domingo, 2 de agosto de 2015

Escrevo do lado mais invisível das imagens (DANIEL FARIA)




Escrevo do lado mais invisível das imagens
Na parede de dentro da escrita e penso
Erguer à altura da visão o candeeiro
Branco da palavra com as mãos

Como a paveia atrás do segador
Vejo os pés descalços dos que correm
E escrevo para os que morrem sem nunca terem provado o pão
Grito-lhes: imaginai o que nunca tivestes nas mãos

Correi. Como o segador seguindo o segador
Numa ceifa terrestre, tombando. Digo:
Imaginai

Daniel Faria, Dos Líquidos, 2000


Penso que talvez não deva acender outra luz para poder me fixar na que escoa dos onze versos que escolhi como guia da poesia de Daniel Faria. Tateio às escuras o primeiro deles: Escrevo do lado mais invisível das imagens. As imagens, portanto, são o lugar de inscrição ou de abrangência do que é escrito e não apenas parte de seu efeito. Ao mesmo tempo, a escrita dá-se no plano menos visível da imagem. Postula-se, pois, que a imagem é anterior e maior do que a escrita e que o ponto onde se cruzam é aquele em que a imagem não se vê. Os estranhamentos são vários. A primeira parte da premissa produz uma inversão da expectativa temporal de causa-efeito e da expectativa espacial de maior-menor (imagem anterior e maior do que a escrita). A segunda parte insinua o paradoxo: o ato da escrita do sujeito dá-se onde a imagem pode não ter imagem (lado invisível do que é visível por definição). A imagem anterior à escrita e que preexiste ao ato particular do sujeito reclama, assim, a sua resolução como imagem original, primeira - como Imagem. Aqui, em termos pertinentes, como platonismo católico: Imagem de Deus, Verbo. A hipótese teológica favorece igualmente a dissolução do paradoxo insinuado: o Verbo é a Imagem que efetivamente é e se mostra além dos sentidos, ou do que apenas se apresenta à miragem dos olhos. O valor do que o sujeito escreve parece estar, pois, na transmissão da imagem que está na sua origem, o que não significa que o corpo sensível da letra que escreve esteja excluído desse valor, mas tão somente que não o esgota.
O verso seguinte novamente confirma a hipótese teológica: (Escrevo) Na parede de dentro da escrita e penso. Trata-se de escrever dentro da escrita, no que está oculto no interior do que já se encontra escrito. Assim, antes de referir a impressão sensível, a escrita na parede interna solicita reminiscência, pensamento e meditação da palavra original. Escrever, nesses termos, não equivale a descrever o visto, ou a alimentar de imagens os sentidos, mas ao ato de quem toma por objeto de reflexão precisamente o que define a imagem como segunda imagem ou participação por analogia. Vale dizer, o que a entende como hipóstase do Verbo criador, e que não se revela senão como essência do homem, ele próprio entendido como imagem da Imagem. Olhar para a palavra, aqui, é análogo a olhar para dentro de si como espelho.
Ainda, a inexistência de coincidência entre a frase sintática e a quebra do verso introduz um equívoco, uma espécie de desdobramento inesperado e vertiginoso: o sujeito não escreve diretamente na parede de dentro, mas sobre ou dentro das imagens inscritas nela. No invisível ou oculto, que é também espaço de atualização da escrita, projeta-se, continuamente, a preexistência ou a atualidade de imagens anteriores às imagens. O movimento prolífico, abissal e reflexivo que se estabelece sugere que, assim como o que se escreve supõe uma imagem anterior, e toda imagem é participação em outra, assim também o que se escreve atualiza o misterioso e invisível de que participa. O invisível interior não é apenas o lugar ou condição da escrita do sujeito, mas a propriedade mais significativa que manifesta. A oração final do verso (E penso) é também a sua síntese, e pode ser lido como intransitiva: o que escrevo, como a imagem de que escrevo, é pensamento em ato.
O terceiro verso pode ser lido então como referindo o efeito desse ato: (Penso) Erguer à altura da visão o candeeiro. Ou seja, o escrever oculto que manifesta a primeira imagem ou enigma original da palavra divina é sobretudo meditação que busca a elevação, a ascese, o rapto místico para o ponto de visão ou de iluminação que está acima ou além da imagem obscurecida dos sentidos, mera sombra que os habita. Mas um novo equívoco se introduz pelo corte operado pelo verso na sintaxe: erguer é tanto o sentido ascético do ato da meditação, quanto o imperativo ético implícito na compreensão da escrita como imagem de outra, na crença do enigma na base da representação. Nesta leitura, não apenas se medita e deseja ardentemente a iluminação, mas se está obrigado a ela. Há um campo de deveres da imagem a elevar-se além do sensível, com implicações educacionais ou edificantes.
O fim do terceiro verso ainda uma vez não coincide com o fim da frase, que perfaz o terceiro enjambement sucessivo na estrofe. Dos três, o único menos sutil, mais abrupto, é também o que obtém o efeito menos ambíguo, isto é, justamente o que existe na passagem do terceiro para o quarto verso, quando se divide o termo candeeiro de sua qualidade ou cor: (Candeeiro) Branco da palavra com as mãos. A articulação inicial deste verso propõe que se eleve à luz a meditação da palavra, o que, como se viu, implica subtraí-la à autonomia dos sentidos. Quer-se produzir a luz e a inteligência dela pela manifestação ostensiva do que se mantém oculto na palavra refletida. Mas é ainda mais do que isso: o candeeiro branco, que ilumina a palavra, também a amadurece, pela imposição das mãos. Nesta imposição, evidencia-se o aspecto eficaz da cadeia de transmissão da representação imagética. O que se escreve e medita não é apenas símbolo, mas causa simbólica eficiente da iluminação pela palavra. Trata-se de transmitir a graça da luz pela escrita escura, que, por ser enigmática, define ostensivamente o mistério da origem, obrigando à leitura espiritual, alegórica, ascética, que se produz, então, como ato de ser. A primeira estrofe, pois, assinala o dever da imagem que se obscurece para evidenciar o mistério que a sustenta. Há um especial modo de especificação desse procedimento na estruturação rítmica da estrofe, com linhas que se ajustariam facilmente em versos regulares de 9 e 10 sílabas, mas deixam de fazê-lo. Isto porque os versos recebem acréscimos ou prolongamentos, predominantemente de pés espondeus e peônios, que impedem o arredondamento do ritmo poético, e postulam o oratório, o meditativo e, em todo caso, o que não se fecha na fruição do ritmo. Os versos oferecem deliberada resistência ao seu encaixe nos padrões tradicionais. Aliás, dos sucessivos enjambements pode-se dizer o mesmo: que assinalam a determinação poética, mas, ao mesmo tempo, pelo encadeamento acumulado e ostensivo, que promovem uma espécie de prolongamento do verso em oração pausada, que produz uma quebra ou dissolução do ritmo.
O primeiro verso da segunda estrofe, Como a paveia atrás do segador, já se introduz, ambiguamente, como comparação que anuncia o que se dirá a seguir, ou então como síntese do que se escreveu antes, ainda na primeira estrofe. Quer dizer, a comparação tende a ganhar certa autonomia, ou certa polivalência, que a torna capaz de ser aplicada em qualquer direção. Nela, está claro que a imagem do segador é a figuração bíblica usual dos que fazem o anúncio do Evangelho ou da Palavra de Deus, pois a semeadura propriamente dita já está feita pelo Verbo, que renova em Cristo a aliança com os homens. No tempo escatológico posterior à sua vinda, cabe apenas ceifar os campos já brancos de trigo. A Palavra, fértil por si mesma, amadurece e prepara o ato de quem a colhe, como a Imagem que dá lugar e ato de ser à escrita. Mas a posição de quem escreve ou colhe, aqui, é a de quem está atrás, como quem chega por último ao campo ou à vigília, para usar os termos do Eclesiástico (33, 16): «Quanto a mim, sou o último a ficar em vigília, como quem cata espigas (como o que ajunta as bagas) atrás dos vindimadores». Trata-se, pois, da posição última, por isso humilde, mas também a de afirmação da disposição de entregar-se sem mais demora à vindima e encher profusamente o lagar.
Vejo os pés descalços dos que correm. Do lugar humilde no campo terrestre dos homens, aquele que medita ou vê com o coração pode enxergar os que correm descalços nele, pobres em meio aos terrenos abundantes de colheita. Já no terceiro verso da segunda estrofe, após a apresentação das conhecidas imagens escriturais da colheita nos dois anteriores, recolhe-se enfim a imagem da escrita desenvolvida nos dois primeiros versos da primeira estrofe: E escrevo para os que morrem sem nunca terem provado o pão. Tais parecem ser tanto os que não possuem bens materiais, sentido reforçado pela referência aos pés descalços do verso anterior, quanto os que não colheram o pão espiritual da semeadura divina, segundo as linhas de ponderação admitidas nas imagens bíblicas tradicionais. O que se quer tornar visível pela escrita ostensiva do mistério tem a finalidade salvífica de falar ou mover aos que não possuem os bens da terra, nem os do céu. No primeiro caso, acentua-se a oração aos últimos e deserdados; no segundo, o tom de desolação profunda, própria da condição de exílio em que se encontram todos os que vivem fora da comunhão divina. No primeiro caso, o lugar humilde que é condição e grau da ascese tem conseqüências acentuadamente sociais; no segundo, sem exclusão da hipótese anterior, elas são genericamente missionárias, mas, sobretudo, escatológicas.
Grito-lhes: imaginai o que nunca tivestes nas mãos - o verso que fecha a estrofe eleva a freqüência de grito ou advertência dramática a voz correlata da escrita e meditação do mistério. A ordem é ainda a de produzir a imagem do que nunca foi visível, como a riqueza e o sabor do pão jamais experimentados. O instrumento dessa produção não é, mais uma vez, o que olha para o que é sensível apenas e se manifesta fora, mas o que se aplica a descobrir o que está na natureza criada do homem: a palavra plantada dentro dele, com suficiente força e carisma para salvá-lo. Descobrir o infuso, isto é, imaginar a Imagem: eis o anúncio no alto do grito. A meditação, tornada também predicação, solicita a imaginação e a lembrança da imagem já semeada, mas obscurecida.
Correi. Como o segador seguindo o segador - ou seja, a corrida dos descalços, antes cega, movida pela roda mortal, tem agora direção e sentido conduzidos pela imaginação de Deus no homem, por meio da palavra invisível que o figura. Assim meditada, descobre-se um dinamismo da palavra que tende para sua realização. Ela é eficaz quando religada ao mistério que conserva como imagem na sombra. A corrida perdida reorienta-se, aqui, como imitação do que colhe a semente madura do primeiro semeador. Numa ceifa terrestre, tombando. Digo: - e novamente, como nos enjambements sucessivos da primeira estrofe, dispõe-se o lugar da colheita no campo mortal da vida humana. O surpreendente não está aí, mas na estupenda revelação de que o trabalho do segador se faz tombando, de que é a sua queda que fertiliza o campo. Certamente, o tombar é análogo da semente que cai na terra boa e frutifica, mas é-o também da morte que interrompe os trabalhos e fadigas do homem indigente: «Não temas a sentença da morte: lembra-te dos que te precederam e dos que te seguirão» (Ecl. 41, 3). Sentença de morte que é beneplácito de Deus, por meio da morte expiatória e exemplar na Paixão.
Imaginai - eis aqui refigurada na morte do corpo fatigado, a força pura da palavra cuja melhor imagem é a da aniquilação. É sobretudo na imaginação da morte que repousa a escrita da palavra invisível. Deus é o Senhor da morte; Cristo, o primogênito entre os mortos. Segui-lo, como se prescreve na fórmula paulina aqui vigente, é morrer diariamente, como num noviciado da Paixão.

