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domingo, 21 de janeiro de 2024

A escrita, por Afonso Cruz

Afonso Cruz, visao.pt/jornaldeletras

 

Ao contrário do que muitas vezes se imagina, a escrita não surgiu para gravar pensamentos, sentimentos, meditações, mas essencialmente para gravar contabilidade, o peso da cevada guardada num celeiro, a quantidade de cerveja guardada em talhas de barro. A escrita surgiu para passarmos faturas e isso começou por ser feito em pedra ou em barro, materiais com alguma durabilidade que ironicamente são a grande matéria-prima das ruínas, já que outros materiais mais efémeros não duram o suficiente para isso. Os números começaram a ser escritos antes das palavras, as faturas precederam a poesia. E isto é algo que jamais perdoarei à história da humanidade.

Também, em pedra, se gravaram códigos e leis. O monólito de Hamurabi é um dos exemplos mais conhecidos. Moisés gravou em pedra os mandamentos e essa foi talvez a primeira grande ruína da escrita, pois foram partidas quase de imediato pelo próprio autor. Desceu a montanha, viu que o povo estava a adorar um bezerro de ouro e irritado partiu as tábuas. Obviamente, deste tipo de escrita, nasce o castigo, o pecado o medo, a censura. Uma sociedade deveria evoluir procurando cada vez mais liberdade porque só assim as nossas ações têm valor. Alguém que pratica a bondade porque é obrigado, não é necessariamente bondoso, quem pratica a justiça porque é obrigado, não é necessariamente justo. A compulsão deveria ser substituída pela educação, pela cultura, para poder resultar numa sociedade verdadeiramente sã.

A sedentarização trouxe-nos a escrita e esta ganhou um poder imenso, como nos diz Dylan Thomas, no poema “A mão ao assinar este papel”:

A subscrição foi submetida com sucesso!
Parte inferior do formulário
A mão ao assinar este papel arrasou    [uma cidade;
cinco dedos soberanos lançaram a sua
 [taxa sobre a respiração;
duplicaram o globo dos mortos e    [reduziram a metade um país;
estes cinco reis levaram a morte a um    [rei.(…)
A mão ao assinar o tratado fez nascer    [a febre,
e cresceu a fome, e todas as pragas    [vieram;
maior se torna a mão que estende o seu    [domínio
sobre o homem por ter escrito um    [nome.
Os cinco reis contam os mortos mas    [não acalmam
a ferida que está cicatrizada, nem    [acariciam a fronte;
há mãos que governam a piedade como    [outras o céu;
 mas nenhuma delas tem lágrimas para    [derramar.

 

O ato de escrever solidifica o pensamento, e este, muitas vezes, torna-se lei, verdade absoluta, relegando os outros ângulos de uma mesma questão, com certeza tão verdadeiros como o que foi escrito e aceito, para o campo da especulação, da mentira e dos contos para crianças. Estamos no terreno do pensamento único, do Deus único, da certeza dogmática, da verdade monolítica, uma espécie de baleia branca, que nos faz desprezar todas as outras baleias. Estas verdades inquestionáveis surgem muitas vezes sob a forma de lei económica, um fenómeno que não é exclusivo do nosso tempo. Chesterton escreveu o seguinte em 1910:

“(…) os grandes nobres que no século XIX se tornaram proprietários de minas e gestores de caminho de ferro garantiram a toda a gente com enorme seriedade que o não faziam por gosto, mas devido a uma Lei Económica recentemente descoberta. E da mesma maneira os prósperos políticos da nossa geração aprovam leis que retiram os filhos às mães pobres; e proíbem calmamente os seus arrendatários de beber cerveja nos pubs. Mas (ao contrário do que o leitor possa supor) contra tal insolência não se erguem universais vozes de protesto, classificando-a de escandaloso feudalismo. Porque a aristocracia é sempre progressiva; a aristocracia é uma forma de impor o ritmo. E as festas dos aristocratas prolongam-se cada vez mais pela noite dentro.”

Voltando às ruínas:

O tempo, claro, é o mais eficiente construtor de ruínas, de casas mortas, de lixo, do fim das coisas, de rugas. O universo é uma espécie de artista ao contrário, que faz com que uma escultura volte a ser pedra bruta ou areia. Contraditoriamente, o tempo também valoriza os objetos e o que resta deles, e, assim, é bem possível que um dia tenhamos turistas só para ver os escombros do nosso país, um pouco como visitamos o Coliseu de Roma.

A certa altura, durante a colonização inglesa da Índia, alguém se lembrou de vender o Taj Mahal em leilão e aos pedaços. A ideia era fazer daquilo uma grande ruína e vender os destroços, bocados de pedra, para decorar lareiras britânicas. Para experimentar este disparate histórico decidiram começar por desmantelar o Forte Vermelho de Agra, construído pela mesma pessoa que mandou edificar o Taj Mahal e vendê-lo pedra a pedra. Como não funcionou, desistiram do plano. Apesar de esta história não estar provada, corroborada pela escrita, não deixa de ser credível. Fomos, ao longo da História, capazes de coisas bem piores.

Passaram-se milénios desde a origem da escrita, mas os números continuam a preceder a poesia, e, de um modo mais lato, toda a cultura e a própria noção de humanidade.

 

Afonso Cruz, “Baleia Branca”, Jornal de Letras, 05-03-2015. Crónica disponível em: https://visao.pt/jornaldeletras/cronicas-jl/2015-03-05-baleia-brancaf812274/

 

***

 

Afonso Cruz inicia e conclui a sua crónica com uma crítica à primazia dos interesses económicos sobre a arte, que se manifesta desde a origem da escrita até aos nossos dias. O autor expressa o seu desgosto pelo facto de a escrita ter nascido para registar contabilidade e não para criar poesia, mas o que ele realmente quer dizer é que deseja que os Homens apreciem mais a beleza das palavras do que as vantagens comerciais.

O autor revela implicitamente a sua frustração com a sobreposição da funcionalidade à estética, ao dizer que não perdoa à humanidade o facto de a escrita dos números ter surgido antes da escrita da poesia. A sua crítica assenta no desejo de uma sociedade em que a poesia e a linguagem sejam mais importantes do que as necessidades práticas do comércio. A sua esperança é que a cultura, a educação e a arte consigam superar as pressões comerciais, gerando assim uma sociedade mais bela e significativa.

 


domingo, 30 de julho de 2023

Arte poética, Manuel António Pina


 


Arte poética

Vai, poema, procura
a voz literal
que desocultamente fala
sob tanta literatura.
Se a escutares, porém, tapa os ouvidos,
porque pela primeira vez estás sozinho.
Regressa então, se puderes, pelo caminho
das interpretações e dos sentidos.
Mas não olhes para trás, não olhes para trás,
ou jamais te perderás;
e teu canto, insensato, será feito
só de melancolia e de despeito.
E de discórdia. E todavia
sob tanto passado insepulto
o que encontraste senão tumulto,
senão de novo ressentimento e ironia?

 

Manuel António Pina, Os livros, 2003 (Todas as Palavras poesia reunida. Lisboa, Assírio & Alvim, 2012, p. 309)

 

 

Leitura orientada da “Arte Poética”

 

A escolha do título "Arte Poética" sinaliza o tema central do poema: uma reflexão sobre a própria poesia e o seu propósito. Desde o início, somos confrontados com a instrução dada ao poema de procurar a "voz literal" que se oculta sob a literatura.

“A demanda é por aquilo que o poema não tem: procure algo, uma voz literal, uma origem. Mas isso está além do alcance tanto do texto, quanto do humano. Como vimos, o literal está associado a um sentido de fim, o fim “das interpretações e sentidos”. Por isso, o poema, como Orfeu, precisa regressar desse “mundo dos mortos”. Não para trazer consigo a voz literal, mas novamente a literatura. O que o poema procura está nele mesmo, na linguagem e não fora dela. Não é à toa o diálogo com a tradição órfica. Tradição essa que tematiza a perda/ ausência da amada (de um ser) pela presença da poesia. Orfeu é a encarnação do canto pela materialização da música enquanto sujeito que toca a lira e objeto desse mesmo instrumento, ou seja, ele é um tipo de prosopopeia.” (Entre nomes supostos: ceticismo linguístico na poesia de Fernando Pessoa e Manuel António Pina, Thiago Queiroz. São Paulo, USP, 2021)

Os versos “Se a escutares, porém, tapa os ouvidos, / porque pela primeira vez estás sozinho” sugerem que, ao encontrar a “voz literal” mencionada anteriormente no poema, o sujeito deve tapar os ouvidos. Isso pode ser interpretado como uma rejeição da verdade absoluta que essa voz pode representar. O sujeito está sozinho pela primeira vez, o que pode ser angustiante. A verdade absoluta pode ser assustadora e solitária, e é preferível a liberdade do “caminho das interpretações e dos sentidos”. Esses versos sugerem que a busca pela verdade pode levar a um lugar solitário e angustiante, e é melhor evitar ouvir a “voz literal”.

