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terça-feira, 1 de agosto de 2023

A tradução como interpretação no Cântico dos Cânticos: o caso da cor da pele da noiva

 


“Sou negra – MAS bela”? - Não!

(A propósito dos episódios de racismo desta semana que envergonham toda a raça humana)

O nome – ainda que não o punho – de Salomão foi responsável por aquele que pode ser considerado o brinde-surpresa da Bíblia: o facto de, neste heteróclito e tantas vezes contraditório conjunto de livros (de épocas e autorias muito diversas) sobre a história da relação dos judeus com Jeová, se encontrar lá no meio uma pequena antologia de versos eróticos de que Jeová está totalmente ausente.

O motivo que justificou a inclusão desta antologia erótica no Antigo Testamento foi a atribuição da sua autoria ao rei Salomão. Na versão grega do Antigo Testamento, o título afirma-se como “Cântico dos Cânticos, que é de Salomão” e o nome do filho de David surge, com efeito, no interior do texto; de tal forma, aliás, que não é impossível experimentarmos a ilusão de ser o próprio rei a enunciar alguns dos versos emitidos por uma boca masculina, em resposta a outros versos claramente enunciados por uma mulher. No entanto, tal como no caso do livro de Sabedoria (também falsamente atribuído a Salomão), questões de cronologia tornam impossível a aceitação de que tenha sido o grande rei judeu a compor este conjunto de versos desgarrados em que um noivo e uma noiva antevêem (e, a dada altura, parecem gozar) as delícias do leito conjugal.

Excluída a possibilidade da autoria salomónica, fica então a pergunta: o que fazer deste pequeno livro, no seio da austera Bíblia, livrinho esse cujo tema é sintetizado pela palavra “sexo”? Porque com ou sem a assinatura de Salomão, o conteúdo do livro é inescapável: é uma antologia de versos eróticos.

Confrontados com a necessidade de explicar a razão da existência do Cântico dos Cânticos, exegetas bíblicos de todas as épocas e quadrantes (judeus, católicos, ortodoxos, protestantes, etc.) desenvolveram uma artilharia de interpretações metafóricas do Cântico, através das quais procuraram fazer-nos ver que não é de sexo entre um casal humano que aqui se trata, mas do amor de Deus (o “noivo”) ou de Jesus por uma noiva que pode ser o povo eleito, a igreja católica ou até a Virgem Maria. A liturgia das Vésperas Marianas inclui trechos do Cântico dos Cânticos, como “Pulchra es, amica mea” (“És bela, minha amiga”), e – surpreendentemente – os versos do primeiro capítulo deste livrinho que começam “Nigra sum – sed formosa” (“Sou negra – mas bela”, Cântico dos Cânticos 1: 5).

Esta voz feminina que aqui nos fala descrevendo-se como negra (“mas” bela) sugere um caminho de reflexão bem interessante. Porquê o “mas”? Que surge tanto na tradução portuguesa da Bíblia dos Capuchinhos, como na consagrada tradução latina da Vulgata? Na versão grega do Antigo Testamento, a noiva do Cântico dos Cânticos diz de si própria “sou negra e bela” (μέλαινά εμι κα καλή). Segundo o comentário ao Cântico de Othmar Keel, também é nessa linha que devemos entender o original hebraico (e por isso o ilustre teólogo suíço traduz “schwarz bin ich und anziehend”). São Jerónimo, autor da tradução latina, deve ter sentido a necessidade de pôr uma desculpa na boca da Sulamita (como a noiva é designada no capítulo 7 do Cântico) por ser negra, levando-a a afirmar que era bela apesar de ser negra. Os tradutores da Bíblia dos Capuchinhos mantêm espantosamente o “mas”, mitigando-o por meio da alteração de “negra” para “morena”: “Sou morena, mas formosa... não estranheis eu ser morena: foi o sol que me queimou...” Tanto em hebraico, em grego como em latim, a noiva é claramente negra. Não há volta a dar.

E o noivo – surpresa! – é branco. “O meu amado é alvo e rosado”, canta a noiva negra (5: 10); o ventre dele é da cor de marfim (5: 14); as pernas são “pilares de alabastro” (5: 15). Além de ser uma antologia de versos eróticos incrustada no meio da Bíblia, o Cântico dos Cânticos celebra aquilo que, ainda nos anos 60 do século passado, era proibido no chamado Bible Belt dos EUA: um casamento “misto”. Ainda bem que, “no fundo”, se trata de um texto altamente alegórico que nada tem que ver com aquilo que ostensivamente se lê no próprio texto... Ainda bem que é tudo sobre (os nunca mencionados) Jeová ou Jesus ou Maria ou a Igreja... É que ler o Cântico dos Cânticos de forma literal e simplista seria decerto muito redutor! É melhor dizermo-nos que os peitos referidos (8: 10) não são peitos, mas símbolos de realidades místico-divinas. Contudo, temos o direito de ser selectivos com a aplicação destas leituras alegóricas, pois por vezes é mais aconselhável ler o texto à letra! É claro que o noivo a entrar no “seu jardim” para “colher lírios” no “canteiro dos aromas” (6: 2) só designa mesmo actividades hortícolas...

