sexta-feira, 8 de agosto de 2008

William Wordsworth lido por J. M. Coetzee

           
[…] That very day,
From a bare ridge we also first beheld
Unveiled the summit of Mont Blanc, and grieved
To have a soulless image on the eye
That had usurped upon a living thought
That never more could be. […]
    
William Wordsworth (Inglaterra, 1770-1850)
The Prelude: Or, Growth of a Poet's Mind(1805, 1850)
“Book Sixth Cambridge and the Alps”, vv. 525-530
    
        



  
     
[…] Ainda estão a dar Wordsworth, vão no Livro 6 de O Prelúdio, o poeta nos Alpes.
— «De um cume despido» — lê em voz alta,
       
vimos pela primeira vez também
Despido, o cume do Monte Branco, e sofremos
Ao guardar uma imagem sem alma nos olhos
Que tinha usurpado um pensamento vivo
Que nunca mais poderia existir.
    
— Portanto. A majestosa montanha branca, o Monte Branco, revela-se uma desilusão. Porquê? Comecemos pela pouco habitual forma verbal usurpar. Alguém foi ver ao dicionário?
   
Silêncio.
   
— Se tivessem ido, teriam verificado que usurpar significa forçar a entrada, invadir. Mas também extorquir, roubar. A palavra é, portanto, polissémica, adquirindo diversos significados em função do contexto em que está inserida.
   
As nuvens dissiparam-se, diz Wordsworth, o pico foi revelado e sofremos ao avistá-lo. Uma réplica estranha, para um viajante dos Alpes. Porquê o sofrimento? Porque, diz ele, uma imagem sem alma, uma mera imagem na retina, usurpou o que, até então, fora um pensamento vivo. E o que era esse pensamento vivo?
[…]
— A mesma palavra usurpar surge novamente umas linhas mais abaixo. A usurpação é um dos temas mais profundos da sequência dos Alpes. Os grandes arquétipos da mente, as ideias puras, são usurpadas por meras imagens sensitivas.
   
Contudo, não podemos viver o dia-a-dia no domínio das ideias puras, arredados da experiência dos sentidos. A questão não é «Como poderemos manter a imaginação pura, protegida das arremetidas da realidade?» A questão tem de ser «Será possível coexistirem as duas coisas?»
   
Vejam o verso 599. Wordsworth escreve sobre os limites da percepção sensitiva. Trata-se de um tema que já focámos. A medida que os órgãos dos sentidos atingem o limite das suas capacidades, a sua luz começa a extinguir-se. Contudo, no momento dessa extinção, a luz tem uma última arremetida como a chama de uma vela, dando-nos um vislumbre do invisível. Este trecho é difícil; talvez contradiga até o momento do Monte Branco. Não obstante, Wordsworth parece encaminhar-se para um certo equilíbrio: não a ideia pura, em nuvem espiralada, nem a imagem visual marcada na retina, açambarcadora e desiludindo-nos com a sua clareza prosaica, mas a imagem sensitiva, mantida fugidia o mais possível, como forma de estimular ou activar a ideia que se encontra mais profundamente enterrada no pântano da memória.
   
Faz uma pausa. Incompreensão. Foi longe de mais, depressa de mais. Como conseguir captar-lhes a atenção? Como conseguir captar a atenção dela?
— É como se estivessem apaixonados — diz. — Se fossem cegos, dificilmente se teriam apaixonado. Mas agora, desejam mesmo ver a amada na claridade fria do mecanismo visual? Talvez seja do vosso interesse colocar um véu sobre o olhar, para manter vivo o seu arquétipo, a sua forma divina.
   
Isto não é Wordsworth, mas pelo menos acorda-os.
   
Arquétipos? pensam eles. Formas divinas? Sobre o que está ele a falar? O que sabe este velho acerca do amor?
   
Uma recordação ensombra-o: aquele momento no chão quando ele lhe ergueu a camisola e expôs os pequenos seios, puros e perfeitos. Ela ergue os olhos pela primeira vez; os seus olhares cruzam-se e, de repente, ela compreende tudo. Confusa, baixa o olhar.
   