Alcir Pécora, Século de Ouro. Antologia Crítica da Poesia Portuguesa do Século XX. Organização de Osvaldo Manuel Silvestre e Pedro Serra. Braga/Coimbra/Lisboa, Angelus Novus & Cotovia, 2002.








O GIROSCÓPIO
Vítor Moura

Daniel Faria (1971-1999) coleccionava pedras. Trazia-as da praia ou dos montes e guardava-as em caixinhas sobre a estante. Também coleccionava palavras. Recolhia-as na Bíblia, em Dante, ou da obra de Luiza Neto Jorge e dispunha-as, meticulosamente, em poemas. A primeira leitura dos seus livros parece ser, assim, a visita de um mostruário e apela à memória e ao inevitável levantamento erudito das "referências ". Mas esta espécie de hermenêutica, por legítima que se apresente, não parece totalmente adequada à sobriedade deste escasso corpus. Porque esta é também a exposição de um trabalho paciente, insistente, metódico, de depuração formal, numa espécie de missão auto-imposta de angariação e fixação de uma gramática firme. A firmeza requerida para comunicar duas coisas: o que significa a construção da casa, e a crença num nome que, porque não é, em primeiro lugar, mais que um nome, tem que ser dito e repetido numa "palavra incessante": "Cresço na clareira de um homem que é uma palavra".
Duas bandejas a sopesar na balança, portanto. Em primeiro lugar - porque é o trabalho de um jovem poeta - , o fascínio pela colecção de influências que ia buscar a muitos lados e com as quais - diz-nos a sua biografia - o autor se envolvia de uma forma ávida, a única forma, enfim, através da qual se ganha a influência, a mais antiga das tarefas da poesia, i.e. , a de reconhecer que as ideias não têm dono nem origem e que é bem aquele que as sabe explorar e desenvolver, que as coloca na sua própria estante, por assim dizer, como se fosse pela primeira vez. Há muitos momentos na poesia de Daniel Faria que fazem acreditar no lustro de estreia de uma articulação nova. Entre temas que reconhecemos (o silêncio das casas e a "voz das telhas inclinadas" é um tema lido em Luiza Neto Jorge, por exemplo), vamo-nos apercebendo da recorrência de algo que se vai manifestando como esteio de um texto novo. É aqui que a sua reflexão poética sobre a "casa" cola ao aspecto estritamente existencial uma dimensão autobibliográfica. Aqui, a casa é, em primeiro lugar, texto, "verbo", para usar a sua expressão. Se o poeta constrói uma obra e se essa construção é realmente radical, i.e., se começa pelos alicerces, pode ler-se nela, quando jovem, a azáfama de várias empreitadas. A escolha dos materiais, a escolha do terreno, a orientação do plano, o trabalho de terraplanagem e o início da escavação. Tudo isso está aqui. Em segundo lugar - porque é o trabalho de um monge - , está a persistência de um nome que não se sabe onde se situa. Dentro de casa? Fora de casa? Será um dos materiais de construção? Será a clareira onde se erguem os andaimes ou o caminho que conduz a casa? Será aquilo em função do qual a casa, a janela da cozinha e a varanda se vão orientando? Em todo o caso, este nome deveria surgir como aquilo que não se constrói, como fundamento da própria construção. E é aí que as coisas se complicam.
O significado da poesia de Daniel Faria está na referência a estas duas construções, uma física, a casa - que também inclui a articulação dos sons e o aspecto das palavras sobre o papel -, a outra conceptual, o nome, e no modo como as duas se cruzam, se opõem ou se exigem uma à outra. Primeiro, a indagação sobre o que constitui uma casa, no sentido do sítio familiar, mas ao mesmo tempo no sentido de algo que se vai fazendo a partir de peças trazidas por outros. Trata-se da referência mais concreta da vida dos homens, aquela que circunscreve o nosso habitat prioritário e em relação ao qual tudo o resto é classificado por analogia (os outros sítios estão "mais ou menos perto de casa" ou sentimo-nos "mais ou menos em casa" em certos sítios). Para um poeta, em particular, a casa é o sítio onde primeiro se aprende o significado das palavras e onde se vão fazendo as primeiras experiências de apropriação / transformação verbal daquilo que nos vão ensinando.
Mas, simultaneamente, invoca-se, de dentro dessa mesma casa - como o pedreiro que olha para a obra feita - , o "centro" que parece sustentar todo o edifício, que garante que ele não se abata sobre as nossas cabeças: "Tu é que és o que edifica / Tu constróis mil vezes", como se a casa não se pudesse construir a si mesma. Este centro é o único interlocutor desta poesia e a sua invocação constante fornece-lhe a consistência de uma crença, à força, precisamente, de nomear a falta: "Sei que existes e multiplicarás / A tua falta, / Somarei a tua ausência à minha escuta / e tu redobrarás a minha vida."
Ou seja, na representação da casa situa-se a ordem do mais concreto, da presença plena, a primeira referência, aquela que quase não carece de invocação porque está sempre lá e à qual, no fim da jornada, podemos sempre regressar. Na invocação do centro construtor nomeia-se essa ausência e essa falta, isso que é preciso ser dito para que não desapareça. Quando sentimos que perdemos alguma coisa - embora, neste caso, seja antes a consciência de que se está a perder uma coisa - tendemos a procurá-la, a revolver gavetas, estantes e sofás, ou a parar para tentar perceber onde ela poderá estar. Nessas alturas, olhamos para a arrumação da casa como se nos colocássemos de fora e, se a busca se torna demorada, começamos a ficar desesperados pois o que outrora nos era tão familiar torna-se agora hostil, como se escondesse aquilo que buscamos. As chaves de casa que procuramos tornam-se mais importantes do que a própria casa e podem mesmo, num acesso de revolta contra as coisas, levar-nos a sair e a bater com a porta.
Na apresentação da dupla hélice da casa e do nome, Daniel Faria tem a consciência de estar a preparar o caminho para uma linguagem demiúrgica capaz de propor imagens inesperadas e, justamente porque inesperadas, de uma intensidade certeira: "Escrevo do lado mais invisível das imagens / Na parede de dentro da escrita e penso / Erguer à altura da visão o candeeiro / Branco da palavra com as mãos (...) Digo: / Imaginai". É aqui que assenta a invulgar desenvoltura desta escrita: os materiais plenamente legíveis, as referências bem demarcadas, a nomeação não adjectivada dos objectos, tudo é colocado em regime de aceleração pelo trabalho poético. A linguagem que nos é familiar, aquela que também é, em certo sentido, nossa casa, porque plenamente presente (nela já nem pensamos), é posta a girar. E com ela, à maneira de um dervixe dançante (a forma mais integral de "oração"), é o próprio poeta que se vê roda(n)do. A este "redemoinho", talvez como sua causa, junta-se, então, a palavra que faltava, "amor", definido, justamente, por Dante, como um "estado de locomoção": "vivo enclausurado na agilidade de um animal nascido / correndo ao lado dele, correndo para ele - era assim que eu queria que fosse a linguagem veloz (…) Sei que estou em viagem na palavra que se move"1; "Queria tanto amar, rodear-te, se soubesses como queria amar-te tanto"2; "Amo-te como um planeta em rotação difusa"3. A sugestão de rotação torna-se constante na obra. O filho é "o carrossel à volta da mãe" e ambos constituem uma "roleta em voltas sucessivas"4 como o tambor de um revólver. A cristologia discreta do autor invoca nesta roleta, evidentemente, a estreia da geração do divino pelo humano. O seu virtuosismo é extraordinariamente eficaz a desenhar a bizarra troca de papéis, pela qual o humano se volve tutor do divino. Para o tema concreto que nos ocupa aqui, recorda-se neste poema que todo o movimento circular gera forças centrífugas e que do revólver sairá um disparo: "O carrossel tem um cavalo que galopa / O menino tem as rédeas e espera / A idade da despedida", isto é, o abandono da casa porque, desta vez, a casa é a casa da mãe. Para regressar? A sequência de poemas "Para encontrar o golpe no sono" prossegue esta inversão de papéis e tem a força de uma pietà, e a ironia que advém de ser agora a vez de o humano assistir à morte do divino. A ligação entre o amor como impulso (aquilo também que nos faz regressar a casa), a casa e as palavras que a compõem, repetir-se-á. O amor pelo outro está no "íman que cria para nós um lugar junto dele / Um lugar dentro dele" e essa é a "placa giratória do amor".
