quinta-feira, 17 de novembro de 2011

REVOLTA DOS INDIGNADOS

Manifestação Nacional dos Professores, Lisboa, 11-02-2023

                                    
QUE FORÇA É ESSA
            
Vi-te a trabalhar o dia inteiro
construir as cidades pr'ós outros
carregar pedras, desperdiçar
muita força pra pouco dinheiro
Vi-te a trabalhar o dia inteiro
Muita força pra pouco dinheiro

Que força é essa 
[bis]

que trazes nos braços
que só te serve para obedecer
que só te manda obedecer
Que força é essa, amigo 
[bis]
que te põe de bem com outros
e de mal contigo
Que força é essa, amigo 
[bis 3]

Não me digas que não me compr'endes
quando os dias se tornam azedos
não me digas que nunca sentiste
uma força a crescer-te nos dedos
e uma raiva a nascer-te nos dentes
Não me digas que não me compr'endes

(Que força...)

(Vi-te a trabalhar...)

Que força é essa 
[bis]
que trazes nos braços
que só te serve para obedecer
que só te manda obedecer
Que força é essa, amigo 
[bis]
que te põe de bem com outros
e de mal contigo
Que força é essa, amigo 
[bis 10]
     
In Sobreviventes; 1971
           
        

           
            
                                  
AGITAÇÃO POLÍTICA
            
[…] Ao consciencializar as pessoas acerca de, por exemplo, crimes cometidos pela PIDE, uma canção agita igualmente os ouvintes no sentido de entrar em ação contra a PIDE. Por isso também é impossível dissociar canções que só consciencializam de canções que só agitam. Todavia, na obra de ambos os cantores [Zeca Afonso e Sérgio Godinho] encontramos exemplos que são claramente usados para agitar as pessoas. São versos em que o cantor ameaça e critica o regime, esperando que os ouvintes sigam o seu exemplo. “Cantar Alentejano” trata do assassínio de Catarina Eufémia. Na quarta estrofe desta canção lê-se: “Acalma o furor campina / Que o teu pranto não findou / Quem viu morrer Catarina / Não perdoa a quem matou”. O último verso faz alusões à vingança, dizendo que não se pode perdoar os assassinos.
            Sentimentos de vingança encontram-se também em duas canções que tratam das vítimas da PIDE. Nas primeiras duas estrofes de “Coro da Primavera”: “Cobre-te canalha / Na mortalha / Hoje o rei vai nu // Os velhos tiranos / De há mil anos / Morrem como tu”, o cantor ameaça os líderes do regime, a quem chama “canalha”, dizendo-lhes que têm de se cobrir “na mortalha”. Por outras palavras, o que fazem é já em si um suicídio, porque a mortalha é uma cobertura que envolve o cadáver a ser sepultado. Em “A morte saiu à rua” o cantor também ameaça os assassinos, fazendo uma referência à expressão bíblica “Olho por olho e dente por dente”, o que significa que cada crime deverá ser vingado da mesma maneira.
            No entanto, os cantores usam também outras maneiras menos diretas para agitar os ouvintes, como através da crítica, sugerindo que são passivos. Assim, a canção funciona como um espelho que reflete a passividade do ouvinte, com o objetivo de o levar a consciencializar-se da sua passividade e a tomar iniciativa contra ela. Encontramos um bom exemplo na canção “Eu vou ser como a toupeira1. Nesta canção o cantor faz uma comparação com animais, através da qual mostra que é preciso uma atitude mais ativa para mudar algo. Na primeira estrofe diz que o próprio gostava de ser como a toupeira e a jiboia2. Uma jiboia é por excelência um animal que ataca, estrangulando e engolindo a sua presa. À primeira vista, uma toupeira não parece ser um animal ataque outros animais, no entanto no Dicionário da Língua Portuguesa encontra-se também o seguinte significado: “pessoa que conspira às ocultas para subverter as instituições”3. Oposta à toupeira e à jiboia está a hidra, que aceita silenciosamente a sua situação4. A hidra, que depende de água para sobreviver, diz que é preciso pensar nos próprios pecados quando a água falta, em vez de procurar a culpa noutras pessoas. Por outras palavras, na canção a hidra é a imagem de alguém que aceita silenciosamente a sua situação de oprimido, tal como “as pessoas sentadas à espera” na canção “Que bom que é”, de Sérgio Godinho. No entanto, o cantor conta na última estrofe que prefere viver uma vida miserável, mas livre, a ser como a hidra, que é passiva e dependente de quem lhe é superior5.
            Sérgio Godinho usou também o método de criticar o ouvinte passivo. Na canção “Que força é essa6, o cantor abre com uma observação de alguém que trabalha muito6. A seguir ele pergunta ao trabalhador donde lhe vem a força para trabalhar quando são outros que se aproveitam dos lucros8. Então, depois de ter explicado a situação miserável do trabalhador, começa a tentar agitá-lo na última estrofe9, apelando à raiva que ele deve sentir por trabalhar sem aproveitar. Algo de semelhante encontramos na canção: “Cantiga da velha mãe e dos seus dois filhos10. Nesta canção ouvimos uma mãe contar a história dos seus filhos, que partiram em direções opostas11. Sabemos nesta estrofe que os seus filhos foram em direções opostas e que são ao mesmo tempo ricos e pobres. O cantor serve-se aqui dum jogo de palavras em que o adjetivo “rico” no verso “Ai o meu rico filho que pobre que é” deve ser interpretada como “querido”. A riqueza do segundo filho tem a ver com dinheiro real, mas a mãe caracteriza-o como pobre, no sentido em que ele comete um erro muito grave, isto é, a exploração do irmão. Mais adiante a mãe explica melhor a situação12. Como na canção anterior, o cantor conta uma história de injustiça com a intenção de agitar os ouvintes, apelando à vingança13: a mãe, fisicamente incapaz (“Sei que estou velha e doente”) de lutar contra a situação de exploração é, nesta estrofe, exemplo e incentiva para o povo oprimido lutar e vingar-se da injustiça, apesar das dificuldades14.
          