— Wordsworth está a escrever sobre os Alpes — diz. — Neste país não existem Alpes, mas temos o Drakensberg ou, numa escala mais pequena, a Table Mountain, que escalamos ressuscitando os poetas, esperando um desses momentos revelatórios wordsworthianos de que todos ouvimos falar. — Agora está só a falar, a disfarçar. — Mas momentos como esses não ocorrerão se o olho não estiver meio virado para os grandes arquétipos da imaginação que carregamos connosco. […]
       
J. M. Coetzee, Disgrace (1999)
(Desgraçatradução de José Remelhe, revisão de Ana Maria Chaves para as Publicações Dom Quixote, 2000)
       
   




CARREIRO, José. “William Wordsworth lido por J. M. Coetzee”. Portugal, Folha de Poesia: artes, ideias e o sentimento de si, 08-08-2008. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2008/08/william-wordsworth-lido-por-j-m-coetzee.html (2.ª edição) (1.ª edição: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2008/08/08/Wordsworth.aspx)



quinta-feira, 24 de julho de 2008

O CORPO QUE ESTALA (José Carreiro)




O CORPO QUE ESTALA
     
In illo tempore os deuses descendentes
tocavam os homens que emergiam do centro do mundo.
De alguma forma solidários fortaleciam-se
numa espontaneidade exuberante.
Seria esta a condição da mistura
ficar longe da cronologia
que se tornou extrema e aspectual
um acto perturbado da mensagem.
Por próximo sentem o meio concreto
um semi-som proveitoso e danado
que verte nas superfícies cortadas
de um corpo que estala.
Um regaço de possibilidades cai
côncavo e percutivo no interior dos corpos.
O que ocupa o símbolo grande cerco faz
tropas em disposição e circuito sitiam aos metros
como bétulas lenhosas, achas no vazio
e estilhas súbitas com um cheiro azedo
entram na porção das partes.
            
José Maria de Aguiar Carreiro





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CARREIRO, José. “O corpo que estala”. Portugal, Folha de Poesia: artes, ideias e o sentimento de si, 24-07-2008. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2008/07/o-corpo-que-estala.html (2.ª edição) (1.ª edição: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2008/07/24/corpo.aspx)


segunda-feira, 28 de abril de 2008

O ROSTO AQUELE ROSTO (José Carreiro)

       
Marion Lucka, "Bedenklichkeit"
("a criança saída do deus de rosto cruel,
que dissimula o seu corpo em serpente.")
  


O ROSTO AQUELE ROSTO

Entre portas um aveludado rosto
prenuncia: logo existe o meu espaço.
Eu toco então aquele rosto este rosto
aquele rosto
conheço as mãos no corpo no rosto
o toque desfasado toque
na quase intimidade do olhar
o beijo.

Hoje acabo o desenho das letras
desenho rosto
pronuncio-o e tu és lá
roço nele até à precisão do t
mas o que fica é esta preparação para o beijo
que a vogal me coloca.

Digo o teu nome
os dentes tocam o lábio inferior
e aí começo a saborear-te
toda a boca te trabalha
um som nasal ressoa no crânio
mexe-me.
José Maria de Aguiar Carreiro
Chuva de Época, Ponta Delgada, 2005.





EL ROSTRO AQUÉL ROSTRO   
¯

Entre puertas un veludazo  rostro
prenuncia: inmediatamente existe mi espacio.
Yo toco entonces aquel rostro este rostro
aquel rostro
conozco las manos en el cuerpo en el rostro
el toque desfasado toque
en la casi intimidad de la mirada
un beso.

Hoy acabo el dibujo de las letras
dibujo rostro
lo pronuncio y tú eres allá
rozo en él hasta la precisión del la t
pero lo que queda es esta preparación para el beso
que la vocal me coloca.

Digo tu nombre
los dientes tocan el labio inferior
y ahí comienzo a saborearte
toda la boca te trabaja
un sonido resuena en el cráneo
me menea.
            
      
Tradução de Maria João Fernandes e Vitor Vicente, “Poesía en Big Ode”, concerto/performance porRodrigo Miragaia, Maria João Fernades, Sara Rocio e Vitor Vicente da Revista Big Ode (Almada, Portugal) para o Edita 08organizado pelo poeta Uberto Stabile, a ter lugar em Punta Umbria, Huelva, entre 30 de Abril e 3 de Maio de 2008. 