A advertência de não olhar para trás, que Orfeu não respeitou, ressalta a dificuldade de se manter autêntico diante das influências do passado e das convenções literárias.

Mas não olhes para trás, não olhes para trás,
ou jamais te perderás;
e teu canto, insensato, será feito
só de melancolia e de despeito.
E de discórdia.

A ideia expressa pelo sujeito poético é a de que a "perdição" e a "insensatez" são necessárias para alcançar uma expressão poética mais autêntica e original.

Enquanto Orfeu não podia olhar para trás para não perder a sua amada Eurídice, no contexto da "Arte Poética", o desejo é justamente perder-se para encontrar a verdadeira voz poética.

A "perdição" aqui pode ser vista como um estado de desorientação, em que o poema se distancia de fórmulas conhecidas e se lança num percurso de autodescoberta e experimentação. Ao perder-se, o poema pode descobrir novas formas de expressão, que talvez não sejam previsíveis ou racionais, mas que são genuínas e únicas.

Da mesma forma, a "insensatez" sugere que o poema deve permitir-se ser irracional ou até mesmo "louco" na sua abordagem criativa. Isso significa que o poema não precisa se ater apenas à lógica e à razão, mas pode abraçar o caos, a emoção e o inesperado como fontes de inspiração.

Mas a verdade é que o passado literário não está "sepultado" nem estão superados os elementos inerentes à experiência humana e à própria criação artística, tais como o tumulto, o ressentimento e a ironia.

O sujeito poético, ao encorajar o poema a não olhar para trás e a enfrentar o passado insepulto, está a incentivar a que o poema busque a sua própria voz e originalidade na criação artística.

 

Numa entrevista ao jornal Público de 07-06-2011, que reproduzimos a seguir, Manuel António Pina explica o motivo pelo qual a "Arte Poética" parece abordar a impossibilidade de remontar à fonte, ao afirmar: «É que mesmo que ele [o poema] encontre a Palavra, tem de regressar, como lá digo, "pelo caminho das interpretações e dos sentidos". E não pode olhar para trás, porque senão jamais se perderá. Orfeu não podia olhar para trás para não se perder, mas aqui o desejo é perder-se. E quando lá chega, encontra o que deixou. Estou agora a notar que isto é um bocado eliotiano. Nos "Quatro Quartetos", o T. S. Eliot escreve: "Para chegares aonde estás, para saíres de onde não estás, deves seguir por um caminho onde não há êxtase". Acho até que cito isto em "Aquele que Quer Morrer".»

É interessante ver como o poeta explora a ideia da impossibilidade de remontar à fonte original, procurando uma voz literal que desocultamente fala, mas encontrando tumulto e ressentimento sob o passado insepulto da literatura.

 

 

Entrevista a Manuel António Pina (17-06-2011)


A auto-ironia é afastar-me de mim, deixar-me desamparado

"A porta está fechada na palavra porta/para sempre". Sugerindo que estamos nas palavras como num quarto fechado e sem chave, este verso, que Manuel António Pina escreveu em plena entrevista, dá-nos, ironicamente, a chave para a sua poesia. O mais recente Prémio Camões é uma ilha cercada de vozes por todos os lados, sobretudo o de dentro. "Aceitei todas as influências". Nesta conversa, há momentos em que responde mesmo às perguntas. Não são necessariamente os mais interessantes.

Passavam alguns minutos da uma hora da manhã, quando abri a porta a Manuel António Pina. Por volta das cinco, quando o mais recente galardoado com o Prémio Camões regressou a casa, não posso dizer que me sentisse inteiramente seguro de que o que tinha no gravador fosse uma entrevista. Confiava que seria, ao menos (ou ao mais), algo parecido com isso, da mesma substância.

O que se passou nessas quatro horas, descreve-o o ensaísta Osvaldo Silvestre, por antecipação, num artigo que assina no último número da revista "Ler": "A retórica da conversação procede em Pina por circunlóquio e anexação: de um tópico inicial e supostamente central o conversador passa a outro e outro e ainda outro, deixando o ouvinte na dúvida sobre se alguma vez o tópico inicial será retomado (por vezes sim, mas nem sempre)". Mas, note-se, Silvestre começa por esclarecer que "é um privilégio ouvir Manuel António Pina discorrer, ao seu modo, sobre um assunto".

Nesta conversa, Manuel António Pina fala da sua relação com a modernidade, e com Pessoa em particular, confessa ter-se alvoroçado quando lhe sugeriram que era pós-moderno, admite que se resignou à Literatura e explica que muitos dos seus livros de poemas nasceram da leitura de ensaios. Isto para dar só um apanhado breve. Também revela, por exemplo, os primeiros versos que escreveu, confessa ter despachado, com grande lucro, as obras completas de Eça de Queirós, transforma um soneto de Antero num filme erótico e aperfeiçoa, em plena entrevista, um poema que anda a escrever.

Quanto ao prémio Camões, tem apenas um desejo, e é o inverso do que Paulo Futre ambicionava para o jogador que pretendia impingir ao Sporting: "Só espero que não "vá vir" charters para me ver jogar". Não sei se o leitor vai ler uma entrevista, mas espera-se que fique com uma ideia bastante aproximada do que é o privilégio de passar uma noite à conversa com Manuel António Pina.

Publicaste "O País das Pessoas de Pernas para o Ar" no final de 1973. Logo a seguir ao 25 de Abril de 1974, saiu o teu primeiro livro de poemas, "Ainda não é o fim nem o princípio do mundo calma é apenas um pouco tarde". Seguiram-se "Gigões e Anantes" (1974), "O Têpluquê" (1976) e mais um livro de poemas, "Aquele que Quer Morrer" (1978). Hoje parece óbvio que, desde o início, optaste por navegar em dois rios paralelos, a poesia e a literatura dita infantil. Foi uma coisa programada?

Não tinha muita consciência disso. A literatura infantil era uma coisa que eu fazia com, digamos assim, honestidade, mas que encarava com menos seriedade do que a poesia. Os quatro contos de "O País das Pessoas de Pernas para o Ar" foram escritos em Novembro de 1973 e o livro saiu em Dezembro. Mas o primeiro livro de poemas já estava a ser escrito em 1965. Até há lá um poema que se chama "4 de Julho de 1965" e que é uma colagem de decassílabos perfeitos que encontrei nos jornais desse dia. Ainda tenho em casa o original, com os recortes colados. Acho que o nascimento da minha filha Sara, em 1970 - a Ana só nasceu em 1974 -, terá tido alguma importância para eu começar a escrever literatura infantil. Mas a poesia vinha muito de trás. Desde os seis ou sete anos que escrevia poemas, que depois a minha mãe guardava. As mães são seres admiráveis. Ainda me lembro do início do primeiro que fiz, que era sobre o milagre das rosas: "Nasceu um dia em lua-de-mel uma princesa chamada Isabel.// Casou depois porque quis/ com um príncipe chamado Dinis."

A infância...

Deixa-me contar-te uma coisa engraçada. A minha mãe fazia versos para eu ler às visitas que lá iam lá lanchar nos dias em que o meu pai, que era secretário de Finanças, jantava com o tesoureiro da Fazenda Pública, o sr. Marnoto. Eu lia os poemas atrás da porta, porque tinha vergonha. Quando o meu avô morreu, a minha mãe insistiu comigo para eu fazer um poema à morte dele. "Não faço nada, não faço nada", e não fiz. Um dia a minha mãe disse-me: "Sabes uma coisa tão bonita que eu encontrei na tua mesinha de cabeceira? Aquele poema que fizeste à morte do avô". Tinha sido ela a escrevê-lo, mas queria convencer-me de que tinha sido eu. Já eu era adulto, e ainda continuava a insistir naquilo.

A infância é um tópico central na tua poesia...

Acho que é na de toda a gente. Borges diz que o amor e a morte são os grandes temas. Eu acrescentaria o tempo. Georges Bataille, num livro chamado "Madame Edwarda", observa que uma grande parte do humor é sobre o sexo e sobre a morte, e diz: "Ris-te porque tens medo". Medo do sexo, que está ligado à origem do ser, e medo da morte, que é o seu desaparecimento. É o medo do antes e do depois, os dois grandes abismos. A arte é provavelmente uma forma de lidar com o medo.

Num poema teu...

Ted Hughes [poeta e escritor de livros infantis britânico, 1930-1998] diz que à terceira estrofe a morte já se tornou numa questão de estilo. Os meus pais não me deixavam ter a luz acesa à noite, e eu descobri um truque para não ter medo. Escrevia num papel os pesadelos que tinha. A primeira vez, devo tê-lo feito para contar o sonho à minha mãe, no dia seguinte. Depois descobri que, ao escrever, começava a ter necessidade de encontrar palavras. E a morte, o medo, tornava-se uma questão de estilo. A linguagem afastava-me do medo. Ao escrever, tudo se transforma em literatura.

