João Afonso Lima (Beira,
1965) é um cantor português. Viveu em Moçambique até 1978, com seus pais e
irmãos. Colheu influências da música urbana africana e da música popular
portuguesa, esta última pela influência de Zeca Afonso, seu tio materno. A sua
colaboração em Maio Maduro Maio (1994), em parceria com José Mário Branco e
Amélia Muge, valeu-lhe a atribuição do Prémio José Afonso.
O poema "Mar Me
Quer" de João Afonso é uma adaptação musical da novela Mar Me Quer,
do escritor moçambicano Mia Couto, cuja leitura se encontra orientada na nossa página
da Lusofonia.
Na novela Mar Me Quer, «Mulata Luarmina e Zeca
Perpétuo partilham território de vizinhança, chão de terra tão mais velho
que eles, olhando o mar que é sempre quem mais viaja.
Luarmina ensombreada de um qualquer
silêncio, que de tão longo parece segredo, entardece todos os dias na companhia
de Zeca, ouvindo as histórias que vão povoando a paisagem.
Zeca Perpétuo sonha sempre o mesmo: se
embrulhar com ela, arrastá-la numa grande onda que os faça inexistir.
Luarmina foi aprendendo mil defesas para
as insistências namoradeiras de Zeca, mas um dia resolve negociar falas e
outras proximidades, não em troca de aventuras sonhiscadas de Zeca, mas de suas
exatas memórias.
E como diz o avô Celestiano "o
coração é uma praia", em que o mar, porque nos quer, acaricia memórias e
apazigua ausências.
Avô Celestiano é a sabedoria do tempo.
Mas também é o fabricador de sonhos. Por via dos sonhos, ele visita os vivos e
conduz, na sombra dos aléns, os destinos e os amores de Zeca e Luarmina.
"O que faz andar a estrada? … o
sonho. Enquanto a gente sonhar a estrada permanecerá viva. … para isso que
servem os caminhos. Para nos fazerem parentes do futuro." (Mia Couto, Mar Me Quer)»
Natália
Luiza, Mar me quer, Coimbra, Cena Lusófona, 2002(Adaptação
dramatúrgica da novela homónima de Mia Couto, encomendada pela Cena Lusófona, e
colocada em palco pela companhia Teatro Meridional, num espetáculo estreado em
maio de 2001, no Teatro Taborda em Lisboa.)
Só pra dizer que te Amo,
Nem sempre encontro o melhor termo,
Nem sempre escolho o melhor modo.
Devia ser como no cinema,
A língua inglesa fica sempre bem
E nunca atraiçoa ninguém.
O teu mundo está tão perto do meu
E o que digo está tão longe,
Como o mar está do céu.
Só pra dizer que te Amo
Não sei porquê este embaraço
Que mais parece que só te estimo.
E até nos momentos em que digo que não quero
E o que sinto por ti são coisas confusas
E até parece que estou a mentir,
As palavras custam a sair,
Não digo o que estou a sentir,
Digo o contrário do que estou a sentir.
O teu mundo está tão perto do meu
E o que digo está tão longe,
Como o mar está do céu.
E é tão difícil dizer amor,
É bem melhor dizê-lo a cantar.
Por isso esta noite, fiz esta canção,
Para resolver o meu problema de expressão,
Pra ficar mais perto, bem mais de perto.
Ficar mais perto, bem mais de perto.
Clã, Kazoo,
1997
Composição:
Hélder Gonçalves / Carlos Tê
Clã na foto da capa do álbum Kazoo, de 1997
Problema
de expressão
Os Clã não escreveram só canções.
Escreveram-nos canções. Para cantarmos de olhos fechados uma letra (de Carlos
Tê) que revolvia a nossa timidez na hora de dizer ‘Amo-te’. Na língua inglesa,
qualquer patetice fica mesmo sempre bem; em português, qualquer exteriorização
de intimidade assume-se como extravagante (afinal, todas as cartas de amor são
mesmo ridículas). A Carlos Tê reconhece-se o dom para simplificar conceitos
complexos e para complexificar conceitos simples. Mas a Carlos Tê reconhece-se
sobretudo o mérito de as suas letras nos fazerem vibrar como cordas. E foi ‘O
Problema de Expressão’, do álbum “Kazoo”, que nos fez começar a vibrar como
cordas com os Clã. É uma canção intimista, envolvente, delicada e viciante,
fazendo-nos sentir parte do elenco em que foi composta. Há vizinhança entre a
letra de ‘Problema de Expressão’ e a nossa sensibilidade.
Depois de se descobrir o amor, nem sempre
é fácil dizer ao outro que o amamos.
