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terça-feira, 5 de dezembro de 2023

Havia muito sol do outro lado (Crónica de José Eduardo Agualusa)

https://pixabay.com/


     Havia muito sol do outro lado

Aquilo tornara-se um vício. Ele ouvia um telefone a tocar e logo estendia o braço e levantava o auscultador.

– E se fosse para mim?

Os amigos faziam troça:

– No consultório do teu dentista?

Uma noite estava sozinho, no Rossio, à espera de um táxi, quando o telefone tocou numa cabina ao lado. Era no fim da noite e chovia: uma água mole, desesperançada, tão leve que parecia emergir do próprio chão. Ruben enfiou as mãos nos bolsos do casaco.

– É claro que não vou atender – disse alto. – Não pode ser para mim. Se atender este telefone é porque estou a enlouquecer.

O telefone voltou a tocar. Não chegou a tocar cinco vezes. Ele correu para a cabina e atendeu.

– Está?

Estava muito sol do outro lado. Era, tinha de ser, uma tarde de sol.

– Posso falar com o Gustavo?

A voz dela iluminou a cabina. Ruben pensou em dizer que era o Gustavo. Estava ali, àquela hora absurda, abandonado como um náufrago na mais triste noite do mundo. Tinha direito de ser o Gustavo (fosse ele quem fosse).

– Você não vai acreditar, mas a sua chamada foi parar a uma cabina telefónica.

Ela riu-se. Meus Deus – pensou Ruben – era como beber sol pelos ouvidos.

– Não brinques! És tu, Gustavo, não és?…

Sim ele tinha o direito de ser o Gustavo:

– Infelizmente não. Você ligou para uma cabina telefónica, no Rossio, eu estava à espera de um táxi e atendi.

Quase acrescentou: "pensei que pudesse ser para mim". Felizmente não disse nada. Ela voltou a rir:

– Tenho a sensação de que esta chamada vai ficar-me cara. Sabe onde estou?


Pulau Penang


Estava em Pulau Penang, na Malásia, e dali, do seu quarto, num hotel chamado Paradise, podia ver todo o esplendor do mar.

– Nunca vi nada com esta cor – sussurrou – só espero que Deus me dê a alegria de morrer no mar.

Ele ficou em silêncio. Aquilo parecia a letra de um samba. Ela começou a chorar:

– Desculpe que vergonha… Nem sequer sei como se chama.

Ruben apresentou-se: – Ruben, 34 anos, trabalho em publicidade.

Pediu-lhe o número de telefone e ligou utilizando o cartão de crédito. Aquela chamada ficou-lhe cara. Casaram oito meses depois. Ele diz a toda a gente que foi o destino. Ela, pelo sim pelo não, proibiu-o de atender telefones.

José Eduardo Agualusa, A substância do amor e outras crónicas. 3.ª edição, Lisboa, Publicações D. Quixote, 2009, pp. 53-54

 ***


Escreve um pequeno comentário, entre 80 e 100 palavras, sobre o sentido global do texto de José Eduardo Agualusa, atentando na caracterização de Ruben, nas atitudes perante o telefonema oriundo de Pulau Penang e na importância do destino na vida das pessoas.

(Proposta de escrita por Carla Marques e Inês Silva, em Contos & Recontos 7. Lisboa, ASA2013, p. 152)

 

       Sugestão de resposta:

O sentido global do texto é mostrar como o destino pode intervir na vida das pessoas, de forma surpreendente e maravilhosa.

Ruben é uma personagem solitária, que tem o hábito de atender telefones alheios, na esperança de encontrar alguém que lhe fale.

As atitudes perante o telefonema de Pulau Penang são de curiosidade, encantamento e coragem. Ruben decide arriscar-se a conhecer a mulher que lhe ligou por engano, e acaba por se apaixonar e casar com ela.

O destino é a força que une as duas personagens, que vivem em lugares tão distantes e diferentes.

O texto é uma celebração do amor e da magia do acaso.


quinta-feira, 20 de abril de 2023

A cidade - crónica de José Saramago

 

A cidade

Era uma vez um homem que vivia fora dos muros da cidade. Se cometera algum crime, se pagava culpas de antepassados, ou se apenas se retirara por indiferença ou vergonha – não se sabe. Talvez um pouco de tudo isto, tão certo é que do belo e do feio, da verdade e da mentira, do que se confessa e do que se esconde, fazemos todos nós a nossa casual existência. Vivia o homem fora dos muros da cidade, e dessa segregação deliberada ou imposta acabou por fazer um pequeno título de glória. Mas não podia evitar (isso não podia) que nos olhos lhe pairasse a névoa melancólica que envolve todo o ser desterrado.

Algumas vezes tentou entrar. Fê-lo não por um desejo irreprimível, nem sequer por cansaço da situação, mas por mero instinto de mudança ou desconforto inconsciente. Escolheu sempre as portas erradas, se portas havia. E se lhe aconteceu julgar que entrara na cidade, talvez sim, mas era como se a par da cidade real houvesse imagens dela, inconsistentes como a sombra que nos olhos se tornava mais e mais densa. E quando essas imagens se desvaneciam, como o nevoeiro que das águas se desprende ao toque luminoso do sol, era o deserto que o rodeava, e ao longe, brancos e altos, com árvores plantadas nas torres e jardins suspensos nas varandas, os muros da cidade brilhavam outra vez inacessíveis.

De dentro vinham rumores de festa. Assim lho dizia, mais do que os sentidos, a imaginação. Rumores de vida seriam, pelo menos. Não a morte solitária que é a contemplação obstinada da própria sombra. Não o desespero surdo da palavra definitiva que se escapa no momento em que seria, melhor que uma palavra, uma chave. E então o homem rodeava as longas muralhas, tateando, à procura da porta que obscuramente lhe estaria prometida.

Porque o homem acreditava na predestinação. Estar fora da cidade (se disso tinha real consciência) era para ele uma situação acidental e provisória. Um dia, no dia exato, nem antes, nem depois, entraria na cidade. Melhor dizendo: entraria em qualquer parte, que a isto se resumia o seu esperar. Que a névoa da melancolia se tornasse noite, seria um mal necessário, mas também provisório, porque o dia predestinado traria uma explicação. Ou nem isso, sequer. Um fim, um simples fim. Uma abdicação já serviria.

O homem não sabia que as cidades que se rodeiam de altos muros (ainda que brancos e com árvores) não se tomam sem luta. Não sabia o homem que antes da batalha pela conquista da cidade outro combate teria de travar e vencer. E que nesta primeira luta teria de lutar consigo mesmo. Ninguém sabe nada de si antes da ação em que tiver de empenhar-se todo. Não conhecemos a força do mar enquanto ele não se move. Não conhecemos o amor antes do amor.

Veio a batalha. Como nos poemas de Homero, também os deuses entraram nela. Combateram a favor e contra, algumas vezes uns contra os outros. O homem que lutava para viver dentro dos muros da cidade cruzou espada e palavras com os deuses que estavam do seu lado. Feriu e foi ferido. E a luta durou longos e longos dias, semanas, meses, sem tréguas nem repouso, ora junto às muralhas, ora tão longe delas que nem a cidade se via, nem se sabia bem já que prémio estaria no fim do combate. Foi outra forma de desespero.

Até que um dia o terreno da luta ficou livre e desimpedido, como um estuário onde as águas descansam. Sangrando, o homem e o deus que lhe ficara olharam de frente as portas, abertas de par em par. Havia um grande silêncio na cidade. Ainda amedrontado, o homem avançou. A seu lado, o deus. Entraram – e foi só depois que entraram que a cidade se tornou habitada.

Era uma vez um homem que vivia fora dos muros da cidade. E a cidade era ele próprio. Cidade de José se lhe quisermos dar um nome.

José Saramago, Deste mundo e do outro
Porto Editora, 2018. Recurso disponível em: https://recursos.portoeditora.pt/recurso?id=17681323

 

Deste Mundo e do Outro reúne, em 1971, através da Editorial Arcádia, 61 crónicas que haviam sido publicadas entre 1968 e 1969 no jornal A Capital.