Num poema teu, a infância é um estranho a bater à porta. E quando lhe perguntas "quem é?", responde: "- É a mãe morta - São coisas passadas/ - Não é ninguém". Sabes (sabes no que escreves) que não é verdadeiramente possível lembrar a criança que foste, e que até este "foste" é uma concessão gramatical. Escreveres para crianças é também um modo de tentares recuperar ao menos a ilusão dessa irrecuperável "(...) infância/ inicial não embaciada/ de nenhuma palavra/ e nenhuma lembrança"?

A infância é algo que só se tem quando se perde, porque as crianças estão perto de mais da infância para se aperceberem dela. Como em outras poesias, na minha a infância -a palavra "infância" e a ideia de infância mais do que a concreta memória de uma infância - é, julgo eu, a melancolia da "primeiridão", de um tempo mítico em que olhámos o mundo e a nós próprios pela primeira vez, com olhos inocentes de palavras e de memória, isto é, "não embaciados de nenhuma palavra/ e nenhuma lembrança". Não é a inocência da criança, que é uma inocência inocente, mas uma nietzschiana "segunda e mais perigosa inocência", uma inocência que se sabe inocente, ou então apenas uma espécie de vontade de inocência. Neste último sentido, talvez haja na minha literatura para crianças - nunca pensei muito nisso - algo como uma tentativa não de recuperação, mas de vivência segunda, ou tosco sucedâneo, dessa inocência, e muito em particular da inocência linguística, que é a que mais me interessa.

Essa impossibilidade de aceder à infância cruza-se com um tema recorrente na tua poesia que é a ideia de que a origem nos está vedada. A antologia pessoal que acabaste de publicar na Assírio & Alvim, "Poesia, Saudade da Prosa", abre com uma "Arte Poética" que, justamente, parece abordar essa impossibilidade de remontar à fonte. Começas por exortar o poema a que procure "a voz literal que desocultamente fala/sob tanta literatura" e, no final, perguntas. "E todavia/ sob tanto passado insepulto/ o que encontraste senão tumulto,/ senão de novo ressentimento e ironia?".

É que mesmo que ele encontre a Palavra, tem de regressar, como lá digo, "pelo caminho das interpretações e dos sentidos". E não pode olhar para trás, porque senão jamais se perderá. Orfeu não podia olhar para trás para não se perder, mas aqui o desejo é perder-se. E quando lá chega, encontra o que deixou. Estou agora a notar que isto é um bocado eliotiano. Nos "Quatro Quartetos", o T. S. Eliot escreve: "Para chegares aonde estás, para saíres de onde não estás, deves seguir por um caminho onde não há êxtase". Acho até que cito isto em "Aquele que Quer Morrer".

Em 1974, quando publicaste o teu primeiro livro de poemas, Gastão Cruz reunia a sua obra poética em "Os Nomes", Joaquim Manuel Magalhães publicava "Consequência do Lugar" e António Franco Alexandre dava-nos a ler "Sem Palavras Nem Coisas". Se reparares, são todos títulos altamente programáticos. Como é que te situavas, então, nas encruzilhadas da poesia da época, se é que a questão se te punha?

A questão não se me punha.

Não lias outros poetas?

Nessa altura, as minhas leituras de poesia portuguesa contemporânea eram fundamentalmente o O"Neill e o Ruy Belo.

Mas esse teu livro de estreia já tem referências expressas ao Cesariny.

Tens razão. Comprei a "Poesia", uma recolha de vários livros dele. Interessavam-me os surrealistas. O Alexandre O"Neill, lia-o desde os 13 ou 14 anos. Havia aquelas bibliotecas da Gulbenkian, e eu ia lá requisitar os livros. Lembro-me de ter levado para casa um do O"Neill e outro do Tomaz Kim porque estava convencido de que eram poetas ingleses. Ao mesmo tempo, lia o Augusto Gil. Era uma misturada. E recordo-me agora que também já tinha lido o João Cabral de Melo Neto. E o Jorge de Sena.

Seria estranho que não tivesses lido bastante, porque, desde o início, a tua poesia está cheia de citações.

Lia muita coisa, mas ao acaso. No 6º ano, no liceu de Aveiro, ganhei um prémio literário e recebi 500 escudos. Comprei tudo o que havia do Pessoa na Ática, e as obras completas do Eça de Queirós, da Lello, que depois vendi por dez contos numa altura em que precisava de dinheiro.

Esse meu primeiro livro tem uma nota, no fim, assinalando diversa colaboração citada e não citada. Até refiro os Beatles, embora não haja nada dos Beatles em poema nenhum. E também não há nada de outros autores que cito, como o Giambattista Vico.

E talvez deixes alguns por citar. Há um poema que termina com o verso "Conto estas aventuras extraordinárias". Ocorreu-me que pudesses ter sacado a expressão de um livro do Poe, que se chama, na edição portuguesa, "As Aventuras Extraordinárias de Gordon Pym".

Não me lembro, mas, inconscientemente, é capaz de vir daí. Também lá aparece uma referência ao "Palácio da Ventura" do Antero. Tenho, aliás, uma teoria sobre esse soneto. É dado como sendo poesia filosófica, mas acho que é erótica. Ora repara: "Sonho que sou um cavaleiro andante.

Por desertos, por sóis, por noite escura, [com as mãos vai apontando no seu próprio corpo as partes da anatomia feminina a que Antero se estaria metaforicamente a referir]/Paladino do amor busco anelante [interrompe para emitir sons arquejantes]/ O palácio encantado da Ventura." E vê como continua: "Quebrada a espada já, rota a armadura...". E a seguir : "Abri-vos portas d"ouro antes meus ais!". E vê como acaba: "Abrem-se as portas d"ouro, com fragor.../ Mas dentro encontro só, cheio de dor,/ Silêncio e escuridão - e nada mais!". Está-se mesmo a ver que é uma queca que acabou mal.

Ainda a propósito das tuas leituras. Um aspecto que sempre me intrigou na designação daquilo a que os espanhóis chamam poesia da experiência, é a aparente pouca conta em que é tida, nessa "experiência" do poeta, a percentagem dela que é dedicada à leitura. Dado que os poetas tendem a ser grandes leitores, parece ser de presumir que boa parte do seu "real" se componha de livros alheios. Dir-se-ia que a tua poesia é particularmente irrigada por essa parte do teu real que é a leitura. Estás de acordo?

Inteiramente de acordo. E digo-o em resultado daquilo a que posso chamar a minha própria "experiência", ou, talvez mais rigorosamente, a sua memória, já que se escreve - falo naturalmente de mim - não propriamente com a experiência, mas com a memória dela. Mais sobressalto menos sobressalto, sempre tive uma vida burguesmente pacata; algumas lágrimas, alguns remorsos, alguns sonhos, solidão q. b., medo q.b.. As emoções mais fortes e mais complexas que experimentei foram colhidas em livros e em filmes, ou ouvindo música, e a sua memória é, em mim, permanentemente atravessada pela memória de outros livros e outros filmes, ao mesmo tempo que se confunde com a memória da minha existência por assim dizer "real". Mas mesmo esta última é, tenho consciência disso, frequentemente contaminada por memórias literárias: cada uma a seu modo, todas as despedidas são Heitor despedindo-se da mulher e do filho, todos os regressos o de Ulisses. Talvez até, quem sabe?, todas as obras literárias fundamentalmente sejam, como pretende Raymond Queneau, ou uma "Ilíada" ou uma "Odisseia".

É mais a leitura de poetas, ou os ensaios também te servem de gatilho?

Servem muito. O livro que gerou "Os Livros" foi uma colectânea de conferências de Borges sobre literatura inglesa. O "Farewell Happy Fields" foi escrito enquanto ia lendo "A Angústia da Influência" de Bloom. "Aquele que Quer Morrer" resultou da influência de dois livros: a "Gaia Ciência", de Nietzsche, e o "Tao Te Ching", de Lao Tsé. Também me inspiro na Bíblia, no budismo, no xintoísmo, em livros de ciência. Vou apontando coisas nuns caderninhos. Tenho aqui um [saca do bolso um pequeno caderno de capa "bordeaux", da Moleskine], mas este ainda vai no princípio. [Folheia as páginas e vai citando:] "Derrida: não há começos"; "Só as certezas envelhecem"; "A retirada da palavra como a deserção de deus da criação"; "estante da Ana: 90 cm de largura". Estás a ver? Tenho aqui tudo... E isto aqui [mostra uma página] é um poema começado, que resultou de uma leitura do Hofmannsthal.

Tinha piada pô-lo na entrevista.

Eu leio: "Perde-se o corpo na inabitada casa das palavras, nas suas caves, nos seus infindáveis corredores;/ pudesse ele, o corpo, o que quer que o corpo seja,/ na ausência das palavras calar-se./ Não, com palavra nenhuma [faz aqui uma pausa e acrescenta: tinha mudado isto, mas é capaz de ser melhor voltar a pôr "com nenhuma palavra"] abrirá a porta,/ nem com o silêncio, nem com nenhuma chave". E ainda tenho aqui uma coisa que não sei se hei-de aproveitar: "A porta está fechada na palavra porta".

Acho que deves aproveitar.