Em Dos Líquidos, vai-se tornando cada vez mais claro que essa voluta desejada é um estado nómada, uma homelessness, ou seja, a alternativa da casa que ainda se encontra em projecto, a casa feita de palavras - a voz própria que se vai tecendo a partir de materiais alheios - mas também a casa como abrigo real: "mantém-me mendigo / desviando-me de mim (…) / Conduz-me / para a esquerda e para a direita, roda-me sempre / para a saída / Deixa-me ser a porta no eixo / Posta para trás pela mão de quem entra"5. O "redemoinho", o "amor", o "revólver" é pois identificado com o interlocutor da poesia e o seu "centro", com o nome: "És o sopro, o redemoinho no barro"6.
A casa é, então, progressivamente referida através da imagem do aquário, do "regaço aquático"7 que se dinamita8 para que se possa encontrar "um peso humano que não se afunda", de alguém "que parte o pão".
Deparamo-nos, portanto e no mínimo, com uma tensão a animar esta poesia. Sente-se a nostalgia da "casa" que se pretende recriar ou cujo caminho de regresso se procura, reencontrar os papéis com os recados da mãe, subir as persianas, regar as plantas9. Mas deseja-se, contemporaneamente, o disparo do "revólver" que acaba por lançar para fora de qualquer casa. A existência da tensão é consequente: se é de um motor que esta poesia trata, e se ela própria é um "trabalho de amor" – tantas vezes oferecido aos amigos em papelinhos passados por baixo da porta -, então, como qualquer corrente eléctrica, a locomoção, e o seu próprio movimento enquanto poesia, deve /resultar da aproximação entre polaridades contrárias: a "casa" e o "nome", por exemplo. Existirá algum ponto de equilíbrio? E se existir, onde o encontraremos?
Sair ou não de casa, eis a questão. E se sairmos, como haveremos de regressar? Seremos capazes de encontrar o caminho de regresso? Será que sentiremos, enfim, a necessidade de regressar? Onde está, afinal, o "centro"? Naquilo que construímos como nosso lugar para habitar ou naquilo que, em último caso, destrói qualquer morada?
Heraclito terá dito, certa vez, a forasteiros que o visitavam, espantados por ele os receber na cozinha, que" os deuses vivem entre os fogões" . Essa ligação entre a origem do sentido das coisas - nomeadamente, o sentido proposicional - e o cheiro da cozinha, da vinha, o estalar dos soalhos da casa no Verão, a magnólia que vemos da janela do quarto, é uma hipótese muito forte que atravessa toda a obra de Daniel Faria. A tal ponto que em Homens que são como lugares mal situados se pergunta: "Se o fogo destruir a casa / E apagar a cal que caia a casa / Onde irei escrever o teu nome?". A casa e o nome requerem-se então, pois, só há volteio onde antes havia estabilidade. Mas o nome de Daniel Faria não mora. Nem nele se pode morar. Se no nome- redemoinho encontrássemos refúgio - santuário – faríamos dele uma outra casa quando, no fundo, ele também é o "caminho desconhecido para casa". Da próxima vez que, nele, perdêssemos as chaves, veríamos, de novo, que novas fendas se abrem sempre naquilo que nos é próprio. Se o centro se tornasse familiar, desapareceria a necessidade de criar poesia desta maneira. Se dispensássemos a exterioridade permanente daquilo que nos vê de fora, "apagando a luz do quarto cada noite", deixaríamos de compreender a importância da magnólia como um "abrigo fora de casa".
Esta é, portanto, uma poesia da partida mas também do regresso, pois esses são os dois acontecimentos que marcam, fenomenologicamente, a nossa consciência do "dentro" e do "fora", da consciência da casa, e da insistência do nome-nómada. Tal nunca é tão claro como no poema dedicado a Charles de Foucauld, o monge anacoreta que esperou à entrada da sua tenda a morte trazida pelos tuaregues: "Pensa que morrerás / No chão / À tua porta. / E nunca mais acabarás / De regressar". Correndo o risco da redundância, sublinhe-se o facto de a "morte" constituir o outro nome do centro, a outra face do interlocutor, e que também ela é responsável pela edificação da casa pois é, em parte, em função dela que o abrigo é alçado: para que nos proteja daquilo que nos pode matar. Esta é a mais ousada declinação da imagem recorrente do "redemoinho", o "redemoinho" colocado à entrada-saída de casa, no portal, na ombreira, à soleira da porta. Para "regressar" (tal como, evidentemente, para partir) é preciso que esteja desenhada, em algum lugar, a sombra dessa fronteira, pois regressar é, justamente, aspirar a essa transição. Mas a imagem de quem morre à porta de casa, a cabeça por terra e sob o limiar, o corpo meio dentro meio fora, oferece-nos uma variação significativa do "regresso", numa daquelas transições tão densas e inesperadas que podem mesmo alterar para sempre a nossa compreensão de um conceito. E aqui repete-se a própria natureza da poesia, a palavra como autopoiésis, como se fosse possível remontar à vitalidade primitiva e muda a partir da qual toda uma linguagem pode ser (re)composta: "Conserto a palavra com todos os sentidos em silêncio / Restauro-a / Dou-lhe um som para que ela fale por dentro / Ilumino-a".
Como ilumina então Daniel Faria o som da palavra "regresso"? Que se pede a Charles de Foucauld com este "nunca mais parar de regressar"? Para recolher aquilo que se vai propondo, neste como noutros poemas, agrada-me a sugestão de uma daquelas portas giratórias de hotel, que vai rodando, ora mais lenta ora mais rápida, para tornar, ao mesmo tempo, estanques e permeáveis os espaços que separa / une. Porque é exactamente esse movimento de voluta que Daniel Faria imprime ao inquérito aberto sobre a relação entre a casa e o centro excêntrico do sentido, e que se condensa nesta reflexão poética obsessiva sobre o regresso. O que significa regressar a algo que lembramos como o mesmo que nós, a nossa casa? Experiência de pensamento: imagina morrer à porta de casa. Imagina que ficarás para sempre na transição, nem a sensação dos ventos do deserto nem o aconchego das almofadas e das lonas que protegem. Agora imagina que é exactamente isso que te basta. Nem a ausência nem o conforto mas tão só o próprio culminar do regresso, o momento em que se mete a chave à porta. Ou o momento em que se rodasse para sempre o primeiro compartimento da porta giratória. A transição permanente. A revolução permanente.
Outro poema refere aquela espécie de homens que "se sentam à saída" e a quem é inútil pedir para entrar "porque a sua força é para fora". Também esses se encontram sobre a passagem pois, ainda que se encontrem de saída, deverão acabar por acreditar "no mistério que inclina / os homens para dentro". Este mistério materializa-se, mais tarde, na imagem do "homem que nos levava por um caminho desconhecido para casa / E que partia o pão". O tema do regresso assume, assim, uma ressonância cristológica. Regressar a casa pela mão daquele que conhece o caminho mas que é, também, aquele que nos rodou para a saída. Será essa a sua única declinação? A suite "Para o instrumento difícil do silêncio" acaba por descrever esse caminhante como "a chuva sobre as casas / A inclinação dos telhados". Em suma, é aquilo que cria em nós a consciência da própria casa - a que resulta da iminência do perigo de morte, por exemplo - mas que, exactamente por ser essa condição de consciência, não deve ser, ele mesmo, tomado como abrigo, ou como casa. Segui-lo, seguir esse indicar é o mesmo que um "nunca mais parar de regressar". Se justapusermos esta imagem à imagem da detenção sobre o próprio momento da chegada (Foucauld), começamos a ver tornar-se mais nítido o projecto de Daniel Faria: marcar o momento de uma terceira dimensão entre o "estar fora" e o "situar-se dentro", assinalar,  por assim dizer, um "momento agnóstico" em cada percurso de regresso a casa.
Na verdade, será difícil separar a reflexão poética sobre o regresso a casa por Daniel Faria da sua contingência biográfica, isto é, da sua opção pela vida religiosa. Nesse sentido, seria mais provável a descrição de duas "casas": a da origem e aquela que se procura, a mais bem situada, com trepadeiras, rumor de águas livres e a sombra não podada da magnólia, a casa que se identifica com o próprio centro. Contudo, a casa é só uma. E o centro, a certa altura, é mesmo descrito como "Verbo / tão inteiro que se fez espelho", mediação, o apelo ao regresso a nós mesmos. Foi para ouvir esse apelo que, afinal, saímos de casa. Talvez mais ainda: o apelo ao regresso é, afinal, aquilo que procuramos quando sentimos a falta de algo. É o redemoinho.