Nos anos 90, José Saramago, na conferência intitulada “A crónica como aprendizagem: uma experiência pessoal”, afirma: “Vários pontos, nessas crónicas, poderão ser retidos se se quiser caracterizar, no seu autor, tanto uma forma de escrever como um modo de sentir: em primeiro lugar, certa coincidência de atitude entre a crónica e o poema lírico (articulação com o momento presente, brevidade do texto, possibilidade de captação das ressonâncias evocativas do seu sentido); em segundo lugar, a prática constante de uma prosa medida, susceptível de criar no escritor um treino dos recursos estilísticos em função da densidade e da economia expressivas; em terceiro lugar, o hábito de colocar em conjunção de interesses a dinâmica do tempo que se vive, a sensibilidade do sujeito que o vive e as potencialidades verbais susceptíveis de definirem essa mesma expressão.”

Ler mais em: https://www.josesaramago.org/conferencia/a-cronica-como-aprendizagem-uma-experiencia-pessoal/

 



Do livro Deste Mundo e do Outro, selecionámos a primeira crónica (possivelmente na esperança de ter sido esta a 1.ª crónica escrita pelo autor, mas sem dados que nos permitam tal afirmação). “A cidade”, é o seu nome. Uma qualquer cidade, uma crónica que começa como uma história para crianças, com “Era uma vez…”, levando-nos pois, por ora, para um universo ficcional. Esta cidade sem nome (para já), é rodeada por muros e, fora deles, vive um homem. Não se sabe porquê, adiantando o autor algumas hipóteses e admitindo, desde logo, que “tão certo é que do belo e do feio, da verdade e da mentira, do que se confessa e do que se esconde, fazemos todos nós a nossa casual existência.” Uma primeira lição, um primeiro alerta para uma ética que paira sobre os que vivem dentro dos muros da cidade e que lhes impede uma visão clara. Este homem, que é o protagonista da história, não consegue, ele próprio, discernir acerca do que é real ou não, tantas são as imagens ensombradas que se adensam ao seu redor sempre que tenta entrar na cidade/no real, afinal tão longe do seu alcance, tão longe do deserto em que se encontra, tão inacessível. Este homem imagina uma cidade em festa, uma cidade plena de vida e vai “tacteando, à procura da porta que obscuramente lhe estaria prometida.” Ele acredita estar predestinado a entrar, “Um dia, no dia exacto, nem antes, nem depois….”, como acredita que, nesse dia, lhe chegará a explicação de tudo. Mas o homem não sabe

…que as cidades que se rodeiam de altos muros (ainda que brancos e com árvores) não se tomam sem luta. Não sabia o homem que antes da batalha pela conquista da cidade outro combate teria de travar e vencer. E que nesta primeira luta teria de lutar consigo mesmo. Ninguém sabe nada de si antes da acção em que tiver de empenhar-se todo. Não conhecemos a força do mar enquanto ele não se move. Não conhecemos o amor antes do amor. (sublinhado nosso).

Segundo alerta do autor: o primeiro combate do homem deve ser consigo próprio, de nada lhe adiantando querer forçar uma batalha, querer entrar num real que lhe é exterior, quando não se empenhou ainda o suficiente na acção que é o conhecer-se a si mesmo. Está o autor a dirigir-se ao leitor ou a si próprio? Cremos que a ambos. A advertência apela, sobretudo, ao cuidado a ter com “as cidades que se rodeiam de altos muros (ainda que brancos e com árvores)”, ou seja, cuidado com o que nos é dado como “natural” e verdadeiro.

Depois de uma batalha em que “Como nos poemas de Homero, também os deuses entraram…”, as portas estão, finalmente, “abertas de par em par” e paira “um grande silêncio na cidade.” Homem e deus entram na cidade, “e foi só depois que entraram que a cidade se tornou habitada.”

Era uma vez um homem que vivia fora dos muros da cidade. E a cidade era ele próprio. Cidade de José se lhe quisermos dar um nome.

Assim termina a crónica. “Cidade de José…”, cidade de José Saramago, dizemos nós, a cidade na qual o autor entra após uma batalha consigo próprio, a batalha do conhecimento interior, a batalha a que incita os outros homens, se assim quiserem derrubar os muros que não lhes deixam ver dentro de si. Numa palavra: a cidade da consciência.

Sobre as crónicas de José Saramago, ler mais em: Crónica: Literatura de Compromisso ou a Urgência da Palavra, Maria de Fátima Palmela de Faria Roque. Lisboa, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, 2011

 

 


CARREIRO, José. “A cidade - crónica de José Saramago”. Portugal, Folha de Poesia: artes, ideias e o sentimento de si, 20-04-2023. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2023/04/a-cidade-cronica-de-jose-saramago.html


 

quarta-feira, 26 de outubro de 2022

Roteiro literário: Mar de Sophia - "Metade da minha alma é feita de maresia"

João Cutileiro - Sophia em Lagos: Anos 60 [em linha]. Sophia de Mello Breyner Andresen no seu tempo. Momentos e Documentos. Disponível em: http://purl.pt/19841/1/galeria/arte-fotografia/joao-cutileiro/foto1.html

 


Mar de Sophia - "Metade da minha alma é feita de maresia" 

O Mar é transversal à vida e obra da poeta: a Praia da Granja subentende os primeiros anos da sua vida e adolescência; o Algarve a vida adulta e a passagem do Mar revolto do norte para o soalheiro sul. A Grécia, mais do que uma idade, representa o encontro com um ideal de beleza que percorre toda sua poesia, porque o gosto pela Grécia parte do seu gosto pelo Mar, levando-a a apaixonar-se pela cultura helénica muito antes de visitar a Grécia.

 

Roteiro literário sobre Sophia de Mello Breyner Andresen

(Museu Digital da Universidade do Porto) 

Partindo da obra da autora foi desenvolvido um roteiro que tem o Mar como fio condutor da narrativa. A partir dos textos da poetisa o utilizador é orientado através de um conjunto de pontos georreferenciados que, mais do que lhe mostrarem a importância do Mar na vida de Sophia, procuram dar a conhecer o Mar de Sophia enquanto algo abstrato, entendido como horizonte metafisico e emocional. Desta forma pretende mostrar a relação que a autora desenvolveu com os espaços a partir dos seus textos.


(A) Prólogo

Vanessa Reis, no meio do Atlântico, 2019


INICIAL

 

O mar azul e branco e as luzidias

Pedras — O arfado espaço

Onde o que está lavado se relava

Para o rito do espanto e do começo

Onde sou a mim mesma devolvida

Em sal espuma e concha regressada

À praia inicial da minha vida

 

Sophia de Mello Breyner Andresen, Dual, 1972


(B) Mar do Norte

Walter Rademacher. Vista aérea da ilha de Fohr. 2013. Disponível em: https://en.wikipedia.org/wiki/File:Aerial_photograph_400D_2013_09_29_9551.JPG [consultado a 04/09/2019]


Se Jann Hinrich Andresen não tivesse respondido ao apelo do Mar, a cultura portuguesa não teria conhecido Sophia de Mello Breyner. A relação da poeta com o Mar acontece mesmo antes desta nascer. Partindo de Oevenum, nas Ilhas Frísias, com vontade de navegar rumo a sul, Jann Hinrich desembarcou no Porto, onde enriqueceu com o comércio do vinho do Porto.

Para a poeta o Mar será também um elemento central da sua vida, e por consequência da sua obra. Mas, ao contrário do bisavô, para quem o Mar se transformou num local de eterna saudade, Sophia verá no Mar felicidade e plenitude, um lugar de renovação física e espiritual. Aprendendo no Mar o gosto pela forma bela, pela liberdade, pela poesia.

 ***

A SAGA

 

 -Avô – disse Joana – porque que estás sempre a olhar para o mar?

 -Ah! – respondeu Hans. – Porque o mar é o caminho para a minha casa.

 (…)

 -Quando eu morrer – pediu Hans – mandem construir um navio em cima da minha sepultura.