                  
               


Afonso, J., “Eu vou ser como a toupeira”, Eu vou ser como a toupeira, Orfeu STAT 012, 1972.
“Eu vou ser como a toupeira / Que esburaca / ...  / Eu vou ser como a jiboia / Que atormenta”
Engelmayer, E., op. cit. pág.: 78.
“Penitência, diz a hidra / Quando há seca”
“Quero-me à minha vontade / Não à tua / Ó hidra, diz-me a verdade / Nua e crua / Mais vale dar numa sarjeta / Que na mão / De quem nos inveja a vida / E tira o pão”
6 Godinho, S., “Que força é essa”, Os sobreviventes, 1971.
“Vi-te a trabalhar o dia inteiro / Construir as cidades pr´ós outros / Carregar pedras, desperdiçar / Muita força pra pouco dinheiro / Vi-te a trabalhar o dia inteiro / Muita força pra pouco dinheiro”
8 “Que força é essa / Que força é essa / Que trazes nos braços / Que só te serve para obedecer / Que só te manda obedecer / Que força é essa, amigo / Que força é essa, amigo / Que te põe de bem com outros / E de mal contigo”
“Não me digas que não me compreendes / Quando os dias se tornam azedos / Não me digas que nunca sentiste / Uma força a crescer-te nos dedos / E uma raiva a nascer-te nos dentes”
10 Godinho, S., “Cantiga da velha mãe e dos seus dois filhos”, Os sobreviventes, 1971.
11 “Ai o meu pobre filho, que rico que é / Ai o meu rico filho, que pobre que é / Nascidos do mesmo ventre / Um vive de joelhos pr´ó outro passar à frente / E esta velha mãe pr´áqui já no sol poente”
12 “Um voltou-se pra trás, disse adeus que me vou embora / Voltaremos trazendo connosco a vitória // De que vitória falas, disse eu então / Da que faz um escravo do teu irmão?” e: “Depois vieram novas que o que vivia / da miséria do outro, se enriquecia”
13 “Às vezes rogo pragas de os ver assim / Sinto assim uma faca dentro de mim / Sei que estou velha e doente / Mas para ver o mundo girar dum modo diferente / ´Inda sei gritar, e arreganhar o dente // Estou quase a ir embora, mas deixo aqui / Duas palavras pra um filho que perdi / Não quero dar-te conselhos / Mas s´é o teu próprio irmão que te faz viver de joelhos / Doa a quem doer, faz o que tens a fazer”
14 “Não quero dar-te conselhos / Mas s´é o teu próprio irmão que te faz viver de joelhos / Doa a quem doer, faz o que tens a fazer”
               

