quinta-feira, 15 de fevereiro de 2018

Hora da Poesia - José Carreiro

Na Hora da Poesia (2018-02-14), Conceição Lima, Duarte Luz e Rui Diniz dão voz a poemas de Chuva de Época, de José Maria de Aguiar Carreiro:

Conceição Lima entrevista José Maria de Aguiar Carreiro:



ENTREVISTA

Conceição Lima - Curta biografia. Desde quando a Poesia? A poesia foi fruto de influência de algo ou alguém ou impôs-se? O que o empurra para a escrita poética? Acha que a poesia é inerte ou traz missão? Quais os poetas que poderão ter influenciado os seus gostos na escrita poética?

José Carreiro - Nasci numa freguesia do concelho de Nordeste da ilha de São Miguel.
Aos 15 anos, sem pedir autorização aos meus pais, preenchi a pré-inscrição para o ingresso no ensino secundário na cidade situada na outra ponta da ilha. O meu pai acedeu à determinação e passei a viver durante a semana num quarto alugado em Ponta Delgada, numa casa partilhada. Os fins-de-semana passava-os em família.
Depois veio o ensino superior na Universidade de Lisboa. Conto com uma bolsa de estudo do governo regional e com o apoio possível do meu pai. Poderia cursar na ilha, mas queria ampliar os horizontes.
O Fernando Pessoa estudado no 12.º ano é determinante na descoberta da poesia. Enquanto adolescente, identificava-me com a dualidade interior do poeta.
É no décimo segundo ano que começo a escrever um diário, onde incluía alguns versos entre os derrames e reflexões sobre o dia. Os cadernos foram-se acumulando. Em 1990, já na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, faço uma pequena seleção de poemas, a maior parte abandonada na nova seleção de 1992.
No início dos anos 90, participo, em Lisboa, num I Encontro de Jovens Escritores, promovido pela Sociedade Portuguesa de Autores. Creio que, dos presentes, poucos tinham publicado alguma coisa, talvez uns três ou quatro, se tanto. Nas jornadas deram-nos conselhos, um dos quais foi não termos pressa em publicarmos.
Nesse Encontro, tivemos oportunidade de conviver com alguns autores: lembro-me de jantar com a Natália Correia e de irmos à discoteca com o Al Berto. Belos momentos.
Entretanto, a seleção de 1992 foi sendo ampliada, cortada e recortada, trabalhada até à data da publicação, em 2005, já em Ponta Delgada, para onde fui lecionar após ter terminado o curso.
Quanto a leituras, sou “um sensível e agradecido leitor”, como disse uma vez Jorge Luis Borges.  Outros poetas formaram o meu gosto pela poesia: Camilo Pessanha, Sophia Andresen, Jorge de Sena, Herberto Helder, Joaquim Manuel Magalhães são alguns dos nomes.
Chuva de Época faz parte do pasmo inicial perante a vida.
Move-me para a escrita a estilização do real: uma frase, uma sonoridade, uma pintura, uma escultura, um elemento arquitetónico, uma cena ou uma coreografia, enfim, o mundo mediado pela arte. Por exemplo, uma fotografia de Sebastião Salgado pode funcionar, para mim, como uma arte de desbloqueio.
Aprecio o apontamento caricatural, o alegórico, a metáfora. E o nonsense.
junho de 2017


2018-02-14

quarta-feira, 14 de fevereiro de 2018

GROTTA #2

A Revista literária Grotta – Arquipélago de Escritores é editada pela Publiçor 
sob chancela Letras Lavadas. Direção de Nuno Costa Santos. Dezembro de 2017

No seu número 2 a revista Grotta aprofunda a sua vocação para reunir quem escreve no território açoriano e fora dele. Volta a juntar um respeito pela tradição literária, uma atenção à pluralidade de vozes e à comunicação com outros lugares.
O dossiê dedicado à Literatura de Porto Alegre é uma forma de celebrar, hoje, a nossa ancestral ligação com a capital do Rio Grande do Sul, com necessidade de uma boa actualização, lugar fundamental para os Açores e os açorianos.

Há uma longa entrevista com Eduíno de Jesus, que partilha com os leitores a sua vida literária e a forma como vê o mundo, em respostas pensadas e cuidadas. E inspiradoras, sempre.
Continua-se a fazer conviver respirações de tempos diferentes. Textos sobre Natália Correia de autores premiados (Carolina Bettencourt). Uma peça, de Victor Rui Dores, sobre o rico suplementarismo literário açoriano, narrativas na primeira pessoa de personagens de séries televisivas que aterram no espaço da ilha e contos ao desafio, escritos por novos autores. Poemas de nomes como Renata Correia Botelho e Rui Machado e slam poetry de Carla Veríssimo.
Urbano Bettencourt, num texto de referência aqui incluído, Escritas insulares - fragmento e derivas, trata da «condição insular como uma oscilação entre a permanência e a errância, entre o auto-centramento e a deriva que leva à descoberta». A prosa começa com uma citação de Michelet: «A Inglaterra é uma ilha». Uma ilha para a qual viajamos e que pisamos com vagar através da poesia de Ken Smith, traduzida por Hugo Pinto Santos (autor, relembre-se, da tradução dos poemas irlandeses do primeiro número da grotta).
Este número está amplamente ilustrado por dois artistas plásticos - Paula Mota e João Decq - que valorizam muitíssimo a edição, transportando-a para um território que pretende ocupar: o do diálogo entre artes, o da conversa entre linguagens diferentes e complementares. 
A revista Grotta é dirigida por Nuno Costa Santos e conta com coordenação editorial de Diogo Ourique. A edição é da Letras Lavadas.

"Sinopse" in https://www.wook.pt/livro/revista-grotta-n-2-nuno-costa-santos/21291958

***

 
a menos que pudéssemos
soletrar esta noite
desditosa
segredada
que nos range
entre os dedos e o papel

a ver se assim
decomposta
lhe encontramos
uma sílaba quente
qualquer coisa tónica
que nos acorde.

Renata Correia Botelho
Grotta n.º 2, Letras Lavadas, dezembro 2017. ISBN: 9772184166001


***

Nuno Costa Santos: "Há várias formas de se ser açoriano"

Nuno Costa Santos fotografado na Casa dos Açores, em Lisboa  |  PAULO SPRANGER/GLOBALIMAGENS

Chegou o número dois da Grotta, a "revista-livro" açoriana. O diretor Nuno Costa Santos encara os Açores como "lugar de encontros" e está confiante nos novos autores que germinam na revista literária que, esta semana, é lançada em Ponta Delgada.