      

                                     
    
    
     

HET GEZICHT, DAT GEZICHT
   
Een fluwelen gezicht tussen de luiken
spreekt: weldra ben ik ruimtelijk.
Dus raak ik dat gezicht aan, dit gezicht,
dat gezicht
ik ken de handen op het lichaam op het gezicht
de ongelijkmatige aanraking beroert
het haast intieme van de blik
de kus.
   
Vandaag teken ik de laatste letters
ik teken gezicht
ik spreek het uit en jij bent er
ik wrijf erover totdat ik bij de z ben
maar wat blijft is de hunkering naar de kus
waartoe de klinker mij aanzet.
   
Ik spreek je naam uit
de tanden tegen de onderlip
en ik begin jou te proeven
mijn mond raakt je overal
in mijn schedel weerklinkt een hard geluid
het doet me wat.
   
   (versão holandesa de Marcel Beekman)  


     
CHUVA DE ÉPOCA - Canções para o tenor Marcel Beekman e o Ensemble Ciudate  integradas no espetáculo VIAGEM NO TEMPO (Holanda, 19-02-2011).
Composição de Kees Arntzen.
Poemas de José Maria de Aguiar Carreiro extraídos de «Nada nunca de ninguém» - parte I do livro Chuva de Época, Ponta Delgada, 2005:
1.  «O rosto aquele rosto»
2.  «A casa onde nos abrigamos»
3. «Rapto»

Sobre o poeta:

Sobre o tenor:

Sobre o compositor:


 MARCEL BEEKMAN tenor * HAFID BOUAZZA reciter * ANTOINETTE LOHMANN baroque violin * ANTÓNIO CARRILHO recorder * MIENEKE VAN DER VELDEN viola da gamba * DAVID VAN OOIJEN lute / baroque guitar. * FABRIZIO ACANFORA harpsichord * MARCO VITAL organ * CHRISTINA DE VOS drawings program book * JASPER BARTLEMA stage production * ANNE VAN DER HEIDEN production assistance.

VIAGEM NO TEMPO is a production of STICHTING BLAEUBEECK and is part of the own programming of the Muziekgebouw aan 't IJ. The compositions of Kadar, Kleppe and Tsoupaki were made possible by the Performing Arts Fund. SNS Reaal awarded a production subsidy. The VPRO will record the concert for n.t.b. broadcast on Radio 4.


   

CARREIRO, José. “O rosto aquele rosto”. Portugal, Folha de Poesia: artes, ideias e o sentimento de si, 28-04-2008. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2008/04/o-rosto-aquele-rosto.html (2.ª edição) (1.ª edição: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2008/04/28/rosto.aspx)


terça-feira, 19 de fevereiro de 2008

José Carreiro, entrevista ao Açoriano Oriental





Açoriano Oriental – Quando começou a interessar-se por Literatura?
José Maria de Aguiar Carreiro – Comecei a interessar-me por Literatura quando frequentava o Ensino Secundário, especialmente a partir da leitura de Fernando Pessoa.
          
Letra de música é poesia?
Para mim, letra de música é palavra em forma poética e dá-se num espaço de melodia.
Como dizia Jorge Luis Borges: quando lemos certos versos temos a tendência para o fazer em voz alta. O verso recorda sempre que foi uma arte oral antes de ser uma arte escrita, recorda que foi um canto. De facto, admiro a combinação de letra e música. Actualmente alguns poemas meus e de outros poetas portugueses estão a ser transformados em canções para tenor, flauta, guitarra e talvez piano ou violoncelo. O convite para serem usados poemas meus partiu do cantor lírico de Amsterdão Marcel Beekman, que domina a língua portuguesa. A estreia terá lugar numa igreja holandesa no dia 22 de Fevereiro de 2009. O grupo está interessado em actuar em Portugal continental e, se houver patrocínios, também nos Açores.

Exemplar do livro Chuva de Época anotado por Marcel Beekman e partitura de "A casa onde nos abrigamos".