O sujeito de enunciação afirma
ter um problema de expressão para dizer que ama alguém, porque não encontra o
melhor termo ou modo.
Não entende o embaraço que o leva
a achar que só tem estima por ele. Em muitos momentos, sente coisas confusas,
não dizendo o que sente, mas sim o contrário.
Como é muito difícil dizer
“amor”, e, uma vez que é bem melhor dizê-lo a cantar, o sujeito poético fez uma
canção. Desta forma, resolveu o problema de expressão e conseguiu ficar mais
perto, bem mais perto…
Contos & Recontos 7, Carla Marques e Inês Silva. Lisboa, ASA, 2013,
p. 152
A
saia da Carolina
Foi d’alguém que a ofereceu
Que é por ela ser menina
Que é pra estar perto de Deus
Foi assim de pequenina
Que a quiseram ensinar
Que o seu lugar é na cozinha
E em casa a costurar
E tem cuidado Carolina
Que o lagarto da ao rabo
Tu até te vês rainha
Queima-te o patriarcado
Tem cuidado Carolina
Quem tem sonhos tem pecados
Ser menina é tua sina
Ser mulher é teu legado
Cuidado com a Carolina
Que vem de punho cerrado
A saia da Carolina ardeu no meio do mato
A história da Carolina é que ela agora veste fato
Sou Maria Carolina, Deslandes pra vocês
Nasci do amor antigo do Kiko e da Inês
Tu querias julgar com riso toda a minha insensatez
É por ter crias comigo, e agora conto com três
A saia da Carolina nunca aqui teve um cabide
E eu ando bem calçada vai perguntar ao David
Debaixo do meu hoodie não gosto de dar nas vistas
Por isso cancela as minhas entrevistas
Tenho sardas espalhadas como grãos de areia
Pedem-me uma canção eu tenho uma mão cheia
Por isso avisa o lagarto que o esmago com o pé
Não há tempo pra rastejos em terra de jacaré
Não há tempo pra bocejos quando o dia me chama
Eu vivo de fé, há que viva de fama
A saia não é de ninguém
Carolina oioai Carolina o aí meu bem
Cuidado com a Carolina
Que vem de punho cerrado
A saia da Carolina ardeu no meio do mato
A história da Carolina é que ela agora veste fato
Sim Carolina oioai sim Carolina oai meu bem (x4)
Carolina Deslandes, “Saia da Carolina” (08.03.2023)
Letra: Carolina Deslandes
Música: Carolina Deslandes & Diogo Clemente
(Adaptação de Canção Popular)
Esta canção é uma
reinvenção da canção popular com o mesmo nome, que terá nascido entre a Galiza
e o Norte de Portugal. A letra foi adaptada pela própria cantora, que contou
com o apoio de Diogo Clemente na melodia. O single foi lançado no Dia da Mulher
(8 de março de 2023) e é considerado um hino das mulheres.
A canção original fala
sobre uma menina que recebe uma saia de alguém que a quer ensinar a ser
submissa e obediente. A saia é um símbolo do papel tradicional da mulher na
sociedade patriarcal, que se espera que fique em casa a cuidar dos filhos e do
marido.
A canção de Carolina
Deslandes subverte essa mensagem e transforma a saia num símbolo de resistência
e emancipação. A cantora conta a sua própria história de vida, como mãe
solteira e artista bem-sucedida, que não se conforma com os estereótipos e as
expectativas impostas às mulheres. Ela afirma que a saia não é de ninguém e que
ela veste o que quiser. Ela também desafia o machismo e o sexismo da sociedade,
dizendo que esmaga o lagarto (uma expressão popular para designar um homem sem
escrúpulos) com o pé e queima o patriarcado.
A canção é um manifesto de
empoderamento feminino, que incentiva as mulheres a lutar pelos seus direitos e
a libertar-se dos estereótipos que as prendem. A música sugere que ser mulher
não é uma sina, mas sim um legado a ser celebrado e valorizado.
Origem: conversação
com o https://www.bing.com/ e o https://chat.openai.com/chat, 14/03/2023
(adaptado).