Ele é escritor e guionista mas a convocatória para esta entrevista foi como diretor da Grotta, revista literária de timbre açoriano. O segundo número é lançado esta semana em Ponta Delgada, na Solmar, uma livraria cúmplice. Nuno Costa Santos não assina nenhum artigo nesta edição, mas na primeira deixou uma ponta solta em Monóculo. Saiu para comprar um pijama (faltava-lhe a inspiração para as primeiras linhas do romance que queria escrever) e descobriu nos jornais que "Lisboa é a melhor cidade portuguesa para se viver pela terceira vez consecutiva" - soube depois, segundo um ranking da Monocle. Seguiu caminho e deu de caras com a Casa Ferrador fechada. Para sempre. Após 84 anos de atividade. Sem pijama (e sem conforto), resolveu mandar um email à Monocle: "O mundo precisa de saber do fecho do Ferrador". Ainda não recebeu resposta, mas ele não tem pressa. Não surpreende. A Grotta - o nome alude, também, a um fenómeno geológico das ilhas - é, claramente, feita com vagar, contrariando o "tempo tecnológico". Ali aportam autores de vários paradeiros, idades e sensibilidades. O arquipélago como semente e marca, de quem está e de quem não está.

O que é a Grotta - não é "apenas" uma revista de literatura açoriana pois não?
A Grotta é uma revista literária que, assumindo a sua raiz açoriana, é aberta a todas as formas literárias de várias partes do mundo, desde que passem no nosso sempre subjetivo critério de pertinência editorial e de qualidade. Não temos medo de assumir o regional e até achamos que num universo que quer ser à força toda "global" e "cosmopolita" é importante atender ao local e ao regional, sem complexos. A palavra grota, que vem da designação que nos Açores se dá às ribeiras que, a partir de certa altitude, se tornam em regos longos e fundos, no território nacional só é usada no arquipélago. Sabemos que também é usada no Brasil. Como tem um duplo t - no nosso título, sob sugestão do vulcanólogo Victor-Hugo Forjaz - remete para uma formulação arcaica do termo e para a sua origem italiana. Entre os Açores e a Itália, com passagem por todo o lado. O subtítulo é Arquipélago de Escritores, que começa por ser o arquipélago açoriano, onde há, desde tempos imemoriais, muita gente que escreve e publica, mas acaba por se constituir como a família, espalhada por todo o lado, de escribas.
Entre os autores que colaboraram nas duas primeiras edições, há autores nascidos nos Açores. Mas outros com origens continentais. Na sua biografia diz-se "açoriano nascido em Lisboa". A Grotta vem, também, questionar o que é isso de ser açoriano?
Os Açores são um lugar de encontros muitos e penso que essa vocação marcará ainda mais o arquipélago nos próximos anos. Nesse sentido a Grotta é uma revista que alberga romeiros de todas as proveniências. Não direi que há um questionamento mas sim um aprofundamento de uma certa maneira. No primeiro número tivemos um diálogo com a Irlanda, através da edição em português de poemas de autores irlandeses contemporâneos. Neste número o diálogo mais evidente é com os escritores que escreveram sobre a cidade de Porto Alegre, que aqui é apresentada com diferentes temperaturas e vozes. No meu caso, essa nota representa um preciosismo biográfico. Os meus pais, açorianos, estavam a viver em Lisboa quando nasci. E depois voltaram à sua terra. Mas, sim, para nós ser açoriano é uma condição que não é exclusiva daqueles que nasceram no território das ilhas e que aí vivem. Há várias formas de se ser açoriano, cada vez mais evidentes num mundo de vasta circulação.
Encontramos novas e mais antigas gerações de escritores em vários registos - prosa, poesia, ensaio, fotografia, ilustração. São trabalhos, inéditos, que esperavam uma brecha para se mostrar?
Sim, são trabalhos que encontram aqui uma oportunidade. Este é um espaço que se abre e os pode acolher. A maior parte dos trabalhos é inédita. As pessoas têm escrito e ilustrado propositadamente para a Grotta. Também já publicámos trabalhos - no caso, ensaios fotográficos - que já estavam prontos antes da ideia de se fazer a revista. Foram convocados e aqui ganharam um sentido outro.
Victor Rui Dores, faz neste número uma breve resenha do "suplementarismo cultural dos Açores", em que saúda uma nova geração de autores empenhada na construção de um espaço cultural novo - geração essa "com mais imaginação que memória, gente que passa mais tempo nas redes sociais do que nas tertúlias dos cafés". Gente "que ainda não escreveu as suas obras maiores e de quem muito há ainda a esperar". Como vê esta nova geração?
Vejo esta nova geração como um grupo que tem o dever de estar à altura daquilo que as gerações anteriores fizeram: criar um corpo consistente de obras, diversas e representativas do esforço de uma época literária. Há que também retratar o que são os Açores hoje na sua multiplicidade, nos seus contrastes. Para isso é preciso trabalhar, pesquisar histórias, ir fazer investigação. E ler. É preciso desligar mais vezes o facebook para perseguir um exercício de disciplina diária na escrita - só esse é que poderá trazer resultados consistentes. A Grotta gostava de contribuir para que esse trabalho se faça de forma mais visível e com mais vozes.
Os Açores têm na sua biografia alguns nomes grandes da literatura portuguesa. Os autores que chegam são reféns ou herdeiros?
Uma mistura. São reféns quando estão demasiado presos à influência dos nomes do cânone. E herdeiros quando já se libertaram e, assumindo a herança, têm o seu sangue próprio. Depois há a questão, que deve ser considerada, de uma parte da comunidade de leitores e observadores ser um pouco dada à comparação fácil. É humano. É como querer comparar à força o neto ainda a mudar de voz ao avô que morreu com uma aura de qualidades. Nesses casos o melhor é, para quem ouve comparações escusadas, concentrar a atenção na sinfonia dos pássaros das ilhas.
Lançou em 2014 a Transeatlântico (Companhia das Ilhas). O que aconteceu a esta publicação?
A Transeatlântico ficou em pousio depois da primeira experiência. E com o descanso da Transeatlântico resolveu avançar-se com a Grotta, publicação de outro catálogo sediado nos Açores.
Em que consiste Açores Arquipélago de escritores, que acontecerá entre 26 e 28 de abril de 2018?
Sobre o evento, ainda não posso adiantar pormenores porque ainda há uma série de assuntos por definir. Mas posso dizer que será um gesto promovido pela Grotta e que, como encontro, manterá as características fundamentais do espírito da revista. Acolhimento açoriano, arquipélago de escritores, respeito pela tradição literária, comunicação com outras partes do mundo, diálogo entre artes.
Quando sairá a Grota n.º 3?
No final de 2018 teremos o número 3. Até lá é questão de ir tendo ideias e ir convocando os autores para enviarem textos. Leva tempo porque a Grotta é uma revista-livro com bastante conteúdo e muitos pormenores.
A Monocle respondeu-lhe ao email sobre o encerramento da Ferrador?
Ainda não respondeu. Deve estar preocupada em fazer mais um ranking. Mas eu espero. Um antigo cliente do Ferrador não tem qualquer tipo de pressa gourmet.

