem, idéia que retoma o verso anterior em que diz que a fama que deseja “há de romper as mais nevoentas eras”. Parece que em “nevoentas eras” o “eu poético” se refere a um período que está antes mesmo da própria História, ou seja, um tempo mítico. O adjetivo “nevoentas” se refere àquilo que cobre o objeto em referência com um véu de opacidade, impedindo que ele seja delineado, apreendido pela visão. Segundo Mielietinski

O caos se concretiza em sua maior parte como trevas ou noite [...]. A transformação do caos em cosmo foi esboçada em sistemas mitológicos bastante arcaicos, nas narrativas sobre a luta travada contra os demônios ctonianos e os monstros pelos heróis épicos mitológicos, cujos modelos ainda não se diferenciaram totalmente dos ancestrais e heróis culturais. [...] Os combates e lutas mitológicos são quase sempre de uma maneira ou de outra cosmogônicos e marcam a vitória das forças do cosmo sobre as forças do caos. [...] Tendo em vista que o cosmo se identifica com a ordem e a medida, o caos se associa naturalmente à violação da medida. [...] Se outros inúmeros episódios da luta dos heróis míticos e posteriormente dos épicos contra monstros, demônios, etc., não são um ato cosmogônico de transformação do caos em cosmo, são pelo menos um ato de defesa do cosmo contra as forças do caos que o ameaçam. (1987, p. 240 e 243, 244, 246).

Com isso, apresenta-se um sujeito talhado pelo perfil dos heróis nacionais que, por sua vez, têm suas origens nos arquétipos dos heróis míticos. Ele deseja trazer a luz, a ordem ao mundo, o que já foi antecipado na primeira estrofe, em que Dom Quixote se declara um sonhador, cujos feitos trovejarão espantos em busca de uma glória mítica, ou seja, uma glória tanto transcendental quanto atemporal.

Pode-se também estabelecer uma relação com uma passagem mítica quando o eu lírico revela que em seus pensamentos passam batalhas “jamais vistas no chão ou no mar ou no inferno”, pois, na cosmogonia, entendida aqui como a ordenação do caos, instala-se a ordem com a separação de três esferas: “a terrestre, a celeste e a subterrânea (a passagem da divisão binária para a trinária), dentre as quais a esfera central – a terra – se opõe ao mundo aquoso embaixo e ao celeste em cima”. (Ibidem, p. 242).

