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sábado, 17 de fevereiro de 2024

Mar Me Quer


 

Mar Me Quer

 

O Mar me quer, eu sou feliz só por preguiça
deixei escapar a maré, adormecido
Zeca Perpétuo, sou reformado do mar
tenho juízo de mamba pelo seu olhar

Mar me quer, bem me quer 
Canto chão de luarmina
o coração é uma praia
diz Celestiano à menina

Mar me quer, bem me quer 
com olhos de tubarão
meu avô falava certo
quem demora tem razão

Todas as noites despetalou flores a mulata 
Dona Luarmina, minha vizinha 
logo de manhã passa sonhos pelo rosto 
atrasa a ruga, impede o tempo

 

Letra e música de João Afonso

 

João Afonso Lima (Beira, 1965) é um cantor português. Viveu em Moçambique até 1978, com seus pais e irmãos. Colheu influências da música urbana africana e da música popular portuguesa, esta última pela influência de Zeca Afonso, seu tio materno. A sua colaboração em Maio Maduro Maio (1994), em parceria com José Mário Branco e Amélia Muge, valeu-lhe a atribuição do Prémio José Afonso.

Cristina Mielczarski Santos, A ponte entre a palavra da alma e a palavra do papel: epistolário ficcional miacoutiano. Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Instituto de Letras. Programa de Pós-Graduação em Letras, 2013. http://hdl.handle.net/10183/77153

 

***

 

O poema "Mar Me Quer" de João Afonso é uma adaptação musical da novela Mar Me Quer, do escritor moçambicano Mia Couto, cuja leitura se encontra orientada na nossa página da Lusofonia.

Na novela Mar Me Quer, «Mulata Luarmina e Zeca Perpétuo partilham território de vizinhança, chão de terra tão mais velho que eles, olhando o mar que é sempre quem mais viaja.

Luarmina ensombreada de um qualquer silêncio, que de tão longo parece segredo, entardece todos os dias na companhia de Zeca, ouvindo as histórias que vão povoando a paisagem.

Zeca Perpétuo sonha sempre o mesmo: se embrulhar com ela, arrastá-la numa grande onda que os faça inexistir.

Luarmina foi aprendendo mil defesas para as insistências namoradeiras de Zeca, mas um dia resolve negociar falas e outras proximidades, não em troca de aventuras sonhiscadas de Zeca, mas de suas exatas memórias.

E como diz o avô Celestiano "o coração é uma praia", em que o mar, porque nos quer, acaricia memórias e apazigua ausências.

Avô Celestiano é a sabedoria do tempo. Mas também é o fabricador de sonhos. Por via dos sonhos, ele visita os vivos e conduz, na sombra dos aléns, os destinos e os amores de Zeca e Luarmina.

"O que faz andar a estrada? … o sonho. Enquanto a gente sonhar a estrada permanecerá viva. … para isso que servem os caminhos. Para nos fazerem parentes do futuro." (Mia Couto, Mar Me Quer

 

Natália Luiza, Mar me quer, Coimbra, Cena Lusófona, 2002(Adaptação dramatúrgica da novela homónima de Mia Couto, encomendada pela Cena Lusófona, e colocada em palco pela companhia Teatro Meridional, num espetáculo estreado em maio de 2001, no Teatro Taborda em Lisboa.)

 



 

LER MAIS EM:

 

Mar me quer (1998) -  leitura orientada

Apresentação da obra

Resumo da obra

Desfiar memórias como quem vai desfolhando flores (sobre Mar me quer, de Mia Couto)

Mar me quer: a outra face da lua

O mundo ficcional de Mia Couto – Mar me quer ou o coração é uma praia

Mar me quer: carta como elemento de primeiro contacto.

Imaginância rima com infância: os livros de receção infanto-juvenil de Mia Couto - Mar me quer

Mar me quer, de Mia Couto, entre as literaturas do insólito e juvenil

Mar me quer - propostas de trabalho

 


segunda-feira, 30 de outubro de 2023

Pessoa, leitor de Horácio

foto da biblioteca de Pessoa, na Casa Fernando Pessoa. 
Horácio ao lado de Homero

 

Quem lê Horácio recebe o seu lugar na comunidade das mentes mais argutas do passado, que encontraram neste poeta um estímulo da inteligência. Quando Camões escreveu a ode «Fogem as neves frias» ou a expressão estapafúrdia «Acroceráunios infamados» (ver Lusíadas 6.82), quis mostrar ao leitor que leu Horácio; talvez que tinha inteligência mais do que suficiente para entender Horácio. No âmbito restrito dos Estudos Clássicos, ainda hoje pasmamos com o rol ilustre de nomes que quiseram dedicar ao estudo de Horácio o melhor das suas capacidades intelectuais. Seria possível citar muitos nomes ingleses, alemães, italianos, americanos, etc. Mas vou só referir o nome de uma latinista de referência para mim, uma mulher extraordinária que assinou, em colaboração com o Professor Robin Nisbet, os melhores comentários alguma vez escritos à obra de Horácio: Margaret Hubbard, professora em Oxford (morreu em 2011, aos 86 anos), célebre pela sua inteligência cintilante, pelos três cigarros que fumava ao mesmo tempo (um na mão e dois acesos no cinzeiro), pelo gosto com que bebia quantidades valentes de vinho branco sem que lhe se notasse a mínima alteração; e namorada, em determinada fase da sua vida, da filósofa e escritora Iris Murdoch.

Outro obcecado por cigarros e por Horácio foi Fernando Pessoa, o homem que obrigou o mundo a rever a definição da palavra «génio». Quem visitar a Casa Fernando Pessoa, vê na biblioteca particular do autor a edição parisiense de Horácio, preparada por F. Plessis e P. Lejay (na edição de 1911, segundo o catálogo da biblioteca). Este livro existe também em várias bibliotecas da Universidade de Coimbra. Mas não pode ter sido a única edição de Horácio consultada por Pessoa, porque a edição de Plessis e Lejay omite alguns poemas que, já nos séculos XVI e XVII, eram considerados escandalosos. Um deles é a Ode 1 do Livro 4, em que Horácio se declara apaixonado: não por Lídia, Cloe ou Neera, mas sim por um jovem chamado Ligurino. Um manuscrito conservado no espólio de Fernando Pessoa mostra que Pessoa escolheu justamente esta ode para uma tentativa de tradução do latim para português. Assim, é certo que, além da edição que se encontra hoje na Casa Fernando Pessoa, o criador dos heterónimos consultou também Horácio noutras edições (remeto para o artigo de Luiz Fagundes Duarte, na revista Euphrosyne 1993, pp. 203-216).

Pessoa sabia latim, mas traduziu apenas o princípio da ode horaciana sobre Ligurino. Aliás, fez várias versões dos versos iniciais; e depois desistiu. Fez o mesmo com o início da Arte Poética. Talvez ele tenha sentido aquilo que eu próprio muitas vezes tenho sentido: como é difícil (ou mesmo impossível) transpor para a tradução a beleza das palavras em latim. É a frustração com esse problema que me tem impelido a fazer edições bilíngues de Vergílio e de Horácio: para que, ao menos, o texto latino esteja debaixo dos olhos dos leitores; e para que a tradução portuguesa tenha como objetivo primeiro constituir uma ajuda para a decifração do texto original.

Mas o que Pessoa (esse génio!) conseguiu com as Odes de Horácio foi um feito maior do que traduzi-las. Recriou-as. Fez renascer a voz de Horácio, 2000 anos após a morte do poeta romano. Na verdade, a poesia do heterónimo Ricardo Reis é uma recriação espantosa de Horácio. Sem que haja, porém, uma única citação literal do poeta romano! É como se a alma de Horácio tivesse reencarnado em Pessoa, tal como a de Homero teria reencarnado no poeta romano arcaico Énio (segundo testemunho do próprio Énio... presunção e água benta!). Reis não precisa de citar Horácio para ser Horácio. Aliás, quem cita Horácio literalmente não é Reis mas Álvaro de Campos, dando assim outro testemunho da obsessão de Pessoa por Horácio.

Leia-se o poema de Campos que começa com o verso recheado de palavras latinas «O mesmo "Teucro duce et auspice Teucro"». Campos está aqui a citar uma ode horaciana: em concreto, a Ode 7 do Livro 1. O segundo verso do poema de Campos dá-nos mais uma palavra em latim e mais uma alusão à mesma ode de Horácio: «É sempre "cras" - amanhã - que nos faremos ao mar». Este verso remete para o último da ode de Horácio: «Amanhã araremos de novo o mar enorme». E a expressão de Campos «nada que desesperar...» traduz o latim «nil desperandum» da ode horaciana.