Marina Almeida, Diário de Notícias, 2018-02-11
https://www.dn.pt/artes/interior/nuno-costa-santos-ha-varias-formas-de-se-ser-acoriano-9115889.html

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GROTTA . Uma adenda

(o que eu poderia ter dito ontem, se a gripe não me tivesse impedido de participar, na Livraria Solmar, na apresentação da revista Grotta). 

1. Quem conhece uma grota sabe que deve evitar a todo o custo cair numa: pelos estragos corporais, por vezes irremediáveis, a que se sujeita e pela dificuldade em ser de lá removido. Constrangimentos da geologia.
Por mim, caí muito bem nesta «Grotta» que o Nuno Costa Santos & companheiros vêm talhando desde há 2 anos. E não tenho qualquer pressa em sair.
Encontro aqui um exemplo daquela «encruzilhada» de que falava Carl Sagan e que prolonga a melhor tradição das revistas e suplementos literários açorianos. 
No final dos anos de 1930, um intelectual açoriano propunha que se implementasse na imprensa local suplementos e páginas literárias, só preenchidos com autores açorianos…A primeira parte da proposição era excelente; a segunda uma idiotice pegada, demonstrativa de que ele não aprendera nada de nada com a imprensa açoriana, que desde os seus inícios, no século XIX, sempre abriu um grande espaço à literatura, cruzando línguas e culturas, géneros e discursos heterogéneos, em diálogo com os autores locais. 

2. O meu texto incluído neste n.º 2 de «Grotta» nasceu no aeroporto de Guarulhos, na longa tarde do dia 8 de Novembro de 2016 e numa conversa com o Nuno Costa Santos, enquanto mais a norte no continente um estafermo juntava os votos que o levariam à Casa Branca. 
Em Porto Alegre, o Nuno tinha-me oferecido o n.º 1 da Grotta, eu já lera alguma parte dela (em particular o texto de Pedro Santo-Tirso), e por isso, quando ele me convidou a participar no número seguinte, pensei logo no que queria escrever (embora sem saber ainda os contornos precisos da coisa). Depois, ele trazia consigo o n.º 122 da revista «piauí» com uma reportagem/ensaio sobre Naipaul, e achei então que teria de escrever a partir dos «outros», os que sempre se mantiveram fiéis ao espaço insular, sem abdicarem do seu lugar no mundo. Das Caraíbas aos Açores e ao Mediterrâneo, há um pensamento insular em que as diferenças acabam por pôr em relevo as afinidades e as confluências. 

2.1 O resultado disso foi um texto intitulado «Escritas insulares: fragmentos e derivas». É um breve ensaio político-literário, dado que no interior da literatura se questiona a realidade histórica, concreta, da ilha e o(s) pensamento(s) sobre ela, o modo como ela ousa pensar-se (ou, por negação, se demite de pensar-se, à espera que outros o façam por ela). Tudo isso no pressuposto de que um «pensamento insular» tem de ser gerado e gerido a partir do seu interior ou segundo um ponto de vista adoptado a partir do interior da ilha. O resto é paisagem e macaquice para embasbacar incautos & desprevenidos. 

2.2 Para sossego das almas embaraçadas: «Escritas insulares: fragmentos e derivas» não é um trecho de catecismo ou de cartilha, por isso não obriga a nada nem ninguém. É apenas uma análise construída a partir de dados, que neste caso são textos. E na literatura como noutras coisas, supõe-se, os dados devem prevalecer sobre os esquemas prévios e o preconceito.
Urbano Bettencourt, Facebook, 2018-02-16

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Grotta # 1

quarta-feira, 7 de fevereiro de 2018

Um sensível e agradecido leitor - Jorge Luis Borges

Jorge Luis Borges, Biblioteca Pessoal
Ao longo do tempo, a nossa memória vai formando uma biblioteca díspar, feita de livros, ou de páginas, cuja leitura foi uma felicidade para nós e que gostaríamos de partilhar. Os textos dessa biblioteca íntima não são forçosamente famosos. A razão é clara. Os professores, que são quem dispensa a fama, interessam-se menos pela beleza do que pelos vaivéns e pelas datas da literatura e pela prolixa análise de livros que se escreveram para essa análise, não para o prazer do leitor. 
A série que prologo e que já entrevejo quer dar esse prazer. Não escolherei os títulos em função dos meus hábitos literários, de uma determinada tradição, de uma determinada escola, de tal país ou de tal época. 
Que outros se gabem dos livros que lhes foi dado escrever; eu gabo-me daqueles que me foi dado ler”, disse eu uma vez. Não sei se sou um bom escritor; penso ser um excelente leitor ou, em todo o caso, um sensível e agradecido leitor.
Desejo que esta biblioteca seja tão diversa como a não saciada curiosidade que me induziu, e continua a induzir-me, à exploração de tantas linguagens e de tantas literaturas. Sei que o romance não é menos artificial do que a alegoria ou a ópera, mas incluirei romances porque também eles entraram na minha vida. Esta série de livros heterogéneos é, repito, uma biblioteca de preferências. 
María Kodama e eu errámos pelo globo da terra e da água. Chegámos ao Texas e ao Japão, a Genebra, a Tebas e, agora para juntar os textos que foram essenciais para nós, percorreremos as galerias e os palácios da memória, como escreveu Santo Agostinho.
Um livro é uma coisa entre as coisas, um volume perdido entre os volumes que povoam o indiferente Universo, até que encontra o seu leitor, o homem destinado aos seus símbolos. Acontece então a emoção singular chamada beleza, esse mistério belo que nem a psicologia nem a retórica decifram. “A rosa é sem porquê”, disse Angelus Silésius; séculos depois Whistler declararia “A arte acontece”. 
Oxalá que sejas o leitor que este livro aguardava.