              
Sinto uma força a crescer-me nos dedos e uma raiva a nascer-me nos dentes, como diria o Sérgio Godinho
           
Nicolau Santos, www.expresso, 2011-10-17
               
             
              
       
             


OS INDIGNADOS DO INÍCIO DO SÉCULO XXI
          
Agora, no início do século XXI, a população, mais ou menos esclarecida, sentindo no seu bolso as mãos do Estado e da banca, tem-se manifestado contra os abusos de poder. Embora a sociedade civil esteja alerta contra este tipo de barbárie, acontece que, até à data, de pouco ou nada tem servido a revelação da podridão e corrupção que grassa por entre os altos cargos da nação. De que tem servido, então, o apontar o dedo a benefícios estatutários que os próprios interessados fabricam e aprovam entre si? Como podem as massas vampirizadas pôr freio a estes “bárbaros reais” se os instrumentos democráticos utilizados não têm surtido efeito?
              

              
     


 
                    
              
Cartaz “AS FORMIGAS NO CARREIRO ACORDARAM!”
Manifestação de professores no Rossio, Lisboa, 2013-01-26.
      
            
            
Pode também gostar de ler:
          
“Mas cuidado, mylady, não se afoite,
Que hão-de acabar os bárbaros reais,
E os povos humilhados, pela noite,
Para a vingança aguçam os punhais.
           
E um dia, ó flor de Luxo, nas estradas,
Sob o cetim do Azul e as andorinhas,
Eu hei-de ver errar, alucinadas,
E arrastando farrapos – as rainhas!”
             
in "Deslumbramentos",  Cesário Verde
                  
          
“Lisboa, no princípio de 1908, era uma cidade agitada, onde os boatos se multiplicavam e as incertezas cresciam. O povo passava fome, andava no ar uma grande tensão. Vários são os escritores que se manifestam contra a Monarquia. Entre outros, há a salientar Guerra Junqueiro, Gomes Leal, panfletário, Aquilino Ribeiro, que teve de se evadir, e Cesário Verde, que, além de expressar o seu «Sentimento de um Ocidental», pinta em verso, por palavras e sinais, o fim da Monarquia: «Que hão-de acabar os bárbaros reais; /E os povos humilhados, pela noite,/Para a vingança aguçam os punhais.»”  (Margarida Mouta, “A literatura na I República”, in República – Liberdade em ação)
           
              
Os camponeses (e demais povo), em épocas recuadas, viviam com medo de serem saqueados ou escravizados por bárbaros reais. Assim foi, grosso modo, a ascensão da nobreza pela barbárie. Assim tem acontecido, protestam os indignados, a subida ao poder, ao longo dos tempos, através da força, da trapaça, da vileza e do engano.

              

PODERÁ TAMBÉM GOSTAR DE LER:
          
 Poesia útil e literatura de resistência” (A literatura como arma contra a ditadura e a guerra colonial portuguesas), José Carreiro

   
                

[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2011/11/17/INDIGNADOS.aspx]

domingo, 13 de novembro de 2011

LER E ESCREVER (SOBRE) LITERATURA

       
O processo de possuir uma técnica refinada de leitura não se traduz automaticamente na capacidade de escrever um poema ou um romance. E vice-versa: não é certo que um notável escritor seja necessariamente um leitor sensível e receptivo.
           

     
                              
                                
A competência literária distingue-se de outro tipo de competência como, por exemplo, a linguística, porque comporta, por definição, uma situação assimétrica: de um lado está o escritor, capaz de produzir obras literárias; do outro, está o leitor, capaz de as compreender e interpretar. E os dois papéis ‑ ou dois tipos de competência ‑ não são passíveis de troca. O processo de possuir uma técnica refinada de leitura não se traduz automaticamente na capacidade de escrever um poema ou um romance. E vice-versa: não é certo que um notável escritor seja necessariamente um leitor sensível e receptivo.
       