Na cosmogonia, esta separação é um fator importante para o estabelecimento da ordem, e, no poema, o herói se põe disposto a atingir três esferas para estabelecer a sua cosmogonia. É interessante o uso da expressão “tropel de batalhas”, pois por tropel entende-se som impactante, movimento desordenado, tal como nas lutas dos heróis míticos. Ao que parece, instaura-se uma comparação entre a imaginação e o mundo mítico. O verbo “rolar” confere certa plasticidade à cena, como se fosse uma narrativa fílmica que apreende o som forte das batalhas, marcado pelo ruído da cavalaria e pelos movimentos acelerados que sintetizam uma visão forte, violenta do objeto descrito. Essa imagem troante e atordoante é ponto de referência na aproximação com a tradição, quer mítica, quer histórica. A gradação presente em “jamais vistas no chão ou no mar ou no inferno” implica a idéia de exclusão, ou seja, afirma-se a não existência de qualquer luta dessa natureza. Mas não se restringe a esse aspecto, já que o mesmo revela que “Se da escura cozinha escapa o cheiro de alho,/ o que nele recolho é o olor da glória eterna”. Esses versos, que introduzem a presença dos sentidos, são iniciados com a conjunção “se” denotando hipóteses que inserem uma linha de raciocínio lógico. Neste ponto temse uma revelação da visão distorcida que já estava anunciada anteriormente: Dom Quixote não somente imagina as coisas; ele também metamorfoseia o que vê e o que sente. Uma leitura mais aprofundada possibilita apreender a contraposição entre a realidade e o devaneio em “escura cozinha” e “olor da glória”, já que se pode relacionar o espaço da realidade ao ambiente da cozinha, que possui o cheiro real de alho, ao mesmo tempo em que “olor da glória” pode corresponder ao espaço do devaneio, do sonho ou da imaginação. Percebe-se uma distinção bipolar entre os adjetivos usados, pois enquanto a realidade, atribuída à cozinha é escura, o devaneio, contido no olor da glória, é eterno. “Escura cozinha” antepõe-se à “glória”. Nessa relação cria-se a oposição no campo semântico concernente à cor. Se “escura” implica a idéia de um croma com reduzida luminosidade, “glória” pressupõe alta concentração tonal, sugerindo, ainda, brilho e esplendor. Outro aspecto a considerar, ainda relacionado à carga semântica dos vocábulos usados, visto que enquanto a realidade tem “cheiro” – observe-se a escolha de um vocábulo coloquial –, o devaneio tem “olor”, sugerindo um aroma muito mais agradável que o do alho. Veja-se que a realidade está presa ao alho, algo tido como comum, ao passo que o devaneio é glória, que leva ao singular, ao nobre. Então, há a marcação do cheiro vinculado à realidade que passa, divergindo do olor que é destituído de sua materialidade e da contingência temporal. Verifica-se que ao devaneio é concedido um status de nobreza e eternidade, ao passo que a realidade está atrelada ao comum e pouco valioso, como o cheiro de alho, que é efêmero e desagradável. Além disso, também se pode perceber um rebaixamento interessante no que tange à realidade, uma vez que está ligada ao cheiro de comida, ou ao cheiro do corpóreo. Percebe-se, nesse ponto, a presença do realismo grotesco pela “lógica da inversão, o contato do alto com o baixo” (BAKHTIN, 1999, p. 270). Porém, observe-se que neste “baixo corporal” (Ibidem, p. 271) ocorre, também, a elevação da idealidade, ou seja, enquanto o terreno, ou o corpóreo representado pelo alho, é rebaixado, o idealismo contido no “olor da glória” e que representa o devaneio, é sublimado. Bakhtin, em A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento esclarece que

Na base das imagens grotescas, encontram-se uma concepção especial do conjunto corporal e dos seus limites. As fronteiras entre o corpo e o mundo, entre os diferentes corpos, traçam-se de maneira completamente diferente do que nas imagens clássicas e naturalistas (p. 275).

Ou seja, através do grotesco estabelece-se a diferenciação entre a realidade e o mundo. Reafirma-se, dessa forma, a inadequação do Eu perante o Mundo, haja vista a realidade ser aqui o objeto rebaixado, enquanto a idealidade, compreendida sob o aspecto do devaneio, é sublimada.

Apresenta-se, também, a dualidade eterno x efêmero, que, por sua vez, converge com a dicotomia Devaneio x Realidade, principalmente se a base para isso for a teoria das idéias de Platão, que defende a existência de dois planos, inteligível e sensorial. No primeiro encontram-se as idéias que são relativas às aspirações da alma, e dessa forma, permanente. Já no segundo tem-se a dimensão dos sentidos, que são em si um reflexo das idéias, e com isso, instável e efêmero (CHÂTELET, 1995). Assim, a dicotomia Devaneio x Realidade é resultado da tentativa de Dom Quixote de trazer as idéias do plano inteligível, do sonho, para o plano sensorial, ou à realidade, configurando assim, seu devaneio.

