quinta-feira, 15 de março de 2018

Daniel Gonçalves

丁文杰 - Wenjie Ding, 2020-09-01




a poesia veio ter comigo num dia de chuva
tinha o corpo molhado até à palavra mais ínfima
diria que era um dia triste
um dia para se morrer contra a janela do esquecimento

olhei para a poesia como quem fita o âmago de uma candeia acesa
mas no lugar da luz estava uma canção
no lugar da chama estava um bicho da seda
e dali saía o manto branco com que me vesti

aos poucos fui perdendo o frio
o sangue coagulado com a tristeza de haver apenas silêncio

comecei a acreditar no mistério do meu nome
na estrela que faz a noite parecer mais azul do que o mar
e com ele fui-me chamando para junto das flores e das pedras
como uma palavra acabada de caiar

enrolei-me na minha sombra
e
esse casulo criou um verso para eu falar aos anjos

a partir desse dia nunca mais fiquei sozinho
e os anjos esses
apareceram com mais frequência à janela da minha casa


Daniel Gonçalves, Revista Neo n.º 9, Ponta Delgada,
Departamento de Línguas e Literaturas Modernas da Universidade dos Açores, 2009


***

(poema com mário cesariny: como uma canção desesperada)

estou a dizer-te que já todos os poetas inventaram o amor
que nas minhas mãos o amor é apenas silêncio que vaza

que o amor não pode ser mais belo do que este verso:
antes de conhecer-te já eu te ia beijar a tua casa

estou a dizer-te que se tinha que te escrever uma carícia
nenhuma palavra há que não tenha quebrado já a sua asa

talvez acabes por perceber na doçura de todo este carinho
que não tenho mais música por onde possas subir até mim
ou madressilvas para te estenderes por todo o meu verão

estou a dizer-te que nunca soube dizer-te como te amar
como se regressasse a um instante em que fui apenas pedra
ou borboleta impassível colorindo o seu efémero coração

estou a dar-te à boca as poucas carícias que saem da minha
como se eu pudesse inventar um verso no lugar de um beijo
e talvez acreditasse que o amor tem sempre um novo aluvião



***

demorei metade da minha vida a perceber que o nosso
amor nunca existiu, era apenas um poema inédito, num
livro cosido à mão, manuscrito com a caligrafia de um
coração cego. podes esquecer-me sem remorso, podes
voltar a passar por mim na rua, podes voltar a dar-me
flores, não importa, deixei de acreditar na eternidade,
estou de acordo com o meu corpo que envelhece. podia
morrer agora mesmo, sem ti, tudo teria valido a pena
da mesma maneira, tu por fora de mim, tu por mim
dentro, a cidade connosco, a cidade deserta, o tempo
num segundo, a vida escoando como uma pérola através
da geleia do dia. agora sei que este é o último poema em
que te toco, a partir de amanhã, serás outra pessoa.

Daniel Gonçalves, Poesia Reanimada, Artes e Letras, 2014

***

todas as manhãs deviam ser primavera, todas as tardes verão, todas as noites outono, todas as madrugadas inverno, sair de casa e ter o chão como em dia de romaria, o meu ombro feliz de se mostrar aos pássaros, a alegria em cada flor aparecida e saber que vou poder almoçar no jardim, deitar-me no colo do parque e esperar que o sol me queime o cansaço, todos os dias assim.
Daniel Gonçalves, Poesia Reanimada, Artes e Letras, 2014

***

     quando morreste a noite deixou de morder os lábios das rosas ficaram sem o cântico aterrador do silêncio o peso das estrelas como um pisa papéis a torturar uma lista de sonetos por fazer

     quando morreste a manhã deixou de cuidar do seu cabelo liso encrespou contra o espelho que sabia de cor a tua mágoa azul como quilha encravada num naufrágio lento boiando sozinho
     quando morreste a tarde deixou de se inclinar sobre os frutos ficou às escuras a música que saía de dentro dos teus pássaros calou-se o bule que cozia a paciência da loucura com cidreira como remédio que tomamos quando a tristeza vem de repente
     quando morreste o tempo deixou de contar as crianças na rua brincando com os gatos e com as formigas e com a tua solidão
     e tudo ficou suspenso a virar folhas sobre o livro por escrever calando a filosofia fechando de vez as janelas secando a casa


