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domingo, 21 de janeiro de 2024

A escrita, por Afonso Cruz

Afonso Cruz, visao.pt/jornaldeletras

 

Ao contrário do que muitas vezes se imagina, a escrita não surgiu para gravar pensamentos, sentimentos, meditações, mas essencialmente para gravar contabilidade, o peso da cevada guardada num celeiro, a quantidade de cerveja guardada em talhas de barro. A escrita surgiu para passarmos faturas e isso começou por ser feito em pedra ou em barro, materiais com alguma durabilidade que ironicamente são a grande matéria-prima das ruínas, já que outros materiais mais efémeros não duram o suficiente para isso. Os números começaram a ser escritos antes das palavras, as faturas precederam a poesia. E isto é algo que jamais perdoarei à história da humanidade.

Também, em pedra, se gravaram códigos e leis. O monólito de Hamurabi é um dos exemplos mais conhecidos. Moisés gravou em pedra os mandamentos e essa foi talvez a primeira grande ruína da escrita, pois foram partidas quase de imediato pelo próprio autor. Desceu a montanha, viu que o povo estava a adorar um bezerro de ouro e irritado partiu as tábuas. Obviamente, deste tipo de escrita, nasce o castigo, o pecado o medo, a censura. Uma sociedade deveria evoluir procurando cada vez mais liberdade porque só assim as nossas ações têm valor. Alguém que pratica a bondade porque é obrigado, não é necessariamente bondoso, quem pratica a justiça porque é obrigado, não é necessariamente justo. A compulsão deveria ser substituída pela educação, pela cultura, para poder resultar numa sociedade verdadeiramente sã.

A sedentarização trouxe-nos a escrita e esta ganhou um poder imenso, como nos diz Dylan Thomas, no poema “A mão ao assinar este papel”:

A subscrição foi submetida com sucesso!
Parte inferior do formulário
A mão ao assinar este papel arrasou    [uma cidade;
cinco dedos soberanos lançaram a sua
 [taxa sobre a respiração;
duplicaram o globo dos mortos e    [reduziram a metade um país;
estes cinco reis levaram a morte a um    [rei.(…)
A mão ao assinar o tratado fez nascer    [a febre,
e cresceu a fome, e todas as pragas    [vieram;
maior se torna a mão que estende o seu    [domínio
sobre o homem por ter escrito um    [nome.
Os cinco reis contam os mortos mas    [não acalmam
a ferida que está cicatrizada, nem    [acariciam a fronte;
há mãos que governam a piedade como    [outras o céu;
 mas nenhuma delas tem lágrimas para    [derramar.

 

O ato de escrever solidifica o pensamento, e este, muitas vezes, torna-se lei, verdade absoluta, relegando os outros ângulos de uma mesma questão, com certeza tão verdadeiros como o que foi escrito e aceito, para o campo da especulação, da mentira e dos contos para crianças. Estamos no terreno do pensamento único, do Deus único, da certeza dogmática, da verdade monolítica, uma espécie de baleia branca, que nos faz desprezar todas as outras baleias. Estas verdades inquestionáveis surgem muitas vezes sob a forma de lei económica, um fenómeno que não é exclusivo do nosso tempo. Chesterton escreveu o seguinte em 1910:

“(…) os grandes nobres que no século XIX se tornaram proprietários de minas e gestores de caminho de ferro garantiram a toda a gente com enorme seriedade que o não faziam por gosto, mas devido a uma Lei Económica recentemente descoberta. E da mesma maneira os prósperos políticos da nossa geração aprovam leis que retiram os filhos às mães pobres; e proíbem calmamente os seus arrendatários de beber cerveja nos pubs. Mas (ao contrário do que o leitor possa supor) contra tal insolência não se erguem universais vozes de protesto, classificando-a de escandaloso feudalismo. Porque a aristocracia é sempre progressiva; a aristocracia é uma forma de impor o ritmo. E as festas dos aristocratas prolongam-se cada vez mais pela noite dentro.”

Voltando às ruínas:

O tempo, claro, é o mais eficiente construtor de ruínas, de casas mortas, de lixo, do fim das coisas, de rugas. O universo é uma espécie de artista ao contrário, que faz com que uma escultura volte a ser pedra bruta ou areia. Contraditoriamente, o tempo também valoriza os objetos e o que resta deles, e, assim, é bem possível que um dia tenhamos turistas só para ver os escombros do nosso país, um pouco como visitamos o Coliseu de Roma.