Ricardo Reis não traduz, portanto, versos de Horácio. Transforma-se em Horácio. E escreve os poemas que Horácio poderia ter escrito se tivesse composto em português. Horácio escreveu quatro livros de Odes. Reis acrescentou mais um livro ao conjunto: um livro que destila a quintessência de Horácio e também interpreta e soluciona problemas famosos nas odes horacianas.

Um exemplo fascinante é a ode de Reis que começa com as palavras «Floresce em ti, ó magna terra, em cores / a vária primavera». Este poema de Ricardo Reis explica duas odes horacianas que têm causado perplexidade aos intérpretes, porque são dois poemas sobre a chegada da primavera em que, abruptamente, Horácio muda para o tema da morte (Ode 1.4; Ode 4.7). Reis explica a associação que Horácio fez entre a primavera e a morte: «Mas dorme em cada campo o outono dele. / O inverno cresce com as folhas verdes.» Ou seja: a morte está latente em cada nascimento.

É sabido que Fernando Pessoa quis de tal modo encarnar Horácio que andou às voltas com os problemas da métrica usada pelo poeta romano. No espólio de Pessoa, há testemunhos desse fascínio pela métrica latina, estudados pelo saudoso Fernando Lemos no seu livro «Fernando Pessoa e a Nova Métrica» (Lisboa, 1993). No entanto, não é na métrica de Horácio (impossível de reproduzir em português) que assenta o horacianismo de Ricardo Reis: é muito mais na dicção. A colocação das palavras nas frases lembra os hipérbatos da textura em «puzzle» das frases horacianas. Um exemplo expressivo é o poema de Reis que começa «As rosas amo dos jardins de Adónis, / Essas vólucres amo, Lídia, rosas». Na ordem direta, teríamos «Amo as rosas dos jardins de Adónis; amo essas rosas vólucres, Lídia».

Já agora: vólucres? Os especialistas de Pessoa discutem se o poeta escreveu «vólucres» ou «volúveis». Parece-me claro que Reis está a referir-se ao verso de Horácio «as flores demasiado breves da rosa amena» (Ode 2.3); e, de facto, Horácio usa o adjetivo latino «volucer» (cujo sentido é «alado», «rápido», «fugidio», «transitório»). Mas também usa «volubilis» uma vez nas Odes: curiosamente, é a última palavra da ode sobre a paixão por Ligurino.

E por falarmos em dúvidas quanto a uma palavra que Ricardo Reis escreveu: na única ode ricardiana em que Quinto Horácio Flaco é nomeado, será que o poeta português lhe chamou «louro Flaco» ou «louco Flaco»? As edições de Ricardo Reis são discrepantes: tanto lemos «louco Flaco» como «louro Flaco». Não há nada na poesia do próprio Horácio que nos leve a pensar que ele era louro: o que ele diz do seu cabelo é que ficou prematuramente grisalho (Epístolas 1.20.24). Mas no final da Arte Poética, fica claro que o poeta verdadeiro terá necessariamente um toque de loucura.

Dir-se-á que «louCo FlaCo» resulta numa aliteração inestética. Mas é bem horaciana. Veja-se o v. 22 da Arte Poética: «Currente rota Cur urCeus exit?» (em português: «enquanto a roda rodopia, porque sai um cântaro?»).

A dicção de Reis, com o seu puzzle de palavras, é parte integrante do prazer que nos é proporcionado pelos poemas de Ricardo Reis e de Horácio. Em 1973, Margaret Hubbard (certamente com três cigarros acesos e com um copo de vinho branco à sua frente) fez esta pergunta a respeito da poesia lírica horaciana: «what is the nature of the pleasure one feels or should feel in it?»

A resposta, quanto a mim, está na dicção: no puzzle de palavras e de sentidos; e também no desafio prazeroso que coloca à nossa inteligência. É um prazer que nos toma e domina, tal como o dos jogadores de xadrez de Ricardo Reis, que sentem o «inútil gozo / sob a sombra tranquila do arvoredo / de jogar um bom jogo».

Mas este gozo não é tão inútil assim: funciona, como os jogadores de xadrez bem sabiam, como amortecedor pessoal contra as tragédias do mundo. Na 2.ª Guerra Mundial, prisioneiros de guerra alemães e ingleses encontraram um prazer partilhado na poesia de Horácio (como conta Patrick Leigh Fermor - mas isso fica para outro post, pois este já vai longo).

Queremos uma síntese dos 7795 versos de Horácio? Ricardo Reis conseguiu fazê-la numa frase: «Quem quer pouco tem tudo; quem quer nada é livre».

 

Frederico Lourenço, Coimbra, 29/10/2023

“Pessoa, leitor de Horácio” disponível em https://www.facebook.com/professor.frederico.lourenco


quarta-feira, 19 de julho de 2023

Soneto da Loucura, Carlos Drummond de Andrade

“Dom Quixote de Cócoras com Ideias Delirantes”, Portinari, 1956

http://www.portinari.org.br/#/acervo/obra/1215/detalhes


SONETO DA LOUCURA

A minha casa pobre é rica de quimera
e se vou sem destino a trovejar espantos,
meu nome há de romper as mais nevoentas eras
tal qual Pentapolim, o rei dos Garamantas.

Rola em minha cabeça o tropel de batalhas
jamais vistas no chão ou no mar ou no inferno.
Se da escura cozinha escapa o cheiro de alho,
o que nele recolho é o olor da glória eterna.

Donzelas a salvar, há milhares na Terra
e eu parto e meu rocim, corisco, espada, grito,
o torto endireitando, herói de seda e ferro,

e não durmo, abrasado, e janto apenas nuvens,
na férvida obsessão de que enfim a bendita
Idade de Ouro e Sol baixe lá das alturas.

Carlos Drummond de Andrade,
D. Quixote, Cervantes, Portinari, Drummond. Rio de Janeiro: Diagraphis, 1973, p. 12

 

A dicotomia devaneio x realidade

Ao buscar as produções de Drummond e Portinari, a que primeiro se encontra é o “Soneto da Loucura”, ladeada pelo desenho de Portinari correspondente ao poema.

Está-se, portanto, diante de duas criações que estabelecem relações intertextuais que instigam a examiná-las. Tome-se como objeto de análise, o desenho “Dom Quixote de cócoras com idéias delirantes”.

Encontra-se, neste desenho, um Dom Quixote muito magro e solitário, sentado de cócoras com as mãos postas acima dos olhos, como se estivesse fixando seu olhar ao longe. A imagem de Dom Quixote pode causar estranheza logo em um primeiro olhar, pois transmite uma sensação de desequilíbrio e desalinho ao mesmo tempo. O desequilíbrio pode ser percebido na sua posição e na falta de harmonia do seu conjunto. A dimensão deste desenho plástico-pictórico é de 20x30cm, sendo vinte centímetros de largura e 30 de altura, porém, estabelecendo-se um ponto médio que localize o ponto central entre largura e altura, percebe-se que este se localizará próximo à axila esquerda de Dom Quixote, conforme se vê abaixo.

Imagem de Dom Quixote


Nesta divisão, pode-se visualizar que o corpo de Dom Quixote não está centrado. A maior parte do seu corpo encontra-se, quase que em sua totalidade, ao lado direito, no entanto, em vez desse posicionamento centralizá-lo neste lado da imagem, sua perna e braço esquerdos invadem o espaço esquerdo e são desproporcionais em relação aos mesmos membros do outro lado. Percebe-se uma textualidade visual que possibilita a construção de sentidos, principalmente ao observar as formações eidéticas – linhas –, assim como as formas que compõe uma assimetria, transmitindo, assim, uma idéia de desproporção dos membros que constituem uma percepção de instabilidade que fortalece a sensação de desequilíbrio (DONDIS, 1997), já que, aparentemente, o corpo tenderia a tombar para o lado, principalmente se for levado em consideração que seus braços, mãos e pernas não estão nivelados, o que por si só já causaria certa dificuldade para a sustentação e equilíbrio de alguém que se encontre nessa mesma posição, materializando, desta forma, a imagem de um ser em desarmonia.

O desequilíbrio das linhas também é mantido pelo pintor no olhar de Dom Quixote. Seus olhos estão como que arregalados e fixos no horizonte, porém, não passam a sensação de estarem realmente vendo algo, pelo contrário, parecem fixar o longe e o nada ao mesmo tempo. Sua postura demonstra que está à procura de algo, como se pode perceber pelas suas mãos, em posição característica de apoio à visão, demonstrando uma busca. Percebe-se que o negro de seus olhos ressalta o “vazio” presente no branco de suas pupilas. Este detalhe lhe confere um olhar de alucinação, de quando o indivíduo já não tem noção do seu eu, de forma que este olhar desvairado demonstra que alguma coisa se perdeu, ou seja, sua razão. Também se pode considerar que neste olhar visionário, é como se, na verdade, olhasse para um outro mundo à procura de algo. Seja qual for, parece tratar-se de uma busca apaixonada, o que se pode inferir pela vermelhidão intensa de seu rosto, que denota sua característica sangüínea.