Evidentemente que à escola não cabe plasmar aquele tipo particularíssimo de escrevente que é o escritor, mas formar um público o mais possível crítico e competente. Quando a escola promove actividades que entram no território da produção literária ‑ individual ou de grupo ‑ elas não são propostas para formar literatos de ofício mas, sim, para desenvolver a educação linguística e sublinhar os aspectos técnicos e artesanais que desenvolvem a motivação, o interesse, a curiosidade do "bom leitor".
       
Um outro tipo de considerações respeita os exercícios de conteúdo "metaliterário", nos quais se pede aos alunos que produzam um discurso ‑ oral ou escrito ‑ sobre obras, autores, correntes, géneros, etc, sob a forma de diálogo, questionários, interrogatório tradicional, dissertações individuais ou de grupo. Neste campo, a figura a exorcizar já não é a do escritor, mas a do crítico. Os textos produzidos pelos alunos não devem ser concebidos como subclasse, ou redução à escala, do discurso dos especialistas, mas como expressão da capacidade interpretativa do "bom leitor", que não é um crítico ou historiador literário em formato reduzido, mas uma figura caracterizada com finalidade, saber e instrumentos tipicamente seus.
       
A prática escolar mais difundida e oficializada prevê, fundamentalmente, dois tipos de exercício: a dissertação, que consiste num ensaio crítico ‑ ou excursas histórico ‑ em miniatura; e o trabalho de investigação, que se traduz a maior parte das vezes numa colagem de citações, extraída do manual ou das histórias/dicionários de Literatura, a propósito de autores de quem o aluno não leu uma única obra do princípio ao fim.
       
Se o objectivo é o de favorecer uma relação cada vez mais estreita e profunda com o texto, é necessário recorrer a outros tipos de exercício, que assentem no trabalho do próprio aluno e que se apoiem na mediação oferecida aos estudantes pelos especialistas só quando essa utilização servir de estímulo ou pilar para a elaboração de estratégias analíticas e interpretativas autónomas. Delia Casa indica três perspectivas fundamentais de abordagem: descritiva (descrição de forma e significado, assunto, paráfrase, etc.); explicativa (análise dos significados, individualização das relações externas e internas do texto, etc.); avaliativa (juízo com base em critérios de valor).
       
(...) No que respeita ao conhecimento de factos específicos (nome e biografia dos autores, a sua localização social, tempo e lugar da produção literária, etc.) e deconvenções tendências (características de géneros e movimentos literários, o seu desenvolvimento histórico, etc.), terá o professor de precaver-se contra a presunção da competência e esforçar-se por oferecer, de vez em quando, apenas a informação necessária àqueles alunos, naquela fase de desenvolvimento do seu trabalho/da sua formação para lerem com proveito aquele texto. Só porque se propõe aos alunos que leiam a obra X não é necessário contar-lhes preliminarmente a vida do autor, nem delinear um quadro sinóptico da cultura da época ou uma história das formas assumidas pelo romance desde as origens até aos nossos dias. Só numa fase mais avançada do trabalho, quando os alunos, graças a uma experiência directa de textos de vários tipos, puderem receber e utilizar de um modo não passivo tais informações e generalizações, começaremos a traçar gradualmente um mapa de autores, correntes e géneros, que deverá viabilizar, concluído o percurso, a aquisição de uma perspectiva temporal e epocal pragmática, e permitir colocar os novos textos no lugar certo daquela biblioteca imaginária que um bom leitor deve ter interiorizado, sem esquecer que o modo de catalogação pode ser em qualquer momento re-discutido, completado ou totalmente revolucionado.
       