A certa altura, durante a colonização inglesa da Índia, alguém se lembrou de vender o Taj Mahal em leilão e aos pedaços. A ideia era fazer daquilo uma grande ruína e vender os destroços, bocados de pedra, para decorar lareiras britânicas. Para experimentar este disparate histórico decidiram começar por desmantelar o Forte Vermelho de Agra, construído pela mesma pessoa que mandou edificar o Taj Mahal e vendê-lo pedra a pedra. Como não funcionou, desistiram do plano. Apesar de esta história não estar provada, corroborada pela escrita, não deixa de ser credível. Fomos, ao longo da História, capazes de coisas bem piores.

Passaram-se milénios desde a origem da escrita, mas os números continuam a preceder a poesia, e, de um modo mais lato, toda a cultura e a própria noção de humanidade.

 

Afonso Cruz, “Baleia Branca”, Jornal de Letras, 05-03-2015. Crónica disponível em: https://visao.pt/jornaldeletras/cronicas-jl/2015-03-05-baleia-brancaf812274/

 

***

 

Afonso Cruz inicia e conclui a sua crónica com uma crítica à primazia dos interesses económicos sobre a arte, que se manifesta desde a origem da escrita até aos nossos dias. O autor expressa o seu desgosto pelo facto de a escrita ter nascido para registar contabilidade e não para criar poesia, mas o que ele realmente quer dizer é que deseja que os Homens apreciem mais a beleza das palavras do que as vantagens comerciais.

O autor revela implicitamente a sua frustração com a sobreposição da funcionalidade à estética, ao dizer que não perdoa à humanidade o facto de a escrita dos números ter surgido antes da escrita da poesia. A sua crítica assenta no desejo de uma sociedade em que a poesia e a linguagem sejam mais importantes do que as necessidades práticas do comércio. A sua esperança é que a cultura, a educação e a arte consigam superar as pressões comerciais, gerando assim uma sociedade mais bela e significativa.

 


sexta-feira, 25 de agosto de 2023

és o cacto que organiza os pensamentos do dia (Marcelo Torres)


 

PEQUENOS BUDAS DO NORDESTE


Talvez seja assim
você se afasta sofrendo
têm duas mãos trêmulas juntas
com elas pode tocar
o outro que não está
nem na rua
nem na padaria
és o cacto
que organiza
os pensamentos do dia

 

Marcelo Torres, Infernos Fluviais e Por que nunca conversamos sobre Nick Cave?, São Paulo, Editora Clóe, 2023

 


segunda-feira, 31 de julho de 2023

Entre ser e possibilidade: o "eu" fora de si, em Manuel António Pina

 

 

 

“Sabidamente não classificação do universo que não seja arbitrária e conjectural. A razão é muito simples: não sabemos o que é o universo”.

Jorge Luis Borges, In O idioma analítico de John Wilkins

 

A poesia de Manuel António Pina procura dissolver as dicotomias entre eu/ outro, fora/dentro, sujeito/objeto, que ocorrem de maneira artificial. Pina aprende com a mecânica quântica que a realidade não existe sem interação; ela é um complexo entre o observado e o observador: “como podemos distinguir a dançarino da dança”71. Desta forma, “aquilo que existe nunca é estável; não passam de um saltar de uma interação a outra” (ROVELLI, 2015, p. 41). No entanto, nosso olhar e nossa  linguagem  interferem  nessa  interação,  suspendem  esse  emaranhado  e decidem em favor de um ponto de vista fixado. Por isso, acreditar que é possível capturar a "realidade em si” pode funcionar como uma utopia metafísica:

 

O que o realista metafísico sustenta é que podemos pensar e falar sobre as coisas como são, independentemente de nossas mentes, e que nós podemos fazer isso pela virtude de uma relação de “correspondência" entre termos em nossa linguagem e alguns tipos de entidades não dependentes da mente (PUTNAM, 1996, p.205).