Um dos aspectos que mais chama a atenção no desenho, além da própria posição e postura da personagem, é o cromatismo. Quanto às cores, prevalecem os fundos amarelo e vermelho das partes descobertas do corpo de Dom Quixote. Estes cromas incluem-se na classificação das cores quentes, sendo o amarelo a mais quente e ardente das cores, característica seguida pelo vermelho, cor da paixão (ROUSSEAU, 2004). É o amarelo que é usado como pano de fundo para a imagem do protagonista. Isto não ocorre por acaso, visto esta ser a mais expansiva das cores. A esse respeito, Barros afirma que cada cor suscita “um movimento, uma temperatura, [...] um ‘estado de espírito’” (2006, p. 184). Em seus estudos, ao falar sobre a teoria das cores de Kandinsky, diz que, quanto a amarela, a mesma

identifica a força impactante de um movimento horizontal na direção do espectador. Ele [Kandisnky] também chama esse movimento de corporal, pois vem em direção ao nosso corpo físico. O movimento irradiante do amarelo é excêntrico e representa, nas palavras do próprio artista: ‘um salto para além do limite, a dispersão da força em torno de si mesma. (Ibidem, p. 185)

Quanto ao simbolismo desta cor, ela explica que, para o estudioso, “a dispersão excêntrica do amarelo confere a ele um aspecto superficial [...]. É uma cor fascinante e extravagante, uma explosão de energia, um desperdiçar das forças e, portanto, uma cor sem profundidade” (p. 186). Já no que se refere ao estado de espírito suscitado, trata-se da “cor que melhor representa a loucura e o delírio na visão de Kandinsky” (p.187). Percebe-se também o alto grau de luminosidade do croma amarelo no desenho de Portinari, o que fortalece seu movimento excêntrico. Assim, ocorre a prevalência de uma cor quente e expansiva acompanhada pela cor do fogo, da paixão e da impulsividade. O amarelo pode ser considerado como um vermelho mais luminoso (ROUSSEAU, 2004), pois ambas as cores, amarelo e vermelho, se harmonizam com os devaneios da personagem, à procura de algo irreal e inatingível. Apreende-se que os cromas são convergentes, visto que ao mesmo tempo que o amarelo aponta para o devaneio, no sentido de fuga do real, tanto ele quanto o vermelho – como cores quentes – suscitam e exprimem ardor, força e poder, entre outras coisas. Observa-se que uma parte da simbologia da cor vermelha também pode ser atribuída à amarela; contudo, a amarela distingue-se da primeira pelo seu caráter luminoso que o aproxima da inteligência (Idem, p. 100), que, por sua vez, pode-se dizer tratar-se de um dos atributos de Dom Quixote, homem culto e com vasta leitura.

Já nas vestimentas quixotescas há a presença do verde, azul, rosa e preto. O azul do seu tronco, principalmente por ser a mais fria e imaterial das cores, contrasta com o vermelho e o amarelo. Mas, ao invés de divergir da significação delas, ele as fortalece, pois é o azul que representa o caminho do infinito, onde o real se torna imaginário, uma vez que ele é o caminho da divagação. E quando ele se escurece, de acordo com sua tendência natural, torna-se o caminho do sonho (BARROS, 2006). Esta cor está mesclada com a cor verde, mediadora entre o calor e o frio, cor que também estará presente em suas calças. Há, ainda no tronco, mesclas de rosa compostas do vermelho e do branco, ou seja, da paixão e da pureza, e, finalmente o preto, cor que pode se situar nas duas extremidades, tanto na quente quanto na fria, mas que também simboliza a inexistência de luz ou de sombra.

No que se refere ao poema “Soneto da Loucura”, percebe-se que o título em si, ao mesmo tempo que remete a um prenúncio do seu conteúdo, também aguça a curiosidade do leitor em conhecer a matéria poetizada. No primeiro verso constitui-se um “eu lírico” representado por Dom Quixote, que declara que sua “casa pobre é rica de quimera”, ou seja, embora sua casa seja despojada de bens materiais valiosos, ela é “rica de quimera”, ilusões/sonhos. Percebe-se a oposição entre a pobreza e a riqueza. Mais ainda: entre o mundo empírico, do objeto, e o mundo da fantasia. Nessa linha de raciocínio, pode-se dizer que o nome “casa” acaba funcionando também como metonímia do sujeito. Opõe-se, portanto, neste passo, uma aparência de descompasso entre aquilo que se vê – o real empírico –, e aquilo que se imagina – a quimera –, ambos constituindo o modus vivendi do sujeito que também está configurado na geometria quixotesca.

É possível dizer que, desde o início, o sujeito posiciona-se diante do mundo dos sentidos e de si mesmo em uma atitude avaliativa. Ele apreende o que o cerca e o que acredita atribuindo-lhes valores distintos. É desta posição judicativa que nasce a dicotomia Devaneio x Realidade. Assim, encontra-se um eu lírico que, em síntese, além de ser contraditório desde a sua apresentação, também euforiza o devaneio em contraste com a realidade. Toma-se, aqui, o conceito devaneio, conforme o entendimento de Bachelard (1944), mencionado anteriormente. É justamente este devaneio que leva o eu lírico a declarar que vai “sem destino a trovejar espantos”, ou a não se mostrar passivo diante dos acontecimentos. Nota-se que, ao falar da sua posição diante do mundo, ele também se refere a esse estar no mundo como sendo “sem destino”. Ele trovejará, atuará, pois busca uma participação ativa onde quer que seja necessário. Seu mundo é em qualquer lugar, não há um local determinado, não há um destino marcado. Desta forma, através de seus feitos, espera que seu nome rompa “as mais nevoentas eras,/ tal qual Pentapolim, o rei dos Garamantas”. Nesse passo o eu lírico revela que deseja alcançar a glória e a fama de seus heróis. É interessante que ele cite justamente um herói que exista apenas em seus sonhos e que representa o ideal (anacrônico) da cavalaria andante. Pentapolim, uma personagem da obra mestra, é um rei cristão que luta em defesa de sua filha donzela e se recusa a entregá-la a Alifanfarrão, um imperador pagão. A menção desse pai zeloso converge com sua intenção de “trovejar espantos”, principalmente atentando-se para o sentido moral de “trovejar”, como indignar-se, que nesse caso implica que atuará contra o que fere a ordem, idéia que retoma o verso anterior em que diz que a fama que deseja “há de romper as mais nevoentas eras”. Parece que em “nevoentas eras” o “eu poético” se refere a um período que está antes mesmo da própria História, ou seja, um tempo mítico. O adjetivo “nevoentas” se refere àquilo que cobre o objeto em referência com um véu de opacidade, impedindo que ele seja delineado, apreendido pela visão. Segundo Mielietinski

O caos se concretiza em sua maior parte como trevas ou noite [...]. A transformação do caos em cosmo foi esboçada em sistemas mitológicos bastante arcaicos, nas narrativas sobre a luta travada contra os demônios ctonianos e os monstros pelos heróis épicos mitológicos, cujos modelos ainda não se diferenciaram totalmente dos ancestrais e heróis culturais. [...] Os combates e lutas mitológicos são quase sempre de uma maneira ou de outra cosmogônicos e marcam a vitória das forças do cosmo sobre as forças do caos. [...] Tendo em vista que o cosmo se identifica com a ordem e a medida, o caos se associa naturalmente à violação da medida. [...] Se outros inúmeros episódios da luta dos heróis míticos e posteriormente dos épicos contra monstros, demônios, etc., não são um ato cosmogônico de transformação do caos em cosmo, são pelo menos um ato de defesa do cosmo contra as forças do caos que o ameaçam. (1987, p. 240 e 243, 244, 246).

Com isso, apresenta-se um sujeito talhado pelo perfil dos heróis nacionais que, por sua vez, têm suas origens nos arquétipos dos heróis míticos. Ele deseja trazer a luz, a ordem ao mundo, o que já foi antecipado na primeira estrofe, em que Dom Quixote se declara um sonhador, cujos feitos trovejarão espantos em busca de uma glória mítica, ou seja, uma glória tanto transcendental quanto atemporal.