Os textos fundadores do ocidente desenrolam-se, precisamente, sob a esperança de um regresso. Ulisses a caminho de Ítaca, o de Homero e o de Joyce. Antígona, Medeia, Ifigénia, Elektra, os ícones da reflexão ocidental sobre a justiça, são mulheres lançadas para fora de casa e que lutarão, até ao fim, pelo regresso. Édipo, cujo regresso transforma a própria casa em algo de inacessível para sempre. Israel depois da queda do templo, estruturando-se como nação num estado de regresso permanente, e já antes, Moisés, que codifica uma religião a partir dessa mesma terceira dimensão, no meio caminho, sabendo que jamais alcançará aquilo para que encaminha o seu povo (será próprio dos profetas o "nunca mais parar de regressar"). Cristo em Emaús, revisto como um peregrino em apoteose cansada, regressando a casa depois de muitos anos de ausência. Os desorientados heróis de Shakespeare, à procura do trilho perdido, Hamlet, Lear, Coriolano. O cinema de Nicholas Ray e o trenó de Orson Welles. Será talvez genético o nosso interesse por este movimento de retorno. Ao insistir sobre ele, Daniel Faria está próximo, ele próprio, de uma espécie de regresso a "casa".

A sensação de regresso é inerente à experiência da leitura da poesia de Daniel Faria. Reconhecemos as referências, sabemos o quanto elas marcam a origem do nosso discurso sobre as coisas. Guiados por elas, na articulação que delas faz este autor improvável, somos também postos numa soleira para repetirmos, uma e outra vez, a experiência de estar a chegar. Por detrás desta porta giratória está algo que recordamos como familiar mas que já não chegaremos a ver. É aqui, neste instante preciso, que melhor entenderemos o que significa o conceito de "casa". É também neste passo que melhor entendemos o que poderia ser o centro do sentido. Entretanto, recorda-se o conceito de "sagrado" como vestígio de algo antigo mas também como desassossego, isto é, como segundo pólo suposto para podermos entender o que significa esta situação de estar, incessantemente, a regressar.

Ensaio de Vítor Moura sobre NOVA POESIA PORTUGUESA para a revista RELÂMPAGO n.º 12.  4|2003

_______________
1. Homens que são como lugares mal situados, V. N. Gaia: Fundação Manuel Leão, 2002, p.20.
2. Dos Líquidos, V. N. Gaia: Fundação Manuel Leão, 2000, p .57.
3. Dos Líquidos, p .49.
4. Homens..., p.11.
5. Dos Líquidos, p .54.
6. Homens…, p.73.
7. Dos Líquidos, p.43.
8. Cf. Homens..., p.25.
9. Cf. Dos Líquidos, p.119



RELÂMPAGO N.º 12.  4|2003
Director deste Número: Fernando Pinto do Amaral.
Conselho Editorial: Carlos Mendes de Sousa, Gastão Cruz, Paulo Teixeira.

sábado, 1 de agosto de 2015

Reencontrar o leitor (Rosa Maria Martelo)

RELÂMPAGO N.º 12  4|2003
Director deste Número: Fernando Pinto do Amaral.
Conselho Editorial: Carlos Mendes de Sousa, Gastão Cruz, Paulo Teixeira.