[Fica um ou dois minutos calado, sem ouvir.] "A porta está fechada na palavra porta para sempre". Tem bom ritmo. Fica assim. Espera aí, desculpa lá, deixa-me só tomar nota disto.

Na homenagem que te prestaram na Guarda, Eduardo Lourenço fez uma intervenção de improviso...

Ele ter dito aquilo tudo espontaneamente, sem estar a ler, foi incrível.

Segundo Lourenço, levaste ainda mais longe do que Pessoa a morte do "Eu", transformando-o numa espécie de buraco negro que nenhuma ilusão, nem a ilusão do poder reparador da palavra poética, pode aspirar a suturar. E Osvaldo Silvestre, num depoimento prestado após teres recebido o Prémio Camões, diz que a tua poesia seria impensável sem o precedente da metafísica pessoana. Pessoa é um ponto de partida essencial?

Há uns anos participei, no Salão do Livro de Paris, num debate inquietantemente intitulado "Faut-il oublier Pessoa?". Como se fosse possível esquecer. Pessoa ou o que quer que seja ... Pessoa é algo de irremediável. Pode fazer-se de conta que o arquipélago pessoano nunca existiu, mas o seu vulto está necessariamente presente, até na denegação dele, em toda a poesia portuguesa posterior. Se não como ponto de partida ou de chegada, ao menos como ponto de passagem. Mesmo um poeta que, por mera e surpreendente hipótese, nunca tivesse lido Pessoa, teria decerto lido outros que o leram. No caso da minha poesia, até onde posso sabê-lo de forma consciente, diria que a sua relação com a modernidade passa, não em exclusividade mas em boa parte, pelo Pessoa ortónimo (que li intensamente na juventude) e, talvez de forma menos evidente, também por Caeiro.

A instabilidade do "Eu" na tua poesia, muitas vezes sublinhada por via sintáctica - "a minha vida é uma multidão onde, não sei quem, em vão procuro/ o meu rosto" - é, como dizes, uma herança da modernidade. Rimbaud, também ele forçando a gramática, escreveu "Je est un autre". Pergunto-me como seria este verso traduzido em "pinês". Talvez "Eu (quem?) é um outro (qual?)"?

Ou talvez: "Eu (o quê?) é um outro (quem?, qual?)". Ou ainda: "Eu (isto é, palavras falando) é um outro (palavras escutando)". Ou: "Eu (isto) é um outro (algo, outra coisa)". Talvez prefira a versão do meio. Devo no entanto observar, em defesa da honra do "Eu" na minha poesia, que ele, o "Eu", tem andado um pouco mais estável nos últimos livros. Provavelmente, mas que sei eu?, por cansaço.

Isso leva-me a outra pergunta. A auto-ironia, a sabotagem da eloquência, são marcas que atravessam toda a tua poesia. Ainda assim, não te parece que os teus últimos livros têm uma intensidade declarativa que pareces ter evitado nas obras iniciais? Penso no poema "It"s All Right, Ma...", de Cuidados Intensivos (1994), que acaba com uns versos nos quais a ironia não apenas não atenua, mas acentua a pungência: "Que não se perturbe nem intimide/ o teu coração,/ estou só a morrer em vão." Ou no final do poema "Extrema-Unção", que fecha o livro seguinte: "Tínhamos levado as crianças de casa,/ feito os telefonemas, escolhido os dizeres./ O quarto fora arrumado, a cama mudada/ com roupa lavada. Só faltava morreres." Não te parece que, nos teus primeiros livros, dificilmente correrias tão sérios riscos de comover o leitor?

Estou a ir-me abaixo, é da idade. Tens razão, houve uma altura em que me resignei à literatura. Confesso tudo. Dando como testemunha abonatória das boas intenções poéticas desses meus últimos livros, no que toca a comover, o velho Rodolfo Agrícola, para quem a literatura serve "ut doceat, ut moveat, ut delectet", que é como quem diz: "para ensinar, para comover, para deleitar".

[02h55. A mulher de Pina, Fátima, telefona-lhe, a pedir-lhe que confirme, antes de se deitar, se algum dos gatinhos não terá ficado preso numa gaveta de um móvel recém-adquirido na Ikea. "Está descansada que eu vou ver, e não te preocupes, que há lá ar que nunca mais acaba. Lembra-te que fui eu que montei isso.]

Estávamos a falar de quê?

Estava a sugerir que a auto-ironia, que usavas para sabotar a eloquência, era agora posta ao serviço da emoção.

A auto-ironia pode ser muito pungente. Nos meus primeiros livros é gozosa, mas nos outros é mais melancólica. Por isso é que tenho medo dela. A auto-ironia é afastar-me de mim, deixar-me desamparado, entregue à bicharada, é ir para o meio da bicharada ajudar a multidão que me cospe em cima. A ironia é uma coisa triste e a auto-ironia é tristíssima.

Por acaso sei exactamente onde começou essa mudança que observas. Foi num poema do livro "Nenhum Sítio" [1984], quando escrevi pela primeira vez a palavra "pétala". Fiquei assustadíssimo. Percebi que era um risco enorme, que nunca tinha ido tão longe. Nunca antes poderia ter escrito a palavra "pétala, pelo menos a sério.[O poema em causa fecha com os versos: "Coração, sombra de uma sombra na pétala mais funda da noite"].

A propósito de mudanças de registos. Na última parte de "Farewell Happy Fields" (1993), intitulada "Aos Meus Livros", escreves: "Um bancário calculava que tínheis curto saldo/ de metáforas ". Referes-te - desculpa se revelo informação interna - a uma recensão feita a ao teu primeiro livro, que, segundo o recenseador, pecava por escassez de metáforas. Se hoje seria quase inimaginável que um crítico censurasse um poeta por insuficiência metafórica, a tua resistência à metáfora podia de facto ser vista, nesse contexto dos anos 70, como uma marca distintiva. Já num poema de "Os Livros" (2003), escreves: "(...) Ah sim, claro, o real. Pelos olhos dentro/ e pelo coração dentro, tão perto e tão lento/ que basta estar atento que decerto/ algum sentido há-de fazer ou algum sentimento.// Eu sei, também tenho ido a bares e outros lugares/ igualmente reais. E tenho tido/ Uma vida ou mais. (...)". É difícil não ler aqui uma farpa dirigida a alguma poesia recente que, justamente, se caracteriza por um deliberado abandono da metáfora. E parece-me inegável que a tua poesia é hoje bastante mais metafórica do que o foi na sua primeira fase. Gostas de ser um poeta em contra-ciclo?

Não, não há nisso que chamas de contra-ciclo qualquer deliberação. Aliás, reconhecendo a pertinência das observações que sustentam a pergunta, só agora me apercebo disso. Acontece que, sendo leitor de poesia, tenho uma ideia da que se vai fazendo à minha volta, da poesia, digamos assim, minha contemporânea, ou da poesia contemporânea da minha. E, com efeito, há em alguns poemas meus ocasionais alusões a essa poesia. Mas não escrevo em função dessa contemporaneidade, escrevo em função de muitas coisas mas dessa certamente que não, e muito menos para alinhar ou desalinhar deliberadamente o passo com ela. Nunca tive estratégia alguma desse género, de conformidade ou de desconformidade. Para falar verdade, estou-me nas tintas para a contemporaneidade poética; quero dizer: uma poesia, ou um processo poético, não me interessam pelo facto de serem ou não meus contemporâneos mas por razões decerto menos objectivas e mais obscuras.

No teu primeiro livro surgem estes versos. "Já não é possível dizer mais nada mas também não é possível ficar calado". Vinte anos depois, em "Cuidados Intensivos", escreves: "A impossibilidade de falar/ e de ficar calado/ não pode parar de falar, escrevi eu ou outro". Essa ideia de que chegámos tarde e de que já está tudo dito, mas que temos de continuar a falar, é um dos mais persistentes tópicos da tua poesia. A estratégia que adoptaste foi a de te deixares impregnar pelas vozes de todos esses que falaram antes de ti...

Um livro que me influenciou muito foi o "ABC of Reading", de Pound. O conselho que ele dá aos jovens poetas é o de que não procurem ser originais e se deixem atravessar por todas as influências possíveis. A originalidade, depois, vem ou não vem.

E cumpriste à risca.

Pois foi. Aceitei as influências todas. Nunca me deu para enfrentar, para ter uma relação edipiana com os antecessores.

Os teus livros estão, de facto, enxameados de citações e alusões, ao mesmo tempo que a auto-ironia te vai servindo para sabotar o que poderia haver de trágico nessa consciência de que estamos condenados a ser uma espécie de Plágio dos Fazeres, para citar uma personagem do teu primeiro livro, também referida como Flávio dos Prazeres. Apesar da persistência da herança modernista na tua poesia, não te parece hoje que ela sempre mostrou algumas das marcas que viriam a ser consideradas constitutivas do pós-modernismo?