“A saia da Carolina, Carolina Deslandes” in Folha de Poesia, José
Carreiro. Portugal, 17-03-2023. Disponível em:https://folhadepoesia.blogspot.com/2023/03/a-saia-da-carolina-carolina-deslandes.html
Ai Coração
Que não me deixas em paz
Não me dás sossego
Não me deixas capaz
Tenho a cabeça e a garganta num nó
Que não se desfaz e nem assim tu tens dó
Sinto-me
Tonta
Cada dia pior
Já não sei de coisas que sabia de cor
As pulsações subiram quase pra mil
Estou louca, completamente senil
O peito a arder
A boca seca eu sei lá
O que te fazer
Amor pra mim assim não dá
Porque parece que nem sou mais eu
Ai Coração
Ai Coração
Diz-me lá se és meu
As horas passam e o sono não vem
Ouço as corujas e os vizinhos também
O meu juízo foi-se e por lá ficou
Alguém me tire deste estado em que estou
O doutor diz que não há nada a fazer
Caso perdido vi-o eu a escrever
Ando perdida numa outra dimensão
Toda eu sou uma grande confusão
O peito a arder
A boca seca eu sei lá
O que te fazer
Amor pra mim assim não dá
Porque parece que nem sou mais eu
Ai Coração
Ai Coração
Ai Coração
Diz-me lá se és meu
O peito a arder
A boca seca eu sei lá
O que te fazer
Amor pra mim assim não dá
Porque parece que nem sou mais eu
Ai Coração
Ai Coração
Ai Coração
Ai Corаção
Diz-me lá se éѕ meu
Canção: “Ai Coração”
Intérprete: Mimicat
Música: Marisa Mena,
Luís Pereira
Letra: Marisa Mena
Portugal, Festival da
Canção 2023
Esta
letra da canção intitulada “Ai Coração”, escrita e interpretada por Mimicat,
venceu, em Portugal, o Festival da Canção 2023.
"Ai
Coração" é uma expressão poética da angústia e da confusão emocional que
pode ser experimentada por alguém que está apaixonado e que não sabe o que
fazer para encontrar paz, por estar perdido nos seus próprios sentimentos.
A
linguagem utilizada é simples e direta, com versos curtos e repetições que
reforçam a intensidade emocional da voz poética. A linguagem coloquial e
popular reforça a ideia de que a poesia reflete a voz de um indivíduo comum,
que está lidando com sentimentos intensos e que não consegue encontrar uma
solução para suas aflições.
A
imagem do coração como uma entidade separada da pessoa, que causa sofrimento e
desespero, é um tema recorrente na literatura e na cultura popular. O uso
repetitivo da expressão "Ai Coração" é uma forma de personificar o
órgão responsável pelas emoções e torná-lo um protagonista do poema.
A
voz poética sente-se à mercê do coração, sem controle sobre seus sentimentos e
emoções, e busca desesperadamente por uma solução para sua angústia.
Os
sintomas físicos como boca seca (“A boca seca eu sei lá”), o calor (“O peito a
arder”) e o coração acelerado ("pulsações subiram quase pra mil") contribuem
para a atmosfera de desespero e ansiedade que permeia o poema. A sensação de
perda de controle e confusão é reforçada no verso "Ando perdida numa outra
dimensão / Toda eu sou uma grande confusão". A referência ao médico que
declara o caso como perdido sugere que a voz poética se sente desamparada e sem
esperança (“O doutor diz que não há nada a fazer”).
O
último verso do poema, "Diz-me lá se és meu", é uma pergunta direta
ao coração, que revela a insegurança e a falta de controle do sujeito sobre
seus próprios sentimentos.
Em
síntese, o sujeito poético sente que o seu coração não lhe pertence mais e que
está a perder a razão e a identidade por causa do amor. Assim, o texto parece apresentar
a mensagem de que esse tipo de amor é insustentável e está a causar um grande
sofrimento, deixando o sujeito poético completamente vulnerável.
Origem: conversação
com o https://chat.openai.com/chat e o https://www.bing.com/, 13/03/2023 (adaptado).
Oh, Heart
Oh, heart
You who don't leave me in peace
You don't give me any rest
You don't let me be able
I have my head and my throat in a knot
That won't come apart and even then you don't pity me
I feel
Dizzy
Every day it gets worse
I don't know things I used to know by heart
The heartbeats have gone up almost to a thousand
I'm crazy, completely senile
My chest is burning
My mouth's dry, I don't know
What to do with you
Darling, this isn't working for me
Because it seems like I'm not even myself anymore
Oh, heart
Oh, heart
Tell me if you're mine
The hours go by and sleep doesn't come
I hear the owls and the neighbours as well
My judgement's gone away and stayed there
Someone take me out of the state I'm in
The doctor tells me there's nothing to be done
Lost cause I saw him write
I've been lost in another dimension
All of me is a big mess
My chest is burning
My mouth's dry, I don't know
What to do with you
Darling, this isn't working for me
Because it seems like I'm not even myself anymore
Oh, heart
Oh, heart
Oh, heart
Tell me if you're mine
My chest is burning
My mouth's dry, I don't know
What to do with you
Darling, this isn't working for me
Because it seems like I'm not even myѕelf anymore
Oh, heart
Oh, heart
Oh, heart
Oh, heаrt
Tell me if you're mine
“Ai Coração, Mimicat” in Folha de Poesia, José Carreiro.