Jorge Luis Borges, “Prólogo” in Biblioteca Pessoal, Edição Quetzal, 2014



domingo, 21 de janeiro de 2018

Companhia das Ilhas

A Companhia das Ilhas iniciou a sua actividade de edição de livros em 5 de Maio de 2012.
É uma editora livreira independente.
Os autores, os “géneros” e as colecções são escolhas de gosto pessoal. Articulam-se com a opção de editar “géneros” negligenciados por grande parte das editoras portuguesas – poesia, teatro, ensaio, conto. Os preços justos são uma opção política editorial, não um estratagema comercial (o que implicaria a subalternização de textos e de autores). Esta política agiliza a edição e passa ao lado das máquinas (demasiado) bem oleadas do mainstream.
A Companhia das Ilhas é bem capaz de ser ilha: ilha movente que deita âncora aqui e ali: livrarias (reais e virtuais), formas várias de distribuição (mas atenta às perversidades do sistema e sempre pronta a zarpar para outras geografias).
A Companhia das Ilhas é bem capaz de ser ilha: ilha movente que deita âncora aqui e ali: livrarias (reais e virtuais), formas várias de distribuição (mas atenta às perversidades do sistema e sempre pronta a zarpar para outras geografias).

https://www.facebook.com/companhiadasilhas.lda.9/

http://companhiadasilhas.pt/





Companhia das Ilhas: a editora quer por o mundo a ler os Açores

A Companhia das Ilhas, uma editora da ilha do Pico, vai ser responsável por um dos lançamentos mais importantes de 2018: as obras completas de Vitorino Nemésio. O primeiro volume sai em abril.


Em maio de 2012, Carlos Alberto Machado decidiu fazer algo improvável: fundar uma editora na ilha do Pico, nos Açores, especializada em poesia e teatro, géneros geralmente negligenciados por quem edita livros. Talvez houvesse quem achasse que a Companhia das Ilhas estava condenada ao fracasso, mas a verdade é que, passados quase seis anos, a editora está maior do que nunca: em 2018, tenciona fazer chegar ao mercado livreiro cerca de 30 títulos, mais 18 do que os seis inicialmente lançados em 2012. Entre estes, encontra-se um dos grandes projetos da Companhia das Ilhas desde que abriu portas: a publicação em 16 volumes das obras completas de Vitorino Nemésio, considerado um dos grandes escritores portugueses do século XX.
Vitorino Nemésio nasceu a 19 de dezembro de 1901 na Praia da Vitória, na ilha Terceira, e morreu a 20 de fevereiro de 1978, em Lisboa, onde passou uma boa parte da sua vida (foi na capital que se licenciou em Filologia Românica). Romancista, poeta, cronista e académico, deixou uma extensa obra publicada da qual pouca coisa se encontra disponível no mercado. A maioria das obras editadas pela Imprensa Nacional-Casa da Moeda (INCM) já estão esgotadas, e as que não estão são muito difíceis de encontrar. “Aqui fala-se muito do Vitorino Nemésio mas não há livros”, frisou Carlos Alberto Machado. A única exceção parece ser Mau Tempo no Canal, uma das grandes obras da literatura portuguesa do século passado.
Publicado originalmente em 1944, o romance foi reeditado pela Relógio d’Água em 2004, encontrando-se também disponível numa edição de bolso, mais recente, da BIS (uma chancela do Grupo Leya). Contudo, são poucos aqueles que se podem dar ao luxo de dizer que o leram. “As pessoas ouvem falar, associam logo, mas não leram os livros”, admitiu Carlos Alberto Machado em conversa com o Observador, acrescentando que, “nesse aspeto”, os Açores não são muito diferentes “de todo o lado”: “a massa não lê”. Mas este não é o único problema que existe no arquipélago açoriano, onde as livrarias são poucas e as iniciativas literárias quase nenhumas. Uma questão que o editor da Companhia das Ilhas acredita estar relacionada, entre outros motivos, “com uma dispersão grande de ilhas”, mas também com “o facto de serem ilhas em si”. “Significa que a população é pequena, apesar de tudo”, admitiu. “Há poucas livrarias. Todos estes circuitos numa zona de maior dimensão são mais disfarçados.”
É por esta razão que a pequena editora independente é um caso raro. Apesar de admitir a quase inexistência de um circuito literário nos Açores, Carlos Alberto Machado acredita que é importante fazer alguma coisa e não baixar os braços. Foi por isso que decidiu “avançar com isto”, apesar de lhe dizerem constantemente que havia “um problema de direitos de autor” e que era isso que impedia a reedição das obras do escritor açoriano. “Então pus as pernas a caminho e fui a Lisboa falar com o diretor das publicações da Imprensa Nacional.” A ideia inicial era “editar alguns livros essenciais”, mas Duarte Azinheira gostou tanto da proposta de Carlos Alberto Machado que decidiu contrapropor: e se publicassem antes as obras todas?
O editora da Companhia das Ilhas não tinham como dizer que não e foi assim que que surgiu a parceria com a INCM, que é em parte responsável pela nova edição, que tem direção científica do também açoriano Luiz Fagundes Duarte, da Universidade Nova de Lisboa (que já tinha colaborado na publicação de obras anteriores do escritor da ilha Terceira pela Imprensa Nacional). Ao todo, serão publicados cerca de 40 livros, divididos por 16 volumes, organizados por quatro séries: poesia, teatro e ficção, crónica e diário, ensaio e crítica.Porque, “apesar de tudo, Vitorino Nemésio deixou muita obra ensaística e muita crónica”, salientou o editor da Companhia das Ilhas, acrescentando que cada volume “apanha quase sempre diferentes géneros”. Contudo, dentro de cada série será sempre respeitada a ordem cronológica da primeira edição de cada livro e o texto seguirá sempre o da última em vida do autor, com ortografia atualizada, ou da edição crítica (se disponível).
Todas as obras foram publicadas ainda em vida do autor, à exceção de duas — Quase que os Vi Viver, publicado em 1985, e Caderno de Caligraphia e outros Poemas a Marga, editado pela primeira vez em 2003 pela INCM, vários anos depois de Nemésio morrer. “O completo não é completamente verdade”, admitiu o editor da Companhia das Ilhas. “Há um conjunto de dispersos que não estão reunidos em livro, em relação aos quais a Imprensa Nacional fará algum trabalho paralelamente a isto”, explicou o editor, acrescentando que, apesar disso, os inéditos do escritor açoriano “são pouquíssimos”.
Cada volume terá uma breve introdução a autoria do respetivo editor científico — conhecedor “profundo” da obra de Nemésio — que, além de fazer uma contextualização da obra ou obras, descreve ainda a história da impressão de cada livro. Apesar disso, Carlos Alberto Machado garante que “esta edição não é uma edição crítica”, cujas características costumam afastar “um pouco as pessoas”. “Esta edição não tem nada disso”, garantiu o editor. Até porque o objetivo da Companhia das Ilhas é exatamente o contrário: lançar edições “mais cuidadas do ponto de vista gráfico”, com “um novo rosto” e voltadas “para o grande público”, que incentivem a leitura de Nemésio. “Temos esperança que resulte melhor e que a obra comece a ser um pouco mais lida.”
Os 16 volumes da Obra Completa de Vitorino Nemésio serão editados ao longo de quatro anos, e a ideia é que saiam quatro volumes anualmente, mais ou menos de três em três meses. O primeiro, dedicado à poesia publicada pelo escritor entre 1916 e 1940, está a ser terminado — “está em fase de revisão”, admitiu Carlos Alberto Machado — e deverá sair algures em abril. “É um plano um bocado ambicioso”, mas Carlos Alberto Machado tem esperança que “tudo corra bem”. “A Imprensa Nacional é uma grande máquina.” Em 2018, serão ainda publicados três volumes das restantes séries, que irão incluir, por exemplo, a peça de teatro Amor de Nunca Mais (1920) e o ensaio Elogio Histórico de Júlio Dantas (1965). São os seguintes:
  • Poesia: Canto Matinal (1916), A Fala das Quatro Flores (1920), Nave Etérea (1922), Sonetos para Libertar um Estado de Espírito Inferior(1930), La voyelle promise (1938) e Eu, Comovido a Oeste (19140)
  • Teatro e Ficção: Amor de Nunca Mais (1920) e Paço do Milhafre(1924)
  • Crónica e Diário: Ondas Médias (1945) e O Segredo de Ouro Preto(1954)
  • Ensaio e Crítica: Sob os Signos de Agora (1932), Conhecimento de Poesia (1958) e Elogio Histórico de Júlio Dantas (1965)

