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quinta-feira, 30 de novembro de 2023

Avós e netos


 

Diz o avô   |  LUÍSA DUCLA SOARES

 

Tens cabelos brancos.
Mas porquê, avô?
Caiu muita neve
na estrada onde vou.

Tens rugas na face.
Mas porquê, avô?
Bateu muito sol
na estrada onde vou.

Tens olhos baços.
Mas porquê, avô?
Pousou nevoeiro
na estrada onde vou.

Tens calos nas mãos.
Mas porquê, avô?
Parti muita pedra
na estrada onde vou.

Tens coração grande.
Mas porquê, avô?
Nele mora a gente
que por mim passou.

 

Luísa Ducla Soares, A Cavalo no Tempo. Porto, Porto Editora, 2019

 


Proposta de escrita

O poema “Diz o avô” in A Cavalo no Tempo de Luísa Ducla Soares mostra um grande carinho pelo avô.

Escolhe uma pessoa da tua família ou do teu grupo de amigos que admires muito.

Escreve um poema semelhante ao de Luísa Ducla Soares, no qual faças a caracterização dessa pessoa.

 

(Recurso complementar do Bloco n.º 59 de Português 5.º ao 6.º ano. Projeto #EstudoEmCasa, 09-06-2021)

 



O avô e o neto  |  FERNANDO PESSOA

Ao ver o neto a brincar,
Diz o avô, entristecido:
“Ah, quem me dera voltar
A estar assim entretido!

“Quem me dera o tempo quando
Castelos assim fazia,
E que os deixava ficando
Às vezes p’ra o outro dia;

“E toda a tristeza minha
Era, ao acordar p’ra vê-lo,
Ver que a criada já tinha
Arrumado o meu castelo."

Mas o neto não o ouve
Porque está preocupado
Com um engano que houve
No portão para o soldado.

E, enquanto o avô cisma, e, triste,
Lembra a infância que lá vai,
Já mais uma casa existe
Ou mais um castelo cai;

E o neto, olhando afinal,
E vendo o avô a chorar,
Diz, “Caiu, mas não faz mal:
Torna-se já a arranjar."

 

Fernando Pessoa (1926), in Poesia 1018-1930, Manuela Parreira da Silva, Ana M.ª

 

 

Linhas de leitura do poema “O avô e o neto”, de Fernando Pessoa

 

  • O avô sente tristeza e saudade. Sente também o desejo impossível de regressar à infância, ao tempo das brincadeiras, em que a única tristeza era alguém poder estragar-lhe uma brincadeira começada.

 

  • O neto não ouve o avô exatamente porque as suas preocupações são apenas as brincadeiras, tudo o resto é para ele incompreensível ou mesmo inexistente.

 

  • A criança, sempre preocupada com a sua brincadeira, pensa que as lágrimas do avô se devem ao facto de o castelo ter caído. É por isso que, para o consolar, o neto lhe diz que não faz mal, que se torna a montar.

 

  • O poema mostra-nos a grande diferença entre o mundo dos idosos e o mundo das crianças, um cheio de tristeza, solidão e melancolia, outro cheio de despreocupação e alegria. Mostra-nos também uma realidade a que ninguém pode fugir - a passagem do tempo - porque o avô também já foi menino e o menino há de ser velho também.

 

  • Relativamente à estrutura formal, o poema é constituído por seis estrofes de quatro versos (quadras): os versos são de redondilha maior (sete sílabas métricas); a rima é cruzada, pois apresenta o esquema rimático abab.

 

(Adaptado de Plural 7 – Manual. Língua Portuguesa. 7.º ano do Ensino Básico [Exemplar do Professor], Elisa Costa Pinto e Vera Saraiva Baptista. Lisboa, Lisboa Editora, 2011, p. 185. ISBN 978-972-680-642-4)

 

O avô minguante, Daniela Leitão. Iilustração de Catarina Silva. ISBN 978-989-777-626-7


O Avô Minguante  | DANIELA LEITÃO

 

O meu avô chamava-se Mário. Antes de o conhecer, sei que foi muitos rios. Foi Mário, o carteiro, Mário, o marinheiro, e foi sempre Márinho para toda a gente. Mas antes de saber que tinha sido carteiro ou marinheiro, sabia que era rio, o meu avô, e que tinha sempre as respostas para todas as minhas perguntas. Eram sempre respostas muito curtas porque o meu avô Mário gostava muito de palavras e, por isso, usava-as pouco e devagar, "para não lhes estragar a poesia".