Dessa forma, este sonhador parte para o campo do devaneio, pois adota a ação (BACHELARD, 1994) em busca da ordem e sua conseqüente fama. Para isso, ele parte em seu “rocim, corisco, espada, grito”, que consiste em outra gradação. Estes são os recursos utilizados para busca da glória: seu cavalo, tido como corisco, sua espada e seu grito. Na enumeração nominal, destaca-se no primeiro elemento referido uma clara recuperação da expressão popular “cavalo corisco”. Nos campos de Minas Gerais, berço do poeta Drummond, essa expressão metaforiza a ligeireza do cavalo que é pressupostamente comparado ao fenômeno da natureza – corisco. Pretende-se expressar que o animal é tão rápido quanto uma descarga elétrica, um relâmpago. A seguir, acrescenta-se “espada, grito”. Sua espada e seu grito que também se pode compreender por bravura, visto a apresentação da espada ao alto juntamente com o brado de guerra representar uma posição de ataque entre os combatentes em uma batalha. Em termos do herói/sujeito aqui focalizado, esses sintagmas nominais parecem traduzir, neste momento, a explosão do eu em face de si mesmo e do mundo; pela sugestão de equivalência entre ele, sujeito, e o rocim, o corisco, a espada e o grito. A imagem que então emerge é a da integridade humana, já tendo encontrado e fixado seu centro na forma de luta. Pode-se, então, dizer que o sujeito que ia “sem destino”, encontra, no devaneio, um rumo, um caminho, tanto que, munido desse arsenal, o herói se apresenta para a ação que se descortina com missões a cumprir: a salvação de donzelas, isto é, “o torto endireitando”. A primeira parte da tarefa proposta pelo sujeito da enunciação é a regeneração do mundo real, que, aos seus olhos, é um mundo às avessas.

Para ele, não há lugar para o que transgride a norma cavaleiresca; ao “torto”, ou seja, ao desrespeito às donzelas, aplica-se o “ferro”. Note-se ainda que esse herói que sabe usar de firmeza, de violência, sabe ser suave, gentil com o feminino, o mundo das sedas. Ao vislumbrar o que fará já se coloca na posição de herói, pois estará devolvendo a ordem ao mundo, e fazendo isso, qualifica a si próprio de “herói de seda e ferro”. Na oposição obtida entre seda e ferro, encontra-se a apresentação de um herói que ao mesmo tempo é delicado e gentil como uma seda e duro e forte como o ferro.

Assim, o devaneio começa a prevalecer. No poema ele avança desde o início sobre o espaço sensorial da realidade e, no final, tem-se a sua dominância. É explícita a condição desse homem que não dorme, que está “abrasado”, o que possibilita concluir que o devaneio tomou conta dele de forma que até mesmo o seu alimento são as nuvens – espaço físico destinado aos sonhos –, ou seja, este homem que não dorme e nem come perde a razão e, em sua loucura, passa a alimentar-se desses sonhos de forma que se encontra em uma “férvida obsessão de que enfim a bendita/ Idade de Ouro e Sol baixe lá das alturas”. Novamente Dom Quixote expressa seu desejo cosmogônico de trazer a harmonia ao mundo, pois a Idade de Ouro é tida como uma época de paz e harmonia tanto entre os homens, quanto entre estes e a natureza, e ele, enquanto herói, agirá ativamente para que esse período sobrevenha sobre a terra. Apreende-se, nesse ponto, a busca por uma cosmogonia utópica1, não se esquecendo que analogamente o Sol é um símbolo universal do rei (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2005). Dessa forma, Dom Quixote ao citar a “Idade de Ouro e Sol”, na realidade toma para si a luta cosmogônica travada por deuses e heróis míticos para trazer à Terra um império baseado no símbolo do Sol, visando reestabelecer não somente a ordem harmônica das coisas, mas também a luz e o conhecimento. Essa passagem encontra ressonância com o pano de fundo amarelo do desenho, tendo em vista seu caráter expansivo.

É nítida, neste aspecto, a identificação entre Dom Quixote e Drummond, o gauche do “Poema de Sete Faces”.

Sendo a obra do gauche uma maneira de interferir na realidade, erige-se ela própria como uma realidade autônoma. A obra poética do gauche é essa concreção saída da defasagem entre o Eu e o Mundo, e que se constitui numa extensão do autor em busca de um elemento reparador ou descritivo de seu conflito. (SANT’ANNA, 1980, p. 24)

O poeta parece experimentar o mesmo desajustamento diante do mundo que a personagem cervantina. E assim como Dom Quixote encontra uma saída através do devaneio, o poeta, que se auto-denomina gauche, tem, em sua obra, um caminho para encontrar a sua realidade aceitável.