Portugal, 17-03-2023. Disponível em:https://folhadepoesia.blogspot.com/2023/03/ai-coracao-mimicat.html
Talvez quem sabe, um
dia
por uma alameda do zoológico
ela também chegará
ela que também amava os animais
entrará sorridente assim como está
na foto sobre a mesa
ela é tão bonita
ela é tão bonita que na certa eles a ressuscitarão
o século trinta vencerá
o coração destroçado já
pelas mesquinharias
agora vamos alcançar tudo o que não podemos amar na vida
com o estrelar das noites inumeráveis
ressuscita-me
ainda que mais não seja
porque sou poeta
e ansiava o futuro
ressuscita-me
lutando contra as misérias do quotidiano
ressuscita-me por isso
ressuscita-me
quero acabar de viver o que me cabe
minha vida para que não mais existam amores servis
ressuscita-me
para que a partir de hoje a partir de hoje
a família se transforme e o pai seja pelo menos o universo
e a mãe seja
No mínimo a terra
a terra
a terra
“O Amor” - Letra e música:
Caetano Veloso, Ney Costa Santos, Vladimir Mayakovsky.
Intérprete: Gal Costa. LP Fantasia.
Brasil, Polygram/Philips, 15-11-1981
Fantasia - álbum de estúdio de Gal Costa. Brasil, Polygram/Philips,
15-11-1981
O
poema de Vladmir Mayakovsky
O Amor
Um dia, quem sabe,
ela, que também gostava de bichos,
apareça
numa alameda do zoo,
sorridente,
tal como agora está
no retrato sobre a
mesa.
Ela é tão bela,
que, por certo, hão de
ressuscitá-la.
Vosso Trigésimo Século
ultrapassará o enxame
de mil nadas,
que dilaceravam
o coração.
Então,
de todo amor não terminado
seremos pagos
em inumeráveis
noites de estrelas.
Ressuscita-me,
nem que seja só porque te
esperava como um poeta,
repelindo o absurdo quotidiano!
Ressuscita-me,
nem que seja
só por isso!
Ressuscita-me!
Quero viver
até o fim o que me cabe!
Para que o amor não seja mais escravo
de casamentos,
concupiscência,
salários.
Para que, maldizendo os leitos,
saltando
dos coxins,
o amor se vá pelo universo inteiro.
Para que o dia,
que o
sofrimento degrada,
não vos seja chorado, mendigado. E que,
ao primeiro apelo:
- Camaradas!
atenta se volte a terra inteira.
Para viver
livre dos nichos das casas.
Para que
doravante
a família
seja
o pai,
pelo menos o Universo;
a mãe,
pelo menos a Terra.
Vladimir
Mayacovski, A Propósito Disto, 1923
Traduzido
por Emílio C. Guerra, in Antologia
poética, Mayacovsky. São Paulo, Editora Max
Limonad Ltda., 1987 (1.ª edição: Editora Leitura S.A., 1963)
Lilya Brik
no jardim zoológico de Berlim
[LILYA
BRIK]
No período de 1914 a 1916,
registam-se decisivos acontecimentos na vida de Mayacovsky. Desde a expulsão da
Escola de Belas-Artes, entrega-se às andanças e turbulências da pregação futurista,
sem um vintém no bolso, faminto, sem teto, dormindo muitas vezes na rua.
Sobrevinda a guerra, é mobilizado, pouco depois de ter conhecido Lilya Brik e
por ela, irremediavelmente, se apaixonar. Se ao front consegue
furtar-se, passando graças à interferência de amigos, entre os quais Gorki, a
trabalhar na oficina de um engenheiro; se à guerra dá combate, escrevendo toda
uma série de poemas, tais como: A Tarde grita sem pernas
nem braços, ó fechai os olhos dos jornais, Ó como choravam os olhos dourados
das fogueiras! e, principalmente, o longo poema Guerra
e Paz; se contra a fome inventara o engenhoso "sistema dos sete
dias", assim:
... procuro seis conhecidos com quem
almoçar. A os domingos comia com os Iucovski. Às segundas-feiras com os Efréimov,
etc. Às quintas, quase não comia. Para um futurista de quase dois metros de
altura, não era coisa fácil…
Contra a paixão de Lilya Brik nada pode
o poeta, outra coisa não lhe restou senão render-se. O acontecimento tem a "data
radiante" de julho·de 1915. A Flauta Vertebrada, Guerra e Paz, obras-primas
daquele ano, lhe são dedicadas e, daí por diante, praticamente tudo que o poeta
escreveria.