 -Um navio? – murmurou o filho mais velho. – Um navio como?

 -Naufragado – disse Hans. E até morrer não falou mais.

 

Sophia de Mello Breyner Andresen, Histórias da Terra e do Mar,1984


Túmulo de Jann Henrich, bisavô de Sophia Andresen (Vanessa Reis, 2019)

 

Como é narrado em A Saga, após a morte de Jann Henrich, a sua vontade é cumprida, e ainda hoje podemos visitar o peculiar jazigo no cemitério de Agramonte, no Porto. No conto A Saga, Sophia evoca a memória deste antepassado através da personagem de Hans.

A escultura foi produzida por António Teixeira Lopes, tendo como título "Alegorias do Comércio, Fortuna e Navegação". 

 

(C) Um Lugar Desmedidamente Grande

Jardim Botânico do Porto - Entrada da Quinta do Campo Alegre. Disponível em: https://www.infoporto.pt/pt/jardim-botanico-do-porto/

 

     Hoje, ao percorrer os Jardins da antiga Casa Andresen, é-nos difícil imaginar o marulhar do Mar ao longe que Sophia descreve. Mas, quando o seu avô adquiriu a Quinta no final do século XIX, os seus terrenos chegavam ao Mar. Para Sophia a Quinta do Campo Alegre surgirá sempre associada à sua infância, onde tudo era “desmedidamente” grande, e ao começo da vida. Este lugar leva-a a acreditar na imanência da poesia e na crença de que só teríamos de estar muito atentos para a conseguir ouvir. É aqui que escreve os primeiros textos, imortalizando o local como sendo uma amálgama de cheiros, cores e texturas.

O Jardim foi criado em 1951 pela Universidade do Porto e instalado na Quinta do Campo Alegre.

Esta quinta tinha pertencido à Ordem de Cristo, sendo adquirida em 1802 por João Salabert passando a ser conhecida como Quinta Grande do Salabert. João da Silva Monteiro adquiriu-a em 1875 e iniciou a construção da casa e do jardim. Posteriormente, em 1895, foi comprada por João Henrique Andresen Júnior que continuou a construção da casa e do jardim. Esta permaneceu na posse da sua família até 1949, data em foi vendida ao Estado Português, passando depois para a Universidade. 

 

Busto do escritor Ruben A., por Barata Feyo, no Jardim Botânico do Porto, Portugal. Fonte: https://pt.wikipedia.org/wiki/Jardim_Bot%C3%A2nico_do_Porto


CARTA A RUBEN A.

 

Que tenhas morrido é ainda uma notícia

Desencontrada e longínqua e não a entendo bem

 

Quando — pela última vez — bateste à porta da casa e te sentaste à mesa

Trazias contigo como sempre alvoroço e início

Tudo se passou em planos e projetos

E ninguém poderia pensar em despedida

 

Mas sempre trouxeste contigo o desconexo

De um viver que nos funda e nos renega

— Poderei procurar o reencontro verso a verso

E buscar — como oferta — a infância antiga

 

A casa enorme vermelha e desmedida

Com seus átrios de pasmo e ressonância

O mundo dos adultos nos cercava

E dos jardins subia a transbordância

De rododendros dálias e camélias

De frutos roseirais musgos e tílias

 

As tílias eram como catedrais

Percorridas por brisas vagabundas

As rosas eram vermelhas e profundas

E o mar quebrava ao longe entre os pinhais

 

Morangos e muguet e cerejeiras

Enormes ramos batendo nas janelas

Havia o vaguear tardes inteiras

E a mão roçando pelas folhas de heras

 

Havia o ar brilhante e perfumado

Saturado de apelos e de esperas

 

Desgarrada era a voz das primaveras

 

Buscarei como oferta a infância antiga

Que mesmo tão distante e tão perdida

Guarda em si a semente que renasce

 

Junho de 1976

Sophia de Mello Breyner Andresen, O Nome das Coisas, 1977


Sophia ao colo de Laura Guimarães, sua ama. Porto, dezembro 1919. 
Disponível em: https://purl.pt/19841/1/1920/1920-3.html

 

Sophia de Mello Breyner nasce a 6 de novembro de 1919 no Porto, na Rua António Cardoso, perto da Quinta do Campo Alegre. Passou toda a infância e juventude no norte. Muda-se para a capital quando foi frequentar o curso de Filologia Clássica para a Universidade de Lisboa. 


(D) "A praia da Granja é a praia inicial da minha vida"

Praia da Granja (Vanessa Reis, 2019)

  

“A Granja foi assassinada pela câmara de Gaia”, afirmou Sophia, durante uma entrevista no início da década de 90, referindo-se ao que chamava de “arquitetura dita moderna” e aos maus acessos à praia. Atualmente muito menos frequentada, a Praia da Granja foi um lugar privilegiado para a aristocracia portuguesa que aí se instalava para passar os verões e receber os benefícios do iodo. Tradição que levou Sophia ao encontro deste lugar. É aqui que tem o primeiro contacto com o Mar, chamando à Granja “paraíso terrestre da minha infância e adolescência”.  Foi aqui que escreveu muitos poemas, e se inspirou para o conto A Menina do Mar, baseada numa história que a mãe lhe costumava contar.

 

ERA UMA VEZ UMA PRAIA ATLÂNTICA

 

Do Atlântico frio mesmo quando agitado saíamos quase sempre gelados e felizes, a bater os dentes, com a ponta dos dedos branca, os beiços roxos. (…) Havia em tudo isto um conforto rudimentar e fresco, um cheiro a sal, a ervas e a madeira e uma beleza feita de ainda não haver plástico e de o contraplacado, o cromado e outras invenções serem reservadas para usos diferentes. (…) Eu estava sentada à sombra do toldo ao lado da minha mãe. As ondas inchavam o seu dorso e desabavam sobre a praia. A areia molhada luzia. A vida era celestemente terrestre. Onde estávamos, cheirava a maresia e a jardim. O perfume da felicidade invadia o mundo.

 

Sophia de Mello Breyner Andresen, Era uma vez uma praia Atlântica, 1997

 


Méditerranée, 1980, Paris, Éditions de la Différence,
edição especial com duas serigrafias de Vieira da Silva,
Paris, tradução de Joaquim Vital


A casa da Granja é a que é mencionada no conto “A menina do Mar”, “A Casa Branca” e no poema “Musa”. Lugar predileto dos primeiros verões de Sophia. Votada ao abandono é difícil de a localizar.

Maria Helena Vieira da Silva, artista plástica, realizou um conjunto de serigrafias para uma edição francesa do livro Mediterraneé de Sophia, sua amiga. Foram baseadas numa descrição feita no conto A Casa Branca, texto inspirado pela Granja. (Sophia e a palavra. Noesis. nº 26 (1993) pp. 50-51)

 

CASA BRANCA

 

Casa branca em frente ao mar enorme,

Com o teu jardim de areia e flores marinhas

E o teu silêncio intacto em que dorme

O milagre das coisas que eram minhas.

… … … … … … … … … … … … … … …

 

A ti eu voltarei após o incerto

Calor de tantos gestos recebidos

Passados os tumultos e o deserto

Beijados os fantasmas, percorridos

Os murmúrios da terra indefinida.

 

Em ti renascerei num mundo meu

E a redenção virá nas tuas linhas

Onde nenhuma coisa se perdeu

Do milagre das coisas que eram minhas.

 

Sophia de Mello Breyner Andresen, Poesia, 1944


(E) "O Algarve era uma maravilha" 

Ponta de Sagres, Algarve (Vanessa Reis, 2019)

 

É palpável a tristeza e revolta de Sophia em relação ao desenvolvimento do Algarve nos fins do século XX. “Agora constrói-se demais para o turista e de menos para as pessoas. É uma terra onde às vezes não pode viver quem lá vive. Está tudo desfigurado, tudo esventrado.”