Sarcasmo à parte (e perdoem-me todos aqueles que perfilham a ideia de que o Cântico dos Cânticos é o grande texto religioso sobre o amor místico de Deus): como são belos os versos desta extraordinária antologia erótica; versos para os quais a filologia bíblica contemporânea encontra paralelos expressivos em tantas outras literaturas de territórios próximos de Israel (mormente o Egipto antigo e helenístico). Quão belos são os versos que nos dizem “forte como a morte é o amor; implacável como o abismo é a paixão” (8: 6). Como é verdade, meu Deus, que não há fortuna no mundo que possa comprar o amor (8: 7). E como é mais verdade ainda que se identifica o verdadeiro amor por ser aquele que, simplesmente, é portador da paz (8:10).

 

#RacismoNão #viniciusjunior #Bíblia #teologia

 

Crónica de Frederico Lourenço, «Sou negra – MAS bela? - Não!» in https://www.facebook.com/professor.frederico.lourenco, 28-05-2023


Orfeu Negro ou Orfeu do Carnaval,
Marcel Camus, Brasil, Itália, 1959

 

  

Poderá também gostar de:

 

 

Cantar de Cantares - Códice Alcaíns, Javier Alcaíns.
Barcelona, Moleiro editor, 1999. ISBN: 9788488526700

quarta-feira, 22 de março de 2023

Mia irmana fremosa, treides comigo (Cantiga de Amigo)


 






5






10


Mia irmana fremosa, treides1 comigo
a la igreja de Vig’2, u3 é o mar salido4:
       E miraremos las ondas!

Mia irmana fremosa, treides de grado5
a la igreja de Vig’, u é o mar levado6:
       E miraremos las ondas!

A la igreja de Vig’, u é o mar salido,
e verra i7, mia madre, o meu amigo:
       E miraremos las ondas!

A la igreja de Vig’, u é o mar levado,
e verra i, mia madre, o meu amado:
       E miraremos las ondas!

Martim Codax (B 1280/V 886/PV 3)

A Lírica Galego-Portuguesa, edição de Elsa Gonçalves e Maria Ana Ramos, 2.ª ed., Lisboa, Comunicação, 1985, p. 262.

_________
1 treides – vinde.
2 Vig’ – Vigo.
3 u – onde.
4 salido – agitado.
5 de grado – de vontade; com gosto.
6 levado – agitado.
7 verra i – virá aí.

Nesta cantiga de Martim Codax “a donzela incita a sua irmã formosa a irem ao santuário de Vigo, onde o mar é bravo, para olharem as ondas. Na verdade, como compreendemos nas duas últimas estrofes, essa ida é um pretexto para estar com o seu amigo, que também lá irá (como confessa, dirigindo-se agora à mãe). Note-se, de resto, como o refrão, mantendo-se inalterado, ganha, nestas estrofes finais, um outro (ambíguo) sentido”.

Fonte: Lopes, Graça Videira; Ferreira, Manuel Pedro et al. (2011-), Cantigas Medievais Galego Portuguesas [base de dados online]. Lisboa: Instituto de Estudos Medievais, FCSH/NOVA. [Consulta em 2023-03-21] Disponível em: https://cantigas.fcsh.unl.pt/cantiga.asp?cdcant=1310&pv=sim




 

Paráfrase da cantiga

Minha irmã formosa, vinde comigo
à igreja de Vigo, que fica no meio do mar:
       E miraremos as ondas!

Minha irmã formosa, vinde com vontade
À igreja de Vigo, onde o mar é levantado:
       E miraremos as ondas!

À igreja de Vigo, que fica no meio do mar,
e virá aí, minha mãe, o meu amigo:
       E miraremos as ondas!

À igreja de Vigo, onde o mar é levantado,
e virá aí, minha mãe, o meu amado:
       E miraremos as ondas!



 

Questionário sobre a cantiga de Martim Codax

1. Refira dois dos sentimentos que motivam o sujeito de enunciação desta cantiga a ir a Vigo. Apresente, para cada um desses sentimentos, uma transcrição pertinente.