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Rosa Maria Martelo


(...)
O que faz a poesia?
Remir por certo tipo de palavras

certo tipo de coisas certo tipo
de asas flap flap flap certo tipo
de razões desesperadas.

Luís Quintais, Angst

(...)
Que o poema promete e compromete,
é filho e como filho obriga a tanto:

ser um filho emprestado a guerra alheia,
outra bomba a estalar revoluções
na perigosa ternura de outro olhar.

Ana Luísa Amaral, Minha Senhora de Quê


Poucos tópicos terão sido tão recorrentemente evocados nas últimas décadas do século XX como a descrição benjaminiana do Angelus Novus, de Paul Klee, nas Teses sobre a Filosofia da História. Retomada ou glosada em inúmeras formas de arte e de reflexão crítica - do mesmo modo que o "Angelus Novus" tem servido frequentemente de motivo ou de designação para obras e actividades de variada índole -, a parábola do Anjo da História, proposta por Benjamin, parece constituir uma das melhores e mais produtivas sínteses da sensibilidade e do pensamento contemporâneos.
É um facto sem dúvida sintomático do questionamento que hoje envolve ideias como as de progresso ou de emancipação, quando articuladas com as possibilidades de se aprender, ou não, com a História, mas trata-se certamente também de um sintoma da vulgarização de uma versão-de-mundo que, no início do século, parecia confinar-se nas fronteiras de certas formas agudas de consciencialização, sobretudo visíveis em práticas estéticas de âmbito restrito, situáveis na tradição da Modernidade estética.
A perplexidade e a impotência com que o Anjo da História contempla as ruínas do passado, sem que lhe seja possível intervir sobre a paisagem desolada que se estende diante dos seus olhos espantados, enquanto é empurrado, de costas, pela tempestade que o leva a caminho do futuro, são, de resto, aproximáveis de um outro tema das reflexões benjaminianas nos finais da década de 30 - a descrição que Baudelaire fez de si mesmo numa conhecida passagem de Fusées:
Perdu dans ce vilain monde, coudoyé par les foules, je suis comme un homme lassé dont I'oeil ne voit en arrière, dans les années profondes, que désabusement et amertume, et devant lui qu'un orage où rien de neuf n'est contenu, ni enseignement, ni douleur: (1975, I: 667)

Para Benjamin, esta auto-representação do poeta, com a qual a descrição do Anjo da História mantém, aliás, significativas afinidades, era reveladora do preço pago por Baudelaire para aceder à sensação de modernidade: "a destruição da aura na experiência vivida do choque" (Benjamin, 2000, III: 390), tido por inevitável a partir do momento em que a imaginação do artista se aproximava do presente e, por isso mesmo, se cruzava também com a alienação e a barbárie decorrentes do "progresso". No entanto, hoje, as mesmas palavras e, acima delas, a experiência vivencial que traduzem não sugeririam uma situação tão incomum. Mais ainda do que o tópico do "Angelus Novus", elas produziriam facilmente um efeito de "déjà vu", porquanto, de muitas maneiras, a solidão experimentada pelo poeta "moderno", no meio da multidão urbana, bem como o olhar niilista e não projectivo que lança à sua volta são agora reconhecíveis em inúmeras descrições do nosso mundo habitual. Em meados da década de 90, Marc Augé observava que a "surmodernité" era isto mesmo: a transformação da experiência dos artistas da modernidade num destino comum e mais prosaico (Augé, 1995: 97-98).
Tal como é caracterizada por Marc Augé, a vulgarização existencial do que teria começado por corresponder a um processo de consciencialização circunscrito a uma elite artística, que, compreensivelmente, por isso mesmo se afastava do público, pode ajudar-nos a compreender tanto a permanência, ao longo do século XX, das temáticas desenvolvidas pela Modernidade estética quanto a progressiva dissipação desse aristocratismo que Baudelaire considerava inerente à experiência do "belo" (Baudelaire, 1976, II: 686) ou, mais concretamente, ao reconhecimento da "beleza misteriosa" envolvida na valorização estética do "transitório", do "fugitivo" e do "contingente", para recordar os termos com que o poeta francês definiu a "Modernité" (idem: 695).
Embora de âmbito muito geral, e com implicações que, tanto do ponto de vista cronológico como em termos de poética, vão muito para além do âmbito deste breve estudo, estas considerações, e as sugestões de trabalho que contêm, podem servir-nos de eixo condutor para uma leitura da poesia portuguesa mais recente e levar-nos a um melhor entendimento das razões pelas quais esta tem desenvolvido uma relação de cumplicidade com o leitor que a Modernidade estética não pudera senão excluir, tal como necessariamente excluía a possibilidade de explorar qualquer sugestão de realismo ou de sinceridade. Situemo-nos então, para começar, no século XXI, tanto mais que, assim como os desígnios estéticos do século XX se fizeram anunciar ainda no século anterior, é de crer que também o século XXI tenha começado já a desenhar-se perante nós há mais tempo do que os parcos anos que, num plano estritamente cronológico, lhe dão existência. E, embora o reconhecimento desta possibilidade não nos confira quaisquer capacidades especiais de antecipação, tem pelo menos a vantagem de alertar para a necessidade hermenêutica de não encerrar desde já a década de 90 nas balizas cronológicas do século XX.
Muito recentemente, Manuel de Freitas reuniu num volume antológico (ou colectivo - as duas possibilidades são reconhecidas pelo organizador) uma selecção de poemas de nove autores contemporâneos. Poetas sem Qualidades é o título do livro, publicado em 2002, e tanto o título como o Prefácio merecem particular atenção. "O Tempo dos Puetas" [sic], assim se denomina o prefácio em causa, apresenta-se como um texto de recorte programático, facto por si só digno de nota, na medida em que, provavelmente - e mesmo aí num registo diferente, porque estritamente pessoal - , seria necessário recuar à intervenção crítica e à poesia de Joaquim Manuel Magalhães nas décadas de 70/80 para encontrar, na poesia portuguesa do último quartel do século XX, o mesmo grau de explicitação de um programa poético. Construído como uma espécie de defesa da despoetização da poesia e, nessa medida, como defesa de uma poesia sem qualidades poéticas - tendo o termo "qualidades" aqui um sentido essencialmente retórico - o Prefácio de Poetas sem Qualidades desenvolve uma estratégia argumentativa extremamente interessante.
Um dos motivos de interesse diz respeito ao modo como Manuel de Freitas recorda precisamente um tópico fundador da Modernidade estética: a descrição baudelairiana da perda da auréola pelo poeta no meio da velocidade (e da ferocidade) urbana. O poeta que perde a aura, para usar um termo de Benjamin, é aquele que assumidamente mergulha na História e na circunstancialidade do presente; todavia, se Baudelaire parece identificar-se com este novo estatuto de poeta, tal não exclui que, como faz notar Matei Calinescu, este autor seja "o exemplo quase perfeito da alienação do artista em relação à sociedade e à cultura oficial da sua época" (1999: 60). Na verdade, atribuindo à poesia uma capacidade de somatização estrutural que lhe permite relacionar-se com o mundo, fora de qualquer lógica de representação, ·Baudelaire é também aquele que, em virtude da "cedência de iniciativa às palavras", dá um primeiro sinal do futuro "desaparecimento elocutório do poeta", para recordar a célebre formulação de Mallarmé (1945: 366); ou seja, é aquele que anuncia a emergência do lirismo abstracto que irá constituir uma dominante da Modernidade.
Ora, é precisamente reportando-se a Baudelaire e à figura do poeta sem aura - e valorizando uma das dimensões fundadoras da Modernidade estética, a "do predomínio do temporal sobre o eterno" (Freitas, 2002: 11) - que Manuel de Freitas toma posição contra as possíveis remanescências de outra das dimensões dessa mesma tradição de Modernidade. Sobre os poetas antologiados, diz o antologiador:
Estes poetas não são muita coisa. Não são, por exemplo, ourives de bairro, artesãos tardo-mallarmeanos, culturalizadores do poema digestivo, parafraseadores de luxo, limadores das arestas que a vida deveras tem. Podemos, pelo contrário, encontrar em todos eles um sentido agónico (discretíssimo, por vezes) e sinais evidentes de perplexidade, inquietação ou escárnio perante o tempo e o mundo em que escrevem. Não serão, de facto, poetas muito retóricos (embora à retórica, de todo, não se possa fugir), mas manifestam força - ou admirável fraqueza - onde outros apenas conseguem ter forma ou uma estrutura anémica. Comunicam, em suma (...). (Freitas, 2002: 14)