Revista Grotta n.º 1. Publiçor/Letras Lavadas Edições, 2016

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sexta-feira, 2 de março de 2018

Ezequiel Vala e outras estórias enciclopédicas, por Afonso Cruz


No futuro
iremos parar durante
um minuto todos os dias,
interromper o que estivermos
a fazer, de repente, a meio
de uma palavra, de uma passada,
de uma garfada. E, perfeitamente
imóveis, veremos que o mundo
é uma cruz para quem o carrega
e um berlinde para quem o empurra.
Depois é só escolher.

Afonso Cruz, Enciclopédia da Estória Universal. Livro 1 - Recolha de Alexandria.
Lisboa, Editorial Alfaguara, 2012




A lebre, a tartaruga
e uma flor no cabelo

Ezequiel Vala nasceu em 1905 e haveria de, em 1928, participar na maratona das Olimpíadas de Amesterdão. Foi, para o atleta e para o seu treinador, o momento mais importante das suas vidas, mas por motivos radicalmente opostos.
Ezequiel Vala era um homem sonhador a quem sempre deram todas as condições para competir e vencer. Era um atleta talentoso e inteligente, de pernas finas e compridas, mas também era um grande apaixonado por flores. Num dia de competição, em 1924, antes de correr, contou ao seu treinador que havia, na noite anterior, semeado uma flor (amaryllis/hippeastrum) no sonho de uma bela rapariga da Valáquia1, descendente de ciganos. O treinador riu-se dele, mas Vala assegurava que havia realmente semeado, com as suas próprias mãos – ao ponto de ficar com terra nas unhas –, uma flor vermelha no sonho de uma mulher desconhecida. Foi, nessa mesma altura, criticado pela falta de sobriedade com que encarava a vida e o desporto, mas cortou a meta em primeiro, ganhando com a facilidade que lhe era habitual, e subiu ao pódio, demonstrando que os seus desvarios oníricos não afetavam a sua eficácia competitiva. Apesar da vitória – e enquanto recebia a medalha de ouro – exibia um olhar melancólico e torcia o nariz como um coelho, pois ainda sentia, vindo das suas mãos, o cheiro da terra do sonho da rapariga valáquia. Muitas vezes, como a lebre da fábula de Esopo, Vala entretinha-se com outras coisas, perdendo tempo, mas sem nunca perder a corrida. O treinador admoestava-o, mas Ezequiel Vala não dava qualquer importância aos avisos. O treinador contou-lhe a história da lebre e sublinhou o seu ponto de vista com a célebre corrida de Andarín Carvajal:
– Carvajal – disse o treinador – era um atleta, um cubano pobre que decidiu mendigar dinheiro pelas ruas de Havana para poder viajar até St. Louis, local onde se realizariam as Olimpíadas daquele ano, e poder assim participar na maratona. Conseguiu o suficiente, mas, ao chegar a Nova Orleães, perdeu tudo o que possuía com mulheres e jogo e coisas dessas que fazem um homem transformar-se numa lebre de Esopo. Mas não desistiu e foi a pé, caminhou mais de mil quilómetros até chegar a St. Louis. Chegou com a roupa que usava normalmente, muito pouco adequada para competir, calças compridas e botas de carteiro. Cortou as calças para as transformar em calções e, sem qualquer surpresa, pois era um excelente atleta, cedo liderou a prova. No entanto, porque não comia há cerca de dois dias, estava faminto. Então parou para comer maçãs. Por algum motivo, ficou muito maldisposto e teve de parar inúmeras vezes por causa disso, terminando a corrida em quarto. Por isso, Ezequiel, é muito importante que tu, já que tens tendência a perder-te pelo caminho, agradeças pelo menos o facto de não seres pobre e de não passares fome e de não correres com botas de carteiro e, por isso, teres outras possibilidades de vencer. Algo que, por exemplo, Andarín Carvajal não teve.