O meu avô era muito grande e muito alto. Tinha braços tão longos que um dia lhe perguntei se poderiam dar a volta ao mundo. Respondeu-me que o mundo andava tão pequenino, que talvez até fosse possível. O meu avô usava uma camisa aos quadrados com um bolso ao peito, onde guardava um lápis de carvão. Tinha mãos enormes e ásperas que cheiravam a casca de laranja ou a páginas de livros antigos, mas nunca aos dois ao mesmo tempo. O meu avô era muito calado e muito sério. Vivia numa casa pintada de azul que de um lado tinha um pomar e do outro um campo de trigo dourado de perder de vista. Do portão do jardim, via-se primeiro o pomar de laranjas onde o meu avô nunca quisera plantar outra coisa. Um dia, perguntei-lhe se não se importava de as poder comer durante metade do ano. Respondeu-me que as laranjas lhe tinham ensinado a respeitar o tempo das coisas. Dentro de casa, existia uma divisão que servia para tudo. Ao centro estava uma lareira que o meu avô acendia todos os dias no inverno. De um lado, via-se um fogão, um lavatório e uma mesa que o meu avô usava para cozinhar e também para comer. A um canto, tinha uma cama coberta de almofadas e, ao lado, um cadeirão onde se sentava para ler. Não tinha televisão, pilhas e pilhas de livros. Outro dia, perguntei-lhe se me podia contar as histórias daqueles livros. O meu avô respondeu-me que eram todos de poesia e escolheu um para me mostrar que se chamava mesmo assim. Eu estava habituado aos livros da escola com as páginas cheias de palavras, como um grande nevoeiro, mas os livros de poesia não eram assim. Os poemas eram nuvens pequeninas e às vezes até havia páginas com três ou quatro palavras! O meu avô disse­ me que era mesmo isso que gostava na poesia. Explicou-me que existem palavras para quase tudo. Palavras que dão nomes às pessoas, às coisas e aos animais. Palavras que são cores, têm cheiro ou sabor. Palavras que carregam sentimentos e palavras que não dizem nada. Existem palavras que são precisas para colar umas palavras às outras. Cada pessoa aprende as palavras à sua maneira e nem todas as palavras significam o mesmo para toda a gente. E embora haja uma palavra para quase tudo, às vezes, pode acontecer-nos ficarmos sem palavras. O meu avô ensinou-me que a poesia é o que acontece quando queremos falar, mas não queremos dar grandes explicações.

Quando era pequeno, passava muito tempo na casa do meu avô. A minha casa, onde eu vivia com os meus pais, era demasiado grande, cheia de curvas e becos sem saída, por isso, gostava mais da casa pequenina do meu avô. , estava tudo à mão de semear - podia brincar em frente à lareira e vê-lo sentado no cadeirão com um livro nas mãos, o lápis ao peito e o olhar em mim. A minha mãe cansava-se rápido das minhas perguntas e, em vez de me responder, dizia para as fazer ao meu avô. Eu fazia. O meu avô nunca se cansava e tinha sempre resposta para mim. Então, eu ficava.

Nos dias de semana, o meu avô ia buscar-me à escola. Lanchávamos e fazíamos os trabalhos de casa, mas eu não gostava de os fazer. Não percebia porque é que depois de um dia inteiro na escola, ainda tinha de trazer a escola para casa. Os textos de português demasiado longos cansavam-me. Os problemas de matemática cansavam-me. Os enigmas de ciências cansavam-me. O meu avô conhecia-me bem e quando via o meu cansaço a chegar, levantava-se da mesa devagarinho, escolhia um livro e punha-se a lê-lo em voz alta. Uma vez, disse-me que acreditava que a poesia também era uma forma de aprender.

Aos sábados de manhã, o meu avô ia buscar-me a casa dos meus pais. Segurava a minha mão direita com a sua mão esquerda e subíamos até à vila. Começávamos pela padaria do Manel, onde comprávamos o pão e um pastel de feijão, que não chegava sequer até ao talho da D. Isaura. A entrada, o meu avô perguntava à D. Isaura então, como é que vai isso. A D. Isaura chamava-o logo pelo carinho, Márinho!, e perguntava-lhe o que é que ia ser. Nos dias em que a mãe não precisava de nada para a canja de galinha, o meu avô respondia nada, os bons dias. Continuávamos pela rua acima, até chegarmos à peixaria do Sr. Hermínio. O meu avô pescava muito e, por isso, do Sr. Hermínio trazia o isco. O Sr. Hermínio piscava-me o olho e dizia sempre que o isco estava tão fresco, tão fresquinho, que todo o peixe o ia querer trincar. A seguir, comprávamos o jornal no quiosque da Maria e do e terminávamos a volta no café do Sr. Jorge, para o meu avô beber uma bica. Se lhe pedisse muito, deixava-me lamber a colher e inventar palavras na sopa de letras do jornal. Certo sábado, estávamos sentados no café e perguntei-lhe: Porque é que o Manel sempre tinha sido padeiro? E a D. Isaura talhante e o Sr. Hermínio peixeiro? A Maria e o sempre foram donos do quiosque? E o Sr. Jorge? tinha nascido sentado atrás do balcão? Sem tirar os olhos do jornal, o meu avô respondeu que pessoas que a vida que têm é a vida que lhes basta.