Ao mesmo tempo que reitera a relação do poeta com a História e com o presente, Manuel de Freitas recusa qualquer entendimento aristocrático da poesia, e é nesse contexto que valoriza uma escrita poética que, embora tematize tópicos da tradição da Modernidade pós-baudelairiana, designadamente o sentido agónico e a descrença perante ideias como as de emancipação e de progresso, o faz de acordo com uma lógica outra, que é a de comunicar uma experiência partilhável pelo leitor - o que, de facto, só é possível porque essa experiência se transformou, entretanto, num destino comum e, nessa medida, se tornou reconhecível para o leitor enquanto mundo habitual.
É uma proposta que, não sendo inédita, apresenta com clareza programática nova uma consciência que se foi agudizando no último quartel do século XX e que implicou uma inflexão efectivamente inovadora na poesia contemporânea. Com efeito, é neste desejo de comunicar, agora acentuado por Manuel de Freitas como extensivo a um conjunto de poetas, que radica uma importante renovação do lirismo, no último quartel do século XX, frequentemente articulável com a valorização de uma relação mais imediata, ou mais legível, com a experiência e, por consequência, capaz de uma maior cumplicidade com o leitor. Em Portugal, a exploração deste tipo de opções poéticas tem sido situada na sequência do fim do regime do Estado Novo (como em Espanha o tem sido por relação com o fim do Franquismo), mas poderá ser compreendida de modo mais amplo em relação com o final do período do pós-guerra. Outro modo de enquadramento desta questão passaria ainda pela autonomização do conceito de pós-modernismo, conceito de que me limito a recordar o sentido fundador, a nível do debate literário, ou seja, o que lhe foi atribuído em 1959-60 por Irving Howe e Harry Levin, ao constatarem que a literatura da sua época denotava, quando confrontada com obras como as de Yeats, Eliot, Pound e Joyce, uma menor capacidade de inovação, acentuando, aliás nostalgicamente, essa diferença. Como é sabido, é justamente essa diferença que virá a ser apresentada de uma forma positiva nos anos 60 por críticos como Leslie Fiedler e Susan Sontag, insistindo estes na importância de um princípio de diversidade como fundamental para a caracterização da literatura contemporânea, a qual poria em prática "uma pluralidade de linguagens, modelos e processos, não lado a lado, mas, preferencialmente de modo sincrético" (cf. W. Welsch e M. Sandbothe, in Fokkema; Berthens, 1997: 78).
Embora esta última perspectiva seja susceptível de discussão a vários níveis, por agora interessa-me apenas sublinhar que a exploração de novas formas de lirismo e o desenvolvimento de uma poesia da experiência parecem surgir, de facto, em articulação com a desvalorização da ideia de ruptura como condição de evolução estética, e também com uma consciência de crise das utopias e com o reconhecimento da erosão de versões-de-mundo ontologicamente fortes, às quais o recolhimento do sujeito nos horizontes mais circunscritos da individualização da experiência poderia constituir uma possível resposta. Por outro lado, a revalorização da enunciação lírica pode ainda, neste contexto, ser articulada com o facto de estarmos perante um momento de forte questionamento da condição de autonomia do poema, tal como fora formulada no contexto da Modernidade estética e, particularmente pelo Simbolismo e pelo Modernismo e, em certa medida, posteriormente recuperada pelas neo-vanguardas da década de 60.
De resto, reportando-se à poesia espanhola posterior a 1975, Miguel d'Ors reconhece que este tipo de evolução seria mesmo observável na inflexão presente na obra de autores já reconhecidos, que teriam evoluído no sentido de moderar "o esteticismo, o formalismo, o hermetismo, o culturalismo, o irracionalismo e o experimentalismo dos seus inícios, e tenderiam para a recuperação do eu, dos materiais autobiográficos, dos sentimentos e dos «temas eternos» e ainda para uma certa simplificação estilística" (d'Ors, 1994: 10-11).1 Trata-se de uma opinião que reflecte uma leitura razoavelmente consensual. José Luís García Martín propõe mesmo o conceito de "poesia figurativa", criado por analogia com a expressão "pintura figurativa" (tomando por referência o binómio figurativo/abstracto), para caracterizar uma poesia que teria repudiado a tradição das vanguardas (García Martín, 1992: 211), isto é, teria abdicado da tradição da ruptura (na acepção em que esta é utilizada por Octávio Paz para definir a Modernidade estética) em favor da recuperação do sentido, num processo em que críticos e poetas têm vindo a acentuar uma nova capacidade de reencontro com o leitor, designadamente com um leitor não necessariamente especialista ou especializado. 2
Garcia Martín sublinha a emergência de uma poética do contar, em lugar do cantar (idem: 213), na qual são valorizados o coloquialismo, o intimismo e a narratividade. E avança uma relação sugestiva: os poetas das últimas décadas do século XX estariam nos antípodas da tese mallarmeana segundo a qual os poemas se fazem com palavras, e não com ideias, fazendo remontar a poesia a algo de contável, algo que, de algum modo, se situaria também antes do poema, como uma experiência para qual o poema viesse essencialmente remeter (idem: 214). Daí decorreria o tom falado, a emergência de personagens e mesmo de um registo autobiográfico, visíveis na poesia das últimas décadas, embora este último decorra - é importante dizê-lo - dos termos em que são estabelecidos os contratos de leitura e não seja necessariamente detectável em função de um maior ou menor conhecimento que o leitor possa ter da vida do autor.
Note-se que não é muito diferente a perspectiva de Jean-Michel Maulpoix, quando situa a renovação do lirismo na poesia francesa nos inícios da década de 1980:
Le lyrisme revalorise aLors La notion «d'expérience poétique" contre l'affirmation telquelienne de Denis Roche selon laquelle «toute révolution ne peut être que grammaticale ou syntaxique". Ce retour du/au lyrisme se situe pour une part dans un déplacement de l'attention de la page blanche (ou de La table d'écriture) vers le monde. (…) Il implique l'affirmation renouvelée d'une interdépendance étroite entre l'écriture et la vie. (Maulpoix, 1998: 120)