Quando pela primeira vez vi a minha poesia referida como "pós-moderna" - acho que foi num texto crítico de Américo António Lindeza Diogo -, fiquei tão alvoroçado como Monsieur Jourdain quando soube que falava em prosa. Corri a comprar "O Pós-modernismo Explicado às Crianças" de Lyotard, que tinha saído por essa altura, acho que na D. Quixote, e não fiquei muito tranquilo. Conta-se que Getúlio Vargas se vestia particularmente mal e que, um dia, a filha lhe entrou agitadíssima gabinete dentro com uma revista de moda na mão: "Papai, Papai, a moda pegou finalmente você!". O que senti foi uma coisa do género, embora menos (muito menos) eufórica.

A tua poesia inicial tem marcas nítidas do surrealismo, uma influência que depois parece ter-se atenuado bastante. Qual é a tua relação com o surrealismo? Seria de esperar que te identificasses com o seu propósito de fuga da Literatura, mas que já tivesses mais dificuldade em partilhar da sua crença romântica numa espécie de poder demiúrgico da palavra poética.

Dava-me jeito poder discordar uma vez ou outra do que dizes. Com efeito li muito alguns surrealistas, em particular os mais heterodoxos. Tenho uma certa inclinação por heterodoxos. E, embora seja naturalmente desconfiado em relação a "movimentos" e congéneres, talvez do surrealismo possa dizer algo semelhante ao que disse antes a propósito de Pessoa: não é possível fazer de conta que o surrealismo nunca existiu. O surrealismo foi um momento charneira (se há tal coisa) da história literária e artística do século XX. Mais do que qualquer outra vanguarda, multiplicou-se em estirpes inumeráveis (e, às vezes, inomináveis) e contaminou as próprias noções de literatura e arte. Mais do que aquilo que chamas de "crenças" centrais dos diferentes surrealismos, as suas marcas na minha poesia julgo que resultam não só da memória da leituras de poetas, como, por exemplo, Cesariny - o escritor, já antes o disse, é um ladrão de túmulos, nada do que escreve lhe pertence, roubou-o a outros e outros lho roubarão -, mas principalmente do recurso, mesmo que diluído, a processos poéticos que o surrealismo fez seus. Por exemplo, o das associações livres. Liberdade, na parte que me toca, condicional; mas até nisso vislumbro a sombra do "abandono vigiado" de O"Neill.

E poetas recentes, lês?

O Borges dizia - acho que é uma "boutade" - que só lia livros com mais de 50 anos, porque o tempo já tinha feito metade do trabalho. Eu leio livros recentes, mas não muitos. Acho que o mais recente de quem li a obra toda será o Ruy Belo. E gosto muito do António Franco Alexandre. Os "Quatro Caprichos" é um livro extraordinário.

Publicaste o teu primeiro livro de poemas há 37 anos, mas não achas que essa consagração que agora culminou no prémio Camões só começou realmente a acelerar quando chegaste à Assírio & Alvim, em 1999, ano em que saiu "Nenhuma Palavra e Nenhuma Lembrança"?

É verdade. Foi o Hermínio que, ainda antes de o livro sair, o andou a entregar a uma data de gente, a tentar que se interessassem por aquilo. Lembro-me de ter saído uma crítica do Eduardo Prado Coelho, uma coisa exageradamente elogiosa, e de o Osvaldo [Silvestre] me ter mandado um mail a dizer: "Sim senhor, quem tem capa sempre escapa". O Hermínio já me tinha convidado muitas vezes a publicar na Assírio, mas eu estava convencido de que era só por simpatia.

Nunca te levaste excessivamente a sério, pois não?

Não, nem nunca me valorizei muito. E sou muito autocrítico. Mas a questão não é bem essa. Tenho um lado nietzschiano, mas que em mim não é uma questão ética, é temperamento. O Zaratustra pergunta-se muito se terá feito batota. Eu também. Quando soube do prémio Camões, perguntei-me: terei feito batota, terei enganado aquela gente toda? O António Guerreiro escreveu que eu sou humilde. Mas não sou nada. Calhando de ganhar, quero ganhar é com mérito, não me basta ganhar. E isso não é humildade, é orgulho. A minha mulher, que é uma crítica dos diabos, às vezes diz-me: "Lá estás tu a pôr-te em bicos de pés". E normalmente tem razão. Eu recuo logo, vejo que estou a levar-me muito a sério. Mas, às vezes, ela, que me conhece como ninguém, também me diz: "Como é que escreveste uma coisa destas?". Eu próprio, às vezes, lendo uma coisa antiga, pergunto-me: como é que escrevi isto? Não acredito na inspiração, mas há momentos em que escrevemos coisas que não sabemos de onde vêm.

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Ou seja, acreditas na inspiração.

É verdade que tenho uma grande desconfiança dos poemas que compreendo perfeitamente, nos quais sei a origem de tudo. Os poemas com os quais tenho melhor relação são aqueles em que não alcanço bem o que quero dizer, mas sinto, instintivamente, que aquilo é verdade. Os outros têm pouca autonomia face a mim mesmo, não têm vida própria, são inteiramente alcançáveis pela razão. Acho que é por isso que muitos artistas usaram as drogas, para a razão patinar. Eu prefiro a mecânica quântica.

Quase me esquecia da pergunta mais importante: o que é que o Prémio Camões mudou na tua vida?

Perturbou-me mesmo o quotidiano. Logo no primeiro dia, dei sete entrevistas. Uma delas, para a RTP1, foi feita ao pé de uma piscina e agora toda a gente pensa que eu tenho uma casa com piscina. E se dantes, nas sessões de autógrafos, assinava 10, 15 livros, agora são 100 ou 200. Só espero que, como disse o outro, não "vá vir" charters da China para me ver jogar.

Já entrevistei alguns amigos e, no papel, trato-os sempre por você. Mas estou tentado a abrir uma excepção, porque talvez seja preferível que se perceba que estás a falar com alguém que conheces.

Acho bem, faz como o Groucho Marx: "Nunca me esqueço de um rosto, mas vou abrir uma excepção para o seu".

 

Luís Miguel Queirós, Público, 07-06-2011. Disponível em: https://www.publico.pt/2011/06/17/jornal/a-autoironia-e-afastarme-de-mim-deixarme-desamparado-22277928

 

quarta-feira, 19 de abril de 2023

Literatura de Compromisso




Sobre literatura, compromisso e transformação social

José Saramago

 

Repito estas palavras lentamente literatura, compromisso, transformação social , pronuncio-lhes as sílabas como se, em cada uma delas, se escondesse ainda um significado secreto à espera de ser revelado ou simplesmente reconhecido, procuro reencaminhá-las para a integralidade de um sentido primeiro, restauradas do desgaste do uso, purificadas das vulgaridades da rotina e encontro-me, sem surpresa, perante duas vias de reflexão, quem sabe se as únicas possíveis, percorridas mil vezes já, é certo, mas a que é nosso inelutável destino regressar sempre, quando a crise contínua em que vivem os seres humanos seres em crise, por excelência, e humanos talvez por isso mesmo deixou de ser crónica, habitual, para tornar-se aguda e, ao cabo de um tempo, culturalmente insustentável. Como parece ser a situação deste homem que hoje somos e deste tempo em que vivemos.

À primeira via de reflexão, que desde já, e pedindo perdão a quem o contrário pense, me atreveria a qualificar de ingénua, seria a de uma tendência muito corrente que consiste em incluir a literatura entre os agentes de transformação social, entendendo-se tal denominação, neste caso, não tanto como referida às consequências sociais decorrentes dos factores estéticos, mas sim a supostas determinantes influências, na ordem ética e na ordem axiológica, independentemente do carácter positivo ou negativo das suas manifestações. De acordo com tal maneira de pensar, e extrapolando, em benefício do raciocínio, conteúdos e formas historicamente diferenciados, para assim podermos abranger numa única visão o ensino, a literatura e a cultura em geral, haveríamos de coincidir, hoje, e apesar dos trágicos desmentidos da realidade, com a panglossiana convicção dos nossos oitocentistas e optimistas avós, para quem abrir uma escola equivalia a fechar uma prisão. Que venham as estatísticas escolares e judiciárias dizer-nos se a massificação do ensino se tem configurado, de facto, como prevenção bastante ou como antídoto eficaz contra a massificação da criminalidade, que é, sem dúvida, uma das características deste nosso final de século...

Deixemos, porém, as escolas de lado, deixemos de lado a cultura em geral, deixemos a arte, a filosofia e a ciência, para cuja adequada ponderação me faltariam o saber e a autoridade, e tornemos à literatura e à sua relação com a sociedade.  Mantenhamo-nos discretamente nos domínios do ético e do axiológico (sem os quais, há que reconhecê-lo, qualquer exame de uma transformação social determinada, fosse qual fosse a sua época, teria de satisfazer-se com pouco mais do que uma tabela de pesos e medidas), e reconheçamos, por muito que essa verificação castigue a nossa confiança, que as obras dos grandes criadores literários do passado, de Homero a Cervantes, de Dante a Shakespeare, de Camões a Dostoievski, apesar da excelência de pensamento e fortuna de beleza que diversamente nos propuseram, não parecem ter originado, em sentido pleno, nenhuma efectiva transformação social, mesmo quando tiveram uma forte e às vezes dramática influência em comportamentos individuais e de geração. No plano da ética, dos valores, do respeito humano, apetece dizer, sem cinismo, que a humanidade (estou a referir-me, claro está, ao que costumamos designar por mundo ocidental) seria exactamente o que hoje é se Goethe não tivesse vindo ao mundo. E que, em reforço desta ideia, não consta que a leitura dos Fioretti de S. Francisco de Assis tivesse salvado a vida a uma só das vítimas da Inquisição...