Ezequiel Vala encolheu os ombros com um sorriso. No dia da sua prova nas Olimpíadas, Vala era o favorito e demonstrou-o logo nos primeiros quilómetros, ganhando um avanço impressionante sobre os seus adversários. Mas a meio da prova parou por causa de uma lychnis coronaria e sentou-se no campo. Retomou a corrida quando viu Boughera El Ouafi, corredor francês, aproximar-se. Depressa voltou a ganhar terreno, mas acabou por parar mais uma vez quando viu um circo, bastante pobre, que exibia o seu espetáculo na praça de uma aldeia. Reteve-o uma amaryllis/hippeastrum que estava pendurada no cabelo de uma equilibrista. Ficou parado a olhar para ela, meio perdido, enquanto Boughera El Ouafi passava por ele. E continuava ali, parado, enquanto o chileno Manuel Plaza e o finlandês Martti Marttelin atravessavam a praça à procura da vitória.
"A lebre, a tartaruga e uma flor no cabelo", 
ilustração de Afonso Cruz (in P8, Texto Editora, 2012, p. 87)
Esmeralda Rusu mantinha-se em equilíbrio na corda, enquanto Vala caía do primeiro lugar para o último. A equilibrista, quando o viu na praça parado com os braços ao longo do corpo, desceu e aproximou-se agradecendo-lhe a flor que trazia no cabelo. Ezequiel Vala nunca chegou à meta e, na verdade, nunca mais voltou a competir. Disse aos jornais: a nossa meta, muitas vezes, não está onde pensamos. Pode estar à beira da estrada, pode estar a meio do caminho, no meio de uma praça, e seria um desperdício se passássemos por ela a correr, passássemos ao seu lado sem a vermos. E assim continuaríamos a correr para lado nenhum, para uma ilusão. Há uma grande virtude na lebre: ela sabia viver. Nessa altura, Ezequiel Vala não ficou célebre por ter ganhado as Olimpíadas, mas por, na cabeça de todos, tê-las perdido infantilmente. Contudo, Vala – que se tornou um equilibrista medíocre e um botânico célebre – era de outra opinião: fora ele o grande vencedor.
E, aos oitenta e quatro anos, em 1989, no momento da sua morte, haveria de dizer isso mesmo a Esmeralda – também ela velha, mas ainda capaz de, com aquela idade, caminhar em cima de uma corda com uma flor no cabelo:
– Perdi a maratona das Olimpíadas de Amesterdão, mas sem dúvida nenhuma venci a corrida.
E morreu com o mesmo sorriso que fazia quando ouvia os conselhos do seu treinador.
Afonso Cruz
P8, Lisboa, Texto Editora, 2012 (1.ª ed.)
Enciclopédia da Estória Universal - Arquivos de Dresner, Editorial Alfaguara, fevereiro de 2013
____________
Valáquia: província da Roménia, situada a norte do rio Danúbio e a sul dos Cárpatos.



Enciclopédia da Estória Universal, Afonso Cruz.
Quetzal Editores, 09-2009
«Enciclopédia da Estória Universal, que recebeu o Grande Prémio de Conto Camilo Castelo Branco (Câmara Municipal de Vila Nova de Famalicão/APE), é o título de uma obra singular que Afonso Cruz (1971) publicou em 2009, e que iniciou uma série a que o autor juntou dois volumes, subintitulados Recolha de Alexandria (2012) e Arquivos de Dresner (2013).
O título, através do lexema estória”, marca imediatamente o caráter especial desta enciclopédia”, que escapa a qualquer definição única de género do discurso.
Carlos Nogueira, no artigoLiteratura e conhecimento: Enciclopédia da Estória Universal, de Afonso Cruzprocura demonstrar de que modo o discurso literário desta Enciclopédia se alimenta de discursos (da filosofia, da história, da antropologia, etc.) que visam quer o conhecimento do ser humano e do mundo, quer a educação para a cidadania. Estes volumes, de conteúdo interdisciplinar, apelam para a curiosidade e a sensibilidade, valorizam a responsabilidade individual e coletiva, desenvolvem a capacidade de ler o mundo através de linguagens múltiplas e alternativas. Correspondendo aos princípios oficiais que regem a organização da prática pedagica nas instituições de ensino básico, secundário e superior, esta Enciclopédia pode ser uma boa fonte de leitura e refleo em qualquer instituição de ensino.»