Depois do passeio pela vila, almoçávamos em casa dos meus pais e íamos à praia. Lembr me muito bem da primeira vez que fomos ver o mar. As vezes memórias que temos porque vimos uma fotografia ou porque alguém nos contou a história - mas este não é o caso. O meu avô disse­ me que toda a gente sabe que o sol na praia brilha com mais força e até havia histórias de pessoas que de tanto olhar o sol, queimavam os olhos. Por isso, na primeira vez que fomos ver o mar, levava uma mão sobre os meus. Quando a tirou devagarinho e vi o mar pela primeira vez, pensei que era grande - tão grande quanto o meu avô! Naquele dia, o meu avô pediu-me para não me esquecer de que lado da memória guardava o mar. É por isso que sei que esta memória é minha: nunca me esqueci onde é que a guardei. Quando chegámos a casa, lembrei-me de lhe perguntar se tinha sido perigoso ser marinheiro. Disse-me que tinha sido cozinheiro da Marinha, mas que até na cozinha se sentia o medo. Pedi-lhe que me mostrasse os sítios onde tinha ido. Abriu um mapa cheio de em cima da mesa e traçou com o dedo um círculo à volta de um continente . Disse-me que se chamava África. Perguntei-lhe o que é que tinham feito em África. A esta pergunta o meu avô não respondeu logo. Guardou devagar o mapa por entre as páginas de um livro. Olhava para mim, ainda mais sério do que o costume quando me disse que em África, em África não tinham feito nada de bom. Pelo silêncio que se seguiu, percebi que era melhor não fazer mais perguntas sobre as viagens e as marés. Quis saber sobre quando tinha sido carteiro. O meu avô contou-me que distribuía cartas pela vila numa lambreta vermelha e, às vezes, para lhe fazer companhia, levava o cão preto dos vizinhos entre as pernas com as patas apoiadas no guiador. Perguntei-lhe onde levava as cartas. Respondeu que umas iam na mala da lambreta, mas que as mais importantes as encontrava no meio dos livros.

Eu e o meu avô Mário passámos muitos anos assim. Durante todos eles, sempre achei que o meu avô muito grande, com braços de abraçar o mundo e mãos-de-laranja e poesia, nunca havia de envelhecer mais. O meu avô seria aquele avô para sempre. Mas as horas somam-se sempre em dias, os dias multiplicam-se em semanas, depois em meses e os meses aninham-se nos anos.

Quando fiz 8 anos, a minha mãe deixou-me ir brincar para casa do Miguel. Saímos sozinhos da escola e tudo. Foi tão divertido que comecei a pedir à minha mãe para ir brincar a casa do Miguel mais vezes. Aos poucos, o meu avô deixou de me ir buscar à escola e me ia buscar a casa dos pais ao sábado de manhã. Dávamos a nossa volta pela vila e, depois de almoço, ficávamos a ver o mar. Num desses sábados, a seguir ao pão do Manel e aos bons dias da D. Isaura, reparámos que o Sr. Hermínio não abriu a peixaria. No sábado seguinte, a peixaria continuou fechada e o avô sem isco para pescar. O meu avô tinha passado aquela semana muito sério e mais calado que o costume e olhava o horizonte com os olhos semicerrados como se procurasse qualquer coisa. Achei que estava triste por não poder pescar e que olhava o horizonte com saudades. Quando ao terceiro sábado a peixaria continuou fechada, perguntei ao meu avô o que tinha acontecido ao Sr. Hermínio. Sentou-se devagarinho numa cadeira da esplanada e disse-me ainda mais devagarinho que às vezes pessoas que levam a vida que lhes basta, mas que não lhes basta o tempo que tiveram para a viver. Não percebi o que ele quis dizer, mas senti-me muito triste, como se o mundo tivesse encolhido de repente. No sábado seguinte, a peixaria voltou a abrir e ao balcão estava o filho do Sr. Hermínio. O peixe vendeu-se como sempre, mas o meu avô disse-me depois que o isco nunca mais foi tão fresco.