2. Explicite o papel da natureza nesta cantiga, bem como o valor simbólico que assume.

3. Complete as afirmações seguintes, selecionando a opção adequada a cada espaço.

Na folha de respostas, registe apenas as letras – a), b) e c) – e, para cada uma delas, o número que corresponde à opção selecionada em cada um dos casos.

Do ponto de vista formal, esta cantiga classifica-se como paralelística. Uma evidência dessa estrutura formal é a).

Quanto ao desenvolvimento temático, é de assinalar, por um lado, o facto de, em todas as estrofes, o sujeito poético se dirigir a um interlocutor; a partir da terceira estrofe, esse interlocutor passa a ser b).

Por outro lado, constata-se que, nas duas últimas estrofes, o sentido do verso «E miraremos las ondas!» evolui, podendo, mais claramente, ser associado c).

a)

b)

c)

1. o facto de todos os dísticos terem o mesmo número de sílabas métricas

2. a existência de quatro estrofes, todas elas constituídas por tercetos

3. a repetição dos versos da primeira estrofe na segunda estrofe e da terceira estrofe na quarta estrofe,

com variação das palavras em

posição de rima

1. o mar revolto

2. a mãe

3. a irmã

1. à ideia de proximidade entre a donzela e o seu amado

2. à permanente vigilância que familiares exercem sobre a donzela

3. à preocupação da donzela com o estado do mar

 

Explicitação de cenários de resposta:

1. Devem ser abordados os tópicos seguintes, ou outros igualmente relevantes:

o amor, patente, por exemplo, em «o meu amigo» (v. 8) ou «o meu amado» (v. 11);

a esperança de ver o seu «amigo», patente, por exemplo, em «e verra i, mia madre, o meu amigo» (v. 8) ou «E miraremos las ondas!» (refrão).

2. Devem ser abordados os tópicos seguintes, ou outros igualmente relevantes:

o espaço físico constitui o cenário natural para o encontro entre a donzela e o amigo;

o mar agitado espelha, simbolicamente, o estado de alma da donzela, que espera com ansiedade encontrar o seu amigo.

3. Chave de correção: a-3; b.2; c-1.

 

Fonte: Exame Final Nacional de Português n.º 639 – Ensino Secundário, 12.º Ano de Escolaridade (Decreto-Lei n.º 139/2012, de 5 de julho | Decreto-Lei n.º 55/2018, de 6 de julho). Portugal, IAVE– Instituto de Avaliação Educativa, I.P., 2020, 2.ª Fase

 


     Poderá também gostar de:

 “Poesia trovadoresca galego-portuguesa”, José Carreiro. In: Folha de Poesia, 2018-05-18. Síntese didática disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2018/05/poesia-trovadoresca-galego-portuguesa.html


 


CARREIRO, José. “Mia irmana fremosa, treides comigo (Cantiga de Amigo)”. Portugal, Folha de Poesia: artes, ideias e o sentimento de si, 22-03-2023. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2023/03/mia-irmana-fremosa-treides-comigo.html


terça-feira, 21 de março de 2023

Mia senhor fremosa, direi-vos ũa rem (Cantiga de Amor)

CBN 132

 






5





10





15

Mia senhor fremosa, direi-vos ũa rem1:
vós sodes mia morte e meu mal e meu bem!
     E mais por que vo-lo hei eu já mais a dizer?
     Mia morte sodes, que me fazedes morrer!

Vós sodes mia mort’e meu mal, mia senhor,
e quant’eu no mund’hei de bem e de sabor2!
     E mais por que vo-lo hei eu já mais a dizer?
     Mia morte sodes, que me fazedes morrer!

Mia mort’e mia coita sodes, nom há i al3,
e os vossos olhos mi fazem bem e mal.
     E mais por que vo-lo hei eu já mais a dizer?
     Mia morte sodes, que me fazedes morrer!

Senhor, bem me fazem soo4 de me catar5,
pero vem m’en6 coita7 grand’; e vos direi ar8:
     E mais por que vo-lo hei eu já mais a dizer?
     Mia morte sodes, que me fazedes morrer!

Nuno Eanes Cerzeo, Cancioneiro da Biblioteca Nacional - B 132

Cantigas Medievais Galego-Portuguesas, edição coordenada por Graça Videira Lopes, Vol. 2, Lisboa, BNP/IEM/CESEM, 2016, pp. 167-168.