Visitando pela primeira vez em 1961, Sophia toma contacto com um Algarve ainda tradicional. As infraestruturas turísticas eram inexistentes e a jornada difícil. Desde o primeiro momento que a escritora se maravilhou com a pureza e simplicidade da região e seus habitantes.

Ao descobrir o Algarve a sua relação com o Mar altera-se, passando de um Mar frio e tempestuoso para um de claridade e tranquilidade.

 

ESTAÇÕES DO ANO

 

Primeiro vem Janeiro

Suas longínquas metas

São Julho e são Agosto

Luz de sal e de setas

 

A praia onde o vento

Desfralda as barracas

E vira os guarda-sóis

Ficou na infância antiga

Cuja memória passa

Pela rua à tarde

Como uma cantiga

 

O verão onde hoje moro

É mais duro e mais quente

Perdeu-se a frescura

Do verão adolescente

 

Aqui onde estou

Entre cal e sal

Sob o peso do sol

Nenhuma folha bole

Na manhã parada

E o mar é de metal

Como um peixe-espada

 

Sophia de Mello Breyner Andresen, O Nome das Coisas, 1977.

 

(F) “Lagos onde reinventei o mundo num verão ido”

Manuelvbotelho. Praça Infante Dom Henrique, Lagos. 2000. Disponível em: https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Pra%C3%A7a_Infante_Dom_Henrique_Lagos_img_9330.jpg [consultado a: 04/09/2019]


Embora, com o passar dos anos, Lagos tenha sofrido alterações ainda é possível recriar os passos que Sophia indicou à sua empregada, imortalizados no poema Caminho da Manhã.

Achando a cidade “meticulosamente limpa” e os seus habitantes “honestos”, Lagos torna-se o principal local onde Sophia permaneceu nas visitas ao Algarve. Inspiração de vários poemas, a escritora identifica-se e encontra conforto, reconhecendo Lagos como um local onde a “aliança com as coisas” não se perdeu nem foi corrompida, numa continuidade entre o físico e metafísico, entre o natural e o humano.

 

CAMINHO DA MANHÃ

 

Vais pela estrada que é de terra amarela e quase sem nenhuma sombra. As cigarras cantarão o silêncio de bronze. À tua direita irá primeiro um muro caiado que desenha a curva da estrada. Depois encontrarás as figueiras transparentes e enroladas; mas os seus ramos não dão nenhuma sombra. E assim irás sempre em frente com a pesada mão do Sol pousada nos teus ombros, mas conduzida por uma luz levíssima e fresca. Até chegares às muralhas antigas da cidade que estão em ruínas. Passa debaixo da porta e vai pelas pequenas ruas estreitas, direitas e brancas, até encontrares em frente do mar uma grande praça quadrada e clara que tem no centro uma estátua. Segue entre as casas e o mar até ao mercado que fica depois de uma alta parede amarela. Aí deves parar e olhar um instante para o largo pois ali o visível se vê até ao fim. E olha bem o branco, o puro branco, o branco da cal onde a luz cai a direito. Também ali entre a cidade e a água não encontrarás nenhuma sombra; abriga-te por isso no sopro corrido e fresco do mar. Entra no mercado e vira à tua direita e ao terceiro homem que encontrares em frente da terceira banca de pedra compra peixes. Os peixes são azuis e brilhantes e escuros com malhas pretas. E o homem há-de pedir-te que vejas como as suas guelras são encarnadas e que vejas bem como o seu azul é profundo e como eles cheiram realmente, realmente a mar. Depois verás peixes pretos e vermelhos e cor-de-rosa e cor de prata. E verás os polvos cor de pedra e as conchas, os búzios e as espadas do mar. E a luz se tornará líquida e o próprio ar salgado e um caranguejo irá correndo sobre uma mesa de pedra. À tua direita então verás uma escada: sobe depressa mas sem tocar no velho cego que desce devagar. E ao cimo da escada está uma mulher de meia idade com rugas finas e leves na cara. E tem ao pescoço uma medalha de ouro com o retrato do filho que morreu. Pede-lhe que te dê um ramo de louro, um ramo de orégãos, um ramo de salsa e um ramo de hortelã. Mais adiante compra figos pretos: mas os figos não são pretos mas azuis e dentro são cor-de-rosa e de todos eles corre uma lágrima de mel. Depois vai de vendedor em vendedor e enche os teus cestos de frutos, hortaliças, ervas, orvalhos e limões. Depois desce a escada, sai do mercado e caminha para o centro da cidade. Agora aí verás que ao longo das paredes nasceu uma serpente de sombra azul, estreita e comprida. Caminha rente às casas. Num dos teus ombros pousará a mão da sombra, no outro a mão do Sol. Caminha até encontrares uma igreja alta e quadrada.

Lá dentro ficarás ajoelhada na penumbra olhando o branco das paredes e o brilho azul dos azulejos. Aí escutarás o silêncio. Aí se levantará como um canto o teu amor pelas coisas visíveis que é a tua oração em frente do grande Deus invisível.

 

Sophia de Mello Breyner Andresen, Livro Sexto, 1962.

 

 

(G) A Praia das Grutas

Praia Don'Ana (Vanessa Reis, 2019)

 
Sophia na praia Dona Ana, com um pescador e o filho Xavier. Início dos anos 60. Disponível em: https://museudigital.pt/pt/acesso/ficha/g/roteiro/17 [Consultado a: 04/09/2019] 

 

A Praia Don' Ana esteve na boca do mundo em 2013 quando foi considerada como uma das praias mais bonitas do mundo. Em 2015 voltou a estar no centro das atenções devido a uma polémica obra de aumento do areal. Por este e outros motivos, torna-se difícil imaginar a praia tão frequentada por Sophia de Mello Breyner.

Guiada pelo barqueiro José Machucho, o contacto com as grutas próximas da praia tem um profundo impacto em Sophia. Vê nelas um santuário, um lugar de particular proximidade com o sagrado. Irá fazer da sua visita um ritual, declamando poesia no seu interior. O isolamento e o silêncio são agora difíceis de imaginar. Os remos deram lugar ao motor, o solitário barqueiro a dezenas de guias e turistas. Permanecem as rochas, o mar e os jogos de luz.

 

AS GRUTAS

 

O esplendor poisava solene sobre o mar. E — entre as duas pedras erguidas numa relação tão justa que é talvez ali o lugar da Balança onde o equilíbrio do homem com as coisas é medido — quase me cega a perfeição como um sol olhado de frente. Mas logo as águas verdes em sua transparência me diluem e eu mergulho tocando o silêncio azul e rápido dos peixes. Porém a beleza não é só solene mas também inumerável. De forma em forma vejo o mundo nascer e ser criado. Um grande rascasso vermelho passa em frente de mim que nunca antes o imaginara. Limpa, a luz recorta promontórios e rochedos. É tudo igual a um sonho extremamente lúcido e acordado. Sem dúvida um novo mundo nos pede novas palavras, porém é tão grande o silêncio e tão clara a transparência que eu muda encosto a minha cara na superfície das águas lisas como um chão.

As imagens atravessam os meus olhos e caminham para além de mim. Talvez eu vá ficando igual à almadilha da qual os pescadores dizem ser apenas água.

Estarão as coisas deslumbradas de ser elas? Quem me trouxe finalmente a este lugar? Ressoa a vaga no interior da gruta rouca e a maré retirando deixou redondo e doirado o quarto de areia e pedra. No centro da manhã, no centro do círculo do ar e do mar, no alto do penedo, no alto da coluna está poisada a rola branca do mar. Desertas surgem as pequenas praias.

Um fio invisível de deslumbrado espanto me guia de gruta em gruta. Eis o mar e a luz vistos por dentro. Terror de penetrar na habitação secreta da beleza, terror de ver o que nem em sonhos eu ousara ver, terror de olhar de frente as imagens mais interiores a mim do que o meu próprio pensamento. Deslizam os meus ombros cercados de água e plantas roxas. Atravesso gargantas de pedra e a arquitectura do labirinto paira roída sobre o verde. Colunas de sombra e luz suportam céu e terra. As anémonas rodeiam a grande sala de água onde os meus dedos tocam a areia rosada do fundo. E abro bem os olhos no silêncio líquido e verde onde rápidos, rápidos fogem de mim os peixes. Arcos e rosáceas suportam e desenham a claridade dos espaços matutinos. Os palácios do rei do mar escorrem luz e água. Esta manhã é igual ao princípio do mundo e aqui eu venho ver o que jamais se viu.