 

Mas Pina não é um metafísico, seu realismo é outro. Diríamos, com António Saez Delgado (2017), que ele busca um "realismo integral” (2017, p. 981), em que ser e possiblidade, real e ilusão (literatura), sonho e realidade formam um entrelaçamento. Esse é o termo usado por Erwin Schrödinger para caracterizar a principal propriedade dos sistemas quânticos: entrelaçamento. Para ele, não é possível descrever exatamente o estado de duas partículas ou sistemas depois de terem interagido. Considerados fora da interação, podemos saber algo aproximado sobre essas entidades, elas são apenas uma “função de onda” uma representação matemática e abstrata que nos a probabilidade de encontrar o objeto em um determinado lugar. A teoria do entrelaçamento confirma novamente a intuição de que as “observações não perturbam o que deve ser medido, observações na verdade produzem o resultado medido” (ROSENBLUN & KUTTNER, 2017, p.116). O resultado é uma criação, ou melhor, descriação (no sentido que discutimos na seção anterior).

Para ilustrar a ideia em um nível macroscópico, o físico austríaco criou o famoso experimento mental, conhecido posteriormente como o gato de Schrödinger. Mais uma vez voltemos aos gatos, agora um outro tipo de “gato inconcreto” (PINA, 2012, p. 358) ou “gatos-abstractos" (PINA, 2012, p. 271). Imaginemos que um gato é colocado no interior de uma caixa. dentro um mecanismo que, ao ser ativado pelo decaimento de um átomo de um elemento radioativo, libera um gás letal. O átomo tem o que se chama de “meia-vida”, ou seja, durante um período x de tempo, ele tem cinquenta porcento de chance de decair. Porém, segundo a teoria do entrelaçamento, antes da medição (da nossa interferência) o átomo decaiu e não decaiu; o gato está morto e vivo ao mesmo tempo. Somente quando abrimos a caixa é que o sistema colapsa e é decidido o destino do animal. De modo semelhante ao coelho-pato de Wittgenstein, em que a imagem dos dois animais não é percebida em simultâneo, não somos capazes de ver o gato em um estado morto-vivo. Antes do colapso, temos cálculos probabilísticos sobre o acontecimento de um ou outro evento. Desse modo, estar vivo ou morto (pelo menos para o malfadado animal hipotético) não passa de uma questão de probabilidade. Essa é para usar a expressão de Pina na entrevista que abrimos o texto uma “pedrada muito forte” para o nosso senso comum. Afinal, não existe uma lei intrínseca na natureza?

 

Por que a equação de Schrödinger aplica-se apenas quando a medição não está ocorrendo? Não parece ser assim que as leis da natureza trabalham – pensamos nas leis da natureza como algo que se aplica o tempo todo, não importando o que estamos fazendo. Se uma folha cai de uma árvore, ela cairá esteja alguém olhando ou não (BECKER, 2018, p. 36).

 

Pina coloca esta questão, que é sobretudo identitária, ou mesmo ontológica, da seguinte maneira:

 Como não estareinem não estareiem nenhum sítio, voltandoabsolutamente pra casa?

(PINA, Todas as Palavras, 2012, p. 150).



 

O “eu" está em “nenhum sítio” (também é o título do seu terceiro livro de poesia, de 1984), pois tem um lugar concreto enquanto uma exterioridade que podemos observar. Mas, esse “eu”, que se imiscui com o outro interpelado (a quem se destina a pergunta contida nesses quatro versos?), torna-se uma sobreposição que poderíamos chamar de “nós”. No entanto, aquele que diz “eu”, essa voz concreta (de palavras escritas e sons), é uma interferência nessa sobreposição, cria um terceiro elemento: “Eu sou nós os dois. Ou melhor, nós os dois somos nós os dois, eu sou o terceiro. Sou eu quem está a falar de nós” (PINA, 2012, p.259). Nas palavras de Eduardo Prado Coelho: ”aquele que escreve (ou talvez seja preferível dizer: aquele que escreve por intermédio daquele que julga escrever) seja um Lugar Terceiro, um “eu" sobranceiro que se inclina sobre a vacilação interminável entre tu e eu.” (2010, p. 89). Estar a falar de nós não é ser nós. É ser uma imagem fixa, a ilusão de que o gato está somente vivo ou somente morto. O acesso que temos à exterioridade é, paradoxalmente, ilusão ou: "Literatura. Tornam-nos, tu e eu, e também aquelas terríveis quatro horas da tarde, literatura. (PINA, 2012, p.265).72 Na escrita de Pina, a construção da realidade do ser é feita de palavras: “o que é feito de nós senão/ as palavras que nos fazem?” (2012, p.12) ou “Literatura que faço, me fazes” (2012, p. 23). Na interferência do olhar e da linguagem que busca fixar o objeto "Já tudo e eu próprio somos literatura” (PINA, 2012, p. 149), pois, “sem que palavras uma coisa é real?” (2012, p. 137).