Pode-se também estabelecer uma relação com uma passagem mítica quando o eu lírico revela que em seus pensamentos passam batalhas “jamais vistas no chão ou no mar ou no inferno”, pois, na cosmogonia, entendida aqui como a ordenação do caos, instala-se a ordem com a separação de três esferas: “a terrestre, a celeste e a subterrânea (a passagem da divisão binária para a trinária), dentre as quais a esfera central – a terra – se opõe ao mundo aquoso embaixo e ao celeste em cima”. (Ibidem, p. 242).

Na cosmogonia, esta separação é um fator importante para o estabelecimento da ordem, e, no poema, o herói se põe disposto a atingir três esferas para estabelecer a sua cosmogonia. É interessante o uso da expressão “tropel de batalhas”, pois por tropel entende-se som impactante, movimento desordenado, tal como nas lutas dos heróis míticos. Ao que parece, instaura-se uma comparação entre a imaginação e o mundo mítico. O verbo “rolar” confere certa plasticidade à cena, como se fosse uma narrativa fílmica que apreende o som forte das batalhas, marcado pelo ruído da cavalaria e pelos movimentos acelerados que sintetizam uma visão forte, violenta do objeto descrito. Essa imagem troante e atordoante é ponto de referência na aproximação com a tradição, quer mítica, quer histórica. A gradação presente em “jamais vistas no chão ou no mar ou no inferno” implica a idéia de exclusão, ou seja, afirma-se a não existência de qualquer luta dessa natureza. Mas não se restringe a esse aspecto, já que o mesmo revela que “Se da escura cozinha escapa o cheiro de alho,/ o que nele recolho é o olor da glória eterna”. Esses versos, que introduzem a presença dos sentidos, são iniciados com a conjunção “se” denotando hipóteses que inserem uma linha de raciocínio lógico. Neste ponto temse uma revelação da visão distorcida que já estava anunciada anteriormente: Dom Quixote não somente imagina as coisas; ele também metamorfoseia o que vê e o que sente. Uma leitura mais aprofundada possibilita apreender a contraposição entre a realidade e o devaneio em “escura cozinha” e “olor da glória”, já que se pode relacionar o espaço da realidade ao ambiente da cozinha, que possui o cheiro real de alho, ao mesmo tempo em que “olor da glória” pode corresponder ao espaço do devaneio, do sonho ou da imaginação. Percebe-se uma distinção bipolar entre os adjetivos usados, pois enquanto a realidade, atribuída à cozinha é escura, o devaneio, contido no olor da glória, é eterno. “Escura cozinha” antepõe-se à “glória”. Nessa relação cria-se a oposição no campo semântico concernente à cor. Se “escura” implica a idéia de um croma com reduzida luminosidade, “glória” pressupõe alta concentração tonal, sugerindo, ainda, brilho e esplendor. Outro aspecto a considerar, ainda relacionado à carga semântica dos vocábulos usados, visto que enquanto a realidade tem “cheiro” – observe-se a escolha de um vocábulo coloquial –, o devaneio tem “olor”, sugerindo um aroma muito mais agradável que o do alho. Veja-se que a realidade está presa ao alho, algo tido como comum, ao passo que o devaneio é glória, que leva ao singular, ao nobre. Então, há a marcação do cheiro vinculado à realidade que passa, divergindo do olor que é destituído de sua materialidade e da contingência temporal. Verifica-se que ao devaneio é concedido um status de nobreza e eternidade, ao passo que a realidade está atrelada ao comum e pouco valioso, como o cheiro de alho, que é efêmero e desagradável. Além disso, também se pode perceber um rebaixamento interessante no que tange à realidade, uma vez que está ligada ao cheiro de comida, ou ao cheiro do corpóreo. Percebe-se, nesse ponto, a presença do realismo grotesco pela “lógica da inversão, o contato do alto com o baixo” (BAKHTIN, 1999, p. 270). Porém, observe-se que neste “baixo corporal” (Ibidem, p. 271) ocorre, também, a elevação da idealidade, ou seja, enquanto o terreno, ou o corpóreo representado pelo alho, é rebaixado, o idealismo contido no “olor da glória” e que representa o devaneio, é sublimado. Bakhtin, em A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento esclarece que

Na base das imagens grotescas, encontram-se uma concepção especial do conjunto corporal e dos seus limites. As fronteiras entre o corpo e o mundo, entre os diferentes corpos, traçam-se de maneira completamente diferente do que nas imagens clássicas e naturalistas (p. 275).

Ou seja, através do grotesco estabelece-se a diferenciação entre a realidade e o mundo. Reafirma-se, dessa forma, a inadequação do Eu perante o Mundo, haja vista a realidade ser aqui o objeto rebaixado, enquanto a idealidade, compreendida sob o aspecto do devaneio, é sublimada.

Apresenta-se, também, a dualidade eterno x efêmero, que, por sua vez, converge com a dicotomia Devaneio x Realidade, principalmente se a base para isso for a teoria das idéias de Platão, que defende a existência de dois planos, inteligível e sensorial. No primeiro encontram-se as idéias que são relativas às aspirações da alma, e dessa forma, permanente. Já no segundo tem-se a dimensão dos sentidos, que são em si um reflexo das idéias, e com isso, instável e efêmero (CHÂTELET, 1995). Assim, a dicotomia Devaneio x Realidade é resultado da tentativa de Dom Quixote de trazer as idéias do plano inteligível, do sonho, para o plano sensorial, ou à realidade, configurando assim, seu devaneio.

Dessa forma, este sonhador parte para o campo do devaneio, pois adota a ação (BACHELARD, 1994) em busca da ordem e sua conseqüente fama. Para isso, ele parte em seu “rocim, corisco, espada, grito”, que consiste em outra gradação. Estes são os recursos utilizados para busca da glória: seu cavalo, tido como corisco, sua espada e seu grito. Na enumeração nominal, destaca-se no primeiro elemento referido uma clara recuperação da expressão popular “cavalo corisco”. Nos campos de Minas Gerais, berço do poeta Drummond, essa expressão metaforiza a ligeireza do cavalo que é pressupostamente comparado ao fenômeno da natureza – corisco. Pretende-se expressar que o animal é tão rápido quanto uma descarga elétrica, um relâmpago. A seguir, acrescenta-se “espada, grito”. Sua espada e seu grito que também se pode compreender por bravura, visto a apresentação da espada ao alto juntamente com o brado de guerra representar uma posição de ataque entre os combatentes em uma batalha. Em termos do herói/sujeito aqui focalizado, esses sintagmas nominais parecem traduzir, neste momento, a explosão do eu em face de si mesmo e do mundo; pela sugestão de equivalência entre ele, sujeito, e o rocim, o corisco, a espada e o grito. A imagem que então emerge é a da integridade humana, já tendo encontrado e fixado seu centro na forma de luta. Pode-se, então, dizer que o sujeito que ia “sem destino”, encontra, no devaneio, um rumo, um caminho, tanto que, munido desse arsenal, o herói se apresenta para a ação que se descortina com missões a cumprir: a salvação de donzelas, isto é, “o torto endireitando”. A primeira parte da tarefa proposta pelo sujeito da enunciação é a regeneração do mundo real, que, aos seus olhos, é um mundo às avessas.

Para ele, não há lugar para o que transgride a norma cavaleiresca; ao “torto”, ou seja, ao desrespeito às donzelas, aplica-se o “ferro”. Note-se ainda que esse herói que sabe usar de firmeza, de violência, sabe ser suave, gentil com o feminino, o mundo das sedas. Ao vislumbrar o que fará já se coloca na posição de herói, pois estará devolvendo a ordem ao mundo, e fazendo isso, qualifica a si próprio de “herói de seda e ferro”. Na oposição obtida entre seda e ferro, encontra-se a apresentação de um herói que ao mesmo tempo é delicado e gentil como uma seda e duro e forte como o ferro.

Assim, o devaneio começa a prevalecer. No poema ele avança desde o início sobre o espaço sensorial da realidade e, no final, tem-se a sua dominância. É explícita a condição desse homem que não dorme, que está “abrasado”, o que possibilita concluir que o devaneio tomou conta dele de forma que até mesmo o seu alimento são as nuvens – espaço físico destinado aos sonhos –, ou seja, este homem que não dorme e nem come perde a razão e, em sua loucura, passa a alimentar-se desses sonhos de forma que se encontra em uma “férvida obsessão de que enfim a bendita/ Idade de Ouro e Sol baixe lá das alturas”. Novamente Dom Quixote expressa seu desejo cosmogônico de trazer a harmonia ao mundo, pois a Idade de Ouro é tida como uma época de paz e harmonia tanto entre os homens, quanto entre estes e a natureza, e ele, enquanto herói, agirá ativamente para que esse período sobrevenha sobre a terra. Apreende-se, nesse ponto, a busca por uma cosmogonia utópica1, não se esquecendo que analogamente o Sol é um símbolo universal do rei (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2005). Dessa forma, Dom Quixote ao citar a “Idade de Ouro e Sol”, na realidade toma para si a luta cosmogônica travada por deuses e heróis míticos para trazer à Terra um império baseado no símbolo do Sol, visando reestabelecer não somente a ordem harmônica das coisas, mas também a luz e o conhecimento. Essa passagem encontra ressonância com o pano de fundo amarelo do desenho, tendo em vista seu caráter expansivo.