Enciclopédia da Estória Universal. Livro 1  - Recolha de Alexandria
Afonso Cruz, Lisboa, Editorial Alfaguara, 2012

Refletir através de pequenas estórias apresentadas como verdades enciclopédicas. Um projecto que requer todo um trabalho de construção, uma estrutura sólida que assenta na criatividade e na imaginação. Um trabalho genial. Possivelmente o livro do Afonso Cruz que mais gostei de ler até agora.
Mais do que saber escrever, mais do que ter talento para criar palcos, personagens e argumentos, impressiona-me o criar de mundos. E Afonso Cruz como que criou o seu próprio mundo, com todas as explicações de coisas em que nunca pensámos, ou que já pensámos mas nunca desta forma. Quem se iria lembrar de medir a sorte ou os pecados considerando-as medições cientificamente comprovadas? É como chegar à verdade através de um processo de alucinação, com entrar num túnel onde se olha para tudo de outra forma e se descobrem coisas fantásticas.
Deixei-me levar por uma leitura excecional, que me surpreendeu a cada página e me levou a reflectir sobre temas sérios através de exemplos quase infantis. Uma brincadeira que quero repetir, um livro que já é para mim um marco e que prevejo reler infinitas vezes.
Um conjunto de pensamentos e fragmentos muitas vezes contraditórios e cujo sentido só nos atinge umas páginas mais à frente; um exercício extraordinário para as cabeças que, cansadas de rotinas, procuram algo diferente dos dias (quase) todos iguais. Pois que viver numa era em que se produz e vende tudo tende a deixar o cérebro demasiado tempo em descanso.
Márcia Balsas
https://rodadoslivros.wordpress.com/2013/12/07/enciclopedia-da-estoria-universal-recolha-de-alexandria-afonso-cruz/

Enciclopédia da Estória Universal - Livro 2: Arquivos de Dresner.
Afonso Cruz, Lisboa, Editorial Alfaguara, 2013
Sinopse: Com reflexões e histórias ignoradas noutras enciclopédias, o volume Arquivos de Dresner aborda, entre outras coisas, o caso de Ezequiel Vala, um maratonista que perdeu uma prova, nas Olimpíadas de 1928, por causa de uma flor (amaryllis/hippeastrum); fala do explorador Gomez Bota, que provou que a Terra não é redonda e descobriu, numa das suas viagens, a entrada para o Inferno tal como Dante a havia descrito; e relata os hábitos dos índios Abokowo, que dão saltos quando dizem palavras como «amor» e «amizade».
Esta é mais uma viagem lúdica pela História, remisturando conceitos, teorias e opiniões e lançando nova luz sobre uma panóplia de assuntos, desde a filosofia à religião, desde o misticismo à ciência.
«Um artista é alguém que, em vez de pintar uma paisagem tal como ela é, faz com que as pessoas vejam a paisagem tal como ele a vê.» (Tsilia Kacev)
Alfaguara, 2013.


Afonso Cruz

Figueira da Foz, 1971. 

Escritor, ilustrador e músico, que tem também trabalhado na área do cinema de animação.  contradição humana, Os livros que devoraram o meu pai, O pintor debaixo do lava-loiças Assim, mas sem ser assim são algumas das suas obras.

terça-feira, 27 de fevereiro de 2018

Love’s philosophy, segundo Percy Bysshe Shelley



LOVE’S PHILOSOPHY

The fountains mingle with the river
And the rivers with the ocean,
The winds of heaven mix for ever
With a sweet emotion;
Nothing in the world is single;
All things by a law divine
In one spirit meet and mingle.
Why not I with thine?—

See the mountains kiss high heaven
And the waves clasp one another;
No sister-flower would be forgiven
If it disdained its brother;
And the sunlight clasps the earth
And the moonbeams kiss the sea:
What is all this sweet work worth
If thou kiss not me?