A linguagem é o nosso único espaço possível, um entrelugar diante do mundo e suas possibilidades: “Entretanto dobrar-se-ia o mundo / (o teu mundo: o teu destino, a tua idade) / entre ser e possibilidade” (PINA, 2012, p. 273). A “vida real”, esse é o título do poema citado, é uma “dobra" do mundo, duplicação ("o teu mundo”), mas também multiplicação de estados sobrepostos ("entre ser e possibilidade”) onde a nossa linguagem e observação não chegam.

No entanto, e apesar do caráter disfórico de sua linguagem, a poesia de Pina busca sempre a exterioridade, encontrar um “sítio onde pousar a cabeça” para poder, através da linguagem/ilusão, tocar o real. Nesse sentido, a abstração da interioridade existe à medida que ganha alguma forma concreta, pode ser olhada:

 

"Manuel António Pina é um dos raros poetas do meu conhecimento que não confere ao que chamamos interioridade uma qualquer consistência e faz dela a essência mesma da nossa identidade. Para ele tudo mesmo o mais subtil e efêmero é pura exterioridade” (LOURENÇO, 2012, p.103).

 

Essa "pura exterioridade” é a impossibilidade de qualquer solipsismo, a constatação de que captamos e somos captados pelo olhar. Na epígrafe que abre a segunda seção do primeiro livro de poemas de Pina, lemos (em inglês): “'well, now that we have seen each other', said the Unicorn, 'if you’ll believe in me, I’ll believe in you. Is that a bargain?’”73 (2012, p. 29). Esse trecho é retirado de um momento, em Através do espelho e o que Alice encontrou por , em que Alice encontra-se com um Unicórnio que sempre supôs que as crianças fossem algum tipo de monstro fabuloso e imaginário. Ora, a mesma coisa pensa Alice sobre os unicórnios. Somente após o encontro do olhar (daquele que “vê e é visto” [PINA, 2012, p. 113]), isto é, pela interação com o outro, é que a existência concreta surge. Voltando aos princípios da mecânica quântica:

 

A questão da identidade é mais que filosófica; é um dos eixos da mecânica quântica: as partículas elementares, os constituintes do átomo, são absolutamente indistinguíveis uma das outras. Cada átomo de carbono seu é idêntico aos meus; cada elétron carece de individualidade. E mais: no mundo quântico, cada partícula não é indistinguível das demais, mas também, de um modo peculiar, é indistinguível de si mesma. Um elétron dentro de um átomo existe simultaneamente em infinitos lugares perto do núcleo do atômico, e esses infinitos gêmeos se constituem em um único elétron definido ao serem detectados, ao serem observados (ROJO, 2011, p.51).

 

Qual seria a nossa realidade sem sermos olhados? “Fala-me, não pares de falar. Ouvindo-te tenho a certeza de que sou real, e de que também tu és, fora de mim, real” (PINA, 2012, p. 264). Assim como o “Fale para que eu te veja” de Sócrates, a realidade visível, a exterioridade, da poesia de Pina depende dessa demanda à interação. Sem a interação o real é “como uma paisagem entrando pela janela de um quarto vazio” (PINA, 2012, p. 249). Daí a importância do verso “Somos seres olhados” (2009, p. 82), de Ruy Belo, que Pina usa como epígrafe para o seguinte poema:

 

O jardim das oliveiras

Somos seres olhados
Ruy Belo

 

Se procuro o teu rosto
no meio do ruído das vozes
quem procura o teu rosto?

Quem fala obscuramente
em qualquer sítio das minhas palavras
ouvindo-se a si próprio?

Às vezes suspeito que me segues,
que não são meus os passos
atrás de mim.