O meu olhar tornou-se liso como um vidro. Sirvo para que as coisas se vejam.

E eis que entro na gruta mais interior e mais cavada. Sombrias e azuis são águas e paredes. Eu quereria poisar como uma rosa sobre o mar o meu amor neste silêncio. Quereria que o contivesse para sempre o círculo de espanto e de medusas. Aqui um líquido sol fosforescente e verde irrompe dos abismos e surge em suas portas.

Mas já no mar exterior a luz rodeia a Balança. A linha das águas é lisa e limpa como um vidro. O azul recorta os promontórios aureolados de glória matinal. Tudo está vestido de solenidade e de nudez. Ali eu quereria chorar de gratidão com a cara encostada contra as pedras.

 

Sophia de Mello Breyner Andresen, Livro Sexto, 1962.

 

Filmado em 1968, este vídeo foi pensado como um documentário sobre a escritora. A produção foi atribulada acabando por ser feita em apenas quatro dias. Ainda assim é considerada como uma das obras emblemáticas de João César Monteiro. Embora curto, o vídeo acaba por refletir vários textos de Sophia e imortalizar as suas viagens às grutas. 


 

(H) Senhora da Rocha: “Imóvel muda atenta como uma antena”

 

Ermida da Nossa Senhora da Rocha (Vanessa Reis, 2019)

 

Situada num extenso promontório, a Ermida de Nossa Senhora da Rocha parece situar-se sobre o Mar. Materializa o medo imemorial dos perigos de navegar, sendo plausível que a atual estrutura tenha vindo concretizar práticas anteriores. Remontando pelo menos ao período Visigótico, nela se encerra uma escultura de Nossa Senhora que Sophia relacionou com a estátua da Vitória de Samotrácia, conservada no Louvre. Embora ambas tivessem como objetivo a proteção dos mareantes, a poeta reflete acerca da religiosidade católica comparando-a a grega. A figura da Nossa Senhora surge assim pequena em comparação a imponente escultura grega, sem, no entanto, se tornar inferior na sua capacidade protetora.

 

SENHORA DA ROCHA

 

Tu não estás como Vitória à proa

Nem abres no extremo do promontório as tuas asas

Nem caminhas descalça nos teus pátios quadrados e caiados

Nem desdobras o teu manto na escultura do vento

Nem ofereces o teu ombro à seta da luz pura

 

Mas no extremo do promontório

Em tua pequena capela rouca de silêncio

Imóvel muda inclinas sobre a prece

O teu rosto feito de madeira e pintado como um barco

 

O reino dos antigos deuses não resgatou a morte

E buscamos um deus que vença connosco a nossa morte

É por isso que tu estás em prece até ao fim do mundo

Pois sabes que nós caminhamos nos cadafalsos do tempo

 

Tu sabes que para nós existe sempre

O instante em que se quebra a aliança do homem com as coisas

Os deuses de mármore afundam-se no mar

Homens e barcos pressentem o naufrágio

 

E por isso não caminhas cá fora com o vento

No grande espaço liso da luz branca

Nem habitas no centro da exaltação marinha

O antigo círculo dos deuses deslumbrados

 

Mas rodeada pela cal dos pátios e dos muros

Assaltada pelo clamor do mar e a veemência do vento

Inclinas o teu rosto

 

Imóvel muda atenta como antena

 

Sophia de Mello Breyner Andresen, Geografia, 1967.

 

(I) Ingrina

Praia da Ingrina (Vanessa Reis, 2019)

 

A pequena praia de Ingrina conserva, em virtude do seu isolamento, uma certa rusticidade e um ambiente intemporal. Contrariando a tendência da região, não existem grande empreendimentos nas redondezas nem mares de gente, tornando mais fácil imaginar a visão de Sophia. A autora encontrou nessa praia a epítome da sua relação com o lugar, imortalizando-a num poema com o seu nome. A sinestesia entre o calor do Sol, o som omnipresente das cigarras, o cheiro dos orégãos e o Mar confluem para um sentimento de plenitude e de comunhão com o espaço. Desta união emanava uma sensação de renovação e renascimento, ao qual a poeta deseja sempre regressar.

 

INGRINA

O grito da cigarra ergue a tarde a seu cimo e o perfume do orégão invade a felicidade. Perdi a minha memória da morte da lacuna da perca do desastre. A omnipotência do sol rege a minha vida enquanto me recomeço em cada coisa. Por isso trouxe comigo o lírio da pequena praia. Ali se erguia intacta a coluna do primeiro dia — e vi o mar refletido no seu primeiro espelho. Ingrina.

É esse o tempo a que regresso no perfume do orégão, no grito da cigarra, na omnipotência do sol. Os meus passos escutam o chão enquanto a alegria do encontro me desaltera e sacia. O meu reino é meu como um vestido que me serve. E sobre a areia sobre a cal e sobre a pedra escrevo: nesta manhã eu recomeço o mundo.

 

Sophia de Mello Breyner Andresen, Geografia, 1967.

 

(J) Grécia

 

Sophia Andresen e Agustina Bessa-Luís. Grécia. 1963
Disponível em: http://purl.pt/19841/1/1960/1960-1.html


Sophia na Grécia com a pintora Graça Morais. 14 dezembro 1988.
Disponível em: http://purl.pt/19841/1/1980/galeria/f2/foto1.html

Sophia com as filhas Maria e Sofia na Grécia, 1972.
Disponível em: http://purl.pt/19841/1/1970/galeria/f14/foto1.html





 

A semelhança de muitos países da costa do Mediterrâneo, a Grécia viveu nas últimas décadas um aumento exponencial do turismo, com os benefícios e prejuízos inerentes. Nas palavras de Sophia “Eu tenho ido muitas vezes à Grécia. O que muda é o aumento do turismo. Na Grécia como em toda a parte o turismo está a estragar muitas as coisas.”. A relação de Sophia com a cultura grega remonta a sua infância. No ano em que Sophia aprendeu a ler, estando numas termas com a família sem livros, comprou um com o título “Mitologia Grega”. Fica completamente fascinada pelas fotografias das estátuas, que lhe lembram “qualquer coisa da claridade, da respiração do Mar e do ritual das ondas”. Era o início de uma paixão pela cultura helénica que acompanhará Sophia o resto da sua vida. Esta seria aprofundada aos 12 anos através da leitura de Homero. Esta paixão seria concretizada já na idade adulta, numa viagem que realizou com Agustina Bessa-Luís e seu marido. A imaginação de Sophia fica aquém da realidade, que deixa a escritora extasiada, confessando a Jorge de Sena: “Mas sinto que só sei falar mal disto tudo. (…) Na Grécia tudo é construído como religação do homem à natureza. (…) Mas os tempos Gregos só são compreensíveis situados no mundo que os rodeia. A ligação entre a arquitetura e o ar, a luz, o mar, os promontórios, os espaços é total. (…) De certa maneira encontrei na Grécia a minha própria poesia”.

 

RESSURGIREMOS

 

Ressurgiremos ainda sob os muros de Cnossos

E em Delphos centro do mundo

Ressurgiremos ainda na dura luz de Creta

 

Ressurgiremos ali onde as palavras

São o nome das coisas

E onde são claros e vivos os contornos

Na aguda luz de Creta

 

Ressurgiremos ali onde pedra estrela e tempo

São o reino do homem

Ressurgiremos para olhar para a terra de frente

Na luz limpa de Creta

 

Pois convém tornar claro o coração do homem

E erguer a negra exatidão da cruz

Na luz branca de Creta

 

Sophia de Mello Breyner Andresen, Livro Sexto, 1962.