Tinham-se passado poucos meses deste último sábado, quando o meu avô me pediu que o fosse ajudar a colher as laranjas. Achei estranho, porque ele nunca tinha precisado de ajuda antes. Quando cheguei ao pomar, vi-o ao longe, em cima de um banco e de braços esticados. Perguntei­ lhe logo porque é que precisava da minha ajuda. Apoiou uma mão no meu ombro para descer do banco, colocou as laranjas que tinha nas mãos dentro de um saco de plástico e só depois é que disse que não tinha força para chegar onde era preciso. De repente, achei-o menos grande do que o costume, mas abanei a cabeça para afastar um pensamento tão tonto. O meu avô era enorme e seria sempre enorme.

Não voltei a pensar mais no assunto até ao dia em que o encontrei a dormitar no cadeirão, com um livro aberto no colo. Bati devagar na porta da entrada, para o avisar que tinha chegado. Acordou logo e sorriu-me. Desta vez, pareceu-me mesmo pequenino. Antigamente, o cadeirão parecia quase não ter espaço para tanto avô, mas agora, parecia engoli-lo quase inteiro. Pediu-me que me sentasse ao seu lado e que o ajudasse a acabar de ler aquele poema. Disse-me que não via bem o suficiente para dar conta das letras mais miudinhas. Naquele dia, ganhei muitas perguntas novas. Se eu estava a crescer, será que o meu avô estava a diminuir? Seria possível que o meu avô enorme, pudesse algum dia ficar mais pequenino? Será que poderia ficar pequenino até desaparecer? E se desaparecesse, quem é que ia responder às minhas perguntas? Precisava muito de saber todas as respostas, mas naquele dia, guardei as perguntas todas para mim.

Depois daquele dia, o mundo não parou de girar. As horas viravam-se em anos e eu não parava de crescer. A mãe queixava-se que a roupa não me servia. Os ténis magoavam-me os dedos gordos dos pés. não brincava no parque, podia ir com os meus amigos onde quisesse. Até podíamos ir à vila comer bolos com as moedas de dois euros que o pai dizia que eram raras. Às vezes, os meus amigos combinavam ir andar de bicicleta no bosque ao sábado de manhã. Ficava sempre muito dividido, porque queria muito ir com eles, mas também queria muito ficar com o avô. Só que sempre que eu não ia eles subiam às maiores árvores, as raposas saiam das tocas e deixavam-se ver e os sapos davam os maiores saltos para o lago. Por isso, eu não resistia. Quando lhe perguntei, o meu avô disse-me que não se importava porque agora era a minha vez de conhecer o mundo.

Houve um sábado, em que disse aos meus pais que ia ao bosque, mas decidi fazer uma surpresa ao meu avô. Saí de casa e fui até ao pomar. Havia muitas laranjas caídas no chão e eu achei muito estranho, o meu avô nunca desperdiçava uma laranja que fosse. Entrei em casa, mas não o encontrei. Dei a volta ao jardim até ao campo de trigo. Muito lá ao fundo, pequenino como uma miragem, lá estava ele. Chamei-o três vezes, mas ele não ouviu nenhuma. Corri na sua direção e quando cheguei ao dele, aninhei a minha mão direita na sua mão esquerda. Senti que a minha mão não cabia tão bem na dele. Foi neste momento que lhe perguntei porque é que sempre me tinha parecido tão grande e agora me parecia tão pequeno. No meio da seara de trigo, o meu avô, sem nunca deixar de olhar em frente, contou-me que começamos a vida rodeados de estímulos. Queremos conhecer tudo: todas as cores, todas as flores e animais, todos os objetos, todas as pessoas, todas as histórias. Devagarinho, começamos a conhecer o mundo pelas palavras e, por isso, temos muitas perguntas. À medida que vamos crescendo, vamos encontrando as respostas que procurávamos. Vamos guardando todas dentro de nós. Quando começamos a envelhecer, percebemos que afinal não sabemos tudo, mas o que sabemos, queremos partilhar com quem não sabe ainda nada. É a quem não sabe nada que ainda parecemos muito grandes e com muita sabedoria. Contou-me que os avós parecem grandes quando os netos precisam que se pareçam grandes, e que têm as respostas todas quando os netos são perguntas. Quando os netos começam a apanhá-los em tamanho e sabedoria, estão prontos para começar a minguar. Disse-me que todos os avós são minguantes, porque todos os netos são crescentes, e é nesse cruzamento que se encontram tão bem. Apertei-lhe a mão com força e quis ficar ali para sempre. Queria que o meu avô fosse aquele avô para sempre, mas lembrei-me que um dia tinha desejado o mesmo e que a mão que me segurava agora era uma mão diferente da mão que um dia me segurou. Apertei­ lhe a mão ainda com mais força e quis fazê-lo prometer que não ficaria mais pequenino, que não desapareceria. de cima, olhou para mim, ainda em baixo e disse-me que não podia prometer­ me uma coisa dessas, mas que me podia contar um segredo: "O tempo vai continuar a passar. Tu vais continuar a crescer e eu vou continuar a minguar. Um dia vou ser muito pequenino, vou deixar de ser um livro inteiro e passarei a ser apenas um poema, ou talvez várias palavras. Mas para ti, serei apenas uma. Daqui a muitos anos, essa palavra pode ganhar significados diferentes, mas eu serei essa palavra primeiro e para sempre. E, por isso, é certo que nunca vou desaparecer". 