O que está fora de ti, falando-te?
Este é o teu caminho,
e as minhas palavras os teus passos?

Quem me olha desse lado
e deste lado de mim?
As minhas dúvidas, até elas te pertencem? (2012, p. 136).

 

O título do poema, como explica Inês Fonseca (2015, p. 121), alude ao jardim, ou monte das Oliveiras, lugar onde “Jesus se recolheu para rezar na noite que precedeu a sua prisão. Foi que o Messias, unindo-se a Deus pelo poder da oração, decidiu manter-se fiel e cumprir a sua missão”. A passagem revela um momento de dúvida. Jesus se pergunta qual é a sua missão, ou se sua vontade, na verdade, é a vontade de um outro, de Deus: “Pai, se queres, afasta de mim este cálice! Contudo, não a minha vontade, mas a tua seja feita!” (BÍBLIA, Lucas, 22, 43).

Outras referências a Cristo aparecem na poesia de Pina, quase sempre acompanhadas pela dúvida. Em “A poesia vai”: “Uma pergunta numa cabeça/ – Como uma coroa de espinhos (2012, p. 38) e no poema “A ferida”, novamente a indagação: “Real, real, porque me abandonaste?” (2012, p.307).

Em todos esses poemas, Pina coloca a voz poética em comparação a Jesus nos momentos em que sua é indagada. Porém, na poesia secular de Pina, não é mais a um Deus que o poeta recorre ou com ele deseja se unir, mas um onipresente “real" que nos olha. Quem fala, quem diz eu? A que ponto essa voz pode ser uma interioridade separada desse outro exterior? Ou ela é pura exterioridade? "O que está fora de ti, falando-te?”

A voz que fala "em qualquer sítio das minhas palavras” é também o grande olho ubíquo ("Quem me olha desse lado e deste lado de mim?”). É uma visão que não se separa do eu/outro mesmo quando os olhares não coincidem: "Às vezes suspeito que me segues,/ que não são meus os passos/ atrás de mim”. A ubiquidade desse olho aparece também no poema “Imorais e puros”: “E eu sou uns grandes olhos que em isto tudo há” (2012, p. 188). É importante notar: “isto tudo” existe. O que quer que “isto" signifique: o “eu”, o real, o outro, a literatura? (voltaremos aos usos desse pronome típico da linguagem dubitativa no próximo capítulo). Se tudo está contido na exterioridade desse olhar, até que ponto é possível dizer “eu”? Se a "minha vontade" é a “tua vontade”, logo até a suspeita identitária é desse outro? "As minhas dúvidas até elas te pertencem?”

No entanto, essas perguntas são uma forma de relação com a poesia, são o caminho de passos-palavras a que alude o poema, um "paradoxal combate no seio da literatura e mesmo contra a literatura” (LOURENÇO, 2012, p. 102). São uma tentativa de atingir pela linguagem uma coincidência que ela não é capaz de conseguir, por isso mesmo, como o próprio Pina coloca, a poesia não é essa coincidência, mas sim a busca por ela:

 

Oh, a questão da identidade! Tenho uma impressão de inconsciência. É como uma imagem desfocada que está sempre a fugir, permanentemente a desfocar-se. Nós tentamos focá-la mas não é possível. A minha relação com a poesia é um pouco assim também. É a procura de uma coincidência, de uma identidade. Que rosto é aquele que me olha do lado de do espelho? (2016, p. 96).

 

O autor equaciona a poesia com uma procura identitária jamais alcançada. A identidade é uma imagem desfocada, próxima demais ou demasiado distante para ganhar uma nitidez. Além disso, nossas lentes-linguagem a embaçam, ou melhor, emudecem-na: “as minhas palavras não me deixando falar” (PINA, 2012, p. 249). Aquele que suspeitosamente fala no poema são palavras, “insubstanciais seres” (2012, p.232) que vivem no meio do caminho entre estar e ser, mudança e permanência: "Eu, isto é, palavras falando,/ e falando me perdendo/ entre estando e sendo” (2012, p. 275). O “eu” não está em um lugar específico, está em múltiplos lugares a única coincidência possível é a da perda:

 

em todas as coisas uma mais-que-coisa fitando-nos como se dissesse: “sou eu”, algo que não está ou se perdeu antes da coisa, e essa perda é que é a coisa (PINA, 2012, p.356).