Pode-se conjeturar o motivo de Drummond nomear o seu Soneto de “Soneto da Loucura”. No que tange à loucura, segundo Foucault , em seu livro História da Loucura na Idade Média, a partir do momento que o homem se apega a si mesmo, ele se ilude, surgindo, então, o primeiro sinal da loucura (1972). Porém, ainda resta pensar na razão pela qual o autor optou por um soneto – e, especificamente, um soneto alexandrino. Uma das possibilidades seria a convergência entre o estilo clássico de criação poética, sendo em si um modo racional de expressão, com a busca do eu poético pela harmonia e pelo conhecimento expresso no último verso com “Idade de Ouro e de Sol”.

Um soneto é uma forma fixa de escrita, que implica um trabalho artesanal. É bastante usado para explorar temas segundo uma perspectiva mais racional. É composto por dois quartetos e dois tercetos, sendo que, em geral, o último expressa uma conclusão (TAVARES, 1978). O autor explora a oposição desde o seu título, pois, em seu bojo o vocábulo soneto sugere a idéia de racionalidade, e loucura traz o sentido de irracional. Esta oposição também é trabalhada durante a construção dessa forma poética. O poeta apresentou através de seus quartetos uma crescente oposição entre devaneio e realidade, para introduzir, também gradativamente, nos seus tercetos, a predominância do devaneio.

No entanto, a busca de proporção expressa na eleição do soneto como forma resulta ineficaz: não se trata de um soneto perfeito, já que não há nenhum sinal de combinação rímica.

Esse predomínio do devaneio e tomada pela loucura da personagem tem seu apogeu no último terceto, classicamente usado para estabelecer uma conclusão. Dessa forma, em Drummond, ele serve para dar total vazão à loucura do sonhador, justificando, assim, o título do soneto. Observe-se também que ele usou uma estrutura de texto argumentativo, explorando bem as orações explicativas e finais, estabelecendo e dando base para a racionalidade do texto. Tem-se, então, uma composição que se apresenta como uma defesa da loucura, valendo-se de argumentos que a sustentam. Isso possibilita comparar o estilo de escrita, tido como nobre por excelência, com a possível visão de nobreza da loucura desse sonhador, o que leva às vozes subjetivas encontradas neste soneto. Instaladas em primeira pessoa com o eu lírico representado por Dom Quixote, falam de sua ânsia por fama e glória, de seus desejos e terminam com sua decisão pela loucura na ânsia de reviver um tempo que já passou. Embora esse eu lírico seja o próprio Dom Quixote que fala de seus anseios e de sua condição, percebe-se que há um certo distanciamento que demonstra uma visão romântica do eu narrado; é como se quem relatasse fosse na realidade um observador. Tem-se a impressão de que se marca uma distância crítica entre o sujeito, que comete grandes feitos e o olhar que o apresenta. Este “eu” que não possui uma visão clara das coisas, como foi apresentado na primeira estrofe, e que termina enlouquecido na última, parece ter a “ajuda” ou “auxílio” de uma visão em terceira pessoa na composição do soneto, que embora esteja em sua totalidade em primeira pessoa, possui a característica da observação atenta e distanciada da terceira pessoa. Um possível motivo para essa ocorrência seria o espelhamento do autor (Drummond) na personagem. Ao tratar da inaptidão do Eu (Quixote) versus Mundo, o poeta dá vazão ao espelhamento de si mesmo enquanto gauche, uma vez que sua incompreensão frente à realidade das coisas e entre a oposição dessa realidade, em relação aos seus anseios, o faz se identificar com a personagem narrada. Sobre o gauchisme, Sant’anna, em seus estudos sobre o tema, afirma que “caracteriza o gauche o contínuo desajustamento entre a sua realidade e a realidade exterior. Há uma crise permanente entre o sujeito e o objeto que, ao invés de interagirem e se completarem, terminam por se oporem conflituosamente” (1980, p. 38).