No que diz respeito ao conhecimento de termos técnicos metodologia, o risco a escapar será, para além da tentação sempre recorrente de uma ilusória omnicompreensão, o espaço do excessivo tecnicismo que tende a modelar mecanicamente a figura do leitor na do especialista. Também neste campo a informação deve ser adquirida gradualmente e a partir da exigência interpretativa sentida pelo aluno em relação ao texto: se um elenco completo e abstracto de denominações, ou de definições, das figuras de retórica tem inevitáveis qualidades suporíferas e desmotivantes, bem diferente é saber chamar pelo nome uma metáfora, ou uma sinestesia, se isto me serve para explicar melhor e discutir com os outros, de modo mais definido e compreensível, o efeito que o uso dessas figuras provocou em mim. A mesma consideração é válida para a linguagem sectorial da história literária e da metodologia crítica, da qual se deve fazer uso com parcimónia e de um modo estritamente definido para as necessidades de interpretar e avaliar as obras que estão a ser lidas numa fase específica do curso: os estudantes terão prazer em memorizar os termos ‑ e em padronizar os conceitos ‑ de que verificaram a utilidade em relação às suas necessidades de leitores comuns. Um critério aproximativo e empírico, mas não desprezível, poderia ser o seguinte: oferecer aos estudantes o conhecimento de todos os termos técnicos que é costume utilizar quando conversamos a propósito de uma obra literária com um amigo de cultura média; e eliminar rigorosamente da parte didáctica todos os que encontramos exclusivamente nos textos dedicados a especialistas. É preferível que o aluno leia Os Maias em vez de ler o que os melhores críticos escreveram sobre a obra. Todavia não se pode negar que uma módica escolha de leituras críticas, quando esta não se limita simplesmente a um ou dois parágrafos dos textos reproduzidos pelo manual (ou manuais de história literária), deixa evidenciar a variedade de interpretações que podemos fazer de uma obra segundo os horizontes culturais de quem a lê.
       
Estes critérios de escolha e dosagem do conhecimento literário colocam-se no âmbito de uma perspectiva didáctica que se quer basear, do princípio ao fim, num relacionamento activo por parte do estudante e limitar ao mínimo a repetição acrítica de noções não verificadas e não conquistadas autonomamente a partir de necessidades reais. Neste contexto, os dados históricos e técnicos oferecidos pela competência oficial do professor só terão sentido se interagirem de modo vital com os interesses, a exigência, a capacidade da turma; o procedimento de base será o da indução, partindo-se do texto para caminhar gradualmente em direcção à generalização teórica ou à contextualização histórica, e não vice-versa. Particularmente indicada nesta área é a prática sistemática do confronto de textos diversificados, que permite ao aluno individualizar as constantes e as variáveis nas quais assentam um progressivo trabalho de reflexão, análise e síntese.
          
Guido Armellini, Come e perché insegnare letteratura – Strategie e tattiche perl a scuola secondaria, Bologne Zanichelli, 1985, pp. 246-248.
Texto traduzido adaptado por Cristina Duarte, Fátima Rodrigues e Maria de Sousa Tavares, in Cadernos de Literatura. 10.º Ano. Português A e B. Livro do Professor, Amadora, Raiz Editora, 1993, pp. 121-122.
            
              
"Fly With Fiction", Joel Robison Photography (2021-10-13)


[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2011/11/13/leitores.aspx]

domingo, 6 de novembro de 2011

ANALISAR E INTERPRETAR UM TEXTO POÉTICO

              
Após escolher o poema que mais lhe tenha interessado, analise-o, tendo em conta os seguintes passos:
1. Contextualizar o poema na obra e época do autor.
2. Fazer uma descrição formal do poema: estrofe; métrica; ritmo; rima.
3. Indicar o tema particular do texto e salientar, justificando, se o poema escolhido pertence ao grupo dos de cariz “intimista” ou dos de cariz “político-social”.   
              
              
- No caso de o poema ser de cariz “intimista”, salientar o seguinte: 
              
- o facto e o modo como o sujeito da enunciação reflete sobre a vivência íntima, as tensões e as contradições pessoais, o diálogo eu-tu, o amor, a indiferença ou outros sentimentos, sensações, emoções e atitudes;
- o facto e o modo como o sujeito reage às vicissitudes da vida, ao «desconcerto do mundo», à mudança, à efemeridade do prazer e do bem, à problemática do quotidiano;
- o facto e o modo como você, leitor, adere ou não à mensagem do poema (questões, propostas, soluções);
              
              
B - No caso de o poema ser de cariz “político-social”, salientar:
              
- o facto e o modo como o sujeito problematiza a sociedade e o mundo onde vive;
- a apologia (elogio) dos valores e a denúncia dos erros, desvios e aberrações das pessoas e das instituições político-sociais;
- o fundamento ideológico e doutrinário da postura e da visão crítica do sujeito;
- os exemplos ilustrativos da argumentação textual;
- a sua adesão ou recusa como leitor à mensagem do poema.
              
              
4. Fazer uma possível divisão do poema em partes lógicas, justificando.
5. Referir, exemplificadamente, os recursos expressivos utilizados e explicar a sua representatividade/importância no poema.
              