 

Também todas as coisas que nos espreitam, que nos fazem esses ”seres olhados”, possuem uma identidade, “uma mais-que-coisa”. Porém, ao pronunciar as palavras “sou eu”, não revelação. A determinação da linguagem é uma imagem fantasmagórica, é aquilo que não está mais lá, ausência, perda de identidade. Por isso a poesia de Pina pode oscilar entre ser e possibilidade: “não estou dentro de mim/ e fora de mim,/ e o fora de mim dentro de mim? (PINA, 2012, p. 145).

Nesse sentido, é interessante pensar na noção de deslocamento proposta por Paola Poma (2008). Para a autora, o “eu" da poesia de Pina é um

 

sujeito que oscila entre identidade e alteridades e, radicalizada na poesia, promove, simultaneamente, a neutralização dos sujeitos presentes e a sua devolução à cena através da mesma linguagem, num tipo de ilusionismo, ou como o poeta diria uma 'poesia cheia de truques’ (POMA, 2008, p.229).

 

Como numa espécie de salto quântico, o sujeito flutua entre identidade e alteridades sem estar em nenhum lugar preciso. Deslocamento, interação, simultaneidade, sobreposição, noções que atravessam uma poesia que cria a ilusão de momentaneidade, de existir em um tempo que vive impossivelmente apenas no presente. Mas que, por outro lado, é altamente consciente de seus “truques”, de que a linguagem nada mais faz do que perder (“E o que fala falta-me” [PINA, 2012, p. 140]), ou melhor, ir perdendo, pois não qualquer estado fixo que possa ser encontrado. Por isso, abundam formas verbais no gerúndio, nos poemas citados nessa seção encontramos diversos exemplos: "as minhas palavras não me deixando falar”, "O que está fora de ti, falando-te?”, em nenhum sítio, voltando/ absolutamente pra casa?” ou "Entre estando e sendo”. Isso como uma escolha deliberada de marcar a ideia de continuidade, prolongamento no tempo. A poesia de Pina vive da relação, ela vai sendo. Quem diz “eu" também diz outro, e tudo aquilo que é exterior, ou seja, também diz mundo.

Estamos presos no real, somos parte dele. Não regresso ao real, porque nunca saímos dele: “estamos condenados ao real’ “como é que se sai do real?” (PINA, 2016, p. 200). Essa é também uma possível conclusão que se pode tirar das ideias da mecânica quântica: “somos parte integrante da natureza, somos natureza, em uma de suas inumeráveis e variadíssimas expressões. É isso que nosso conhecimento crescente das coisas do mundo nos ensina” (ROVELLI, 2015, p.84). Por isso, a busca de Pina por uma pura exterioridade é também, para voltarmos a ideia de Delgado (2017), uma forma de lidar com um realismo integral uma reintegração do ser com todas as suas possibilidades:

 

O aquário de Bohm

Em algum sítio onde és um
como dois gémeos divididos,
entre o da vida e o
da morte, um sonho dos sentidos;

em algum passado invivido,
em algum princípio, em algum modo
da memória ou do olvido,
em alguma estranheza, em algum sono;

ou em alguma espécie de saudade
física e inicial
de seres real,
pura exterioridade (PINA, 2012, p.247).

 

O aquário de Bohm é mais uma narrativa-experimento quântico que Pina traz à tona para descrever a relação da sua poesia com o mundo. Nesse experimento, o físico David Bohm

 

apresenta a analogia de um peixe dentro de um aquário projetado em duas telas de TV, via duas câmeras separadas e de dois diferentes ângulos. Como resultado dessa configuração, cada movimento do peixe é produzido nas telas por duas imagens aparentemente separadas. No entanto, essas duas imagens têm uma suspeita relação instantânea uma com a outra – muito parecida com a relação não local entre partículas emaranhadas em um nível quântico. Nessa analogia, a relação crucial é entre “realidade" tridimensional do peixe e a bidimensionalidade das imagens do peixe na TV, sendo  essas  últimas  vistas  como  projeções  desdobradas  de  uma  mais fundamental realidade tridimensional. De maneira semelhante, afirma Bohm, nosso mundo tridimensional incluindo partículas emaranhadas em um laboratório se manifestam como uma projeção de uma realidade multidimensional ainda mais fundamental (NICHOL, 2005, p. 79).