Percy Bysshe Shelley, 1819


O poeta romântico Percy B. Shelley (4-08-1792 / 8-07-1822) nasceu em Field Place, na cidade de Horsham, condado de West Sussex, na Inglaterra.



Filosofia do amor

Todas as fontes com o rio se fundem
E os rios com o oceano;
Os ventos, pelos ares, uns aos outros se unem
Com fragrante emoção;
Nada fica sozinho neste mundo;
Tudo, por fado antigo,
Entre si se mistura e se confunde:—
Porque não eu consigo?

Olha! As montanhas beijam o firmamento,

A onda, a onda enlaça;
Nenhuma flor-irmã tem valimento
Se o irmão não abraça;
A luz do Sol envolve a terra à roda,
Raios do luar beijam os mares: —
Mas toda esta ternura que me importa
Se tu não me beijares?

Tradução de Herculano de Carvalho
Filosofia do amor

Correm as fontes ao rio
os rios correm ao mar;
num enlace fugidio
prendem-se as brisas no ar…
Nada no mundo é sozinho:
por sublime lei do Céu,
tudo frui outro carinho…
Não hei de alcançá-lo eu?

Olha os montes adorando
o vasto azul, olha as vagas
uma a outra se osculando
todas abraçando as fragas…
Vivos, rútilos desejos,
no sol ardente os verás:
– Que me fazem tantos beijos,
se tu a mim mos não dás?

Tradução de Luiz Cardim (in Horas de Fuga. Traduções de Poesias Inglesas e Outras Línguas. Porto, 1952)

      Linhas de leitura (da versão de Luiz Cardim): 
  • Na primeira estrofe, três caminhos são referidos: «as fontes» que se vão encontrar com o rio; «os rios» que vão desaguar ao «mar»; «as brisas» que se misturam umas com as outras no «ar». Estes carinhos associam-se ao contacto.
  • Assim, como se demonstrou com os vários contactos apresentados, «Nada no mundo é sozinho» (v. 5).
  • Através da frase interrogativa, no último verso da primeira estrofe, o sujeito poético admira-se por não poder usufruir da lei universal que diz que «Nada no mundo é sozinho», pois por decreto divino («sublime lei do Céu») «tudo frui outro carinho». Ele não, como se depreende dos dois últimos versos do poema.
  • No poema, o sujeito poético queixa-se ao seu destinatário por dele não receber os beijos – que por toda a Natureza se observam, como se pode ver nas personificações da segunda estrofe: «olha as vagas/ uma a outra se osculando», vv. 10 e 11; outras personificações ocorrem em «os montes adorando», v. 9, ou em «todas abraçando as fragas…», v. 12. 

(Adaptado de Entre Palavras 7, António Vilas-Boas e Manuel Vieira. Editora Sebenta, 2013.)





sexta-feira, 23 de fevereiro de 2018

Alejandra Pizarnik, poetisa argentina que queria viver apenas nos seus textos

Retrato de Alejandra Pizarnik

ÁRVORE DE DIANA

6
ela se desnuda no paraíso
de sua memória
ela desconhece o feroz destino de suas visões
ela tem medo de não saber nomear
o que não existe

16
construíste tua casa
emplumaste teus pássaros
golpeaste o vento
com teus próprios ossos
.
terminaste sozinha
o que ninguém começou
.
20
disse que não sabe do medo da morte do amor
disse que tem medo da morte do amor
disse que o amor é morte é medo
disse que a morte é medo é amor
disse que não sabe
.
A Laura Bataillon
23
uma mirada a partir da sarjeta
pode ser uma visão do mundo
.
a rebelião consiste em olhar uma rosa
até pulverizar-se os olhos.
.
33
alguma vez