Consideram-se RECURSOS EXPRESSIVOS, por exemplo:
              
A – figuras de estilo;
              
B – o valor estilístico
   - da coordenação ou da subordinação;
   - da pontuação (interrogação, exclamação, reticências, travessão ou parêntesis);
   - dos tempos e modos verbais;
   - do uso do adjetivo (adjetivação dupla; colocação do adjetivo antes do substantivo);
   - de grupos de palavras de cariz negativo (disfórico) ou positivo (eufórico);
   - do vocabulário oralizante;
   - dos registos de língua (familiar, popular, cuidado);
   - do advérbio acabado em -mente;
   ...
              



[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2011/11/06/analisepoetica.aspx]

terça-feira, 1 de novembro de 2011

«POEMA DE AMOR» POR EDMUNDO DE BETTENCOURT


   

       
A noite é cheia de vales e baías.
E do meu peito aberto um rio largo de sangue...
Águas densas, de correntes lentas,
serpentes mortas a arrastarem-se.
Águas?
Águas negras, pastosas, alcatrão rolante.
Mas águas puras, verde-claras, atraindo
a margem donde os crocodilos fogem mastigando.
Águas em transparências lucilantes, para cima,
e as estrelas do mar, um polvo e um mefistófeles
ficam no ar sobre ilhéus e lodosos calhaus
que se descobrem.
Plantas brancas e extáticas.. .
Lágrimas... nuvens... e a cabeça, o perfil,
os olhos, todo o corpo da mulher amada, a prostituta
antes de virgem, que é bela e feia, velha e nova,
e não conhece os filhos!
     
O fogo envolve essa mulher amada
e é um guindaste erguendo-a e atirando-a,
enquanto dispersas pelo chão brilham mandíbulas
naturalmente à espera...
    
De Poemas de Edmundo de Bettencourt1963.
     

     
 Século de Ouro. Antologia Crítica da Poesia Portuguesa do Século XX
           
                
             
           





O texto organiza-se em torno de quatro tópicos de marca literária e erótica reconhecida: a noite, a terra, as águas e a animalidade que as governa ou a partir delas se destrói, «eros» e «thanatos» em confluência trabalhada. | Maria Alzira Seixo

              
        
Se aceitássemos a ideia de que o amor é uma criação da ideologia romântica, como pensam muitos historiadores e teóricos (v. g. Christian David, L’État Amoureux, na senda da psicanálise, ou Jonathan Culler, Literary TheoryA Very Short Introduction, na senda da semiótica e da desconstrução), e entendêssemos a aproximação física e espiritual das pessoas como uma articulação privilegiada entre reacções somáticas de natureza química e interesses sócio-culturais de conjuntura, uma grande parte dos escritos da literatura prescindiria das interpretações críticas mais ou menos protocolares que lhes têm sido dedicadas. O espírito do tempo consagrou diversas formas da manifestação erótica na arte, desde os amores intrafamiliares ou da pederastia nos seus primórdios, passando pela fin'amors medieva e pelo seu avatar humanista que encontra em Petrarca um génio da expressão, diversificando-se na riqueza dos tempos clássicos pela sócio-afectiva rejeição do desejo da Princesse de Clèves ou pela abertura folgazã de Moll Flanders, pelo sentimento dramático-social do corpo experimentado por Manon e pelo puritanismo cristalino de Julie, para forjar o seu modelo de pureza e sensualidade no Werther ou na Dama das Camélias, a oscilar de tremuras de êxtase entre o autodomínio sábio de Ellénor (Adolphe) e a entrega incauta de Teresa (Amor de Perdição). Falo sobretudo de mulheres, reconheço (é natural!), e reconheceremos também que tudo isto acaba (ou começa) na comovente Ema, que Flaubert, por alguma razão quiçá mais do que literária, ligou para sempre a si próprio. Pelo que convém lembrar que Barthes, nosso contemporâneo e lúcido analista do comum enredamento na ideologia, propõe a título individual (como já o fizera Proust, e por isso mesmo alcançando a universalidade maior) uma concepção fragmentária e dispersa do amor que soma isso tudo, feita de estados desligados, de situações extemporâneas, de mitos, de fábulas c de vivenciados estados poéticos, mas sempre vincando esse excesso que dá afinal o afecto (Fragments d'un discours amoureux).
          