Com efeito, no último quartel do século XX, o lirismo tende a configurar mais nitidamente o sujeito, e a presença da subjectividade surge não apenas enquanto rasto de um processo enunciativo entretanto tornado inacessível ao leitor, mas enquanto presença de um sujeito de enunciação susceptível de ser entendido como actor ou agente num processo discursivo - e não como produto;, ou resultante, ou efeito desse processo. Retomando o conceito de "poesia figurativa", proposto por José Luis García Martín, poderia dizer-se que o lirismo abstracto dominante na tradição da Modernidade pós-baudelairiana tende agora a dar lugar à dominância de um lirismo figurativo. Trata-se, na verdade, de uma revalorização da enunciação lírica (daí as marcas do processo enunciativo estarem mais presentes no enunciado); por isso se poderia falar de um registo modal de teor neo-romântico, desde que ressalvando ser este usado por poetas que, vindos depois da Modernidade, de modo algum pretendem recuperar a aura do poeta romântico, como o indica o tom menor que habitualmente preferem.
Embora a prevalência do lirismo figurativo se manifeste de forma mais coesa nos poetas surgidos na década de 90, e sobretudo naqueles que começaram a publicar já em meados dessa década,3 parece inegável ser esta uma linha de evolução que, na poesia portuguesa, remonta à década de 70 e, muito particularmente, à intervenção crítica e à poesia então publicada por Joaquim Manuel Magalhães. De resto, certos traços que, apesar de não abrangerem a generalidade dos poetas surgidos ao longo da década de 90, são particularmente legíveis na poesia dos últimos anos - a exploração lírica do fragmento narrativo em articulação com a valorização da experiência individual e da memória, a articulação do poema como experiência emocional do mundo, a importância de que se reveste a valorização do circunstancial, do particular e do privado - não são exactamente novos, antes adquirindo um grau de recorrência que lhes confere uma maior legibilidade. Isso mesmo nos é lembrado por Joaquim Manuel Magalhães, ao retomar, já em 2001, o que escrevera a propósito da poesia de António Osório e depois reescrevera no poema "Princípio", de Os Dias, Pequenos Charcos (1981):
(…)
Voltar ao real, sim. Como o disse
quando outros se refugiavam
na linguagem da linguagem.

Nessa altura
mudaram quase todos de registo.
Mas sempre se esqueceram de que lhe chamei
desencanto.
E que tudo nos poemas é suposto
excepto quem os escreve.
Embora dentro das palavras
eu o recebesse em encantamento,
num mundo límpido, à fraude,
à ferrugem, à fuligem, à agressão.
Um canto de euforia, com abatimento
no seu algar; na cilada do enforcador.

Mas nunca, isso não,
o abstracto da referencialidade
só a si, como retardados teóricos
ainda hoje manejam.
(...)
(Magalhães, 2001: 69)

Embora Manuel Gusmão tenha inteiramente razão em encarar com reservas a possibilidade de uma aproximação linear entre a poesia mais recente e a obra de Joaquim Manuel Magalhães, lembrando o modo como esta última "associa a «um saber prosódico muito nítido» uma «vontade de violência»" (in Queirós; Leme, 29 de Março de 2003: 14), que seriam menos visíveis nos poetas mais novos, parece ser inegável o papel desempenhado por este poeta e crítico no processo de reavaliação dos caminhos da poesia portuguesa a partir da década de 70. Apesar da insistência em "que fique claro que não quer [...] ser porta-voz seja do que for" (1981: 260), Joaquim Manuel Magalhães põe em causa, desde muito cedo, as dominantes da poesia neo-vanguardista da década de 60 e sintetiza com grande clareza os novos caminhos que irão determinar o devir da poesia portuguesa:
(…) ultrapassagem do medo sintáctico do discursivo, do medo lírico do confessionalismo e da rasteira limitação, em nome de um ouvidinho musical ou de um olhinho experimental, das explosões declarativas. Contra a necessária, na altura, rarefacção do sentimento, do enunciado e do imaginário, surge na poesia mais recente um ímpeto renovado de se contar, de assumir, por máscara ou directamente, um discurso cuja tensão é menos verbal do que explicitamente emocional. (Idem: 258)

Valorizar a tensão emocional do poema, em detrimento de uma tensão essencialmente verbal, irá implicar uma revalorização da legibilidade do próprio processo de enunciação lírica no enunciado. Daí que Nuno Júdice caracterize os anos 70 como aqueles em que "[o] jogo já não é o da sinceridade dentro do fingimento, como em Pessoa, mas o do fingimento dentro da sinceridade" (1992: 160). Significativamente, um dos aspectos que se torna mais nítido ao longo da década de 90 reside no modo como este tipo de poética também trabalha um efeito de não coincidência entre poesia e poema - sendo que a poesia se constrói também sobre a relação entre subjectividade e experiência - embora sem deixar de sugerir que este é efectivamente um efeito discursivo, uma espécie de jogo ficcional. Algures no espaço incerto da relação entre o poema e uma certa circunstancialidade reconhecível como tal pelo leitor, a poesia valoriza o próprio processo da enunciação lírica e pode aproximar-se facilmente de registos pseudo-autobiográficos, do monólogo e do monólogo dramático. Todavia, o leitor também é levado a compreender que, como resumiu ainda Joaquim Manuel Magalhães, "[o] que é pensado é efeito de sinceridade como verosimilhança (daí a noção de artifício, que tudo em arte tem de ser para ser arte) e nunca como verdade" (1999: 268). Essa é, de resto, uma das razões pelas quais a circunstancialidade não pode ser confundida com o contexto de produção do poema.
Ora o que podemos observar é que a circunstancialidade claramente se acentua em grande parte da poesia do último quartel do século XX, e muito particularmente na década de 90, de tal maneira que tem sido frequente falar-se de realismo ou de novo realismo a seu propósito. Como sublinha Jean-Michel Maulpoix, o lirismo define-se menos pela expressão de um estremecimento íntimo do que pela errância nas periferias do sujeito (1998: 125), no entanto, se tal pode implicar formas de circunstancialidade que actualmente tendem a produzir uma espécie de efeito de realismo, não implicará necessaria mente qualquer projecção autobiográfica. E mesmo se o lirismo dos finais do século XX joga recorrentemente com essa possibilidade, em termos de contrato de leitura, dificilmente o leitor poderá excluir a hipótese de estar perante um ar tifício discursivo. Outra coisa será o modo como a poesia orientada para a experiência e, mais precisamente, a enunciação lírica supõem sempre a configuração de um sujeito na vida e não simplesmente um sujeito de dicção poética.
Há uma razoável diversidade de percursos na poesia mais recente - que pode assumir vertentes mais elegíacas ou mais preocupadas com a denúncia do quotidiano contemporâneo; mais epifânicas, como acontece com a poesia de Daniel Faria, ou mais orientadas para a valorização do "gesto mínimo" (Miranda, 1997: 31) e das "ocasiões mínimas" (Mexia, 1999: 53); notoriamente herdeiras de uma tradição poética com a qual estabelecem diálogos mais ou menos irónicos, como é perceptível na obra de Ana Luísa Amaral, que também desenvolve uma espessura discursiva que outros preferem assumidamente evitar. No entanto, parece inegável que, na sua generalidade, os poetas surgidos na década de 90 são claramente avessos a desenvolver um registo lírico de matriz abstracta, ou a aceitar uma concepção autotélica da linguagem poética. O movimento geral desta poesia é o de uma aproximação mais emocional e mais circunstancial ao que chamamos "mundo".
Num ensaio relativo aos anos 70/80, em Um Século de Poesia, Fernando Pinto do Amaral valorizava na poesia desses dois decénios o que definiu como "o regresso ao sentido":
Dito isto, é bom frisar que a poesia portuguesa das últimas décadas se foi construindo como um regresso ao sentido. Com isto quero dizer três coisas: o retorno a processos de escrita apoiados num fio condutor; isto é, menos voltados para malabarismos verbais do que para a simples afirmação de linhas de sentido (o significado tenta impor-se de novo ao significante); em segundo lugar, a retoma de um lirismo assumido sem complexos e de uma emocionalidade relativamente explícita, o que nos dá a ilusão de um discurso mais sentido; e finalmente a exploração de áreas semânticas ligadas à fisicidade, ao uso vivido de sensações materiais e directas a que podemos associar os nossos (muito mais do que cinco) sentidos. Tudo isto a par da redescoberta de um fôlego discursivo que se serve de uma sintaxe menos rebuscada e mais fiel, por isso mesmo, ao fluir dos ritmos do corpo ou da alma: os versos deixam de estar centrados sobre si mesmos e tentam exprimir seja o que for, recorrendo com frequência a um tom da linguagem oral. Daí outra mudança, a que se chamaria um retorno à narratividade, um "regresso às histórias simples" (AI Berto) que alguns poetas vão aproveitando para se reaproximarem do real. (Amaral, 1988: 161)