Admissível é, pois, afirmar que a literatura, mesmo quando, por razões religiosas ou políticas, se dedicou a um missionarismo de bons conselhos e a uma engenharia de almas novas, não só não contribuiu, como tal, para uma modificação positiva e duradoura das sociedades, como provocou, muitas vezes, insanáveis sentimentos de frustração individual e colectiva, resultantes de um balanço negativo entre as teorias e as práticas, entre o dito e o feito, entre uma letra que proclamava um espírito e um espírito que não se reconhecia na letra. Bem mais fácil seria, para quem faça questão de descobrir em todas as coisas mútuas relações de causa e efeito, reunir provas da influência maléfica da literatura (de uma parte dela, pelo menos) nos costumes e na moral, e portanto na sociedade, tarefa, aliás, bastante favorecida pela presença obsessiva de algumas dessas obras e alguns desses autores, por exemplo, no imaginário sexual de milhões de pessoas, alimentando fantasmas e fantasias a que, de outro modo, ficariam faltando referências, abonações, modelos, por outras palavras, uma completa filosofia de vida... Entendidas assim tais relações, e adoptando a atitude, mais comum do que se imagina, daqueles que crêem que algo só tem existência verdadeira a partir do momento em que existe a palavra que o nomeará, o Sadismo ter-se-ia revelado ao mundo quando o marquês de Sade, ainda criança, arrancou, pela primeira vez, as asas a uma mosca, e o Masoquismo, também ele, teve de aguardar o dia em que a pequena alma de Sacher-Masoch, talvez por aquela mesma idade, e imitando, sem o saber, o exemplo dos místicos de todas as religiões, percebeu que era, primeiro, possível, depois, desejável, passar do sofrimento no prazer ao prazer no sofrimento. Ao cabo de milénios, depois de uma longuíssima espera, de tanto tempo perdido, o sádico e o masoquista puderam finalmente encontrar-se, reconhecer-se como complementares e, desta maneira, inaugurar a felicidade...

Este percurso, tão breve, pela primeira das vias de reflexão que se nos apresentaram, aquela que assentava no pressuposto de que a literatura, independentemente do significado moral ou imoral das suas expressões, teria exercido ou exerceria ainda influência nas sociedades, ao ponto de constituir-se como um dos seus agentes transformadores, conduziu-nos, creio, a uma conclusão pessimista e aparentemente intransponível: a da sua irresponsabilidade essencial. Irresponsabilidade, digo eu, no sentido restrito de que não será legítimo atribuir ao ciclo da Guerra das Duas Rosas de Shakespeare, tomemos este outro exemplo, a culpa de um eventual aumento, em número e em gravidade, dos crimes públicos ou privados em geral, como igualmente não teremos o direito de acusar o autor de Ricardo III de não haver podido lograr, graças ao que se espera ser a lição admoestadora e edificante de toda a tragédia, que os reis e os presidentes passassem a matar-se menos e os particulares a respeitar-se mais. Uns aos outros e a si mesmos, faltou dizer.

Se a literatura é de facto irresponsável, na dupla acepção de não poderem ser-lhe imputados, mesmo que só parcialmente, nem o bem nem o mal da humanidade, e portanto não estar obrigada, quer para penitenciar-se quer para felicitar-se, a prestar contas em nenhum tribunal de opinião; se, pelo contrário, actua, no seu fazer-se, como um reflexo mais ou menos imediato do estado mental das sociedades e das suas sucessivas transformações então, a segunda via de reflexão proposta, aquela que, talvez com excessivo radicalismo, precisamente acabaria por mostrar a literatura como mero e obediente sujeito, mesmo nas suas aparentes rebeliões, essa via interrompe-se quando ainda mal tínhamos dado os primeiros passos, assim nos reconduzindo ironicamente ao ponto de partida, à bifurcação dos caminhos, à eterna interrogação sobre o que deve ser e para que deve servir a literatura quando, na vida cultural dos povos, se instala o sentimento inquietante de que, não tendo aparentemente deixado de ser, manifestamente deixou de servir.

Mesmo que o determinismo da conclusão possa humilhar certas vaidades literárias, mais inclinadas do que aconselharia a modéstia a magnificar o seu papel na repúblicas das letras e na sociedade em geral, penso que não teremos mais remédio do que reconhecer que a literatura não transformou nem transforma socialmente o mundo e que o mundo é que transformou e vai transformando, e não apenas socialmente, a literatura. Posta a questão assim, em termos simples, objectar-se-á que depois de nos terem fechado os caminhos, agora nos vêm fechar as portas, e que, encerrado neste círculo, sobre todos vicioso e perverso, nada mais restará ao escritor, enquanto tal, que trabalhar sem esperança de vir realmente a influir na vida da sua época, limitado a produzir os livros que a necessidade de divertimento da sociedade, sem o parecer, lhe vai encomendando, e com os quais se satisfarão ela e ele, ou, no caso de ter sido contemplado com uma porção suficiente de génio quando da sua distribuição pelo cosmo, escrever obras que o seu tempo compreenderá mal ou a que será hostil, deixando ao futuro a responsabilidade de um julgamento definitivo que, eventualmente seguro e justo nesse caso específico, reincorrerá, infalivelmente, em erros de apreciação quando, já tornado presente, for chamado a pronunciar-se sobre obras contemporâneas. Em verdade, o escritor, quando escreve, não está apenas só, está também rodeado de escuridão, e creio que não abusarei da minha limitada faculdade de imaginar se disser que até a própria luz da obra pouca ou muita, todas a têm o cega. Dessa particular cegueira não o poderão curar nenhuma crítica, nenhum juízo, nenhuma opinião, por mais fundamentados, e úteis em alguns planos, que se lhe apresentem, porquanto são emitidos, todos eles, de um outro lugar.

Em que ficamos, então? Se as sociedades não se deixam transformar pela literatura, ainda que esta, numa ou noutra ocasiões, possa ter tido nas sociedades alguma superficial influência, se, pelo contrário, é a literatura a que se encontra permanentemente assediada por sociedades, como são estas de hoje, que não lhe exigem mais do que as fáceis variantes duma mesma anestesia do espírito que se chamam frivolidade e brutalidade como poderemos nós, sem esquecer as lições do passado e as insuficiências de uma reflexão dicotómica que se limitaria a fazer-nos viajar entre a hipótese, nunca satisfatoriamente verificada, de uma literatura agente de transformações sociais, e a evidência de uma literatura, outra, esta, que parece não ser capaz de fazer mais do que recolher os destroços e enterrar as vítimas das batalhas sociais , como poderemos nós, insisto, ainda que provocando a troça das futilidades mundanas e o escárnio do senhores do mundo, voltar a um debate sobre literatura e compromisso, sem parecer que estamos falando de restos fósseis?

Espero que no futuro próximo não venham a faltar respostas a esta pergunta e que cada uma delas, ou todas juntas, possam fazer-nos sair da dolorosa e resignada paralisia de pensamento e acção em que parecemos comprazer-nos. Por minha parte, limito-me a propor, sem mais rodeios, que regressemos rapidamente ao Autor, a essa concreta figura de homem ou de mulher que está por trás dos livros e sem a qual a literatura seria coisa nenhuma, não para que ele ou ela nos digam como foi que escreveram as suas grandes ou pequenas obras (o mais certo é não o saberem eles próprios), não para que nos eduquem e guiem com as suas lições (que muitas vezes são os primeiros a não seguir), mas simplesmente para que nos digam quem são, na sociedade que, eles e nós, somos, para que se mostrem todos os dias como cidadãos deste presente, mesmo que, como escritores, creiam estar trabalhando para o futuro. O problema não está em, supostamente, se terem extinguido as razões e causas de ordem social, ideológica ou política que, com resultados estéticos tão variáveis quanto as intenções, levaram ao que se chamou literatura de compromisso, no sentido moderno da expressão; o problema está, mais cruamente, em que o escritor, regra geral, deixou de comprometer-se, e em que muitas das teorizações em que hoje nos deixamos envolver não têm outra finalidade que constituir-se como escapatórias intelectuais, modos de ocultar, aos nossos próprios olhos, a má consciência e o mal-estar de um grupo de pessoas os escritores que, depois de se terem olhado a si mesmos, durante muito tempo, como luz divina e farol do mundo, acrescentam agora, à escuridão intrínseca do acto criador, as trevas da renúncia e da abdicação cívicas.