 

Página do diário de viagem. Disponível em: http://purl.pt/19841/1/1960/galeria/f27/foto1.html


Na sua primeira viagem à Grécia, Sophia de Mello Breyner parte da Granja, seguindo de carro. Atravessa Itália de Norte a Sul passando depois, o estreito de Otranto, em Brindisi.

Como ponto de referência da descrição da paisagem, Sophia irá referir o Algarve, que considera ser a “Grécia Portuguesa”. 


(K) Delfos: O centro do Mundo

 

Skyring. Ruínas Templo de Delfos. 2017 Disponível em: https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Delphi_Temple_of_Apollo.jpg [consultado a 04/09/2019] 

 

Ao chegar a Delfos, Sophia deparou-se com: “(…) o lugar mais espantoso que vi na minha vida, um lugar deslumbrante e solene entre montanhas altíssimas, com fontes geladas em frente dum vale coberto de arvoredos e bosques e com um pedaço de mar a brilhar entre as encostas”. A localização mantém-se, mas as condições de visita são mais restritivas, adaptadas ao paradigma turístico contemporâneo. Alguns dos locais visitados por Sophia estão hoje vedados, resultando numa experiência distinta. Sophia reconhece em Delfos o centro do mundo grego, nele se compondo os vários elementos da paisagem: as montanhas, a luz do sol e o Mar como pano de fundo, elemento agregador e dominante do lugar. A ele se liga a vitalidade do espaço.

 

 

DELPHICA - IV

 

Desde a orla do mar

Onde tudo começou intacto no primeiro dia de mim

Desde a orla do mar

Onde vi na areia as pegadas triangulares das gaivotas

Enquanto o céu cego de luz bebia o ângulo do seu voo

Onde amei com êxtase a cor o peso e a forma necessária das conchas

Onde vi desabar ininterruptamente a arquitetura das ondas

E nadei de olhos abertos na transparência das águas

Para reconhecer a anémona a rocha o búzio a medusa

Para fundar no sal e na pedra o eixo reto

Da construção possível

 

Desde a sombra do bosque

Onde se ergueu o espanto e o não-nome da primeira noite

E onde aceitei em meu ser o eco e a dança da consciência múltipla

 

Desde a sombra do bosque desde a orla do mar

 

Caminhei para Delphos

Porque acreditei que o mundo era sagrado

E tinha um centro

Que duas águias definem no bronze de um voo imóvel e pesado

 

Porém quando cheguei o palácio jazia disperso e destruído

As águias tinham-se ocultado no lugar da sombra mais antiga

A língua torceu-se na boca de Sibila

A água que primeiro eu escutei já não se ouvia

 

Só Antinoos mostrou o seu corpo assombrado

Seu nocturno meio-dia

 

Delphos, maio de 1970

Sophia de Mello Breyner Andresen, Dual, 1972.

 

 

(L) Creta: O Labirinto do Minotauro

 

Marc Ryckaert. Baia de Vai, Creta. 2010. Disponível em https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Vai_R05.jpg [consultado a: 04/09/2019] 

 

Ao visitar Creta nos anos 70 Sophia toma contacto com as ruínas do passado minoico da ilha. No entanto, para a poeta a essência do local residia não nos palácios destruídos, mas sim no Mar, intemporal. Como no resto da sua obra, encontra no Mar uma energia primordial, que dita a vida dos homens que com ele se relacionam. Consequentemente, este elemento é central na sua interpretação e assimilação do espaço, visto que dele tudo parte e nele tudo acaba. Naturalmente a realidade de Creta sofreu alterações com o passar dos anos. Contudo, ainda é possível capturar alguma da essência descrita por Sophia, uma vez que esta parte de elementos transcendentes, como o Mar.

 

O MINOTAURO

 

Em Creta

Onde o Minotauro reina

Banhei-me no mar

 

Há uma rápida dança que se dança em frente de um toiro

Na antiquíssima juventude do dia

 

Nenhuma droga me embriagou me escondeu me protegeu

Só bebi retsina tendo derramado na terra a parte que pertence aos deuses

 

De Creta

Enfeitei-me de flores e mastiguei o amargo vivo das ervas

Para inteiramente acordada comungar a terra

De Creta

Beijei o chão como Ulisses

Caminhei na luz nua

 

Devastada era eu própria como a cidade em ruína

Que ninguém reconstruiu

Mas no sol dos meus pátios vazios

A fúria reina intacta

E penetra comigo no interior do mar

Porque pertenço à raça daqueles que mergulham de olhos abertos

E reconhecem o abismo pedra a pedra anémona a anémona flor a flor

E o mar de Creta por dentro é todo azul

Oferenda incrível de primordial alegria

Onde o sombrio Minotauro navega

 

Pinturas ondas colunas e planícies

Em Creta

Inteiramente acordada atravessei o dia

E caminhei no interior dos palácios veementes e vermelhos

Palácios sucessivos e roucos

Onde se ergue o respirar de sussurrada treva

E nos fitam pupilas semi-azuis de penumbra e terror

Imanentes ao dia —

Caminhei no palácio dual de combate e confronto

Onde o Príncipe dos Lírios ergue os seus gestos matinais

 

Nenhuma droga me embriagou me escondeu me protegeu

O Dionysos que dança comigo na vaga não se vende em nenhum mercado negro

 

Mas cresce como flor daqueles cujo ser

Sem cessar se busca e se perde se desune e se reúne

E esta é a dança do ser

 

Em Creta

Os muros de tijolo da cidade minóica

São feitos de barro amassado com algas

E quando me virei para trás da minha sombra

Vi que era azul o sol que tocava o meu ombro

 

Em Creta onde o Minotauro reina atravessei a vaga

De olhos abertos inteiramente acordada

Sem drogas e sem filtro

Só vinho bebido em frente da solenidade das coisas —

Porque pertenço à raça daqueles que percorrem o labirinto

Sem jamais perderem o fio de linho da palavra

 

Outubro de 1970

Sophia de Mello Breyner Andresen, Dual, 1972.

 

(M) Travessa das Mónicas

 


Sophia na casa da Travessa das Mónicas, 1964 <https://purl.pt/19841/1/galeria/arte-fotografia/Eduardo-Gageiro/intro.html>

 

“Quando era nova e vim para Lisboa sentia-me longíssimo da praia porque no Porto vivi mais perto do Mar. Não gostava de Lisboa tinha uma grande nostalgia do Norte. Depois isso passou e gosto de Lisboa, embora a cidade esteja difícil e suja.” Depois de casar, Sophia acaba por se fixar em Lisboa, na Travessa das Mónicas, próxima do Convento da Graça. A casa será um ponto de encontro para intelectuais e amigos. Torna-se ainda um refúgio para a poeta, sobretudo o seu jardim, com vista para o rio Tejo. Embora o estuário do rio domine o horizonte de Lisboa, este não é o Mar, ainda distante. O jardim seria assim, uma tentativa de colmatar a falta de maresia e do som das ondas, procurando focar sobre a luz refletida sobre a água.


«Vista de Lisboa» [da varanda da Travessa das Mónicas] Nikias Skapinakis 1981 Óleo s/ madeira Col. Família SMBA <https://purl.pt/19841/1/galeria/arte-fotografia/colecao-arte/f2/foto1.html>

 


LISBOA

 

Digo:

«Lisboa»

Quando atravesso — vinda do sul — o rio

E a cidade a que chego abre-se como se do seu nome nascesse

Abre-se e ergue-se em sua extensão noturna

Em seu longo luzir de azul e rio

Em seu corpo amontoado de colinas —

Vejo-a melhor porque a digo

Tudo se mostra melhor porque digo

Tudo mostra melhor o seu estar e a sua carência

Porque digo

Lisboa com seu nome de ser e de não-ser

Com seus meandros de espanto insónia e lata

E seu secreto rebrilhar de coisa de teatro

Seu conivente sorrir de intriga e máscara

Enquanto o largo mar a Ocidente se dilata

Lisboa oscilando como uma grande barca

Lisboa cruelmente construída ao longo da sua própria ausência

Digo o nome da cidade

— Digo para ver

 

Sophia de Mello Breyner Andresen, Navegações, 1983.