Falo nisto porque o «Poema de Amor», de Edmundo de Bettencourt, aparece carregado de uma sensibilidade patrimonial do erotismo literário que simultaneamente assume, critica e lateraliza, numa vertente verbal que parece conter Iodos estes dados. O texto organiza-se em torno de quatro tópicos de marca literária e erótica reconhecida: a noite, a terra, as águas e a animalidade que as governa ou a partir delas se destrói, «eros» e «thanatos» em confluência trabalhada. Mas nada nele comunica directa ou explicitamente a temática amorosa, a não ser o título e a expressão convencional repetida, no texto, da mulher amada, em terceira pessoa e não de acordo com uma invocação comum na interlocução do circuito afectivo, realizado ou malogrado. O malogro é aqui transmitido pela irrupção do fogo final, já que as águas, que dominam em número de ocorrências (é um poema por onde o amor escorre), se transmudam a dada altura em lágrimas, e o fogo como ardor amoroso vai praticar a anulação destrutiva pela agressão e pela antropofagia imaginária e simulada, do outro e naturalmente (leia-se: de acordo com uma certa forma de natureza) de si.
          
Atentemos no discurso do texto. A noite é nele sobretudo um cenário, a marca simultânea da intimidade e da partilha, como da treva do sentimento negativizado, que as «águas negras» recebem. A noite é cheia de vales e baías é um verso que elide o sujeito na sua remissão a uma projecção cósmica, de natureza romântica (Leopardi, em contexto similar: «Dolce e chiara é Ia notte senza vento»), mas que constrói, à luz do que vai seguir-se, a paisagem do corpo feminino e da sua articulação ao outro («cheia»). O peito aberto, metonímia de um outro motivo literário, o do coração, faz alastrar por essas baías um rio largo de sangue, condensando a sugestão do sofrimento com a do funcionamento do corpo, interior e nocturno. Por isso as águas, na simbólica do tempo que transforma e se esvai, aparecem logo, senão ensanguentadas, pelo menos «densas», «negras, pastosas», «alcatrão rolante» de uma quotidianidade rotineira e banalizadora da visão natural edulcorada, como do amor doce e tranquilo. E aconstrução prosódica que as refere, em verso livre e compacto, de intensa concentração nominal e pouquíssimos verbos, insiste em nasais de assonância e aliteração que dizem esse obsessivo deslizar. O tempo assim movido «arrasta»serpentes mortas, conjugando então a sugestão seminal masculina com motivações femininas bíblicas da sensualidade e do pecado (pluralizadas, note-se). Daí que o sujeito reitere a menção líquida interrogando-se, em visão subjectiva especular de uma incerteza de conhecimento e de determinação: Águas?, lexema a constituir por si só, monossilabicamente e de modo impressivo, um verso. É a sugestão rotineira do «alcatrão rolante» que acarreta a adversativa, a contrapor à visão sangrenta uma forma protocolar de pureza e alegria, a das águas «verde-claras», «em transparência lucilantes», movimentadas paradoxalmente em ascensão, e apontando as estrelas (que o texto — que nada diz e apenas constrói, como que em verbais «passos em volta» — precisa, rebaixando e aprofundando em abismo: «do mar»); e a referência contígua ao polvo, passando da entidade seráfica estelar à hipótese do monstro, constitui-se em diabolismo ostensivo de uma sugestão de ameaça, de solidão ou mesmo de naufrágio, devolvendo o texto à área de negatividade semântica que o sangue inicial inaugurava, e que a mulher-Medusa e-Medeia (cabelos enredantes de algas e depois de fogo, devoradora de filhos) vai a seguir subtilmente prolongar.
          