Depois de morto, o escritor será julgado segundo aquilo que fez. Reivindiquemos, enquanto ele estiver vivo, o direito a julgá-lo também por aquilo que é.

José Saramago, Colóquio em Málaga, publicado na revista Quimera

Disponível em: Saramago: Escrever, Interromper. Narrativas breves de José Saramago: problemáticas de um lugar discursivo. Maria de Fátima Palmela de Faria Roque. Lisboa, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, 2016

 

https://www.josesaramago.org/produto/literatura-compromisso/


Literatura de Compromisso

 

L’égalité fait effet dans le corps social sous forme d’existences suspensives, qui peuvent s’appeller littérature ou prolétariat…1

 

 

Literatura de compromisso, expressão que emoldura o presente trabalho, remete-nos para uma imensa área da reflexão e produção científica, que abarca, entre outros, os binómios literatura-sociedade, literatura-política, literatura-ética, os quais se encontram, por  seu  turno,  relacionados  com  a  problemática  dos  intelectuais  da  escrita,  esses homens de letras, assim designados desde o  affaire Dreyfus2, e cujo  silêncio ou intervenção suscitam, até hoje, as mais variadas discussões quanto àquilo que “deve ser” a sua atitude face à escrita e ao contexto em que se integram.

Não pretende este trabalho focar-se na questão dos intelectuais, à qual nos dedicámos já, no âmbito do Seminário de Metodologias em Estudos Portugueses (trabalho intitulado: “O Intelectual e a Pós-Modernidade: que lugar, que tarefa? Uma reflexão em torno dos legados de Sartre, Foucault e Lyotard”, janeiro de 2011), mas não podemos deixar de os referir, dado ser nosso entendimento que o intelectual-escritor é o autor por detrás de uma literatura do compromisso (e não comprometida, no sentido de militante), uma literatura cuja missão é por ele encarada enquanto portadora de um sistema de valores éticos e de conceitos universais”, mais precisamente, os “seus” valores e conceitos, enformados esteticamente pelas palavras, essa ferramenta a única de que sabe dispor de uma forma (por vezes) quase mágica, que abre novas paisagens no espírito do leitor. É quase possível dizer-se que toda a obra literária é uma obra de compromisso, o compromisso de dar forma e sentido ao real.3

Falamos, pois, de um trabalho, o trabalho de escrita e de uma escrita cuja função não é apenas comunicar ou exprimir, mas impor um além da linguagem que é ao mesmo tempo a História e o partido que nela se toma”4, i.e., que é também um projeto de vida, no sentido de colagem e consistência de um conjunto de temas (em entrevista a Leneide Duarte-Plon5, Jacques Rancière formula a opinião de que “não temas, uma vez que o estilo é [citando Flaubert] ‘uma maneira absoluta de ver as coisas’”) que o  autor transpõe para a sua obra, seja de modo ficcional ou nas múltiplas facetas da sua intervenção pública, numa autoridade que outros lhe conferem enquanto figura das letras com obra reconhecida e por si tida como responsabilidade. A nosso ver, é, precisamente, na multiplicidade de papéis assumidos pelo escritor cuja obra é recebida como objeto de relevo (e graças a ela), que reside a adequação da designação de “intelectual”. O escritor intelectual é, parece-nos, o escritor que subverte, com a sua obra e com as suas ações, convenções, códigos e tradições, não com a pretensão de instituir novos, mas sim de fundar um novo espaço junto da comunidade de cidadãos do seu tempo: o espaço para um novo olhar sobre o real, para uma nova visão do mundo.6

Uma literatura de compromisso apenas pode, por isso e a nosso ver, ser encontrada no conjunto que compõe a obra e o percurso de vida de determinado escritor, no sentido em que, uma e outra, devem figurar-se como os dois lados de um espelho: a personalidade (o eu interior) e aquilo que esta conseguiu criar, dar ao mundo. Homem e autor caminhando a par, refletindo sobre o seu tempo, interrogando-o e interrogando-se, forçando brechas onde deteta clausuras, estrategicamente investindo em objetos literários direcionados a um mesmo público, a uma mesma finalidade, ainda que, aparentemente, neles se reproduzam as suas várias vozes. Homem e autor presentes na matéria discursiva com a qual é construído um romance, um conto, um poema, uma crónica, até mesmo um diário ou uma intervenção pública. Homem e autor, por último, para quem a literatura e a palavra, são a urgência do seu tempo.

Ideologia7 e política são fatores indissociáveis deste tipo de problemática. O autor comprometido com o seu tempo e com a sua obra, não pode deixar de expressar os seus sentimentos, os seus ideais, as suas posições políticas, no sentido daquilo que considera ser a melhor forma de organizar uma comunidade, uma sociedade. Não se trata aqui de uma questão de militância em determinado partido político (essa será a postura do escritor militante, que consideramos poder encarar como autor de textos de menor qualidade literária, por se guindarem em regras rígidas e enformadas de determinados postulados partidários). Mais do que falar de ideologias8 ou de modelos organizativos que hoje se reconhecem fracassados ou por acontecer (como o comunismo), destituídos de sentido pelo horror e pelo mal que induziram (como todos os nacionalismos), esgotados (como o imperialismo), ou sem alternativa (como o neoliberalismo), importa-nos situar o escritor-intelectual numa teia de relações na qual nada do que lhe é passado, história, património constitutivo do seu ser e do seu tempo, é deixado de lado, antes aposto num dos pratos da balança como contrapeso aos dados que vai lançando para o outro prato: os dados da atualidade, ponto de partida para a construção de uma narrativa estética do real.

“Se a ideologia como diz Macherey pode ser apresentada como um conjunto de significações,  um  conjunto  não  sistemático,  a  obra  propõe  uma  ‘leitura’  dessas significações”, embora essa leitura… nunca esgote a obra, pois esta, não se bastando a si mesma, abre-se para “a ‘presença’ do não dito”. E o que significa esse “não dito”? Significa que na obra de arte a ideologia não se apresenta propriamente como conteúdo. A ideologia é apenas a matéria prima para a construção ou apresentação do imaginário… (Fernando Guimarães, Linguagem e Ideologia, p. 27)

Fará hoje sentido falarmos de uma literatura de compromisso? De uma literatura que alguns situaram/fixaram num tempo e espaço próprios da História? Fará sentido falarmos de escritores comprometidos com o seu tempo e com um determinado trabalho de escrita, na linha do que Sartre designou de escritor engajado?9 Pensamos que sim, que continua a estar presente esta necessidade e que a podemos encontrar na obra literária de escritores portugueses contemporâneos, como é o caso de José Saramago e de outros (refiram-se apenas os nomes de José Cardoso Pires, Carlos de Oliveira ou Vergílio Ferreira, com produções literárias diferenciadas que, em dado momento e contexto histórico, se identificaram com um movimento específico o movimento neorrealista português e que, apesar das opções estéticas posteriores de cada um, mantiveram um registo a que chamaremos ético, traduzido num compromisso com a palavra, com a literatura e com o seu tempo). E, se esta escrita é necessária (“As feridas, como mostram os escritores, ainda sangram…”, recorda-nos Walter Jens10) e útil, é porque tem um público leitor específico, que a “interpreta” como tal. Este público é, também, o Outro que testemunha. E a literatura é sempre, a cada palavra escrita, um ato público, uma tomada de posição.

L’’espace des possibles’ dans lequel se meut l’écrivain n’est pas identique à chaque époque; il est en constante mutation et ne cesse de se reconfigurer, donnant à chaque période de l’histoire littéraire son profil singulier. Aussi la définition de ce qu’est la littérature engagée se singularise-t-elle du même pas que l’espace des possibles dans lequel elle s’inscrit. (Benoît Denis, Littérature et engagement, de Pascal à Sartre, p. 27).

 

A comunidade dos singulares

O escritor-intelectual é um homem comprometido com o seu tempo, preocupado com o sentido da verdade, com as dissonâncias e os desequilíbrios, com a linguagem e com a palavra. O escritor-intelectual é, assim o entendemos, ele mesmo, um político, porque busca incessantemente, através da palavra, fazer eclodir gritos onde apenas silêncio, porque denuncia e alerta, ficcional ou diretamente, as falsidades de convenções impostas pelo poder e assumidas por uma comunidade como verdadeiras, ao ponto de se tornarem consensuais, patrimoniais. O escritor-intelectual aponta a dedo as diferenças numa sociedade (retórica e demagogicamente) pintada de igual. O escritor-intelectual é muitas vezes um escritor-maldito, porque nomeia o mal, o erro, a contradição, a rejeição do Outro; ele sabe que o próprio tempo é uma utopia a nova utopia, o remédio para todos os males, tal como refere Jacques Rancière11 (“Le temps devient alors, dans une fuite en avant, la matière de la dernière utopie.”) e tem a coragem de assinar por baixo.