Apostar nos escritores que os leitores esqueceram

A publicação das Obras Completas de Vitorino Nemésio é uma espécie de exceção no catálogo da Companhia das Ilhas, que tem apostado sobretudo nos autores contemporâneos, muito deles açorianos. “Somos uma editora que dá mais atenção à poesia e ao teatro”, explicou Carlos Alberto Machado ao Observador, lamentando que “quase ninguém” edita obras de dramaturgia. No ano passado, a editora publicou três obras de teatro — A dança das raias voadoras / Requests ou permissão para respirar, de Ana Lázaro e Firmino Bernardo, Três actos para um blue, de Marcela Costa e Yuck Factor, e Romance da última cruzada, de Ana Vitorino e Carlos Costa — e para este ano estão agendadas pelo menos mais cinco, entre autores portugueses e grandes nomes da literatura, que poderão ser adquiridos em livrarias um pouco por todo o país (apesar de estar sediada nos Açores, a editora não vende os seus livros apenas nas ilhas).
“Sempre fizemos uma tentativa de que os textos que publicamos tivessem uma relação com os espetáculos que estão a acontecer, que fazem parte do repertório de alguns grupos e criadores”, explicou o editor da Companhia das Ilhas. “Este ano vamos continuar nessa onda. Vamos editar alguns textos de Carlos J. Pessoa, do Teatro da Garagem, e um conjunto de textos do Rui Pina Coelho”, que colabora regularmente com o Teatro Experimental do Porto. Além disso, a editora vai dar início à publicação de alguns dramaturgos contemporâneos estrangeiros, numa parceria com o Teatro das Caldas da Rainha. Luigi Pirandello, Samuel Beckett e Jean-Pierre Sarrazac são os autores que vão sair este ano.
A poesia, outra das grandes apostas da editora, vai ter mais destaque em 2018. “No ano passado, demos mais importância à ficção, mas este ano vamos voltar à poesia”, frisou Carlos Alberto Machado, adiantando que “vamos começar já com um livro pequeno do Ramiro S. Osório, um importante poeta português”. Nascido em Lisboa, em 1939, Ramiro S. Osório viveu 22 anos em Paris, onde se exilou quando estava a terminar o curso de Arquitetura. Na capital francesa, teve oportunidade de estudar semiologia com Roland Barthes, no Collège de France, cinema com Jean Rouch, no Musée de l’Homme, e terminar o curso Arquitectura nas Belas-Artes. Trabalhou com o Herberto Hélder nos anos 70 e recebeu dois prémios da Associação Portuguesa de Escritores (APE) e várias distinções dos Ministério da Cultura. O seu espólio literário, onde se incluem 22 inéditos, começou recentemente a dar entrada na Biblioteca Nacional de Portugal.
O livro Ao largo de Delos reúne 40 poemas do poeta — “onde cabem duas Grécias e muito mais” — e chega às livrarias neste mês de janeiro, mais ou menos na mesma altura que Um mosquito num voo baixo, um “pequeno livro de poesia” de Gisela Cañamero, escritora, artes e encenadora, que já tinha publicado uma peça de teatro, Para Além do Muro, com a editora em 2015. Pena de Morte, um livro inédito de “um outro poeta, mais maduro”, Jorge Aguiar Oliveira, que também já editou com a Companhia das Ilhas, vai sair em fevereiro, alguns meses antes de um volume de poesia do açoriano José Martins Garcia, poeta com “uma obra genial que, infelizmente, não entrou na moda”, de acordo com Carlos Alberto Machado.
Ao largo de Delos, do poeta Ramiro S. Osório, é um livro “onde cabem duas Grécias”.
 A publicação está agendada para este mês de janeiro
José Martins Garcia nasceu em 1941, na ilha do Pico, de onde é natural a Companhia das Ilhas. Estudou Filologia Românica na Faculdade de Letras de Lisboa e começou a publicar, no início dos anos 70, na mítica editora Afrodite, de Ribeiro de Mello, que causou escândalo e sensação nos anos finais da ditadura salazarista com a publicação de títulos polémicos, como a Antologia de Poesia Portuguesa Erótica e Satírica, de Natália Correia. Ganhou nome no início dos anos 80 mas acabou por cair no esquecimento depois da sua morte, aos 60 anos de idade. Considerado um dos grandes poetas açorianos do século XX, Martins Garcia nunca “entrou na moda”, como referiu Carlos Alberto Machado, que começou a reeditar a obra do poeta há dois anos. “Mesmo com a nossa edição, as pessoas leem, gostam, mas [o escritor] não entrou no circuito. Ficou um pouco para trás” e não teve a “repercussão nacional” de outros autores, admitiu o editor que, além de Poesia reunida, irá ainda editar um volume de ficção, Alecrim, Alecrim aos olhos, do mesmo autor.