Porque é então que a paisagem se esboça concretamente em vulto feminino, a partir da sugestão terrestre dos vales e baías iniciais, abertos à penetração do mar:Plantas brancas e extáticas... (ela surge em estatismo, ou em êxtase, dissolvida nas águas que a tomaram e anularam); mas, de forma magistral, o início do verso seguinte,Lágrimas... nuvens..., converte as águas e o «cimo» anteriores (essa água penetrante e encorpada) em dor e incerteza, que a figura da mulher, desencadeada subitamente e em massiva expressão de diferenciados aspectos, durante cinco concentrados versos compõe: com a inusual menção primeira da «cabeça» (indiciada em anáfora narrativa dessa dor e incerteza: «e»), as referências seguintes ao «perfil» e aos «olhos» integrar-se-iam numa figuração canónica, não fora a mudança abrupta do verso, que a corta (agride, esquarteja), antes justamente de lhe mencionar «todo o corpo», enquanto corpo amado, e de lhe chamar os nomes da dualidade tradicional romântica antitética (prostituta/virgem, bela/feia, velha/nova, mãe/madrasta), onde aliás algumas antíteses se convertem em oxímoros (ela é bela e feia, é velha e nova), de um barroco feito, no enquadramento presente, sensibilidade modernista. Dualizada, esquartejada, amada pela diferenciação que oferece (apelo do céu, fundura abissal, fragmento terreno — «ilhéus e lodosos calhaus / que se descobrem» —, entrega ao fogo da consumpção), ela é terra e motivo de suspensão da água e do fogo (torna lodosas as águas, envolve-se de chamas), atraindo, enquanto margem de uma mudança e de uma decisão (a mudança das águas, a decisão de anular), a atenção (faminta) do sujeito e a escrita (em desvios) do poema.
          
O envolvimento moral do sujeito implica-se então na designação judicativa e afectiva da mulher (essa mulher amada), que desemboca no fogo amoroso, electivo e destruidor, que a pretende imolar. E essa consumpção apela de modo conjuntivo para a visão da máquina (que, através do «guindaste», prolonga a linha semântica do «alcatrão rolante»), que é agora agente de uma forma, já não de deslize, mas de novo de ascensão, a da vergastada punitiva e demonstradora que, aliada à metáfora do fogo, esquarteja a mulher exibindo o seu pecado e força atractiva. De «serpente» mefistofélica, de paisagem repousante e enganadora feita Ofélia letal, a mulher passa a presa: presa dessa paisagem e terra que constituem o seu «lodo», e são a primeira força da sua anulação; presa do fogo-guindaste que a exibe consumindo-a; mas presa sobretudo de outro réptil que não ela, e que o sujeito objectualiza na comutação interrogativa de si próprio com as águas (Águas?), transmudada depois em comutação de si com outra forma de réptil, também pluralizada, como as serpentes: a margem donde os crocodilos fogem mastigando. São esses crocodilos famintos, desejantes, que pisam também a terra («o chão») para a tomada definitiva do corpo depois de todas as consumpções: brilham mandíbulas / naturalmente à espera... O animal aglutina o humano e o natural, despersonalizado pela pluralização, e tornando ainda mais incerto o destino da articulação homem-mulher. Da plenitude afirmada da noite o poema passa à indefinição de um final sem fim, de uma anulação cujo empenho e ardor não significam morte. «Thanatos» limita-se a um gesto antropofágico de satisfação agressiva e «Eros», em rigor, parece resistir.
          
Partindo da fecundante noite inicial, o poeta atravessa as vicissitudes e mutações do afecto incerto e magoado para desembocar numa expectativa de anulação que não é possível preencher. António Lobo Antunes, no seu último romance, Que farei Quando Tudo arde?, constrói um capítulo («Gosto desta casa porque era onde a minha mãe mexia a sopa») sobre a glosa deste poema, a ele anexando outros do mesmo autor através dos quais acentua dois veios simbólicos dos mais ricos que tratámos, o da água(v. g. «As Meninas Velhas») e o da antropofagia amorosa (v. g. «Asas»). Nele se ocupa da questão sócio-afectiva do travesti, pelo que pensamos que a palavra poética heterogénea de Edmundo de Bettencourt, talentosa e original, alarga a sua paisagem e prolonga a expectativa criada num alimento renovado de leituras.
            
Maria Alzira Seixo
Século de Ouro. Antologia Crítica da Poesia Portuguesa do Século XX
Organização de Osvaldo Manuel Silvestre e Pedro Serra
Braga/Coimbra/Lisboa, Angelus Novus & Cotovia, 2002.
   
   
  
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Edmundo de Bettencourt

Relance sobre a Poesia de Edmundo de Bettencourt”. Herberto Helder. Em Documenta Poetica, 6 de agosto de 2009.
  
        





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