          
Quais são as suas influências literárias?
Por exemplo aquelas que são explicitadas em Chuva de Época: logo na epígrafe cito o escritor argentino Jorge Luís Borges, muito particularmente o seu livro Os Conjurados, exactamente por lá existir, a meu ver, uma conjura contra o tempo com o qual tenho uma má relação. Aprecio a escrita elíptica de Sophia de Mello Breyner Andresen; a poesia do corpo feita por Eugénio de Andrade; o informulável Herberto Hélder e, claro, o “farsante” Fernando Pessoa.
Como pessoa, somos sempre uma súmula do que existe. Por isso, parece-me que a minha escrita não entra em ruptura com o passado, daí que talvez se possa dizer que se trata de uma poesia de síntese.
          
Acredita em inspiração?
Não acredito na “inspiração” entendida como algo extra-humano (divino). O indivíduo com a sua sensibilidade e susceptibilidade de momento é que está disponível para receber influências várias, a começar pela própria “dádiva verbal”, passando por outros estímulos, como por exemplo, a música (leia-se o poema “Voz Reflexiva”) ou uma imagem (veja-se o poema com o título “Teresa d’Ávila”).
          
O mercado editorial maltrata o poeta?
Diria que publicar um livro hoje em dia pode ser visto como um acto de narcisismo ou, por outro lado, um acto de altruísmo. Neste último caso, a boa vontade social (isto é, a de contribuir para o enriquecimento da Literatura) determina que haja um empenhamento do poeta em ultrapassar as barreiras editoriais e de distribuição.
          
O que a Internet vai trazer de bom e de ruim para a poesia?
A Internet essencialmente veio trazer a divulgação de poesia que doutro modo não seria lida por pessoas fora do círculo de amizades de um poeta.
Apesar do abundante ciberlixo, há também bons textos online. Até já há poetas consagrados que têm as suas próprias páginas e alguns mantêm vivos os chamados blogues.
          
Quais os temas dominantes no seu trabalho?
O título do livro aponta para o campo das relações humanas metaforizadas em “chuva” que acontece repentinamente e de forma passageira, embora intensa.
A segunda parte do livro reflecte sobre a escrita da primeira parte numa atitude irónica e distanciadora.
          




          
A poesia pode mudar o mundo?
A poesia muda o meu mundo, a poesia é um modo de fazer mundos.
A escrita pode influenciar aqueles que a lêem, quer esteticamente, quer pelas eventuais questões que levante.
          
O que escreve sobre o mundo?
O mundo não me atrai o suficiente para sobre ele escrever. Fecho-me e não capto a historicidade nem me comprometo com tempo em que vivo. Digo mesmo que, em relação ao mundo contemporâneo, eu quase apenas “passo”. Sinto-me empurrado pelas circunstâncias, de costas viradas para o futuro. Suspeito, perante as ruínas do passado que contemplo e escrevo, que o devir será sempre uma repetição do que já foi.
Quando meu pai faleceu, relativizei tudo, de modo que não conseguia ver qualquer sentido para a escrita. A própria leitura parecia-me inoperante. A morte parece levar tudo. Perante a morte torna-se vazio de sentido todo e qualquer movimento. Apenas isto: a entrega imediata à terra, ao cosmos, ao sentido brutal dos elementos. Por outro lado, há um instinto de sobrevivência que nos faz proteger do fogo destruidor. De qualquer modo, perante a morte, fico um ser perplexo, mortalmente perplexo perante o sentido a dar à vida. Deverei abraçá-la, projectar uma fuga para a frente, imaginar uma supermente que no futuro arrancar-nos-á da indigna morte da mente? Ou deverei aceitar com indiferença a morte total, a inutilidade da ciência e da religião?
Mas, como dizia Gramsci: “é preciso lutar com o pessimismo da inteligência e com o optimismo da vontade”.
    

José Maria de Aguiar Carreiro em entrevista ao jornal Açoriano Oriental (Ponta Delgada), ano CLXXIV, nº 16358, Quarta Feira, 13 de Fevereiro de 2008, pág. 21.




“José Carreiro, entrevista ao Açoriano Oriental” in Folha de Poesia. Portugal, 19-02-2008. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2008/02/jose-carreiro-entrevista.html (2.ª edição). (1.ª edição: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2008/02/19/entrevista.aspx)