 

Sophia e Francisco durante um passeio no rio Tejo ao largo de Lisboa, anos 50. Disponível em: http://purl.pt/19841/1/1950/1950.html

Sophia. Anos 90. Disponível em http://purl.pt/19841/1/1990/galeria/f9/foto1.html



(N) Epílogo

(Vanessa Reis, 2019)

 


O POEMA

 

O poema me levará no tempo

Quando eu não for a habitação do tempo

E passarei sozinha

Entre as mãos de quem lê

 

O poema alguém o dirá

Às searas

 

Sua passagem se confundirá

Com o rumor do mar com o passar do vento

 

O poema habitará

O espaço mais concreto e mais atento

 

No ar claro nas tardes transparentes

Suas sílabas redondas

 

(Ó antigas ó longas

Eternas tardes lisas)

 

Mesmo que eu morra o poema encontrará

Uma praia onde quebrar as suas ondas

 

E entre quatro paredes densas

De funda e devorada solidão

Alguém seu próprio ser confundirá

Com o poema no tempo

 

Sophia de Mello Breyner Andresen, Livro Sexto, 1962.

 

Roteiro literário: Mar de Sophia - "Metade da minha alma é feita de maresia", Vanessa Reis / Museu Digital da Universidade do Porto <https://museudigital.pt/pt/roteiros/17>

A aplicação Museu Digital da Universidade do Porto é um projeto da Vice-Reitoria para a Cultura, com o apoio tecnológico da Weblevel - Tecnologias de Informação, que tem como objetivo preservar e divulgar o património material e imaterial de uma Universidade que cresce com a cidade Porto, contribuindo para a criação de um locus digital vivo e sem muros, onde as histórias dos artefactos, das pessoas e da construção da ciência são dinamicamente (co)criadas, (re)usadas e enriquecidas.

 

 

O Mar como fio condutor

O Mar, enquanto temática, está presente em toda a obra de Sophia. Começa por refletir as vivências da poeta no norte de Portugal, em particular na Praia da Granja e, depois do Livro Sexto (1962), passa a sofrer influência do Algarve e do Mediterrâneo18. Ainda assim, muitas vezes surge sem que esteja associado a um lugar geográfico, uma vez que é tido como um elemento de renovação e aproximação ao real19, sinónimo de felicidade, liberdade20, pureza e verdade21.

A procura pela verdade das coisas e a religação do Homem com o Real é fundamental na obra de Sophia de Mello Breyner, sendo o Mar um dos elementos preponderantes para alcançar tais objetivos. Pois, como a poeta explica, existem três níveis que devemos ter em consideração quando procuramos definir poesia: a Poesia, grafada com maiúscula, que se refere à própria existência das coisas, encontrando-se de forma imanente no Mundo; a poesia, escrita com minúsculas, que é a relação pura do Homem com as coisas; e o poema. Para Sophia, o poema é necessário ao poeta, porque funciona como mediador entre a lacuna que existe entre a Realidade (Poesia) e o Homem22.

“Não podendo fundir totalmente a sua vida com a existência das coisas, o poeta cria um objeto em que as coisas lhe aparecem transformadas em existência sua. Não podendo fundir-se com o mar e com o vento, cria um poema onde as palavras são simultaneamente palavras, mar e vento. Não podendo atingir a união absoluta com a Realidade, o poeta faz o poema onde o seu ser e a Realidade estão indissoluvelmente unidos. Por isso o poema é o selo da aliança do homem com as coisas.”23

Paralelamente ao Mar, a Praia surge no mesmo nível de importância porque, como explica Carlos Ceia - “(…) a praia é sempre o começo do mar (…)”24 - e é a partir da praia que a poeta observa e contempla o Mar, não tendo um conhecimento empírico sobre o mesmo25.

Também nos depoimentos de Sophia nas diversas entrevistas, conseguimos identificar a importância na infância e adolescência da praia da Granja, a “descoberta” que foi o Algarve no início dos anos 60 e o maravilhamento que a Grécia sempre lhe suscitou. Mas, paralelamente a estas informações, a poeta menciona vários acontecimentos que justificam o facto do Mar e, em particular o Mar nestes locais, se ter tornado tão especial e fundamental à sua vida e obra.

“O mar foi sempre, na minha vida e desde a primeira infância, uma presença de felicidade. Era na praia que passava férias e uma das imagens que está sempre no fundo da minha memória, é aquele mar coberto de brilhos da infância que se vê com enorme deslumbramento. O prazer extraordinário dos banhos, o aprender a nadar. Eu tinha a sorte de viver numa praia que tinha grandes marés cheias e grandes marés vazias, cheias de conchas e de rochas. Isso fez com o mar fosse sempre para mim de um enorme fascínio26, onde o quotidiano e o maravilhoso se confundiam porque, não havia nada mais maravilhoso do que aquelas grutas e poças de água, entre os rochedos, cheias anémonas cor-de-rosa algas de todas as cores e, uma água muito transparente. Esse espanto perante o mar, que é um espanto perante o mundo, espanto maravilhoso que eu reconheci nas navegações portuguesas, que foram uma epopeia de espanto.”27

Tal como José Carlos Vasconcelos afirma na entrevista que fez a Sophia de Mello Breyner para o Jornal de Letras Artes e Ideias em 199128: “(…) a imagem do jardim foi desaparecendo, enquanto o mar e a praia se mantiveram (…)”. De facto, como me fui apercebendo, o Mar é constante na obra da poeta, acabando por se refletir na sua vida. Contudo, a poesia de Sophia não se limita a descrever o que vê. Como explica Federico Bertolazzi no texto “O cântico da longa e vasta praia”: Eco atlântico em itinerário mediterrâneo:

“Em geral toda a relação de Sophia com os lugares geográficos passa por uma elaboração de poética: o lugar em si, o espaço físico, é desconstruído e depurado procurando-se nele uma imanência primordial que possa voltar a exprimir a sua primitiva potência.”29

Como fui procurando demonstrar o Mar, antes de mais, revelou-se pertinente devido à sua transversalidade na obra de Sophia de Mello Breyner. Contudo, à medida que fui avançando e cruzando os textos com as declarações de Sophia, compreendi que estamos perante algo mais amplo e complexo. Ao contrário de outras temáticas, o Mar é constante e assume valores simbólicos próprios no trabalho da poeta e, ainda que muitas vezes haja referência a lugares específicos, a conceção do Mar em Sophia extravasa-os amplamente.

Considero que quando Sophia menciona o Mar vai além do substantivo, sintetizando em si a ideia de uma cultura greco-latina muito própria que aglutina em si a conceção do Mar enquanto elemento físico, simbólico e cultural. Razão pela qual me levou a grafar o vocábulo com maiúscula. O Mar que quero mostrar com este roteiro não se cinge aos aspetos tangíveis associados à palavra, mas ao significado que esta assume na conceção da obra de Sophia. Funcionando como um lugar idílico que preservou as características primordiais e, por isso, permite restabelecer o tão desejado elo, outrora perdido, entre o Homem e as coisas.

Posto isto, o Mar assume-se como alma mater do roteiro porque, partindo da ideia de que o lugar descrito extravasa o espaço observado, procurei construir uma narrativa que permitisse compreender o Mar enquanto conceção simbólica na obra de Sophia partindo de âncoras físicas. 

Vanessa Reis, Mar de Sophia – “Metade da minha alma é feita de maresia”: Construção de um roteiro literário. Projeto realizado no âmbito do Mestrado em História da Arte, Património e Cultura Visual. Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 2019.

__________

18 CEIA, Carlos – O desafio do Mar in Iniciação aos mistérios da poesia de Sophia de Mello Breyner. Lisboa: Vega, 1996, p. 61.

19 BERTOLAZI, Federico - O cântico da longa e vasta praia” eco atlântico em itinerário mediterrâneo in Atas do Colóquio Internacional Sophia de Mello Breyner Andresen. Porto: Porto Editora, 2013, p. 120.