.            alguma vez talvez
eu irei sem car-me
.               eu irei como quem se vai

A Ester Singer

alejandra em frente a árvore

OS TRABALHOS E AS NOITES
Encontro
Alguém entra no silêncio e me abandona.
Agora a solidão não está a sós.
Tu falas como a noite.
Te anuncias como a sede.
.
Os trabalhos e a noite
para reconhecer na sede meu emblema
para significar o único sonho
para não sustentar-me nunca de novo no amor
.
eu fui toda oferenda
um puro errar
de loba no bosque
na noite dos corpos
.
para dizer a palavra inocente
.
Mendiga voz
E ainda me atrevo a amar
o som da luz em uma hora morta,
a cor do tempo em um muro abandonado.
.
Em meu olhar eu perdi tudo.
É tão longe pedir. Tão perto saber que não há.
.
Quarto
Se te atreves a surpreender
a verdade desta velha parede;
e sua fissuras, arranhaduras,
formando rostos, esfinges,
mãos, clepsidras,
seguramente virá
uma presença para tua sede,
provavelmente partirá
esta ausência que te bebe.

Alejandra Pizarnik
Tradução de Davis Diniz
Folha de S. Paulo, 2018-02-18


alejandra em frente a estante, pegando livro

A história da poeta argentina que queria viver só em seus textos
Alejandra Pizarnik, que se matou aos 36 anos, será editada pela 1ª vez no Brasil

Sylvia Colombo, Folha de S. Paulo, 2018-02-18

Resumo A poeta argentina, até hoje inédita no Brasil, terá dois livros publicados em abril. Amiga de Julio  Cortázar e de Octavio Paz, ela se suicidou aos 36 anos e tem obra marcada por silêncio, solidão e morte. No exterior, material revelado pela Universidade de Princeton enseja novos lançamentos a seu respeito.

Fotografía en blanco y negro de Alejandra con una marioneta al fondo.

Morta há 45 anos, quando tinha apenas 36, a poeta argentina Alejandra Pizarnik (1936-1972) passa por uma onda de descobrimento pelas novas gerações.
No Brasil, saem pela editora Relicário, em abril, "Árvore de Diana" (1962) e "Os Trabalhos e as Noites" (1965), dois de seus livros mais conhecidos —fazendo justiça, ainda que tardia, a uma das principais poetas do século 20, nascida num país vizinho.
No mundo, uma parte até então desconhecida de sua obra começa a ser revelada em estudos e edições feitas a partir de material inédito mantido a pedido da autora na Universidade de Princeton, nos EUA.
"Estes dois [livros que serão publicados no Brasil] são perfeitos para que um leitor que não conhece Pizarnik seja introduzido à sua obra. Aí está a essência de suas preocupações literárias e se pode perceber a excepcionalidade de sua escrita", disse à Folha Cristina Piña, autora de "Alejandra Pizarnik: una Biografía" (1991), ainda inédita no Brasil.
A biógrafa acrescenta que a abertura do arquivo de Princeton revelou "uma outra escritora, com outros 'eus literários', ao estilo de Fernando Pessoa (1888-1935), de quem era fã, além de partes íntimas de sua vida e como viu os meios literários que frequentou em Buenos Aires e Paris". Por causa dessas novas informações, Piña está reescrevendo a biografia original e prevê terminá-la ainda neste ano.
Pizarnik nasceu em Avellaneda, subúrbio de Buenos Aires, filha de imigrantes judeus de origem
russa e eslovaca, que fugiram para a Argentina no cenário pré-Segunda Guerra Mundial. Os relatos
feitos por seus parentes e por amigos de seus pais sobre os mortos em campos de concentração
marcariam a infância da escritora.
Devido à mistura de idiomas que ouvia em casa, Pizarnik cresceu falando um espanhol com forte sotaque. Tinha frustrações com seu corpo, que aparecem desde seus primeiros escritos: uma acne persistente e o fato de viver sempre um pouco acima do peso. Estava convencida de que sua família preferia a irmã, Myriam, que Pizarnik acreditava ser mais bonita e mais "normal" que ela própria — já que a irmã queria se casar e ter filhos, o que ela mesma não desejava.
Esse conjunto de elementos fez com que fosse marginalizada pelos colegas da escola, e o refúgio na literatura acabou sendo sua salvação e se tornaria sua perdição.
Pizarnik entrou em algumas faculdades (filosofia, letras e jornalismo), mas largou todas por desinteresse. "Mas tinha uma capacidade de organização para estudar e trabalhar fora do comum. Podia estar desorganizada mentalmente, ou sob efeito dos remédios psiquiátricos dos quais foi cada vez abusando mais, mas mesmo assim se organizava para trabalhar de uma maneira surpreendente.
Lia e escrevia com voracidade desde cedo", conta Piña.
Suas grandes influências ao longo da vida foram Proust, Rimbaud, Baudelaire, Apollinaire, Breton e Artaud e Pizarnik estudou francês para poder ler esses autores no idioma original. Outro favorito foi Franz Kafka (1883-1924).