Tomaste
arrancaste-me o coração
e simplesmente foste com ele jogar
como uma menina com sua bola.
………………………………….
E eu de júbilo
esqueci o jugo.
Louco de alegria
saltava
como em casamento de índio
tão leve
tão bem me sentia.
Lilya era casada com o editor Oto Brik,
quem primeiro comprou as produções do poeta, a 50 copeques por linha. Era
formosa, corpo diminuto, frágil e sensual, olhos escuros e profundos. Mulher de
personalidade múltipla e cambiante; de grande intuição e versatilidade
artística, capaz de escrever, pintar, modelar, dançar e representar. Era
"triste, alegre, feminina, caprichosa, vazia, inconsciente, inteligente,
trabalhadora quando trabalhava, enamorada sempre. Mas era pequeno-burguesa; queria
só mimos, comodidades. E o poeta não tinha senão seu génio" (Chklóvski).
Disso tinha consciência o apaixonado poeta:
Sei.
Todos pagam pela mulher.
Não importa
se por ora
em vez do luxo de um vestido parisiense
visto-te apenas com a fumaça de meu cigarro.
Elsa Triolet traça o seguinte retrato
da irmã:
... a
cabeça ruiva jogada para trás, mostrava todos os dentes esplêndidos, sólidos,
na boca grande, pintada, os olhos castanhos muito redondos, iluminados, num
rosto com esse excesso de expressão quase indecente de intensidade, que faz com
que, jovem ou velha., com sua tez miraculosa, ou toda enrugada, os transeuntes
sempre se voltem à sua passagem.
É um instantâneo de julho de 1918,
flagrante do momento em que se despediam, no cais de Leningrado, Elsa e a mãe exilando-se
voluntariamente, fugindo da guerra e da peste, Lilya ficando.
Naquele então, Lilya e Mayacovsky moravam juntos nos arredores da cidade assolada pela cólera. Juntos ainda
haviam de passar outros períodos, tal como, em Sokolniki, subúrbio de Mascovo,
por volta de 1925, numa datcha da qual Elsa Triolet nos conta:
Na peça principal
havia um bilhar. Não sei como esse bilhar fora parar ali, não fora feito para
aquela sala de dimensão ordinária e onde já havia um piano de cauda, um grande divã,
etc. No verão comia-se no terraço e havia o jardim. Os jogadores podiam rodar
em torno do bilhar sem grande incómodo. Mas, no inverno, e no domingo, quando
chegava uma verdadeira multidão de amigos, não sobrava estritamente espaço entre
a sopeira e o jogador dobrado em dois, sobretudo quando esse jogador era Mayacovsky!...Todos os bichos tinham um lugar de honra na casa de Lili e Mayacovsky.
Entretanto, a "casa de Lilya e Mayacovsky"
não se consolidaria. Fatores diversos o impediriam: a vida duríssima daqueles
tempos, a guerra, a peste, ou a NEP, a falta de dinheiro, as viagens ou as
batalhas políticas, mas, sobretudo, o temperamento de ambos, o do poeta, especialmente, que
sabia em consciência não ser "um, homem cómodo".
Quando
este corpanzil se punha a uivar
as donas disparando
pelo pó, pelo barro ou pela neve,
como um foguete fugiam de mim. - Para nós, algo um tanto menor,
algo assim como um tango...
A desmedida sensibilidade de Mayacovskiy - tão bem espelhada nas hipérboles que lhe recheiam os versos - o estado de tensão
criadora em que permanentemente vivia, fazendo-o taciturno, sombrio, excessivamente
concentrado, a alternância de profundas depressões com alegrias ruidosas,
produziam não poucas dificuldades ao seu convívio social. Por contraste, a força
que singularizava esse temperamento íngreme e arrebentado, manifestava-se numa
fome de amor de igual intensidade. Com o ardor que punha em tudo, buscava ser
feliz e desejava que todos o fossem. Em meio às tremendas lutas que travava, não
abria mão do ideal de um amor novo, de conceção mais elevada, entre o homem e a
mulher. E então, ao lado da poesia política, de combate duro, ou mesmo dentro
dela, confessava-se, desabafava, sonhava ou penitenciava-se, em poemas de amor.
Mas, na vida quotidiana, ainda praticava a "desgraçada infidelidade":
Não
temas
que em meu pescoço de touro
tenham subido mulheres húmidas
de ventre suarento.
É que, através da vida,
arrasto milhares de enormes e puros amores
e milhares de milhares
de amorzinhos pequeninos e sujos.
Não temas
que de novo na desgraçada infidelidade
me aproxime de mil caras bonitas
amantes de Mayacovsky.