Daniela Leitão, O avô minguante. Lisboa, Planeta de Livros Portugal para Pingo Doce – Distribuição Alimentar, SA, 2022


Iilustração de Catarina Silva


Crítica ao livro O avô minguante, de Daniela Leitão

 

O tempo encolheu o avô

 

Um avô contido nas palavras, mas que sabia todas as respostas. O tempo fê-lo minguar. Para o neto, será sempre grande. Imenso.

 

De nome Mário, o avô desta história colhe laranjas e lê poesia. Fora carteiro e marinheiro. O neto descreve-o assim: “O meu avô era muito grande e muito alto. Tinha braços tão longos que um dia lhe perguntei se poderiam dar a volta ao mundo. Respondeu-me que o mundo andava tão pequenino que talvez até fosse possível.”

Respondia a tudo o que o neto lhe perguntava, exceto no dia em que evitou dizer-lhe o que tinha feito em África: “A esta pergunta o meu avô não respondeu logo. Guardou devagar o mapa por entre as páginas de um livro. Olhava para mim, ainda mais sério do que o costume, quando me disse que em África não tinham feito nada de bom. Pelo silêncio que se seguiu, percebi que era melhor não fazer mais perguntas sobre as viagens e as marés.”

Com o avançar do tempo, à medida que o menino crescia, o avô parecia encolher. “Antigamente, o cadeirão não tinha espaço para tanto avô, mas agora parecia engoli-lo quase por inteiro (…) Disse-me que todos os avós são minguantes porque todos os netos são crescentes e é nesse cruzamento que se encontram tão bem. Apertei-lhe a mão com força e quis ficar ali para sempre. Queria que o meu avô fosse aquele avô para sempre.”

Um livro terno sobre o avançar do calendário, sobre livros e palavras e ainda sobre as relações especiais entre avós e netos.

O Avô Minguante não é o resultado de uma experiência específica com um avô, mas sim uma colagem que construí com base em referências indiretas que tenho dessa relação, por falta de ter tido a oportunidade de experienciar essa palavra, isto é, de ter conhecido os meus avôs. É a história de uma relação imaginada entre um avô e um neto e, no fundo, um conto sobre a passagem do tempo e sobre a forma como significamos as nossas palavras”, descreve por e-mail a autora deste texto vencedor da 9.ª edição do Prémio de Literatura Infantil do Pingo Doce, Daniela Leitão.

Natural de Almada e licenciada em Ciências da Comunicação pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, diz ainda: “Este avô e este neto têm uma relação muito especial, que gira em torno dos livros, das histórias de vida do avô e das memórias que os dois constroem em conjunto. É nesse entendimento mútuo que ambos encontram serenidade no confronto inevitável com a passagem do tempo e o ciclo onde uns crescem e outros minguam.”

Pretende então com este livro “relembrar-nos que é nas histórias que ouvimos e nas memórias que protagonizamos que damos significado às nossas palavras, de tal forma que elas se tornam só nossas e, por isso, resistentes a tudo e impossíveis de desaparecer”.

Diz ter esta narrativa guardada há muito tempo: “Queria acima de tudo que a história que escrevi pudesse ter uma vida para além da vida que tem em mim.” Muito contente com a edição final do texto, não consegue imaginá-lo de outra forma. E louva o trabalho da ilustradora, Catarina Silva: “A Catarina conseguiu captar maravilhosamente a mensagem do texto e vê-lo reescrito pelo seu olhar sensível e talentoso deixou-me muito emocionada.”