Encontra-se convergência no diálogo deste primeiro poema e primeiro desenho. Ambos apresentam e descrevem características de Dom Quixote. Esta confluência se apreende desde os respectivos títulos: “Soneto da Loucura” para Drummond e “Dom Quixote de cócoras com idéias delirantes”, para Portinari. Como já dito anteriormente no caso do soneto, mas que também se confirma no desenho, os títulos são um prenúncio daquilo que será apresentado pelos dois artistas. Ao atentar para os vocábulos “loucura” e “delirante”, por loucura, segundo Erasmo de Rotterdam, entende-se “um sutil relacionamento que o homem mantém consigo mesmo” (apud FOUCAULT, 1972, p. 24). Foucault enriquece esse pensamento ao dizer que a loucura não diz respeito à realidade do mundo, mas sim à realidade que o homem acredita existir (1972). Já alucinante é o que faz perder o tino, a razão, o entendimento. Observe-se que o louco é dominado pela paixão intensa, assim como por “delirantes” implica a idéia de algo apaixonante, e que o delírio, ou alucinação é, em suma, ilusão, fantasia e devaneio. Não somente os títulos dialogam entre si, em vista de o devaneio estar presente também no conteúdo do poema, pois logo na primeira estrofe o eu lírico declara que sua casa “é rica de quimera”. Esse espaço compreendido como o dos sonhos, rico em ilusões, também será encontrado na estrutura do desenho, que tem um fundo amarelo, que apresenta um deslocamento da realidade, ou um movimento de transcendência que denuncia a expansão do devaneio do sujeito, reafirmado pela cor vermelha que revela um apaixonado sem controle. Um aspecto que pode confirmar isso é o fato de os pés de Dom Quixote, no desenho, não possuírem o apoio do chão, que seria um elemento real. Ao contrário, eles estão sobre o suporte do amarelo, cor da expansão, que se pode entender pela expansão da loucura, da sua entrega ao devaneio.

A mesma dificuldade de percepção do mundo empírico no poema é encontrada no desenho, caracterizado pelo olhar visionário que parece olhar para um outro mundo. Inclusive, o próprio título do mesmo remete a esta idéia, visto que para a psiquiatria e para a psicologia a alucinação é tida como a percepção de um objeto inexistente. São essas imagens desordenadas, que na realidade não existem e que estão em seus sonhos apaixonados, que se encontram em sua cabeça. Por isso a sua dificuldade de abarcar o mundo real. No amarelo também é possível apreender a glória buscada por ele. Este croma tanto vitaliza o campo semântico da “glória eterna” que se deseja, como também é tido como a representação da transcendência, de forma que se tem a presença de Quixote envolvida por essa cor que representa aquilo por que ele anseia, aquilo que está diluído na distância, que é inapreensível aos olhos, que transcende os sentidos. Agora, é interessante observar que enquanto em Drummond apresenta-se uma loucura crescente, ou seja, uma razão que vai cedendo espaço para a loucura até terminar no último terceto como que já possuído pelo devaneio; tem-se a impressão de que Portinari já o situa neste momento. No desenho ele está fisicamente abrasado, vislumbrando seus sonhos, traduzindo um comportamento de obsessão, como é demonstrado tanto pelo seu desalinho quanto pelo seu desequilíbrio. Percebe-se novamente um rebaixamento presente na actorialização composta pelo corpo e ações.

O diálogo entre as releituras de Cervantes é entretecido pelo jogo de 52 oposições em que Dom Quixote de La Mancha é apresentado, pelos dois artistas, como um sujeito que recusa o mundo da práxis e deixa-se dominar pela imagem ideal do cavaleiro andante, com uma missão cosmogônica de trazer luz e ordem ao mundo.