Em 1923, escrevia o poema A
Propósito Disto, que é, ao mesmo tempo, o seu mais dilacerante grito de
amor e um hino de esperança num futuro mais feliz, no qual se imagina
ressuscitado para reaver o seu quinhão de afeto.
Não vivi até o fim o meu bocado
terrestre.
Sobre a terra
não vivi o meu bocado de amor.
Apesar do fracasso das tentativas de
vida em comum, Lilya continuaria a ser, até o fim, a bem-amada, a amiga, a confidente,
a musa do poeta.
É verdade que houve também Polonskaia, -
por sinal que também com outro casada - mas parece que em segundo lugar na
hierarquia do coração do poeta. Lilya Brik era seu melhor ancoradouro, seu
verdadeiro porto-seguro. Com um só gesto, ela apaziguava qualquer de suas
tempestades.
Emílio
C. Guerra, in Antologia
poética, Mayacovsky. São Paulo, Editora Max
Limonad Ltda., 1987 (1.ª edição: Editora Leitura S.A., 1963)
A 19 de fevereiro,
Mayakovsky enviou a Lilya uma carta com o endereço do remetente
"Moscovo". Reading Gaol" - uma referência direta ao poema de
Oscar Wilde. A carta foi assinada: "O teu Shen, aliás Oscar wilde, aliás o
prisioneiro de Chillon" - uma alusão ao poema de Lord Byron "O Prisioneiro de Chillon”, de
1816. No balão de fala do desenho lê-se: "Eu amo!" (Bengt Jangfeldt, Mayakovsk: a biography, 2007)
A
PROPÓSITO DISTO
A
ideia de um poema sobre o amor estava na mente de Mayakovsky desde pelo menos o
verão de 1922, quando ele escreveu na sua breve autobiografia Eu próprio ("I
Myself") (pretendida como um prefácio para uma edição de quatro volumes das
suas obras que nunca apareceu): "Planeado: sobre o amor. Um poema enorme.
Será concluído no ano que vem." Não sabemos o "plano" deste
poema, mas que deve ter sido diferente daquele que resultou da separação de
Lilya é óbvio, pois a base temática de A propósito disto (About This)
é precisamente essa separação. Dada a homogeneidade das imagens e do simbolismo
de Mayakovsky, não podemos excluir a possibilidade de que algumas de suas
ideias e imagens possam estar presentes em rascunhos anteriores; no entanto,
foi a separação de Lilya que desencadeou sua criatividade e o fez colocar a
caneta no papel. […]
A
referência a Raskolnikov não é coincidência – A propósito disto está
repleto de referências a Dostoiévski, que era o autor favorito de Mayakovsky.
Isso vale também para o próprio título, A propósito disto (Pro eto), que
é emprestado de Crime e Castigo. Raskolnikov usa consistentemente as
palavras a propósito disto (em itálico) para descrever o que ele fez - o
assassinato do agiota e sua irmã. Mayakovsky reconheceu-se em Raskolnikov: a
paixão superaquecida por uma ideia, a obsessão por realizar atos que mudarão o
mundo, a recusa de ser arrastado para a miséria e a rotina da vida quotidiana. […]
A
última secção do poema está na forma de uma petição a um químico desconhecido
no século trinta. Ele olha para a Terra da perspetiva do Grande Carro, a Ursa
Maior! O seu manifesto contra "a tirania do quotidiano" é uma
obra-prima retórica. […]
Mayakovsky
quer outra vida e pondera diferentes alternativas. Se ele acreditasse em uma
vida após esta, não haveria problema, mas os seus adversários não devem ter o
prazer de ver "como, silenciado por seus tiros, eu caio". O ataque a
ele foi um fracasso, embora apenas alguns "esfarrapados de poeta"
tenham permanecido. Ele também rejeita o suicídio […]. Assim, quando, sob o
título "Fé", ele pede ao químico para reanimá-lo, é uma questão de
ressurreição em carne e osso. Influenciado pelas ideias do filósofo russo
Nikolay Fyodorov sobre "ressuscitar os mortos" e pela teoria da
relatividade de Einstein - que ele discutiu entusiasticamente com Roman
Jakobson na primavera de 1920 - Mayakovsky acreditava num mundo futuro onde
todos os mortos seriam ressuscitados na forma física.
Ele
desenvolve o conceito sob o título "A Esperança", onde pede ao químico
que implante um novo coração nele, que lhe dê transfusões de sangue e martele
ideias em seu crânio: "Não vivi até o fim o meu bocado terrestre,/ sobre a terra/ não
vivi o meu bocado de amor." Se for difícil encontrar trabalho para ele,
ele sempre pode trabalhar num jardim zoológico, pois gosta muito de animais.