Sobre si própria, recorda: “Sou uma pessoa para quem as histórias habitam as suas memórias de infância mais felizes. A minha mãe apresentava-me muitos livros e o meu pai lia-me uma história todas as noites. Foi um ritual que durou alguns anos e que me levou a conhecer muitas histórias, a repetir a leitura de muitas outras e, em última instância, a desenvolver uma relação muito emocional com os livros. Foi na partilha oral de histórias e na leitura que surgiu a primeira invocação para o sonho da escrita.” Daí a dedicatória feliz: “À minha mãe, que me ensinou os livros. Ao meu pai, que mos leu.”

 

Iilustração de Catarina Silva

Celebrar o primeiro livro

Catarina Silva, também vencedora do prémio pela ilustração (são 25 mil euros para cada uma), diz ao Público que se identificou logo com o texto: “É um texto muito bonito e sensível que fala sobre a finitude do ser humano e da forte relação de neto e avô. Também eu sou neta de uma avó que considero muito minha amiga e que vejo ficar mais pequenina com o passar do tempo.”

À pergunta sobre se foi fácil ilustrar a história, responde: “Não diria fácil, eu ainda estou a começar o meu caminho neste mundo da ilustração, ainda tenho muitos medos e inseguranças e ainda estou à procura e a experimentar linguagens gráficas.”

E diz ter-se divertido: “Assim que cheguei à linguagem que queria e que soube que tinha vencido a fase de ilustração, comecei logo a trabalhar as imagens com muito afinco, fiquei muito entusiasmada, então trabalhava de manhã à noite, as imagens foram surgindo e o livro foi-se construindo assim, fluiu bem.” E acrescenta: “A Daniela deu-me muita liberdade e confiou no meu trabalho, isso foi importante para mim.”

Ainda que pudesse, não alteraria nada ao trabalho feito, mesmo se considera que “há sempre coisas que com o passar do tempo vamos encontrando e que podiam ser alteradas ou melhoradas”. No entanto, conclui: “Foi o nosso primeiro livro e devo celebrá-lo como tal e sentir orgulho por ser o primeiro — não alteraria nada agora.”

Formada em Pintura na Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa, tem desenvolvido projetos na área de cenografia e figurinos, movimento e performance. Mais recentemente, descobriu “um enorme carinho pela ilustração, pelos álbuns ilustrados e pela cerâmica”.

Neste trabalho, usou técnica mista, fez as composições a lápis e depois trabalhou a cor digitalmente.

Sobre os planos para aplicar o dinheiro ganho, discorre: “São tempos difíceis os que estamos a viver agora. Certamente que o dinheiro vai dar muito jeito para a vida acontecer e também gostava de investir uma parte em livros de artistas que me inspiram e material para conseguir produzir mais trabalho e projetos.”

Segundo a organização do prémio, “as oito obras previamente premiadas traduziram-se em mais de 149 mil livros lidos por milhares de crianças”. Para esta edição, houve cerca de “4 mil candidaturas, repartidas pelas categorias de texto e ilustração”. Títulos premiados nas anteriores edições, da mais antiga para a mais recente: De onde Vêm as Bruxas?; Orlando — O Caracol Apaixonado; O Meu Livro Tem Bicho; Há Monstros no Túnel; O Narciso com Pelos no Nariz; O Protesto do Lobo Mau; Leituras e Papas de Aveia; Assim como Tu.

Quanto ao avô Mário e a muitos outros, mesmo minguantes, continuarão enormes na memória dos netos.

Rita Pimenta, Público, 19-11-2022

 ***


Teolinda Gersão (foto: revista Máxima)



Avó e neto contra vento e areia  | TEOLINDA GERSÃO

 




Tinham ido à praia, porque estava uma manhã bonita. A avó vestia uma saia clara e levava o neto pela mão. Ia muito contente, e o seu coração cantava.

O neto levava um balde, porque se propunha apanhar conchas e búzios, como já fizera de outras vezes em que tinha ido à praia com a avó.

Ir à praia com a avó era uma das melhores coisas que lhe podiam acontecer nos dias livres. Por isso também ele ia contente, e o balde dançava-lhe na mão.

A praia estava como devia estar, com sol e ondas baixas. Quase não havia vento, e a água do mar não estava fria. Por isso o neto teve muito tempo de procurar conchas e búzios e de tomar banho no mar. A avó sentou-se num rochedo, e ficou a olhar o neto, por detrás dos óculos. Nunca se cansava de olhá-lo, porque o achava perfeito. Se pudesse mudar alguma coisa nele, não mudaria nada.