Outro açoriano que faz parte do plano editoral da Companhia das Ilhas para 2018 é Manuel Tomás que, tal como Martins Garcia, também é um escritor contemporâneo. “São autores vivos e acho que isso é importante”, frisou o editor. “Aqui fala-se muito da literatura açoriana, mas os autores não são publicados ou são publicados de forma incompleta.” Para Carlos Alberto Machado, esse é o “serviço público” prestado pela editora — dar a conhecer escritores contemporâneos, naturais dos Açores, que caíram no esquecimento ou que nunca foram lembrados. Até porque há “algumas coisas bastante boas”, só que “os Açores sempre sofreram um pouco em relação ao continente, às vezes por culpa própria”. “Deixaram-se fechar”, considerou.
Foi também com esse sentido de missão que a Companhia das Ilhas se propôs a publicar a obra completa de José Sebag, um “muito importante e perfeitamente desconhecido” que “teve ligações muito próximas com o Grupo Surrealista de Lisboa”. Nascido em 1936, no Faial, Sebag publicou apenas dois livros durante a sua curta vida — Planeta Precário e Cão até Setembro — mas deixou muitos outros projetos que a Companhia das Ilhas pretende tornar públicos. “Planeta Precário é um opúsculo que ele publicou”, explicou o editor. “Ele achava que o título estava errado” e, durante uma viagem de regresso a Lisboa, “atirou os livros ao mar”. “A poesia é muito boa, sobretudo no contexto açoriano, mas não só. Estamos a trabalhar para fazer a edição desses dois livros e de outro que está inédito”, disse Carlos Alberto Machado, acrescendo que existe ainda um conjunto “muito grande” de poemas e “alguma prosa” que nunca foram publicados. A edição, que conta com o apoio da Direção Regional da Cultura, deve sair em 2019.
“Este livro contém a harmonia dos Quatro Evangelistas buscada por São Jerónimo.” É assim que a editora descreve Smalloch, de Alexandre Sarrazola, já disponível em livrarias um pouco por todo o país
Apesar de o catálogo deste ano da Companhia das Ilhas ser dedicado sobretudo ao teatro e à poesia, estão previstos alguns volumes de ficção. O primeiro, Smalloch, é de Alexandre Sarrazola — “um desconhecido” — e sai já em janeiro. Em março, será publicado Azares da poesia, de Jorge Fazenda Lourenço, especialista em Jorge de Sena. O livro — que mistura prosa e poesia — inclui “pequenos ensaios de literatura” e alguns poemas de Fazenda Lourenço e de outros autores. Um “projeto para continuar”, Carlos Alberto Machado espera publicar um livro de poesia do autor no próximo ano. Há rios que não desaguam a jusante, de Nuno Dempster, é “um romance de folgo” e vai sair mais tarde, em setembro. Ao todo, Carlos Alberto Machado espera publicar até ao final do ano cerca de 30 títulos, um número “um bocadinho complicado” para “uma editora pequena”. Mas o que interessa é não desistir.

quinta-feira, 11 de janeiro de 2018

No meio do caminho da nossa vida ou o valioso tempo dos maduros (Mário de Andrade)


Gilbert Garcin, "Le funambule", 2002


O valioso tempo dos maduros

Contei meus anos e descobri que terei menos tempo para viver daqui para a frente do que já vivi até agora.
Tenho muito mais passado do que futuro. Sinto-me como aquele menino que ganhou uma bacia de jabuticabas.
As primeiras, ele chupa displicente, mas, percebendo que faltam poucas, rói até o caroço.
Já não tenho tempo para lidar com mediocridades.
Não quero estar em reuniões onde desfilam egos inflamados.
Inquieto-me com invejosos tentando destruir quem eles admiram, cobiçando seus lugares, talentos e sorte.
Já não tenho tempo para conversas intermináveis, para discutir assuntos inúteis sobre vidas alheias que nem fazem parte da minha.
Já não tenho tempo para administrar melindres de pessoas que, apesar da idade cronológica, são imaturos.
Detesto fazer acareação de desafetos que brigaram pelo majestoso cargo de secretário-geral do coral.
As pessoas não debatem conteúdos, apenas os rótulos.
Meu tempo tornou-se escasso para debater rótulos; quero a essência, minha alma tem pressa...
Sem muitas jabuticabas na bacia, quero viver ao lado de gente humana, muito humana, que sabe rir de seus tropeços, não se encanta com triunfos, não se considera eleita antes da hora, não foge da sua mortalidade.
Só há que caminhar perto de coisas e pessoas de verdade.
O essencial faz a vida valer a pena.

E para mim basta o essencial.

Mário de Andrade





sábado, 16 de dezembro de 2017

Arquivo Digital do “Livro do Desassossego”

FERNANDO PESSOA

O Arquivo Digital do “Livro do Desassossego” já está online. E tem muitas histórias para contar


Depois de seis anos de trabalho, o Arquivo Digital Colaborativo do "Livro do Desassossego" está pronto e permite consultar e comparar as quatro principais edições da obra de Bernardo Soares.