Com
isso, chegamos à secção final, "Amor", que é um resumo de todo o
poema. Numa visão de poder extraordinariamente lírico, Mayakovsky vê-se reunido
com Lilya numa nova vida, livre do "lixo quotidiano", em um amor que
não é mais eros, mas ágape, onde a estreita solidariedade familiar foi
substituída pela comunhão entre toda a humanidade.
Mayakovsky: a biography, Bengt Jangfeldt; translated in English from
Swedish by Harry D. Watson. Chicago and London, The University of Chicago
Press, 2014, pp. 242-252
Quando A propósito distofoi publicado como livro no
verão de 1923, incluiu "foto montagens" de Alexander Rodchenko. Aqui
está a ilustração a secção sobre "o Homem na Ponte".
(Bengt Jangfeldt, Mayakovsk: a biography, 2007)
[O
BARCO DO AMOR QUEBROU-SE NA VIDA DO DIA A DIA]
Se Eliot
foi atormentado pelo retorno do passado, pela presença do passado no presente e
pela tradição, Mayakovsky foi devorado pela revolução e pelo futuro
("Arruinado pelo futuro", diz Pasternak). Para Eliot, o presente não
pode existir sem o passado. Para Mayakovsky o presente não tem sentido e não se
sustenta sem o futuro. O futuro era tudo para Mayakovsky: nova humanidade,
integração de todas as esferas da vida que a opressão secular e a hipocrisia
burguesa separaram. O bolchevismo e o Cubo-Futurismo tinham de ser uma coisa
única, forma substancial e substância formal da nova cultura soviética.
A obra e
a vida de Mayakovsky são um ciclone no qual nada pode entrar se não for em
virtude de um dinamismo excecional, o da sua personalidade e dos anos
revolucionários em que viveu: desde quando, adolescente, deixou a escola para
se tornar revolucionário, até o dia de seu suicídio, aos trinta e seis anos, em
1930 (um tiro de pistola no coração, após uma briga com a jovem atriz Veronika
Polonskaia). Mayakovsky trabalha para a sua arte revolucionária como um titã
incansável, como uma criança que não aprendeu a controlar a medida dos seus
próprios gestos e que se move imaginando que ao seu redor existe um espaço sem
limites. Excessivo, grotesco, terno, impiedosamente satírico, escreve e desenha
poemas, vinhetas, slogans, manifestos, peças de teatro. O que sempre teve
diante dos olhos, vivendo e escrevendo, era uma visão excessiva, um jogo
pirotécnico de dimensões cósmicas. Ou era a espera pela ressurreição, uma
ressurreição terrestre, física, que os omnipotentes cientistas do futuro lhe
dariam. Fá-lo-ão calar a agonia da revolução, a agonia do amor e um espaço
social e político que para ele e para os artistas momentaneamente parecia
enorme, mas que foi reduzido, no decorrer dos anos 1920, a uma prisão
burocrática.
No poema A
propósito disto (que conclui com a secção "Amor", aqui transcrita),
escrito em 1922-1923, Mayakovsky dirige-se ao cientista do futuro que
finalmente terá o poder de trazer os mortos de volta à vida. Ele implora para
ela não o esquecer, não o esquecer quando encontrar o seu nome: "Faz-me
ressuscitar!". É uma oração apaixonada, infantil, cheia de amor por ela (Lilya
Brik), cheia de amor por si mesmo (Volodya Mayakovsky). O futuro devorou o
presente e o presente tornou-se cada vez mais estreito. O último ano da sua
vida será um ano de deceções, de fracassos, de cansaço. Amores infelizes,
dificuldades com a cultura oficial e o eterno refrão, cada vez mais insistente:
"As massas não te entendem". Numa manhã de segunda-feira de março de
1930, Mayakovsky queria que Veronika Polonskaia ficasse com ele, mas ela teve de
correr para o teatro: “Quando se consegue um emprego interessante como o do
Teatro da Arte, não se pode tornar-se esposa de um marido, mesmo que seja um
grande homem como Mayakovsky […]. Saí. Eu estava a alguns passos do portão.
Ouvi um tiro. As minhas pernas cederam, comecei a gritar”. Dois dias antes, o
homem a quem Estaline chamaria "o maior poeta da nossa época
soviética" tinha escrito na sua última carta: "Se eu morrer, não
culpe ninguém. E, por favor, nada de mexericos. O falecido não poderia suportar
[...] O barco do amor quebrou-se na vida do dia a dia [...] Vocês que ainda estão
vivos, sejam felizes". A conclusão que ele queria era esta.