Olhava para ele, também, para que não se perdesse. A mãe do neto confiava nela. Deixava-o à sua guarda, em manhãs assim. A avó sentia-se orgulhosa: ainda era suficientemente forte para ter alguém por quem olhar. Ainda era uma avó útil, antes que viesse o tempo que mais temia, em que poderia tornar-se um encargo para os outros. Mas na verdade essa ideia não a preocupava muito, porque tencionava morrer antes disso.

Estava uma manhã tão boa que também a avó tirou a blusa e a saia e ficou em fato de banho. Depois tirou os óculos, que deixou em cima de um rochedo, e entrou no mar, atrás do neto, que nadava à sua frente, muito melhor e mais depressa do que ela.

– Não te afastes, dizia a avó, um pouco ofegante. Volta para trás!

A avó fazia gestos com as mãos, para que voltasse, o neto ria-se, mergulhava e nadava para a frente, e depois regressava, ao encontro dela.

A avó não sabia mergulhar, mas deixava o neto mergulhar sozinho. Ele só tinha cinco anos, mas nadava como um peixe.

No entanto nunca ia demasiado longe, nem mergulhava demasiado

fundo, para não assustar a avó. Sabia que ela era um bocado assustadiça, e ele gostava de protegê-la contra os medos.

A avó tinha medo de muitas coisas: dos paus que podiam furar os olhos, das agulhas e alfinetes que se podiam engolir se se metessem na boca, das janelas abertas, de onde se podia cair, do mar onde as pessoas se podiam afogar. A avó via todos esses perigos e avisava. Ele ouvia, mas não ligava muito. Só o suficiente.

Não tinha medo de nada, mas, apesar disso, gostava de sentir o olhar da avó. De vez em quando voltava a cabeça, para ver se ela lá estava sentada, a olhar para ele. Depois esquecia-se dela a voltava a ser o rei do mundo.

Por isso se sentiam tão bem um com o outro.

Quando saía com o neto, a avó tinha a sensação de entrar para dentro de fotografias, tiradas nos mesmos lugares, muitos anos antes. Era uma sensação de deslumbramento e de absoluta segurança, porque as coisas boas já vividas ninguém as podia mudar: eram instantes absolutos, que durariam para sempre.

Outras vezes a avó pensava que a vida era como uma lição já tão sabida, tão aprendida de cor e salteada, que ela se sentia verdadeiramente mestra. Mestra em quê? Ora, em tudo e em nada: nascimento, morte, amor, filhos, netos, tudo, enfim. A avó tinha a sensação de entender o mundo.

Embora lhe parecesse que o via agora desfocado. Sobretudo ao longe. Ah, meu Deus, tinha-se esquecido dos óculos, em cima do rochedo. Tinham de lá voltar, e depressa, a avó sem os óculos não via nada. Mas quando chegaram ao local, não estavam lá. A avó não entendia como isso pudera acontecer. Não teria sido naquele rochedo? Teria a maré subido e uma onda os arrastara? Passara alguém que os levasse? Mas a ninguém aproveitavam, e provavelmente nem tinha passado ninguém, a praia estava quase deserta, porque ainda não era verão. Ora, não era grave, pensou a avó, quando se cansou de procurar. Arranjaria outros óculos.

Contos & Recontos 7. Lisboa, Asa, 2013

Caminhou com o neto à beira das ondas, e depois subiram para as dunas à procura de camarinhas que a avó não via, mas o neto apanhava logo. Passou muito tempo e nem deram conta de se terem afastado. O neto cada vez mais feliz, com o balde onde pusera os búzios acabado de encher com camarinhas. Apesar da falta dos óculos, pensou a avó, não deixava de ser, como das outras vezes, uma manhã perfeita.

Até se levantar o vento.

Na verdade não se percebeu por que razão o céu se toldou e se levantou cada vez mais vento. Deixou de se ver o azul, debaixo de nuvens carregadas, e a areia começou a zunir em volta. O vento levantava a areia, cada vez mais alto, a areia batia na cara e era preciso semicerrar as pálpebras para não a deixar entrar nos olhos.

– Que coisa, disse a avó.

A manhã acabara, e agora iam depressa para casa.

Estariam bem, em casa, jogando às cartas atrás de uma janela fechada.

Mas, de repente, a avó não sabia onde estava. As dunas eram altas e não sabia que direção tomar. Caminharam ao acaso, voltando as costas à praia. Mas deveriam virar à esquerda ou à direita? A avó não sabia onde ficavam as casas. Não se via nada na linha do horizonte, a não ser as dunas. E, sem óculos, a avó sentia-se perdida.