Manuel Portela apresentou o projeto durante o Congresso Internacional Fernando Pessoa, em fevereiro deste ano. 
HUGO AMARAL/OBSERVADOR

Quando se inscreveu no Congresso Internacional Fernando Pessoa, Manuel Portela tinha a certeza que, por essa altura, já teria uma versão definitiva do seu projeto para apresentar no auditório da Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa. Mas estava enganado: contratempos vários obrigaram-no a adiar a apresentação e a falar antes dos “atos de escrita” na obra de Bernardo Soares, recorrendo a uma versão de teste da plataforma que estava a desenvolver com a ajuda de um grupo de investigadores da Universidade de Coimbra, onde dá aulas, para mostrar os diferentes manuscritos. Na verdade, seriam precisos mais dez meses até estar tudo pronto e o professor universitário poder anunciar ao mundo o arranque oficial do Arquivo Digital Colaborativo do Livro do Desassossego, uma plataforma interativa que permite consultar e comparar as quatro principais edições da obra de Bernardo Soares e também criar edições virtuais.
O Arquivo Digital Colaborativo do Livro do Desassossego — ou, simplesmente, Arquivo LdoD — já está online e será oficialmente apresentado esta quarta-feira, pelas 11h30, no Anfiteatro III da Faculdade de Letras de Coimbra. Mas a ideia é muito mais antiga: “Nasceu em 2009”, contou Manuel Portela ao Observador. Foi aprovado para financiamento pela FCT — Fundação para a Ciência e a Tecnologiadois anos depois e começou a ser desenvolvido em 2012, por uma equipade investigação composta por especialistas em literatura e computação da Universidade de Coimbra em estreita colaboração com António Rito Silva, do Instituto Superior Técnico (IST) de Lisboa, que desenhou e programou todo o sistema de software, e também com a Biblioteca Nacional de Portugal, que tem na sua posse os manuscritos referentes à obra de Bernardo Soares.
Apesar de Manuel Portela, coordenador do projeto, não trabalhar no âmbito da literatura portuguesa, escolheu o Livro do Desassossego para a criação de uma plataforma interativa de literatura por causa das suas características peculiares. “A minha área de investigação é a literatura inglesa mas, quando em 2009, comecei a pensar em desenvolver um projeto que tirasse partido do dinamismo do meio digital, achei que o Livro do Desassossego era ideal para fazer esta experiência porque tem um carácter semi-estruturado, uma natureza quase modelar”, confessou ao Observador. “Podemos entrar num texto sem ter de entrar nos outros.” É que, apesar de existir “uma rede de relações” entre as centenas de fragmentos que constituem a obra, estes podem ser lidos e até estudados isoladamente.
[Teaser do Arquivo Colaborativo do Livro do Desassossego com Jerónimo Pizarro e Teresa Sobral Cunha]

Quando morreu, Fernando Pessoa deixou centenas de obras inacabadas no fundo da sua arca. Contudo, nenhuma se parece com o Livro do Desassossego. Escrito em duas fases distintas — de 1913 a 1920 e de 1929 a 1934, um ano antes da morte de Pessoa —, Livro é composto por mais de 500 fragmentos, distribuídos por 30 mil documentos manuscritos ou dactilografados, que, apesar de não terem qualquer ligação entre si, funcionam como um todo. A obra manteve-se em boa medida inédita até 1982, altura em que Jacinto do Prado Coelho publicou a primeira edição do Livro do Desassossego, em dois volumes, pela editora Ática (com recolha e transcrição de textos de Maria Aliete Galhoz e Teresa Sobral Cunha). Em vida, Pessoa publicou apenas cerca de 12 textos em revistas literárias. Nos últimos 30 anos, o Livro foi traduzido em dezenas de línguas e reconhecido como uma das grandes obras-primas do poeta português.
Para Manuel Portela, o Livro do Desassossego pode ser encarado de duas formas. “O Livro do Desassossego é um projeto autoral. O Livro do Desassossego é uma construção editorial”, escreveu num artigo de introdução ao Arquivo LdoD. “Enquanto projeto autoral, pode ser descrito como um trabalho desorganizado e inacabado escrito entre 1913 e 1935”, composto por documentos dactilografados, manuscritos e textos impressos. “Enquanto construção editorial, é o conjunto de edições impressas feitas com base nesse projeto autoral. Estas podem variar em termos de seleção, transcrição e também em divisão e organização das unidades textuais.”
Isto porque, uma vez que não existe uma ordem estabelecida por Pessoa, a organização fica sempre a cargo do editor responsável. Neste sentido, cada edição do Livro do Desassossego é diferente, até mesmo quando o editor é o mesmo. Outra questão diz respeito à atribuição autoral. Nalgumas edições, o Livro é atribuído a Vicente Guedes, heterónimo que começou por assinar os manuscritos, de 1913 a 1920, enquanto noutras a autoria pertence inequivocamente a Bernardo Soares, o “ajudante de guarda-livros” que foi responsável pela escrita do Livro do Desassossegode 1929 até ao final da vida de Fernando Pessoa, que morreu em finais de 1935.

Um projeto para tirar o Livro do Desassossego do papel

Foi enquanto preparava o projeto que Manuel Portela se apercebeu que “as dinâmicas do Arquivo LdoD podiam ser expandidas para lá do conceito inicial de comparação das múltiplas versões do Livro de maneira a transformar o arquivo num espaço participativo de edição e escrita”, explicou no mesmo artigo. “Partindo das intenções originais de usar o trabalho de Pessoa como sonda de pesquisa para a imaginação modernista do Livro, chegámos a esta noção do Livro do Desassossego como um lugar textual para a simulação literária“, referiu no mesmo artigo. O Arquivo LdoD deixou assim de ser apenas um meio interativo de comparação de edições, para se tornar num espaço onde os leitores podem construir o seu próprio Livro digitalmente.
Desde então, passaram cinco anos. O motivo da demora no lançamento tem a ver com a complexidade do projeto e também porque a codificação “é sempre um processo moroso”. “O Livro do Desassossego tem entre 500 a 700 textos mas, como temos cinco transcrições para cada texto, equivale a cerca de três mil e tal textos”, salientou o coordenador do projeto ao Observador. “E, ao mesmo tempo, tem tudo de ser codificado manualmente, o que implicou um grande período de trabalho.”
Além de imagens de documentos autografados, o Arquivo LdoD — um recurso multiplataforma e multidispositivo, que pode ser acedido através de um smartphonetablet ou computador, em acesso aberto — inclui ainda novas transcrições dos manuscritos e das quatro principais edições do Livro do Desassossego — a de Jacinto do Prado Coelho (1982), já referida, a de Teresa Sobral Cunha (publicada em dois volumes em 1990 e 1991), a de Richard Zenith (1998) e a de Jerónimo Pizarro (2010). “Estas quatro edições são todas diferentes entre si”, afirmou Manuel Portela. “O princípio de organização é diferente e tem um modelo do Livro que não é exatamente coincidente. Agora, podemos observar de uma forma muito precisa essas diferenças.”
[Manuel Portela explica como é que funciona o arquivo “dinâmico”]