Alfonso Berardinelli, Cento
poeti. Milano, Mondadori 1991
As fotografias para as
colagens em A
propósito distonão
foram tiradas por Rodchenko mas por Avraam Sterenberg, caldo do pai David
Sterenberg, com cuja família Mayakovsky e os Briks partilharam o apartamento em
Poluektov Lane em 1919-1920. Esta fotografia foi utilizada na colagem onde
Mayakovsky está à espera do telefonema de Lilya.
(Bengt Jangfeldt, Mayakovsk: a biography, 2007)
Outras traduções do poema "O Amor", de Mayakovsky
Tal vez, quizá, alguna vez, por el camino de una alameda del zoológico, entrará también ella. Ella, ella también amaba a los animales, y sonriendo llegará, así como está, en la foto de la mesa. Ella es tan hermosa, a ella con seguridad la resucitarán. Vuestro siglo XXX vencerá, al corazón destrozado por las pequeñeces. Ahora, trataremos de terminar, todo lo que no hemos podido amar en la vida, en innumerables noches estrelladas.
¡Resucitádme, aunque más no sea, porque soy poeta, y esperaba el futuro, luchando contra las mezquindades de la vida cotidiana! ¡Resucitádme, aunque más no sea por eso! ¡Resucitádme! Quiero acabar de vivir lo mío, mi vida para que no exista un amor sirviente, ni matrimonios, sucios, concuspiscentes, Maldiciendo la cama, dejando el sofá, alzaré por el mundo, un amor universal. Para que un día, que el dolor degrada, cambie, y no implorar más, mendigando, y al primer llamado de: ¡Camarada! se dé vuelta toda la tierra. Para no vivir, sacrificándose por una casa, por un agujero. Para que la familia, desde hoy, cambie, el padre, sea por lo menos el Universo, y la madre sea por lo menos la Tierra.
Lilya Brik
com um exemplar de A propósito disto. Fotografia de Alexander Rodchenko,
1924 (Bengt Jangfeldt, Mayakovsk: a biography, 2007)
Un jour, peut-être, elle qui aussi aimait les bêtes, elle réapparaîtra dans une allée du zoo, souriante, tout à fait comme sur la photo là, sur la table. Elle est si jolie. C’est sûr qu'on la ressuscitera !
Votre trentième siècle devancera le lot des mesquineries qui déchiraient nos cœurs. Nous retrouverons notre part d'amour inachevé dans d'innombrables nuits étoilées.
Ressuscite-moi, ne fût-ce que parce que je t'attendais, en repoussant les mirages quotidiens. Ressuscite-moi, ne fût-ce que pour cela ! Ressuscite-moi ! Je veux vivre pleinement ce qui me revient !
Pour que l’amour ne soit plus esclave d’un mariage, de la luxure ou d’un salaire. Pour que l’amour, ayant maudit les lits et déserté enfin les couches, s’élève partout dans le monde ! Pour ne plus avoir à supplier en mendiant, quelques jours de plus à vieillir. Pour que la terre entière se lève au premier cri de « Camarade ! ».
Pour ne plus avoir à sacrifier sa vie au nom d’une maison, d'un trou ! Pour qu’à partir de maintenant la famille se transforme, et le père devienne pour le moins l’univers, la mère, simplement la Terre...
Perhaps, one day perhaps, along the walkways of the zoo, she will come- for she loved animals too- wandering through the park, like in the photo in my drawer, smiling. They will certainly resurrect her- She is so pretty. … Resurrect me at least because I as a poet, waited for you, freed myself from all the everyday muck. Resurrect me at least for that! Resurrect me- I want to live out the rest of my life! So that love is not changed into a lackey to marriage, bread and lechery. So that love with a curse climbs up out of its bed to wander through the universe's infinity. So that the day doesn't have to go begging for food, grizzled and ragged in the highway's dust. So that with the first cry: -Comrade! - the earth turns round and is changed. So that we avoid living fettered to the household hearth. So that from now on we are like brother and sister, so that our father at least might be the world and the earth our mother.
Mayakovsky: a biography, Bengt Jangfeldt; translated in English from Swedish by Harry D. Watson. Chicago and London, The University of Chicago Press, 2014
Mayakovsky: a biography, Bengt Jangfeldt, 2007
Maiakowski,
Autobiografia e poemas. Ed. Presença, 1974. Coleção Forma #2. Tradução:
Carlos Grifo
“O Amor – poema de
Vladimir Mayakovsky adaptado por Caetano Veloso”, José Carreiro. Folha de
Poesia, 2022-11-19. Disponível em https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/11/o-amor-poema-de-vladimir-mayakovsky.html