CARREIRA
Aos 19 anos, em 1955, ela lança seu primeiro livro de poemas, "La Tierra Más Ajena" (a terra mais estrangeira), e, no mesmo ano, "Un Signo en Tu Sombra" (um sinal em sua sombra). Pizarnik considerava as duas obras meras experimentações adolescentes e as renegaria, depois, como trabalhos secundários.
Somente seu terceiro livro, "La Última Inocencia" (a última inocência), de 1956, viria a lhe dar mais confiança. É também nessa época que começa a fazer psicanálise e descobre que seu verdadeiro tema seria seu próprio mistério interior, a solidão, o silêncio e a morte, com os quais podia se relacionar escrevendo.
A partir daí, vem "Las Aventuras Perdidas" (as aventuras perdidas) (1958), "Árvore de Diana" (1962) e "Os Trabalhos e as Noites" (1965) que terão lançamento brasileiro— e mais seis livros até sua morte, incluindo Poseídos entre lilas (possuídos entre lilás) (1969), escrito para teatro.
Em seus diários, publicados em 2013 pela editora espanhola Lumen, Pizarnik escreve: "Nada me prende à vida. Quero anular-me a ponto de existir apenas no que escrevo". Variações sobre essa ideia de se transformar em literatura, anotando seus sonhos, pensamentos e sentimentos, aparecem ao longo das mais de mil páginas em que relata seus dias e suas preocupações. "Sonho com o isolamento. Eu sozinha, perto do mar. Sozinha. Absolutamente sozinha. Esta é minha imagem de felicidade."
"Diarios" (2013) e "Nueva Correspondencia (1955-1972)" —publicado pela mesma editora em 2012— são volumes parrudos que mostram duas faces distintas da autora.
Se os diários mostram a viagem desalentadora de Pizarnik em busca de si mesma, até cometer suicídio, nas cartas ela surge divertida, com uma verve humorística pouco conhecida do público. Afetuosa com amigos e amantes, ela usa uma linguagem mordaz que não está em sua poesia e fala de sua bissexualidade e das orgias de que participava.
As correspondências também mostram quão variadas eram as amizades da escritora. missivas corriqueiras, em que narra intimidades, joga com palavras, faz ironias com os amigos; mas também cartas estritamente literárias, que trocava com Silvina Ocampo (1903-93), Manuel Mujica Láinez (1910-84) e Adolfo Bioy Casares (1914-99), entre outros grandes autores argentinos de seu tempo.
Segundo a biógrafa, os novos documentos arquivados nos EUA permitem entender que "o que pensávamos que para ela tinha sido uma festa seu período em Paris, de 1960 e 1964, havia sido na verdade um tempo muito sofrido, sem dinheiro, fazendo trabalhos que não queria fazer".
Piña reconhece, porém, que foram anos fundamentais que zeram dela a primeira poeta latino-americana publicada na França. Ali refinou seu francês a ponto de escrever e publicar nessa língua.