Para isso, foi preciso codificar “todas as variações que existem no texto”. “Quando há, por exemplo, uma quebra de parágrafo, um sinal de pontuação, uma leitura ou uma divisão de fragmento diferente. Todas estas diferenças estão marcadas. No fundo, é como se tivéssemos agarrado em cada um dos textos, os tivéssemos cortado e os tivéssemos misturado entre si, mas de uma maneira em que é sempre possível perceber que texto ou palavra pertence a que edição.”
Pode parecer complexo, mas Manuel Portela garante que não o é. “Uma das coisas que refiro sempre é que o nosso desafio é tornar isto inteligível para fora, para os utilizadores. Não queremos assustar as pessoas, porque o Arquivo pode parecer demasiado complexo. Tem muita informação, muitas camadas, mas pode-se entrar nele como se entra numa página do Livro que se abre ao calhas e se lê. As funcionalidades são, em geral, bastante simples. Algumas requerem alguma aprendizagem, mas não é muito diferente do que acontece com um jogo de computador. Quem quiser usar o Arquivo de uma forma mais profunda, precisa de algumas horas para aprender a mexer nele, mas isso também acontece com um jogo.”
Além do mais, o professor da Faculdade de Letras de Coimbra admite que tentaram “dar-lhe uma estrutura que permita vários tipos de aproximação”. “Isto pode servir para quem quer ler alguns textos do Livro, para quem está a estudá-lo e quer conhecer o Livro em mais profundidade, mas também para especialistas que estudam a história da edição e até para quem quiser fazer novas edições”, explicou. “Uma das coisas que o Arquivo vai permitir, e que não tem tanto a ver com os leitores gerais, é que os especialistas compreendam melhor a história das edições e o que cada um dos editores fez para organizar o Livro.”

Um arquivo que não é apenas para especialistas

De um modo geral, o Arquivo LdoD tem cinco grandes funcionalidades: a da leitura da obra “de acordo com diferentes sequências”, a “listagem de todos os fragmentos e informação acerca das fontes” do Livro do Desassossego, a “visualização dos originais e comparação das transcrições”, a possibilidade de selecionar “fragmentos de acordo com múltiplos critérios” e ainda a “criação de edições virtuais”. Esta é a única funcionalidade para a qual é preciso criar uma conta de utilizador e é uma das principais inovações do Arquivo.
[Aprender, investigar e criar com Arquivo Colaborativo do Livro do Desassossego]

“Tem uma dimensão lúdica porque as pessoas podem brincar, no sentido de selecionar e reorganizar o texto, anotá-lo e criar as suas próprias antologias e publicá-las na plataforma. Podem fazer uma pesquisa sobre um tema — o sonho, por exemplo —, fazer um texto, anotá-lo e depois publicar. E depois fica disponível para outros utilizadores”, frisou Manuel Portela. Mas há outros aspetos inovadores como, por exemplo, “o dinamismo que introduzimos no sistema, que permite comparar as diferentes edições, ver os originais, novas transcrições e pesquisar de uma forma muito granular, muito específica, todos os textos”.
Apesar de o Arquivo LdoD ser dirigido a todos, Manuel Portela admite que pode acontecer que este só seja consultado por investigadores e especialistas. “Estamos a tentar chamar a atenção para o facto de o nosso desafio ser mostrar às pessoas quais são as potencialidades, o que é que se pode fazer e, sobretudo, não as assustar”, afirmou o coordenador, acrescentando que estão previstas para várias iniciativas de divulgação do projeto. Outra dificuldade é, de acordo com o professor da Faculdade de Letras de Coimbra, “mostrar que isto não é apenas um repositório, um sítio onde os textos estão, mas que é também um sítio onde as pessoas se podem relacionar com os textos de uma forma muito dinâmica” através das pesquisas, comparações e organizações. “O Arquivo está concebido para criar uma relação dinâmica com o texto, para pensar o texto menos coo um objeto, mas mais como uma coisa que podemos modelar, em que podemos mexer.”

O trabalho continua

Apesar de o Arquivo Digital Colaborativo do Livro do Desassossego já estar online, ainda há muito trabalho pela frente. “Temos ainda previsto o desenvolvimento não só da edição, mas também da escrita virtual, permitindo que os utilizadores escrevam variações com base em fragmentos”, explicou Manuel Portela. “A nossa ideia é reconfigurar o Livro do Desassossego como ambiente textual dinâmico, que permita que os utilizadores se situem em relação ao texto em várias posições — como leitores, editores, escritores. No fundo, simular o espaço literário e a performance literária.”
De acordo com o coordenador do projeto, “no fundo, isto é uma espécie de primeira fase”. “Depois, numa segunda fase, durante os próximos dois, três anos, vamos desenvolver algumas funcionalidades que já estão concebidas. Vamos também integrar aquilo a que chamamos a ‘receção do Livro’.” Nesta secção, serão integrados os principais ensaios críticos sobre o Livro, que serão depois interligados com os textos da obra de Bernardo Soares que referem, estabelecendo “uma rede de relações”. Além disso, serão criadas duas comunidades de utilizadores — uma universitária e outra numa escola secundária —que serão monitorizadas ao longo de um ano. “Vamos observar a utilização do arquivo a longo de um ano e vamos também aprender como é que podemos desenvolver melhor as interfaces.” Por outras palavras: o trabalho ainda agora começou.
Rita Cipriano, http://observador.pt/2017/12/13/o-arquivo-digital-do-livro-do-desassossego-ja-esta-online-e-tem-muitas-historias-para-contar/

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[atualizado em 14-08-2017]


 

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Fernando Pessoa - Apresentação crítica, seleção, notas e sugestões para análise literária da obra de Fernando Pessoa, por José Carreiro. In: Lusofonia, https://sites.google.com/site/ciberlusofonia/PT/literatura-portuguesa/fernando_pessoa, 2021 (3.ª edição) e Folha de Poesia, 17-05-2018. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2018/05/fernando-pessoa-13061888-30111935.html