 

O poema, assim como a analogia de Bohm, propõe uma reencontro das partes com o todo, a existência de "algum sítio onde és um só”. Como o peixe projetado em duas imagens, exterior e interior, mente e matéria, são aparentemente duas entidades, “como dois gémeos divididos”. Dentro do aquário, em uma realidade mais profunda a qual não temos acesso, observador, peixe e mesmo o aquário são um contínuo de um todo que é o mundo material: “se estamos emaranhados com o que existe fora, esse “lá fora” não existe mais; existe apenas um todo indiferenciado” (GLEISER, 2014, p. 231). Pois, nesse caso, qual seria “o lado de fora de o lado de fora” (PINA, 2012, p. 142)?

Nossos instrumentos limitados separam e criam inúmeras divisões, sem isso poderia-se realizar o “sonho dos sentidos” no qual, alguém como que liberto dos grilhões que o prendiam na caverna, pode ver uma realidade mais profunda. Contudo, onde está esse lugar, em que “passado" e “princípio", memória e esquecimento podem tornar-se “pura exterioridade”? Onde, citando o poema “Volto de novo ao princípio”, “eu sou o lugar onde tudo isto se passa fora de mim” (PINA, 2012, p. 78).

Essa hesitação, manifestada pelo repetido uso dos pronomes indefinidos “algum e alguma”, converge para uma "espécie de saudade física e inicial” expressada na última quadra. Lugar que remete mais uma vez à infância, lugar “sem palavras e sem memória", encontro possível, porque inconsciente, entre sujeito e objeto: “o quarto eu não o via/ porque era ele os meus olhos” (PINA, 2012, p. 160). Depois disso, a pura exterioridade, a coincidência entre o “eu” e o outro, “eu" e o mundo, torna-se apenas uma espécie de projeção, um holograma de uma realidade mais fundamental que existiria se não fosse atravessada pela consciência das palavras. Sobra ao poeta o desejo de ouvir a “alma" do universo, uma essência perdida que se tornou música:


Teoria das cordas

Não era isso que eu queria dizer,
queria dizer que na alma
(tu é que falaste da alma),
no fundo da alma, e no fundo
da ideia de alma, talvez
alguma vibrante música física
que a Matemática ouve,
a mesma música simétrica que dançam
o quarto, o silêncio,
a memória, a minha voz acordada,
a tua mão que deixou tombar o livro
sobre a cama, o teu sonho, a coisa sonhada;
e que o sentido que tudo isto possa ter
é ser assim e não diferentemente,
um vazio no vazio, vagamente ciente
de si, não haver resposta
nem segredo (PINA, 2012, p. 289).

 

A teoria das cordas é uma teoria unificadora, uma tentativa de ser uma explicação de tudo em uma expressão “que a Matemática ouve”, uma ideia que contem o cerne, a alma, de todas as coisas. Ela talvez nunca possa ser comprovada, mas existe como busca utópica em dar sentido a tudo que existe. Se as partículas elementares que nos compõe (e tudo a nossa volta) vibram como cordas, nenhum vazio é realmente vazio. Tudo seria som (até mesmo o silêncio). Em algum incerto lugar, ouviríamos a música do mundo. Ao poeta, cabe tocar o som articulado das palavras: “Pouca coisa são as palavras/ e é o que me resta” (2012, p.223).

 

_________

71  Tradução livre do verso final do poema “Among school children”, de W. B. Yeats: “How can we know the dancer from the dance?” (2008, p. 185).

72 No texto Para que serve a Literatura infantil?”, Pina (1999) atribui a Blanchot a ideia (que reverbera em seus próprios poemas) de literatura como ilusão.

73 Na tradução de Maria Luiza X. de A. Borges: "'Bem, agora que nos vimos um ao outro’, disse o Unicórnio, ‘se acreditar em mim, vou acreditar em você. Feito?’”(CARROLL, 2009, p. 264).

 

Entre ser e possibilidade: o "eu" fora de si” in Entre nomes supostos: ceticismo linguístico na poesia de Fernando Pessoa e Manuel António Pina, Thiago Queiroz. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo - Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas, 2021