Em suma, pode-se perceber, neste primeiro conjunto, a visão de cada artista em sua criação. Carlos Drummond de Andrade em “Sol baixe lá das alturas” faz uso de um adynaton, uma figura de linguagem, por meio da qual, segundo Lausberg, a “noção ‘nunca’ é posta em termos concretos pela intervenção de uma ‘impossibilidade’ da Natureza” (2004, p. 149). Destarte, apresenta-se a retórica do impossível, uma vez que não há a possibilidade de que o Sol deixe o seu lugar. Ao lançar mão desta figura de linguagem que remete à figura quixotesca, o poeta deixa transparecer a impossibilidade da realização dos sonhos desta personagem. Quanto a Portinari, ao mesmo tempo em que apresenta um traçado forte, não trabalha muito a profundidade; percebe-se que o espaço do corpo não se encontra totalmente preenchido. Trata-se de uma poética minimalista, que desvela conceitos visuais elementares, que remete a desenhos infantis, onde se destacam a pureza, o ser ingênuo e o primitivo; que se entrega ao devaneio em busca do impossível. Pode-se dizer que poema e desenho se completam, a ponto de a palavra poética sacramentar o discurso plástico-pictórico e vice-e-versa.

Inclusive, o devaneio do sujeito encontra consonância nas três obras tratadas nesta análise. Nota-se, no desenho a expressão de um olhar visionário, como citado anteriormente. No poema, o devaneio é apreendido pelo eu lírico que assume a voz de Dom Quixote e afirma que sua “casa pobre é rica de quimera”: É possível inferir que o devaneio é valorizado a ponto de a personagem não dormir e encontrar-se “abrasado” em uma “fervida obsessão de que enfim a bendita Idade de Ouro e Sol baixe lá das alturas”. Desenho e poema remetem à passagem do texto-fonte em que Dom Quixote é tomado pela loucura – trecho citado na epígrafe desta análise. Foucault, em História da Loucura na Idade Clássica, afirma que a loucura seria, entre outras, a fixação das idéias (1972, p. 318). E é justamente esta a perspectiva que se obtém do sujeito, neste momento, retratado pela intersemioticidade (prosa, desenho e poema).

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1 “A idéia de um paraíso a alcançar, depois, mais tarde, ao fim de alguma coisa – em todo caso, no futuro – ou a intuição de um paraíso perdido, esquecido lá para trás e do qual o homem teria saído ou sido expulso, são as formas mais comuns de manifestação religiosa da vontade utopia.” (COELHO, 1985, p. 15)

 

Devaneio x Realidade: uma leitura intersemiótica de Candido Portinari e de Carlos Drummond de Andrade sobre Dom Quixote de La Mancha, Katya Motta. São Paulo, Universidade Presbiteriana Mackenzie, 2007




 

O “mosaico de citações” do poeta gauche

[…]

A relação entre Portinari e Drummond torna-se mais próxima ainda, quando em  1972, em virtude de seus 70 anos de idade, Drummond lança um livreto com 21 poemas,  alusivos às 21 gravuras pintadas pelo amigo, no ano de 1956, a pedido da Editora José Olympio  para a provável edição brasileira de D. Quixote, projeto que não se concretizou. A obra foi  publicada em 1973 com o nome: Quixote e Sancho, de Portinari, em As impurezas do branco. Além dos poemas, os desenhos são acompanhados por trechos da obra de Cervantes, que serviram de inspiração para Portinari71.

A construção desses 21 poemas nos revela que Drummond foi um leitor atento de  Dom Quixote de la Mancha (1605), do espanhol Miguel de Cervantes (1547-1616) e dos  cartões que compõem a série Quixote e Sancho, de Portinari. Ele pode ser lido como um todo  coeso e coerente, ou de forma independente e aleatória, pois se trata de peças únicas. Para  ilustrar essa parceria entre poeta e pintor, poesia e pintura escolhemos o primeiro poema do  livro para conhecer “Soneto da Loucura” (OC, 2002, p. 743).