Uma das questões que nos parecem pertinentes no quadro do relacionamento da literatura com a política, é a questão do Outro. Se à democracia tem sido conferido o mérito e a responsabilidade de se edificar enquanto o único regime político capaz de promover uma sociedade de iguais, a reflexão levada a efeito por parte de alguns autores contemporâneos (como Jacques Rancière), conduz-nos à interrogação quanto à sua própria existência, bem como ao tipo de organização a que deu origem. Talvez esteja, então, aí, a verdadeira razão de ser do escritor-intelectual: aquele que enuncia a “paixão pelo Um que exclui” (Rancière, Aux bords du politique, p. 66).

É, aliás, significativa a chamada de atenção do autor de Aux bords du politique, para esta questão:

La démocratie n’est ni l’autorégulation consensuelle des passions plurielles de la multitude des individus ni le règne de la collectivité unifiée par la loi à l’ombre des déclarations des Droits… Il n’y a pas démocratie simplement parce que la loi déclare les individus égaux et  la collectivité maîtresse d’elle même. Il y faut encore cette puissance du ‘démos’12 qui n’est ni l’addition des partenaires sociaux ni la collection des différences mais tout au contraire le pouvoir de défaire les partenariats, les collections et les ordinations. (Rancière, Aux bords du politique, p. 67)

Parece-nos como que um tiro certeiro, esta afirmação de Rancière: a democracia, sistema a que o homem almejou ao longo de tantas épocas, pelo qual se fizeram guerras, o regime idealizado como o mais justo, não chegou, todavia, a consolidar-se. Não pode, como refere o autor, decretar-se a democracia, é preciso potenciar o ‘démos’ que, ao contrário do que se pensa, não se traduz numa mera soma das partes sociais nem numa colecção das diferenças, mas no seu oposto, ou seja, o desfazer de partenariados, colecções e ordenações. Certamente não seria necessária a tradução, no entanto, julgamos relevante, frisar, reforçar, fixar na nossa língua de origem, estas palavras esclarecedoras do tempo político que vivemos e no qual se inscreve a narrativa, o corpus literário, que pretendemos aprofundar e que tem sempre presente a “tensão do Outro” (Rancière, Aux bords du politique, p. 158). Este tempo democrático, o tempo da instauração de uma suposta “comunidade de iguais”, que mais não é do que uma comunidade restrita, uma comunidade do consenso, polida ao ponto de resplandecer, com o número adequado de seres, de conceitos e de palavras, uma comunidade e uma sociedade saturadas de significantes, como bem nos recorda Rancière, para quem a literatura nada tem a ver com o poder, mas sim com o consenso:

Elle défait le consensus en faisant traverser le je qui consent, convient et contracte par un il. L’instance de cet il… qui traverse le rapport d’un ”je” à lui-même, ne releve pás d’un être du langage. Il relève plutôt de la confrontation entre la puissance du langage et l’experience de la singularité du corps qui objecte… (Rancière, Aux bords du politique, p. 195)

A literatura expõe, propõe, então, a experiência do múltiplo e do dissenso e instaura a comunidade dos singulares, a única capaz da infinita possibilidade do múltiplo.

Cela veut dire prendre la mesure de l´égalité, cette mesure qui est l’art de régler la proximité et la distance… Cela veut dire apprendre sans cesse à mesurer et à estimer, à recréer à chaque instant ce proche et ce distant qui définissent les intervalles de la communauté égalitaire. (Rancière, Aux bords du politique, p. 199-200)

 

In Crónica: Literatura de Compromisso ou a Urgência da Palavra, Maria de Fátima Palmela de Faria Roque. Lisboa, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, 2011

 

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Notas:

1  In Rancière, Jacques, Aux bords du politique, Collection Folio Essais, Gallimard, septembre 2007, p. 194.

2  …ce nom dérisoire…, como aponta Maurice Blanchot (Les intellectuels en question, Ébauche d’une réflexion, Éditions Farrago, décembre 2000, p. 17).

3 Cf. Denis, Benoît, Littérature et engagement, de Pascal à Sartre, Éditions du Seuil, février 2000, p. 10.

4 In Barthes, Roland, O Grau Zero da Escrita, Edições 70, Lda., novembro de 2006, p. 7. Roland Barthes afirma (e nós concordamos) que a escrita é pois essencialmente a moral da forma, é a escolha da área social no seio da qual o escritor decide situar a Natureza da sua linguagem… a sua escolha é uma escolha de consciência, não de eficácia… a escolha, e depois a responsabilidade de uma escrita, designam uma liberdade… É sobre a pressão da História e da tradição que se estabelecem as escritas possíveis de um determinado escritor… A escrita é precisamente esse compromisso entre uma liberdade e uma recordação, é a liberdade recordadora que é liberdade no gesto da escolha, e não na sua duração. (O Grau Zero da Escrita, p. 18-19).

5 In A democracia literária, Por Leneide Duarte-Plon (http://pphp.uol.com.br).

6 Et si l’on nous dit que nous faisons bien les importants et que nous sommes bien puérils d’espérer que nous changerons le cours du monde, nous répondrons que nous n’avons aucune illusion, mais qu’il convient pourtant que certaines choses soient dites… nous n’avons pas la folle ambition d’influencer le State Department, mais celle un peu moins folle d’agir sur l’opinion de nos concitoyens. Jean-Paul Sartre, In Qu’est-ce que la littérature?, Éditions Gallimard, 1948, p. 283.

7 No Ensaio Sobre a Literatura como Forma Ideológica (in Literatura, Significação e  Ideologia, Colecção Práticas de Leitura, dirigida por Maria Alzira Seixo, Editora Arcádia S.A.R.L., 2.ª edição, Fevereiro de 1979, p. 33), Étienne Balibar e Pierre Macherey `vão ao encontro do nosso entendimento desta questão: Reconhecer na literatura uma determinada forma ideológica não é, não pode ser, ‘reduzir’ a literatura às ideologias morais, políticas, religiosas e até estéticas que são definíveis fora dela. Também não é fazer destas ideologias… o ‘conteúdo’ ao qual ela viria dar uma ‘forma’ especial… Determinar a literatura como formação ideológica particular, é levantar um problema completamente diferente: o da ‘especificidade dos efeitos ideológicos’ produzidos pela literatura e do modo (mecanismo) segundo o qual ela os produz.

Sartre vai mais longe (in Qu’est-ce que la littérature?, Éditions Gallimard, 1948, p. 288), quando afirma que, em cada época, é a literatura toda que é a ideologia.

Uma abordagem histórica e estrutural pode ainda ser encontrada no artigo de António Lopes sobre Ideologia, in http://www.fcsh.unl.pt/invest/edtl.

8 Étienne Balibar e Pierre Macherey (este último citado por Fernando Guimarães, acima, no texto), afirmam que: A experiência prova, de facto, que é perfeitamente possível ‘substituir’ os termos ideológicos que reinam na “vida cultural”, temas de origem burguesa ou pequeno-burguesa, por novos temas “marxistas”, sem que por isso se modifique realmente o lugar da arte e da literatura na prática social, nem por conseguinte, a ‘relação prática’ dos indivíduos e das classes sociais com as obras de arte

que eles produzem ou consomem. Pelo contrário, esta produção e este consumo continuam a ser concebidos e praticados sob a modalidade da “arte” em geral (quer seja “comprometida”, “socialista”, “proletária”, etc.). (Ensaio Sobre a Literatura como Forma Ideológica, p. 24-25).

9 Je dirai qu’un écrivain est engagé lorsqu’il tâche à prendre la conscience la plus lucide, et la plus entière d’être embarqué, c’est à dire lorsqu’il fait passer pour lui et pour les autres l’engagement de la spontanéité immédiate au réfléchi. L’écrivain est médiateur par excellence et son engagement c’est la mediation. In Qu’est-ce que la littérature?, Éditions Gallimard, 1948, p. 84.

10 In Literatura e Política: possibilidades e limites, in Revista Colóquio/Letras. Ensaio, n.º 33, Set. 1976, p. 5-18.

11 In Rancière, Jacques, Aux bords du politique, Collection Folio Essais, Gallimard, septembre 2007, p. 56.

12 Na terceira parte da obra Aux bords du politique, Jacques Rancière esclarece o que entende por démos: Avant d’être le nom de la communauté, ‘démos’ este le nom d’une partie de la communauté: les pauvres. Mais précisément ‘les pauvres’ ne désigne pas la partie économiquement défavorisée de la population. Cela désigne simplement les gens qui ne comptent pas, ceux qui n’ont pas de titre à exercer la puissance de l´’arkhé’, pas de titre à être comptés. (p. 232-233)

Também na obra Estética e Política, a Partilha do Sensível, o autor aponta para o facto de que: O cidadão, segundo Aristóteles, é aquele que ‘toma parte’ no acto de governar e de ser governado. Mas uma outra forma de partilha precede este ‘tomar parte’: a que determina quem vai tomar parte. (Estética e Política, a Partilha do Sensível, Dafne Editora, Colecção Imago, Porto, 2010, p. 13).

 

 


CARREIRO, José. “Literatura de Compromisso”. Portugal, Folha de Poesia: artes, ideias e o sentimento de si, 19-04-2023. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2023/04/literatura-de-compromisso.html