20 O desafio do Mar… p. 61.

21 CERQUEIRA, Gabriella Potti – Mar de Concreto: Uma leitura da cidade e de sua relação com o mar nos poemas de Sophia de Mello Breyner Andresen. São Paulo: Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, 2011. Programa de Pós-Graduação em Literatura Portuguesa.

22 ANDRESEN, Sophia de Mello Breyner – Poesia e Realidade. Colóquio Letras. nº 8. Abr. (1960) pp 53-54.

23 Poesia e Realidade… p 54.

24 O desafio do Mar…p. 64.

25 O desafio do Mar…p. 64.

26 Os negritos aqui apresentados e que se irão repetir noutras citações, foram acrescentados por mim, por acreditar que sintetizam as ideias chave que quero transmitir quando os selecionei.

27LEMOS, Vergílio – Sophia: “As navegações portuguesas foram uma epopeia de espanto. Revista Oceanos. nº 4 (1990) pp. 127 – 130.

28 VASCONCELOS, José Carlos de – Sophia: a luz dos versos. Jornal de Letras, Artes e Ideias. nº 468 (1991) pp. 8-13.

29 O cântico da longa e vasta praia… p. 120  


Poderá também gostar de:


  • Leia o excerto de uma entrevista de Virgílio de Lemos a Sophia de Mello Breyner Andresen, publicada na revista Oceanos. A seguir, responda ao questionário.


Oceanos Se revisitarmos a sua obra, incidindo sobre «Mediterrâneo», «Navegações», «Ilhas», sem esquecer «Geografia», somos tentados a dizer que, [estando em] continuidade com a tradição literária portuguesa, a sua poesia é também rutura, na sua nova maneira de viver por dentro as Descobertas.

Sophia O mar foi sempre, na minha vida e desde a primeira infância, uma presença de felicidade. Era na praia que passava as férias e uma das imagens que está sempre no fundo da minha memória é aquele mar coberto de brilhos da infância que se vê com enorme deslumbramento. […]

Esse espanto perante o mar, que é um espanto perante o mundo, espanto maravilhado e um pouco arcaico – o que está no sorriso da estátua arcaica – é o maravilhamento do homem diante do descobrir do mundo: é um maravilhamento que eu reconheci nas navegações portuguesas, que foram uma epopeia do espanto.

Quando você fala de rutura, talvez ela se possa explicar porque foi diferente o meu ponto de partida. É a partir da minha própria descoberta do mar e da revolução do mundo que se constrói a minha visão dos Descobrimentos. E o que são os Descobrimentos senão a combinação, em grau excelente, do aperfeiçoamento técnico e científico com uma intuição visionária? Partiram à procura do Prestes João – e não o descobriram. Mas descobriram o mundo.

Oceanos Conhecemos […] a sua relação com o mar e com as ilhas. Mas qual a sua relação específica com o oceano Atlântico, donde partiram as naus e os navegantes?

Sophia Há com efeito uma grande parte da minha poesia que é muito atlântica. «As praias onde a direito o vento corre», como diz um dos meus poemas, são praias da costa portuguesa, onde há aquele longo vento norte, ao longo das longas praias. A minha primeira relação é com o Atlântico: com as praias onde eu passava o Verão da minha infância, com a mãe, a avó, as primas. Praias imensamente atlânticas onde há imagens que ficaram claras. Enquanto no Mediterrâneo só há ondas quando há temporal, no Atlântico há ondas todos os dias quando há maré cheia […]. Essa é a minha primeira relação com o mar, o Atlântico, o mar do qual realmente os Portugueses partiram.

Oceanos Mas como transformou tudo isso em matéria de poesia? E o que a levou a escrever sobre as «Navegações»?

Sophia Muito mais que da História, a ideia surgiu de uma viagem a Macau: pus-me a pensar o que terá sido chegar ao Oriente desprevenido… Quando de manhã me debrucei e vi o mar de que ouvira falar, vi nesse mar, diante das costas do Vietname, uma espessa floresta até uma longa praia. Vi o mar e três ilhas de coral azul, deslumbrantes, com umas lagunas azuis à roda, e pensei o que terá sido o maravilhamento e o espanto dos homens que chegaram aqui, sem terem visto um mapa, sem terem lido uma descrição. Antes deles, ninguém vindo do Ocidente tinha passado por ali. Até aí, os ocidentais não tinham tido qualquer comunicação com os povos desses lugares. E assim, todo o livro Navegações é construído à volta desse espanto, desses Descobrimentos. 

Oceanos, n.º 4, julho, 1990 (adaptado)

 

1. Para responder a cada um dos itens de 1.1. a 1.7., selecione a única opção que permite obter uma afirmação correta.

Escreva, na folha de respostas, o número de cada item e a letra que identifica a opção escolhida.

1.1. A rutura que a poesia de Sophia estabelece relativamente à tradição literária portuguesa concretiza-se na

(A) exploração de temas, mitos e símbolos do universo marítimo.

(B) crítica à dimensão guerreira e expansionista dos Descobrimentos.

(C) rejeição do lirismo tradicional em nome do pensamento científico.

(D) descoberta pessoal do sentido pleno das navegações portuguesas.

1.2. Ao caracterizar as navegações portuguesas como uma «epopeia do espanto» (linha 12), a escritora pretende realçar

(A) o deslumbramento face ao novo conhecimento.

(B) a curiosidade face à evolução tecnológica.

(C) o temor e a coragem face ao mundo desconhecido.

(D) a contemplação e a dúvida face à inovação.

1.3. Segundo Sophia, o aspeto que mais contribuiu para a escrita do livro Navegações foi a

(A) recordação da infância passada na costa atlântica.

(B) informação recolhida em livros sobre o Oriente.

(C) evocação do sentimento vivido pelos descobridores.

(D) nostalgia da época das navegações portuguesas.

1.4. Na expressão «na minha vida» (linha 5), «minha» é um

(A) determinante que funciona como deíctico temporal.

(B) pronome que funciona como deíctico pessoal.

(C) determinante que funciona como deíctico pessoal.

(D) pronome que funciona como deíctico temporal.

1.5. A conjunção «Enquanto» (linha 26) introduz uma ideia de

(A) tempo.

(B) condição.

(C) causa.

(D) contraste.

1.6. Na expressão «vi o mar de que ouvira falar» (linhas 32 e 33), a forma verbal «ouvira» corresponde, em relação à forma verbal «vi», a um tempo

(A) anterior.

(B) posterior.

(C) inacabado.

(D) simultâneo.

1.7. Na expressão «o que terá sido o maravilhamento» (linha 35), o conteúdo é apresentado como uma

(A) certeza.

(B) hipótese.

(C) obrigatoriedade.

(D) concessão.

2. Responda de forma correta aos itens apresentados.

2.1. Identifique a função sintática desempenhada pelo pronome pessoal em «e não o descobriram» (linha 17).

2.2. Indique o valor da oração subordinada adjetiva relativa presente em «Há com efeito uma grande parte da minha poesia que é muito atlântica.» (linha 21).

2.3. Classifique o ato ilocutório presente em «Mas como transformou tudo isso em matéria de poesia?» (linha 29).

 

Chave de correção:

1.1. (D); 1.2. (A); 1.3. (C); 1.4. (C); 1.5. (D); 1.6. (A); 1.7. (B); 2.1. Complemento direto. 2.2. (Valor) restritivo. 2.3. (Ato ilocutório) diretivo.

 

Fonte: Exame Nacional do Ensino Secundário n.º 639 (Decreto-Lei n.º 74/2004, de 26 de março). Prova Escrita de Português - 12.º Ano de Escolaridade. Portugal, Ministério da Educação/GAVE-Gabinete de Avaliação Educacional, 2011, 2.ª Fase (versão 1)

 

 



“Roteiro literário: Mar de Sophia - Metade da minha alma é feita de maresia”, José Carreiro. Folha de Poesia, 2022-10-26. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/10/roteiro-literario-mar-de-sophia-metade.html