É nítida, neste aspecto, a identificação entre Dom Quixote e Drummond, o gauche do “Poema de Sete Faces”.

Sendo a obra do gauche uma maneira de interferir na realidade, erige-se ela própria como uma realidade autônoma. A obra poética do gauche é essa concreção saída da defasagem entre o Eu e o Mundo, e que se constitui numa extensão do autor em busca de um elemento reparador ou descritivo de seu conflito. (SANT’ANNA, 1980, p. 24)

O poeta parece experimentar o mesmo desajustamento diante do mundo que a personagem cervantina. E assim como Dom Quixote encontra uma saída através do devaneio, o poeta, que se auto-denomina gauche, tem, em sua obra, um caminho para encontrar a sua realidade aceitável.

Pode-se conjeturar o motivo de Drummond nomear o seu Soneto de “Soneto da Loucura”. No que tange à loucura, segundo Foucault , em seu livro História da Loucura na Idade Média, a partir do momento que o homem se apega a si mesmo, ele se ilude, surgindo, então, o primeiro sinal da loucura (1972). Porém, ainda resta pensar na razão pela qual o autor optou por um soneto – e, especificamente, um soneto alexandrino. Uma das possibilidades seria a convergência entre o estilo clássico de criação poética, sendo em si um modo racional de expressão, com a busca do eu poético pela harmonia e pelo conhecimento expresso no último verso com “Idade de Ouro e de Sol”.

Um soneto é uma forma fixa de escrita, que implica um trabalho artesanal. É bastante usado para explorar temas segundo uma perspectiva mais racional. É composto por dois quartetos e dois tercetos, sendo que, em geral, o último expressa uma conclusão (TAVARES, 1978). O autor explora a oposição desde o seu título, pois, em seu bojo o vocábulo soneto sugere a idéia de racionalidade, e loucura traz o sentido de irracional. Esta oposição também é trabalhada durante a construção dessa forma poética. O poeta apresentou através de seus quartetos uma crescente oposição entre devaneio e realidade, para introduzir, também gradativamente, nos seus tercetos, a predominância do devaneio.

No entanto, a busca de proporção expressa na eleição do soneto como forma resulta ineficaz: não se trata de um soneto perfeito, já que não há nenhum sinal de combinação rímica.

Esse predomínio do devaneio e tomada pela loucura da personagem tem seu apogeu no último terceto, classicamente usado para estabelecer uma conclusão. Dessa forma, em Drummond, ele serve para dar total vazão à loucura do sonhador, justificando, assim, o título do soneto. Observe-se também que ele usou uma estrutura de texto argumentativo, explorando bem as orações explicativas e finais, estabelecendo e dando base para a racionalidade do texto. Tem-se, então, uma composição que se apresenta como uma defesa da loucura, valendo-se de argumentos que a sustentam. Isso possibilita comparar o estilo de escrita, tido como nobre por excelência, com a possível visão de nobreza da loucura desse sonhador, o que leva às vozes subjetivas encontradas neste soneto. Instaladas em primeira pessoa com o eu lírico representado por Dom Quixote, falam de sua ânsia por fama e glória, de seus desejos e terminam com sua decisão pela loucura na ânsia de reviver um tempo que já passou. Embora esse eu lírico seja o próprio Dom Quixote que fala de seus anseios e de sua condição, percebe-se que há um certo distanciamento que demonstra uma visão romântica do eu narrado; é como se quem relatasse fosse na realidade um observador. Tem-se a impressão de que se marca uma distância crítica entre o sujeito, que comete grandes feitos e o olhar que o apresenta. Este “eu” que não possui uma visão clara das coisas, como foi apresentado na primeira estrofe, e que termina enlouquecido na última, parece ter a “ajuda” ou “auxílio” de uma visão em terceira pessoa na composição do soneto, que embora esteja em sua totalidade em primeira pessoa, possui a característica da observação atenta e distanciada da terceira pessoa. Um possível motivo para essa ocorrência seria o espelhamento do autor (Drummond) na personagem. Ao tratar da inaptidão do Eu (Quixote) versus Mundo, o poeta dá vazão ao espelhamento de si mesmo enquanto gauche, uma vez que sua incompreensão frente à realidade das coisas e entre a oposição dessa realidade, em relação aos seus anseios, o faz se identificar com a personagem narrada. Sobre o gauchisme, Sant’anna, em seus estudos sobre o tema, afirma que “caracteriza o gauche o contínuo desajustamento entre a sua realidade e a realidade exterior. Há uma crise permanente entre o sujeito e o objeto que, ao invés de interagirem e se completarem, terminam por se oporem conflituosamente” (1980, p. 38).

Encontra-se convergência no diálogo deste primeiro poema e primeiro desenho. Ambos apresentam e descrevem características de Dom Quixote. Esta confluência se apreende desde os respectivos títulos: “Soneto da Loucura” para Drummond e “Dom Quixote de cócoras com idéias delirantes”, para Portinari. Como já dito anteriormente no caso do soneto, mas que também se confirma no desenho, os títulos são um prenúncio daquilo que será apresentado pelos dois artistas. Ao atentar para os vocábulos “loucura” e “delirante”, por loucura, segundo Erasmo de Rotterdam, entende-se “um sutil relacionamento que o homem mantém consigo mesmo” (apud FOUCAULT, 1972, p. 24). Foucault enriquece esse pensamento ao dizer que a loucura não diz respeito à realidade do mundo, mas sim à realidade que o homem acredita existir (1972). Já alucinante é o que faz perder o tino, a razão, o entendimento. Observe-se que o louco é dominado pela paixão intensa, assim como por “delirantes” implica a idéia de algo apaixonante, e que o delírio, ou alucinação é, em suma, ilusão, fantasia e devaneio. Não somente os títulos dialogam entre si, em vista de o devaneio estar presente também no conteúdo do poema, pois logo na primeira estrofe o eu lírico declara que sua casa “é rica de quimera”. Esse espaço compreendido como o dos sonhos, rico em ilusões, também será encontrado na estrutura do desenho, que tem um fundo amarelo, que apresenta um deslocamento da realidade, ou um movimento de transcendência que denuncia a expansão do devaneio do sujeito, reafirmado pela cor vermelha que revela um apaixonado sem controle. Um aspecto que pode confirmar isso é o fato de os pés de Dom Quixote, no desenho, não possuírem o apoio do chão, que seria um elemento real. Ao contrário, eles estão sobre o suporte do amarelo, cor da expansão, que se pode entender pela expansão da loucura, da sua entrega ao devaneio.

A mesma dificuldade de percepção do mundo empírico no poema é encontrada no desenho, caracterizado pelo olhar visionário que parece olhar para um outro mundo. Inclusive, o próprio título do mesmo remete a esta idéia, visto que para a psiquiatria e para a psicologia a alucinação é tida como a percepção de um objeto inexistente. São essas imagens desordenadas, que na realidade não existem e que estão em seus sonhos apaixonados, que se encontram em sua cabeça. Por isso a sua dificuldade de abarcar o mundo real. No amarelo também é possível apreender a glória buscada por ele. Este croma tanto vitaliza o campo semântico da “glória eterna” que se deseja, como também é tido como a representação da transcendência, de forma que se tem a presença de Quixote envolvida por essa cor que representa aquilo por que ele anseia, aquilo que está diluído na distância, que é inapreensível aos olhos, que transcende os sentidos. Agora, é interessante observar que enquanto em Drummond apresenta-se uma loucura crescente, ou seja, uma razão que vai cedendo espaço para a loucura até terminar no último terceto como que já possuído pelo devaneio; tem-se a impressão de que Portinari já o situa neste momento. No desenho ele está fisicamente abrasado, vislumbrando seus sonhos, traduzindo um comportamento de obsessão, como é demonstrado tanto pelo seu desalinho quanto pelo seu desequilíbrio. Percebe-se novamente um rebaixamento presente na actorialização composta pelo corpo e ações.