– Dói-me o pé, disse o neto. Espetei um pico no pé.

– Calça as sandálias, disse a avó. Calçaram ambos as sandálias, que traziam na mão.

– Ainda dói, disse o neto. Dói o pé.

– Deixa ver, disse a avó tirando-lhe outra vez a sandália. É um espinho, sim, disse a avó, que sem óculos via bem ao perto. Mas está muito enterrado e não consigo tirá-lo. Em casa eu tiro, com um alfinete. Agora vamos depressa.

– Dói o pé, disse o neto começando a chorar.

– Já passa, disse a avó.

O vento levava-lhe a saia, a areia batia-lhes nos braços e nas pernas, subia até à cara e queria entrar nos olhos. O neto esfregava os olhos, com as mãos sujas de areia.

– Não posso andar, disse ele. Dói o espinho.

– A avó não pode levar-te ao colo, disse ela. Não tem os ossos fortes.

Arrastou-o alguns passos, pela mão. Ele chorava e escondia a cara na saia dela, para proteger os olhos do vento.

– Não posso andar, disse ele sentando-se e tapando a cara com o chapéu. Dói o pé.

– Eu levo-te um bocadinho, cedeu a avó. Mas só um bocadinho.

Contos & Recontos 7. Lisboa, Asa, 2013

Levantou-o nos braços e avançou contra o vento. Uns metros mais adiante, deviam chegar ao fim das dunas e saberia a direção das casas.

O neto era muito pesado, mas a avó não se dava por vencida. Caminhava resoluta, enterrando as sandálias na areia. Agora o caminho entre as dunas começava a subir.

E depois dessa duna, havia ainda outra duna. A avó começou a ter medo de estar perdida.

Muitos anos atrás, a avó perdera uma criança. A lembrança veio subitamente e ela não conseguia afastá-la. Sempre quisera esquecê-la, mas de repente ela voltava. Mesmo em sonhos. Uma criança ardendo em febre, e ela correndo com ela nos braços, através de um hospital labiríntico. E depois os dias passavam e ela perdia a criança.

Durante muito tempo, não soube onde estava, quando lhe vieram dizer que perdera a criança.

E agora estava outra vez perdida, com uma criança nos braços.

Já tinha vivido algo assim. A vida era só vento e areia e ela arrastando-se, lutando em vão, contra o vento e a areia.

Doíam-lhe os ossos, não aguentava carregar o peso dele. E se de repente ficasse imobilizada, estendida no chão, como já lhe sucedera mais do que uma vez? Aquela hérnia na coluna podia sair do lugar e ela ficar sem conseguir mexer-se. E se isso acontecesse e ela ficasse ali, sem poder andar? E se a criança se afastasse, sozinha, à procura de socorro, e se perdesse? Se ela perdesse a criança?

Pousou o neto, e sentou-se a seu lado na areia.

– Vamos descansar um pouco, disse ela ofegante. Põe a cabeça no meu ombro, para fugir do vento.

Apetecia-lhe chorar, mas não podia dar-se por vencida. Ele estava à sua guarda e ela encontraria maneira de voltar a casa.

Mas sentia-se perdida. O mundo era uma coisa sem direções, e desfocada.

Já vivera isso antes. Uma longa extensão de areia, deserta. E ela tão desamparada como a criança que levava. Ambas perdidas, no vento e na areia.

– Avó, olha o cão do senhor Lourenço! apontou de repente o neto, recomeçando a andar, na direção de um cão que corria para eles.

– Louvado Deus, disse a avó recomeçando também a andar. Porque então estariam salvos. O café do senhor Lourenço iria aparecer, como um farol, no meio das dunas. Bastava seguir o cão.

O neto esquecia o espinho e esquecia a dor no pé, e quase corria, alegremente, atrás do cão.

Em breve se sentavam à mesa do café, e viam o vento levantar a areia. Mas agora isso passava-se lá fora, do lado de lá da janela.

A avó pediu um café e o neto um chocolate quente. Sorriram um para o outro e o mundo voltou a ser perfeito.

Aflijo-me demais e dramatizo as coisas, pensou a avó. Afinal atravessámos o vento e a areia. E, amanhã de manhã, vou ao oculista. 

 

Teolinda Gersão, A mulher que prendeu a chuva e outras histórias
Lisboa, Sextante Editora, 2013, pp. 77-84.

 


Avó, fala-me de ti
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