__________

1 rem (verso 1) – coisa.
2 sabor (verso 6) – gosto; prazer; desejo.
3 nom há i al (verso 9) – sem qualquer dúvida.
4 soo (verso 13) – só.
5 catar (verso 13) – olhar.
6 en (verso 14) – disso; disto.
7 coita (verso 14) – sofrimento, mágoa.
8 ar (verso 14) – novamente; também.

 

Nesta cantiga de amigo, o trovador diz à sua senhora que ela é, ao mesmo tempo, a sua morte, o seu mal e o seu bem. É a sua morte porque o faz morrer, mas é também todo o bem que ele tem no mundo. Quando ela o olha, os seus olhos fazem-lhe bem, mas fazem-lhe mal quando esse bem se transforma em sofrimento.

Fonte: Lopes, Graça Videira; Ferreira, Manuel Pedro et al. (2011-), Cantigas Medievais Galego Portuguesas [base de dados online]. Lisboa: Instituto de Estudos Medievais, FCSH/NOVA. [Consulta em 2023-03-20] Disponível em: https://cantigas.fcsh.unl.pt/cantiga.asp?cdcant=105&pv=sim

 

Questionário sobre a cantiga de Nuno Eanes Cerzeo

1. Apresente três características do poema que permitam identificá-lo como uma cantiga de amor.

2. Explicite dois dos efeitos que resultam da oposição estabelecida, ao longo do texto, entre «meu mal» e «meu bem».

3. Analise o sentido das palavras «morte» e «morrer», tal como ocorrem no segundo verso do refrão.

4. Tendo em conta a terceira e a quarta estrofes, explique as referências ao olhar («olhos», verso 10; «catar», verso 13).

 

Explicitação de cenários de resposta

1. Na resposta, devem ser desenvolvidos três dos tópicos seguintes, ou outros igualmente relevantes.

As características que permitem identificar o poema como uma cantiga de amor são:

− a apóstrofe «mia senhor» (vv. 1 e 5);

− a voz masculina do sujeito poético;

− o tema do amor tratado segundo o ideal do amor cortês;

− uma acentuação dos aspetos contraditórios do sentimento amoroso;

− o elogio da dama, caracterizada pelo sujeito poético como «fremosa» (v. 1).

2. Na resposta, devem ser desenvolvidos dois dos tópicos seguintes, ou outros igualmente relevantes.

A oposição estabelecida entre «meu mal» e «meu bem» produz os seguintes efeitos:

− marcar o tom antitético que, introduzido no verso 2, se manterá ao longo do poema;

− sugerir o sofrimento («meu mal») e o prazer («meu bem») provocados pelo amor que o sujeito poético sente pela amada;

− expressar a tensão provocada por sentimentos contraditórios;

− acentuar a intensidade da paixão amorosa.

3. Na resposta, devem ser desenvolvidos dois dos tópicos seguintes, ou outros igualmente relevantes.

Tal como ocorrem no segundo verso do refrão, as palavras «morte» e «morrer» remetem para:

− a expressão dos efeitos dolorosos do sentimento amoroso;

− a sugestão de que a morte é consequência inevitável da «coita» (vv. 9 e 14);

− a representação poética da intensidade da paixão despertada pela «senhor»;

− a manifestação de um amor intenso, embora impossível.

4. Na resposta, devem ser desenvolvidos dois dos tópicos seguintes, ou outros igualmente relevantes.

Na terceira e na quarta estrofes, o olhar é apresentado como:

− veículo da paixão que atormenta o sujeito poético;

− símbolo da atenção que a «senhor» dedica ao sujeito poético;

− modo privilegiado de relação entre a «senhor» e o sujeito poético;

− sinal da distância entre a «senhor» e o sujeito poético.

 

Fonte: Exame Final Nacional de Literatura Portuguesa. Prova 734 | 1.ª Fase | Ensino Secundário | 2019 | 11.º Ano de Escolaridade | Decreto-Lei n.º 139/2012, de 5 de julho | Decreto-Lei n.º 55/2018, de 6 de julho. República Portuguesa – Educação / IAVE-Instituto de Avaliação Educativa, I.P.

 


     Poderá também gostar de:

 “Poesia trovadoresca galego-portuguesa”, José Carreiro. In: Folha de Poesia, 2018-05-18. Síntese didática disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2018/05/poesia-trovadoresca-galego-portuguesa.html


 


CARREIRO, José. “Mia senhor fremosa, direi-vos ũa rem (Cantiga de Amor)”. Portugal, Folha de Poesia: artes, ideias e o sentimento de si, 21-03-2023. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2023/03/mia-senhor-fremosa-direi-vos-ua-rem.html