A O SUICÍDIO
De volta à Argentina, ela iria novamente para o exterior depois de alguns anos: agraciada com uma bolsa de estudos Guggenheim em 1969, Pizarnik passa um ano em Nova York. Na cidade, a escritora trava mais amizades literárias, inclusive aquela que lhe traria grande projeção, com o mexicano Octavio Paz (1914-1998), vencedor do Prêmio Nobel e que viria a escrever prólogos para alguns dos trabalhos da argentina.
Depois disso, porém, não tem mais recursos para seguir no exterior e volta a Buenos Aires, cheia de nostalgia pelos meios literários que frequentou no exterior e especialmente pela relação de carinho e amizade com o conterrâneo Julio Cortázar (1914-1984), que seguia vivendo em Paris. Ela passava horas do dia trabalhando [em seu apartamento], ou ia a um café da esquina. Não viveu a cidade, não lhe interessava o que ocorria na Argentina. Estava sempre em seu mundo particular, diz Piña.
A porta de entrada para seu mundo privado está, sem dúvidas, nos "Diarios", cuja leitura revela a viagem por meio da qual Pizarnik alimentou e arquitetou, física e mentalmente, seu próprio suicídio.
Os diários haviam sido editados por uma amiga da escritora, Ana Becciú, que preparou, agora, nova edição com mais entradas de pastas e cadernos que encontrou com outra amiga de Pizarnik, Olga Orozco que havia sido escolhida pela escritora, em vida, para organizar seu legado. Esse novo material permitiu completar os diários inicialmente publicados especialmente com os primeiros meses da escritora na França.
Em entrevista à Folha, Becciú disse acreditar que os diários foram escritos com a intenção de uma publicação póstuma: "Alejandra dizia que queria uma edição similar à que Leonard Woolf fez com os diários de Virginia. E em vida demonstrava grande admiração por diários de escritores, considerava- os um gênero literário à parte". De facto, os diários têm partes reescritas e corrigidas, é uma obra retrabalhada a exemplo do que fez um de seus ídolos, Kafka.
O material narra sua vontade obstinada de se converter em sua própria literatura: "Às vezes gostaria de me registrar por escrito, em corpo e em alma, explicar como é minha respiração, a minha tosse, o meu cansaço, mas de uma maneira alarmantemente exata, que faça com que seja possível me ouvir respirar, tossir, chorar, se eu pudesse chorar."
Mas, antes de mais nada, o conteúdo sombrio dos diários revela o namoro constante da poeta com a ideia de suicídio.
Pizarnik tenta se matar duas vezes viria a morrer na terceira— usando altas doses de remédios psiquiátricos, para exasperação dos amigos, que lhe escrevem, a visitam e alertam.
Cortázar chega a mandar uma carta de Paris, enfurecido, ao saber da segunda tentativa, feita em 1971: "Só te aceito viva, assim te quero, Alejandra. Escreva-me, porra, e perdoa-me o tom."
O desespero dos amigos, porém, não consegue fazê-la mudar de ideia. Alguns meses antes de morrer, um ano depois da segunda tentativa de se matar, ela escreve um poema dedicado à cantora Janis Joplin (1943-70), que começa assim: "A cantar dulce y a morirse luego" (a cantar docemente e morrer em seguida).
Na manhã de 25 de setembro de 1972, na grande lousa que mantinha em seu apartamento ela gostava de ver os versos escritos ali, para depois passá-los para o papel, Pizarnik escreveu: "Não quero ir/ nada mais/ que até o fundo."
Nesse mesmo dia, ingeriu 50 pastilhas de Seconal Sódico —barbitúrico cuja dose letal ela passou dias estudando e morreu.

Sylvia Colombo, Folha de S. Paulo, 2018-02-18


Pizarnik (derecha), con Aurora Bernárdez y Laura Bataillon, la traductora de Julio Cortázar. http://www.elmundo.es/cultura/2016/12/23/585bbcd9268e3e46178b460f.html 
Fotografía: COL. MUSEO DEL ESCRITOR 




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