Se pensarmos nos muitos efeitos de rarefacção implicados neste regresso - rarefacção do sentido e da experiência dos sentidos através da tematização de um mundo evanescente e de contornos pouco definidos, rarefacção do discurso, que facilmente se suspende num estreito momento narrativo, distância reflexiva inscrita pela ironia e por uma certa derisão, deveremos reconhecer que as novas formas de lirismo não pretendem ignorar nem as problemáticas nem as temáticas da Modernidade, embora procurem reequacioná-las de um modo discursivamente diferente e sobretudo em função de outro tipo de contratos de leitura, pelos quais se reaproximam do leitor (e de um leitor não necessariamente erudito, já que uma das características da poesia mais recente passa pela existência de processos de sobrecodificação que permitem explorar vários níveis de leitura).
*
Limitei-me a observar algumas tendências que me parecem particularmente representativas na poesia contemporânea, sem me deter nas especificidades dos percursos poéticos dos diferentes autores que lhes dão forma.4 O meu objectivo primordial era o de mostrar que o retomar de uma poética transitiva, de modos diferentes por poetas por vezes tão diferentes entre si, radica num quadro de mudança, em processo desde os anos 70 e particularmente visível nos anos 90, no qual a opção pela enunciação lírica parece deter agora a função que Mallarmé atribuía à sintaxe: a de ser uma (a) garantia. E porquê? Em primeiro lugar, porque as versões-de-mundo sobre as quais esta poesia trabalha não deixariam grande margem para outras estratégias que não a do recolhimento nas fronteiras de uma experiência do mundo assumidamente filtrada pela subjectividade. Christian Prigent dá-nos uma boa síntese do tipo de mundo com o qual a poesia contemporânea se confronta, e ao qual procura contrapor-se enquanto forma outra de discurso e de representação:
Quelles sont les formes de représentation du monde qui affluent désormais devant nous: la fugacité du spectaculaire, la précipitation cynique ou frivole qui fait sevanouir le réel dans le bric-à-brac enjoué de la trash-TV ou dans la tautologie obscene des reality-shows.
Quelle que soit notre soumission désabusée au charme de ces représentations, quelle que soit notre volonté de nous y asservir, nous savons bien que tout cela est faux, que ça n'est que du toc, un théâtre d'ombres qui n'épuisent en rien notre sensation du réel et ne nous en donnent aucune intelligence que celle d'une mythologie pour nouveaux primitifs. (...) Et les temps que nous y vivons ne s'alignent jamais comme naus le montrent les scenarios chromos qui sont censés nous en donner symboliquement la sensation. (Prigent, 1995: 21 -22)

Em segundo lugar, porque este reconhecimento de que toda a realidade, mesmo nas suas representações mais comuns, tende a ocultar o real é precisamente o que permite a possibilidade do estabelecimento de um contrato de leitura de tipo realista, não de acordo com uma lógica positivista, naturalmente, mas no estrito sentido de se constituir sobre a pressuposição do reconhecimento, por parte do leitor, do seu mundo habitual. Se pensarmos neste termos, não nos é difícil compreender que a revalorização da enunciação lírica sob uma perspectiva figurativa permite refazer, em termos mais imediatos, uma relação entre poesia e comunicação. Ao desenvolver novas formas de cumplicidade discursiva com o leitor, e com o mundo do leitor, a poesia continua, assim, a assumir a mesma capacidade de resistência enquanto forma que Adorno observa na arte da Modernidade. Mas, num mundo onde a exploração da intransitividade dos discursos se tornou tão quotidiana quanto insuportável, a forma procurada é necessariamente outra, e a questão essencial parece ser, agora, a de inventar uma linguagem verdadeiramente "limpa". E comunicante.

Referências bibliográficas
Amaral, Fernando Pinto do, "O regresso ao sentido", Um Século de Poesia (1888-1998) - A Phala, edição especial, Lisboa, Assírio & Alvim, 1988.
Baudelaire, Charles, Oeuvres, I e II, Paris, Gallimard, coI. Bibliotheque de la Pléiade, 1975 e 1976.
Benjamin, Walter, Oeuvres, III, Paris, Gallimard, 2000 (1972).
Calinescu, Matei, Cinco Faces da Modernidade, Lisboa, Vega, 1999.
D'Ors, Miguel, En Busca del Público Perdido, Aproximación a la última poesia espanola joven (1975-1993), Granada, Impredisur, 1994.
Fokkema, Douwe e Berthens, Hans (org.) - International Post-modernism, Theory and Literary Practice, John Benjamins Publishing Company Amsterdam/ Philadelphia, 1997.
Freitas, Manuel de (org.), Poetas sem Qualidades, Lisboa, Averno, 2002.
Garcia Martín, José Luís, La Poesia Figurativa, Crónica parcial de quince años de poesía española, Sevilha, Renacimiento, 1992.
Júdice, Nuno, O Processo Poético, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1992.
Mallarmé, Stéphane, Oeuvres Completes , Paris, Gallimard, coI. Bibliothèque de la Pléiade, 1945.
Magalhães, Joaquim Manuel, Os Dois Crepúsculos, Sobre poesia portuguesa actual e outras crónicas, Lisboa, A Regra do Jogo, 1981.
Magalhães, Joaquim Manuel, Rima Pobre, Lisboa, Presença, 1999.
Magalhães, Joaquim Manuel, Alta Noite em Alta Fraga, Lisboa, Relógio d'Água, 2001.
Mexia, Pedro, Duplo Império, s.l., ed. do autor, 1999.
Miranda, Paulo José, A voz que nos Trai, Lisboa, Cotovia, 1997.
Maulpoix, Jean-Michel, La Poésie Comme l'Amour, s.l., Mercure de France, 1998.
Prigent, Christian, À Quoi Bon Encore des Poètes?, Paris, P.O.L., 1996.
Queirós, Luís Miguel; Leme, Carlos Câmara, "Uma nova geração de poetas portugueses", Público, supl. Mil Folhas, 29 de Março de 2003.

___________________
1. Tradução minha.
2. É uma posição que, no contexto português, tem sido claramente defendida por Joaquim Manuel Magalhães. Veja-se, por exemplo, o seguinte excerto do poema "Sangramento" (Magalhães, 2001: 21):
(…)
Melhor seria que não me lessem nunca
os que por costume lêem poesia.
Muito além deles conseguir falar
ao que chega a casa e prefere o álcool,
a música de acaso, a sombra de alguém
com o silêncio das situações ajustadas.

Não ser lido por quem lê. Somente
pelos que procuram qualquer coisa
rugosa e rápida a caminho de uma revista
onde fotografaram todo o ludíbrio da felicidade.
Que um poema meu lhes pudesse entregar,
ademais da morte,
um alívio igual ao de atirar os sapatos
que tanto apertam os pés desencaminhados.
(...)
3. Num artigo recente, assinado por Luís Miguel Queirós e Carlos Câmara Leme (Público , suplemento MilFolhas, 29 de março de 2003), procurava-se testar a "hipótese de estarmos a assistir, sensivelmente desde meados dos anos 90, ao aparecimento de um conjunto de poetas que, com tudo o que os distingue uns dos outros, corporizam uma geração, no sentido forte do termo". Significativamente, a quase totalidade dos poetas referenciados tinha nascido depois de 1965, tendo, na generalidade dos casos, começado a publicar apenas na segunda metade da década.

4. Tal não exclui, no entanto, a valorização das particularidades desses percursos, alguns dos quais procurei anteriormente descrever em "Anos 90", in Maria de Fátima Marinho e Óscar Lopes (org.), História da Literatura Portuguesa, vol. 7, Lisboa, Alfa, 2002.



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