O diálogo entre as releituras de Cervantes é entretecido pelo jogo de 52 oposições em que Dom Quixote de La Mancha é apresentado, pelos dois artistas, como um sujeito que recusa o mundo da práxis e deixa-se dominar pela imagem ideal do cavaleiro andante, com uma missão cosmogônica de trazer luz e ordem ao mundo.

Em suma, pode-se perceber, neste primeiro conjunto, a visão de cada artista em sua criação. Carlos Drummond de Andrade em “Sol baixe lá das alturas” faz uso de um adynaton, uma figura de linguagem, por meio da qual, segundo Lausberg, a “noção ‘nunca’ é posta em termos concretos pela intervenção de uma ‘impossibilidade’ da Natureza” (2004, p. 149). Destarte, apresenta-se a retórica do impossível, uma vez que não há a possibilidade de que o Sol deixe o seu lugar. Ao lançar mão desta figura de linguagem que remete à figura quixotesca, o poeta deixa transparecer a impossibilidade da realização dos sonhos desta personagem. Quanto a Portinari, ao mesmo tempo em que apresenta um traçado forte, não trabalha muito a profundidade; percebe-se que o espaço do corpo não se encontra totalmente preenchido. Trata-se de uma poética minimalista, que desvela conceitos visuais elementares, que remete a desenhos infantis, onde se destacam a pureza, o ser ingênuo e o primitivo; que se entrega ao devaneio em busca do impossível. Pode-se dizer que poema e desenho se completam, a ponto de a palavra poética sacramentar o discurso plástico-pictórico e vice-e-versa.

Inclusive, o devaneio do sujeito encontra consonância nas três obras tratadas nesta análise. Nota-se, no desenho a expressão de um olhar visionário, como citado anteriormente. No poema, o devaneio é apreendido pelo eu lírico que assume a voz de Dom Quixote e afirma que sua “casa pobre é rica de quimera”: É possível inferir que o devaneio é valorizado a ponto de a personagem não dormir e encontrar-se “abrasado” em uma “fervida obsessão de que enfim a bendita Idade de Ouro e Sol baixe lá das alturas”. Desenho e poema remetem à passagem do texto-fonte em que Dom Quixote é tomado pela loucura – trecho citado na epígrafe desta análise. Foucault, em História da Loucura na Idade Clássica, afirma que a loucura seria, entre outras, a fixação das idéias (1972, p. 318). E é justamente esta a perspectiva que se obtém do sujeito, neste momento, retratado pela intersemioticidade (prosa, desenho e poema).

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1 “A idéia de um paraíso a alcançar, depois, mais tarde, ao fim de alguma coisa – em todo caso, no futuro – ou a intuição de um paraíso perdido, esquecido lá para trás e do qual o homem teria saído ou sido expulso, são as formas mais comuns de manifestação religiosa da vontade utopia.” (COELHO, 1985, p. 15)

 

Devaneio x Realidade: uma leitura intersemiótica de Candido Portinari e de Carlos Drummond de Andrade sobre Dom Quixote de La Mancha, Katya Motta. São Paulo, Universidade Presbiteriana Mackenzie, 2007




 

O “mosaico de citações” do poeta gauche

[…]

A relação entre Portinari e Drummond torna-se mais próxima ainda, quando em  1972, em virtude de seus 70 anos de idade, Drummond lança um livreto com 21 poemas,  alusivos às 21 gravuras pintadas pelo amigo, no ano de 1956, a pedido da Editora José Olympio  para a provável edição brasileira de D. Quixote, projeto que não se concretizou. A obra foi  publicada em 1973 com o nome: Quixote e Sancho, de Portinari, em As impurezas do branco. Além dos poemas, os desenhos são acompanhados por trechos da obra de Cervantes, que serviram de inspiração para Portinari71.

A construção desses 21 poemas nos revela que Drummond foi um leitor atento de  Dom Quixote de la Mancha (1605), do espanhol Miguel de Cervantes (1547-1616) e dos  cartões que compõem a série Quixote e Sancho, de Portinari. Ele pode ser lido como um todo  coeso e coerente, ou de forma independente e aleatória, pois se trata de peças únicas. Para  ilustrar essa parceria entre poeta e pintor, poesia e pintura escolhemos o primeiro poema do  livro para conhecer “Soneto da Loucura” (OC, 2002, p. 743).

O indivíduo moderno, múltiplo e contraditório, diante dos confrontos com a vida,  vê-se diante de sensações e sentimentos que fogem ao seu controle. Tudo aquilo que não se  entende, não se domina e foge aos padrões sociais é conhecido como loucura. Nossa sociedade  forjou eminentemente homens pragmáticos e condena se não o for. O mundo precisa de loucos, não estamos falando de doentes mentais, mas de sujeitos ousados, irreverentes e audazes que  busquem caminhos menos burocráticos para se viver. A previsibilidade e a individualidade são  marcas de nosso século. Precisamos de loucos, sobretudo daqueles que fazem uso da palavra  como os poetas, capazes de inovar, quebrar barreiras, criar pontes entre culturas distantes e  exaltar a palavra. 

O poema de versos alexandrinos apresenta uma estrutura de ordem narrativa. A  loucura da personagem Quixote é a mesma usada pela poesia drummondiana. Pressupomos que  Drummond conhecia a prosa quixotesca, leu-a e reescreveu, em forma de poesia, o que  Cervantes já havia narrado séculos antes. É que às vezes, o poeta, fica tão impressionado com  a natureza do que lê, que se sente impelido a reescrever, a partir de sua percepção e de seus  valores. Ele só precisa tomar cuidado para recriar e não imitar seu antecessor.

O sujeito lírico inicia descrevendo a sua morada: uma casa “pobre”, mas rica de  “quimera”, em que ele sai pelo mundo “sem destino” com o propósito de “trovejar espantos”,  isto é, levar para longe coisas ruins. É um típico cavaleiro andante. Sua façanha será tão  grandiosa que seu nome se tornará conhecido “tal qual Pentapolim, o rei dos Garamantas”.

A cabeça desse sujeito é pura imaginação e por meio dela fervilham batalhas  “jamais vistas no chão ou no mar ou no inferno”. O desejo de todo escritor é escrever sobre  fatos que nunca foram lidos. Ele pode até reescrever, mas terá que ser sob sua pespectiva. É  dessa forma que ele espera alcançar a originalidade. Se a realidade tem “cheiro de alho” e afastalhe  de seus devaneios, o que é recolhido é tão somente “o olor da glória eterna”, ou seja, o  aroma da vitória. É preciso desejá-la, seja durante o processo criativo, seja na realidade do  cotidiano.

No primeiro terceto, o eu lírico assume a condição de cavalheiro que parte para  salvar milhares de donzelas que há pelo planeta, junto com seus instrumentos: “rocim, corisco,  espada” e o “grito”, pois caso nada funcione para sua defesa é preciso correr e gritar. A  ludicidade de tais instrumentos unidos ao elemento de fina ironia “grito” dão a tônica do poema.  Coincidência ou não, seu companheiro de viagem tem uma característica igual ao eu lírico  drummondiano: é torto e tem ferro em sua composição. O sujeito que narra a sua trajetória, que  se alimenta de “nuvens”, e seu companheiro reconhecem-se em suas tortuosidades e devaneios  esperam, sem dormir, pela “Idade do Ouro” - período do início da humanidade em que  predominava, quando o homem era puro e vivia em meio a paz, harmonia e a prosperidade.

É preciso observar que para além da coerência com as vinte e uma imagens de  Portinari, os poemas mantêm uma relação cronológica com a narrativa (“Soneto da Loucura” é  um exemplo), revelando uma maneira drummondiana de desler Cervantes.

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71 Há edições especiais desses poemas e desenhos. CERVANTES. PORTINARI, DRUMMOND. D. Quixote. Rio de Janeiro, Fontana, 1978.

CERVANTES. PORTINARI, DRUMMOND. D. Quixote. Rio de Janeiro: Sul América Seguros, 1987.

Carlos Drummond de Andrade: O poeta na condição de leitor, Luciana Silva. Fortaleza, Universidade Federal do Ceará, Centro de Humanidades, Programa de Pós-Graduação em Letras, 2021.

 

quinta-feira, 15 de junho de 2023

Certo poeta intrometeu-se aqui?, Vergílio Ferreira

 


1977

7-Julho (quinta). Que é que importa o meu «inconsciente»? Que é que importam as forças que me determinam, se eu as assumo depois da liberdade? Que importa o «inconsciente», se eu tenho consciência dele? Ninguém fala do inconsciente do cão — já o disse algures. E sobretudo o cão não fala dele. É no podermos falar dele, do «inconsciente», que verdadeiramente o homem começa. Mas se aí começa, o «inconsciente» é só um valor a ter em conta como o corpo (em) que somos. E se o inconsciente pode ser conhecido, ele é menos que isso, porque é já consciência. Disse.