O indivíduo moderno, múltiplo e contraditório, diante dos confrontos com a vida,  vê-se diante de sensações e sentimentos que fogem ao seu controle. Tudo aquilo que não se  entende, não se domina e foge aos padrões sociais é conhecido como loucura. Nossa sociedade  forjou eminentemente homens pragmáticos e condena se não o for. O mundo precisa de loucos, não estamos falando de doentes mentais, mas de sujeitos ousados, irreverentes e audazes que  busquem caminhos menos burocráticos para se viver. A previsibilidade e a individualidade são  marcas de nosso século. Precisamos de loucos, sobretudo daqueles que fazem uso da palavra  como os poetas, capazes de inovar, quebrar barreiras, criar pontes entre culturas distantes e  exaltar a palavra. 

O poema de versos alexandrinos apresenta uma estrutura de ordem narrativa. A  loucura da personagem Quixote é a mesma usada pela poesia drummondiana. Pressupomos que  Drummond conhecia a prosa quixotesca, leu-a e reescreveu, em forma de poesia, o que  Cervantes já havia narrado séculos antes. É que às vezes, o poeta, fica tão impressionado com  a natureza do que lê, que se sente impelido a reescrever, a partir de sua percepção e de seus  valores. Ele só precisa tomar cuidado para recriar e não imitar seu antecessor.

O sujeito lírico inicia descrevendo a sua morada: uma casa “pobre”, mas rica de  “quimera”, em que ele sai pelo mundo “sem destino” com o propósito de “trovejar espantos”,  isto é, levar para longe coisas ruins. É um típico cavaleiro andante. Sua façanha será tão  grandiosa que seu nome se tornará conhecido “tal qual Pentapolim, o rei dos Garamantas”.

A cabeça desse sujeito é pura imaginação e por meio dela fervilham batalhas  “jamais vistas no chão ou no mar ou no inferno”. O desejo de todo escritor é escrever sobre  fatos que nunca foram lidos. Ele pode até reescrever, mas terá que ser sob sua pespectiva. É  dessa forma que ele espera alcançar a originalidade. Se a realidade tem “cheiro de alho” e afastalhe  de seus devaneios, o que é recolhido é tão somente “o olor da glória eterna”, ou seja, o  aroma da vitória. É preciso desejá-la, seja durante o processo criativo, seja na realidade do  cotidiano.

No primeiro terceto, o eu lírico assume a condição de cavalheiro que parte para  salvar milhares de donzelas que há pelo planeta, junto com seus instrumentos: “rocim, corisco,  espada” e o “grito”, pois caso nada funcione para sua defesa é preciso correr e gritar. A  ludicidade de tais instrumentos unidos ao elemento de fina ironia “grito” dão a tônica do poema.  Coincidência ou não, seu companheiro de viagem tem uma característica igual ao eu lírico  drummondiano: é torto e tem ferro em sua composição. O sujeito que narra a sua trajetória, que  se alimenta de “nuvens”, e seu companheiro reconhecem-se em suas tortuosidades e devaneios  esperam, sem dormir, pela “Idade do Ouro” - período do início da humanidade em que  predominava, quando o homem era puro e vivia em meio a paz, harmonia e a prosperidade.

É preciso observar que para além da coerência com as vinte e uma imagens de  Portinari, os poemas mantêm uma relação cronológica com a narrativa (“Soneto da Loucura” é  um exemplo), revelando uma maneira drummondiana de desler Cervantes.

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71 Há edições especiais desses poemas e desenhos. CERVANTES. PORTINARI, DRUMMOND. D. Quixote. Rio de Janeiro, Fontana, 1978.

CERVANTES. PORTINARI, DRUMMOND. D. Quixote. Rio de Janeiro: Sul América Seguros, 1987.

Carlos Drummond de Andrade: O poeta na condição de leitor, Luciana Silva. Fortaleza, Universidade Federal do Ceará, Centro de Humanidades, Programa de Pós-Graduação em Letras, 2021.