 

*

 

Que era a morte para um grego, um medievo? Xenofonte desvaloriza muito a coragem de Sócrates, ao contrário da legenda que se impôs. Sócrates, com efeito, estava velho, ou seja, tinha à frente um destino de degradação. Entre morrer logo e esperar pela morte num corpo em destruição, preferiu a morte imediata. E assim recusou que os amigos o salvassem. Mas um grego e um medievo ou um qualquer outro para quem a morte não era o nada total, o fim da vida não a punha em questão. O que há de trágico na vida não é o podermos explicá-la (mas ela ainda o não é): é não podermos dar-lhe uma significação. O crente à beira da morte tem uma vergôntea a que se agarrar para não morrer afogado; nós afogamo-nos mesmo. O crente só põe em questão o além; nós pomos o aquém. E como não temos «além», prolongamos o «aquém» para lá de o já não ser. No fundo ninguém pode imaginar a morte, porque o nada é inimaginável. Por isso o preenchemos com a vida que ainda temos para quando já a não tivermos. Toda a moral e ordem humana assentam aí — no inimaginável da morte. É pensando nos vivos para depois de mortos que não desatamos todos a fazer doidices. O nosso nada é o nosso ser pensado para quando não tivermos ser. O nosso nada é a nossa imaginação de vivos. O fundamento das crenças está na impensabilidade da morte, ou seja, da inexistência do nosso «eu».

 

*

 

Na tarde obscura de névoa
passam os carros na rua.
A minha vida levo-a
donde ela continua.
E todo o sonho que sou
frente à morte que me ameaça
é ser a vida que passa
e não a de quem passou.
 
Mas sou eu que vou passando
nos que vão passando ali,
enquanto a vida vai estando
nos que estão depois aqui.
 
Escuro da minha sorte!
Quem me dera ter na mão
a vida que chega à morte
e a que não.

 

Bom. Certo poeta intrometeu-se aqui? Talvez. Penso como e não sei. Talvez com o ritmo? Imaginemos então um ritmo diferente. Por exemplo:

 

Na tarde que se alonga em frio e névoa
ouço passar os carros pela rua.
A vida que me deram essa levo-a
donde ela no entanto continua.
 
E todo o sonho que eu agora sou
diante da morte que sinto me ameaça
é ser a própria vida que ali passa
e não a vida de quem lá passou.
 
Mas afinal sou eu que vou passando
em todos os que vão passando ali,
enquanto a vida mesma essa vai estando
nos que depois também estarão aqui.
 
Desce do céu escuro a minha sorte.
Ah, quem pudesse ter na sua mão
a Vida que termina com a morte
e a que não.

 

Versos piores? Talvez não. De qualquer modo, se sim, o pior deles será então o «enchimento» que procurei e que assim mesmo estará a mais. Mas não há dúvida que agora já dificilmente lembram o tal poeta. Aliás, a última estrofe, numa e noutra versão, nada tem dele, sobretudo pela redução silábica do último verso. De qualquer modo, ainda, é agradável de vez em quando jogar à poesia, como deve sê-lo pintar ao domingo. Aliás, sobretudo, o tal poeta foi muitas vezes particularmente um «jogador». Mas o seu mérito é que foi ele quem descobriu as regras do jogo. Admitamos, todavia, que ele persiste nas duas versões pelo «jogo» que persiste dele. Suponhamos então uma versão mais livre em que o especiosismo da finesse se dissolva. Por exemplo:

 

Sob o céu de cinza na tarde que escurece
ouço os carros que passam.

E em cada um vai a vida de quem vai
e eu com ele.
Mas todo o meu sonho se desdobra
entre quem passa, fechado em si, sendo ele
e os que (Interrompido.)

 

Vergílio Ferreira, 07/07/1977

Conta-Corrente (1977-1979) II. Lisboa, Bertrand Editora, 1990 (3.ª edição), pp. 66-69

 

terça-feira, 4 de abril de 2023

E no seu nome esperarão as gentes (S. Mateus/Carlos Queirós)

 

Almanaque, abril 1960, p. 69



«E NO SEU NOME ESPERARÃO AS GENTES»

(S. Mateus, XII-21)

No ar azul da madrugada
Virias logo, se eu chamasse?
Encostarias Tua Face
À minha face enregelada?

Apagaria a Tua Mão
As cicatrizes que deixaram
Esses fantasmas que habitaram
A minha fruste solidão?

Quando notasses ao entrar,
Que tanto sofro por um nada,
No ar azul da madrugada
Sarar-me-ia o Teu Olhar?

Se eu Te contasse o meu desgosto
De quando a Infância me vem ver,
Ter de expulsá-la, pra viver,
Afagarias o meu rosto?

Vendo-me a alma condenada
A esta alheia expiação,
Virias dar-me o Teu perdão
No ar. azul da madrugada?

As minhas pobres confidências,
Olhos nos olhos, ouvirias?
Com Teu sorriso acalmarias
Minhas febris impaciências?

E se, com esta voz insone,
Jurasse que não creio em nada,
No ar azul da madrugada
Escreverias o Teu Nome?

CARLOS QUEIRÓS

“6 poemas religiosos: E no seu nome esperarão as gentes, por Carlos Queirós. Pudor, por Miguel Torga. Ressurreição, por Francisco Bugalho”, in Almanaque, abril 1960. Diretor: J.A. de Figueiredo Magalhães. Orientador gráfico: Sebastião Rodrigues. Disponível em: https://hemerotecadigital.cm-lisboa.pt/Periodicos/Almanaque/1960/Abr/Abr_item1/P69.html

 

Texto de apoio

Carlos Queirós foi um poeta português do segundo modernismo, que se identificou com a revista Presença e que teve uma relação de amizade e admiração com Fernando Pessoa. Ele publicou dois livros em vida: Desaparecido (1935) e Breve Tratado de Não Versificação (1941). Morreu em Paris em 1949, aos 42 anos¹²³.

O poema aqui reproduzido faz parte do livro Desaparecido, que foi elogiado por Pessoa na Revista de Portugal. O título do livro sugere uma sensação de ausência, de perda, de vazio, que se reflete na temática dos poemas. O poema «E NO SEU NOME ESPERARÃO AS GENTES» é um exemplo disso. Ele é inspirado num versículo do Evangelho de São Mateus, que diz: «E no seu nome esperarão as gentes» (Mateus 12:21). Esse versículo refere-se a Jesus Cristo, como o Messias esperado pelos povos.

O sujeito poético usa esse versículo como mote para expressar o seu anseio por uma presença divina que o console, que o cure, que o perdoe, que o escute, que o acalme e que escreva o seu nome no ar azul da madrugada. A madrugada é um símbolo de esperança, de renovação, de luz. A imagem do ar azul da madrugada que o poema evoca sugere um momento de silêncio e paz, uma calma que permite que a voz do poeta se eleve para encontrar Deus. O eu lírico suplica por uma conexão, um toque que possa sarar as cicatrizes deixadas pelas experiências que o trouxeram até esse momento.

O poema é escrito em forma de perguntas retóricas, dirigidas a Jesus Cristo, mas sem esperar uma resposta. O sujeito poético questiona se ele viria logo se ele chamasse, se ele apagaria as cicatrizes que deixaram os fantasmas da sua solidão, se ele sararia o seu olhar quando notasse o seu sofrimento por um nada, se ele afagaria o seu rosto quando ele contasse o seu desgosto de expulsar a infância para viver, se ele lhe daria o perdão por ter a alma condenada a uma expiação alheia e se ele escreveria o seu nome no ar azul da madrugada.

Essas perguntas revelam a angústia existencial do sujeito poético, a sua carência afetiva, a sua nostalgia da infância, a sua culpa por não crer em nada e a sua busca por um sentido para a vida.

Em suma, este é um poema que expressa a angústia existencial de um poeta modernista que se sente desaparecido no mundo e que busca uma presença divina que lhe dê conforto e esperança. É um poema que combina simplicidade e profundidade, emoção e razão, fé e dúvida.

 

Adaptado da conversação com o Bing, 31/03/2023

(1) Carlos Queirós Ribeiro – Wikipédia, a enciclopédia livre. https://pt.wikipedia.org/wiki/Carlos_Queir%C3%B3s_Ribeiro Acedido 31/03/2023.

(2) Carlos Queirós (PT 1907-04-05) Poemas selecionados - Escritas.org. https://www.escritas.org/pt/carlos-queiros Acedido 31/03/2023.

(3) DIA CARLOS QUEIROZ – Centro Nacional de Cultura. https://www.cnc.pt/dia-carlos-queiroz/ Acedido 31/03/2023.

 ***


Intertextualidade: crónica de António Lobo Antunes

Ilustração de Susa Monteiro


E no Seu Nome esperarão as gentes

Quando me sinto desinfeliz vem-me sempre à cabeça o poema de Carlos Queiroz chamado E no Seu Nome esperarão as gentes, que é uma citação de São Mateus. Isto dura desde os treze ou catorze anos, quando li o livro de poemas Desaparecido que descobri na biblioteca do meu pai. E no meio da desinfelicidade aparece-me logo a primeira quadra

No ar azul da madrugada
virias logo se eu chamasse?
Encostarias Tua face
à minha face enregelada?

Porque é que isto sempre me comoveu e ajudou tanto? Porque volto a ser logo o menino que fui e que o poema torna mais forte no meio da grande solidão que todos temos às vezes:

Se Te contasse o meu desgosto
de quando a angústia me vem ver
ter de expulsá-la pra viver
afagarias o meu rosto?

Esta é uma pergunta minha também. O meu desejo. E aqui, sentado a esta mesa cheia de papéis, escrevo isto comovidamente. Estes versos acompanham-me sempre no ar azul da madrugada, quando tudo me parece irremediável, sem qualquer solução. O que farei de mim, o que farei comigo? E depois, felizmente, voltam a paz e a esperança. Porque carga de água tudo me toca, uma voz, um olhar, um sorriso às vezes, uma senhora de idade a afastar-se de mim a remar com a bengala porque o passeio se transformou numa espécie de mar? Quando eu era pequeno tinha a Gija, uma camponesa galega que me deu tanto amor. Ajudava-me a despir, vestia-me o pijama, ficava ao pé de mim até eu adormecer. Desapareceu da minha vida de repente, não sei porquê, e durante anos e anos não a vi. Quatro meses antes de embarcar para a guerra casei-me, havia pessoas no adro da igreja a olharem, eu não via a Gija

(chamava-se Alice, eu não sabia dizer Alice)

não via a Gija desde os cinco anos, portanto há cerca de vinte e de súbito ela estava ali, no meio das tais pessoas a olharem, gorda, de cabelos brancos e

(como se explica isto?)

soube logo que aquela pessoa era ela. Larguei a noiva, corri para aquela senhora e abracei-a de uma maneira como nunca abracei ninguém. Tinha o mesmo cheiro, a mesma forma de me tocar

(posso estar a ser injusto mas acho que nunca ninguém me tocou como ela)

os mesmos olhos transbordantes de ternura. E ali ficámos, agarrados, comigo de novo tão pequeno, tão feliz. Gija. Gija Gija Gija. Os convidados do casamento espantados, as pessoas que olhavam espantadas e eu, muito maior do que ela, de repente pequeno, ao seu colo. Ao seu colo. Tinha um senhor ao lado, que era o marido que eu não conhecia, mas eu queria lá saber do marido. Éramos um do outro, Gija, e voltei a ser o menino de alguém. Voltei, com tanta força, a ser o menino de alguém. A ternura dela era a mesma, o amor por mim era o mesmo, só que estava cheia de lágrimas. Lembro-me tão bem de dizer-lhe

– Gija nunca deixei de ser o teu menino

e depois voltei para o casamento, para Tomar onde tinha sido colocado antes de ir para Angola, para longe de ti, eu que nunca devia ter saído do teu colo, tu que me amaste sempre incondicionalmente, com tanta pureza, tanta simplicidade, tanta, meu Deus, alegria. E eu que continuo a amar-te de uma paixão tão linda, eu que sempre, ao acontecer-me um desses problemas gravíssimos da infância, uma queda, a perda de um brinquedo, dizia logo

– Quero a Gija

e tudo se compunha outra vez. Foi a última ocasião que te vi, embora continue sempre a ver-te

E se com esta voz de insone

dissesse que não creio em nada

no ar azul da madrugada

escreverias o Teu nome?

embora continue sempre a ver-te, Gija. Não vais acreditar na quantidade de vezes em que penso em ti. Onde quer que estejas, que estupidez dizer isto, estás no Céu de certeza, o teu menino pensa em ti. Há uns anos fui a Compostela receber um prémio, ou seja à tua terra na Galiza. E no discurso de agradecimento, com o Presidente do governo lá deles

(isto passava-se na Catedral e era solene) dediquei-te o prémio e disse o teu nome. Tenho a certeza que estavas lá, com o meu pijama de menino na mão

– Temos que vestir o pijama, Toino

e que te sentia tão orgulhosa de mim. Quando um dia morrer vais vestir-mo outra vez, porque não posso aparecer nu diante do Senhor, ordenas a Deus

– Tome bem conta do meu menino, ouviu?

e esperas que Ele te garanta

– Claro que tomo, Gija

antes de te afastares e que, de vez em quando, virás espiar-me no medo que eu tenha desarrumado o cobertor e espirre, ordenando a São Pedro que ponha o olho em mim, porque o meu menino, você é Santo e percebe, não veio aqui para se constipar.

 

António Lobo Antunes, «E no Seu Nome esperarão as gentes», Visão, n.º 1331, de 6/9 a 12/9/2018, p. 7. Crónica disponível em: https://visao.sapo.pt/opiniao/ponto-de-vista/2018-09-13-e-no-seu-nome-esperarao-as-gentes/

 

Questionário sobre o excerto da crónica de António Lobo Antunes (desde “Quando me sinto desinfeliz (…)” até “(…) e tudo se compunha outra vez.”).


1. Em momentos de infelicidade, o autor lembra-se dos versos de um poema de Carlos Queiroz, pois

(A) produzem nele, simbolicamente, o mesmo efeito que Gija na sua infância.

(B) correspondem às perguntas que costumava colocar a Gija.

(C) proporcionam o mesmo conforto que a leitura dos textos sagrados.

(D) despertam nele emoções que transpõe, inevitavelmente, para a escrita.

2. No contexto desta memória de Lobo Antunes, entre outros aspetos, a evocação de Gija associa-se cumulativamente às ideias

(A) de honestidade e de subserviência.

(B) de proteção e de perdão.

(C) de amor e de compaixão.

(D) de segurança e de harmonia.

3. O advérbio «lá», utilizado na linha 35, apresenta uma ideia de

(A) desaprovação.

(B) indecisão.

(C) negação.

(D) indignação.

4. A partir da linha 41, o autor usa a segunda pessoa, quando se refere a Gija, para

(A) reproduzir, no seu discurso, as palavras que lhe dirigiu no dia do casamento.

(B) renovar os laços de união que foram perdidos após ter sido colocado em Angola.

(C) exprimir a convivência que com ela manteve de forma regular ao longo da vida.

(D) expressar a profunda comunhão com alguém que continua vivo na sua memória.

5. Nas orações «que nunca ninguém me tocou como ela» (linha 31) e «que eu não conhecia» (linha 35), as palavras sublinhadas são

(A) um pronome, no primeiro caso, e uma conjunção, no segundo caso.

(B) uma conjunção, no primeiro caso, e um pronome, no segundo caso.

(C) pronomes em ambos os casos.

(D) conjunções em ambos os casos.

6. Identifique as funções sintáticas desempenhadas pelas expressões:

a) «de papéis» (linha 16);

b) «que aquela pessoa era ela» (linha 29).

7. Indique o valor aspetual veiculado por cada uma das expressões seguintes:

a) «Quando eu era pequeno tinha a Gija» (linhas 20 e 21);

b) «Desapareceu da minha vida de repente» (linhas 22 e 23).

 

Chave de correção:

1-A; 2-D; 3-C; 4-D; 5-B. 6. a) Complemento do adjetivo; b) Complemento direto. 7. a) (valor aspetual) imperfetivo; b) (valor aspetual) perfetivo.

Fonte: Exame Final Nacional de Português n.º 639 – Ensino Secundário, 12.º Ano de Escolaridade (Decreto-Lei n.º 139/2012, de 5 de julho). República Portuguesa – Educação / IAVE– Instituto de Avaliação Educativa, I.P., 2019, 2.ª Fase (versão 1)

 


CARREIRO, José. “E no seu nome esperarão as gentes (S. Mateus/Carlos Queirós)”. Portugal, Folha de Poesia: artes, ideias e o sentimento de si, 04-04-2023. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2023/04/e-no-seu-nome-esperarao-as-gentes-s.html