quinta-feira, 3 de maio de 2018

Ruy Cinatti

   Ruy Cinatti em Timor
(Espólio de Ruy Cinatti na Biblioteca Universitária João Paulo II, Universidade Católica Portuguesa)


RUY
CINATTI

Veio ainda criança para Portugal. Formou-se no Instituto Superior de Agronomia, na especialidade de Fitogeografia, área em que publicou vários trabalhos científicos. Em Oxford, estudou Etnologia e Antropologia Social. Viajou pelo Mundo, tendo vivido alguns anos em Timor, como secretário de gabinete do governador de Timor, entre 1946 e 1948, e como chefe dos serviços de Agricultura do governo de Timor, dedicando a este território vários estudos, na área da fitogeografia e da antropologia social, alguns dos quais publicados pela Junta de Investigação do Ultramar, de que foi investigador. Em 1940, codirigiu, com Tomás Kim e José Blanc de Portugal, na primeira série, e com Jorge de Sena, José Blanc de Portugal e José-Augusto França, na segunda série, a publicação Cadernos de Poesia, que, sob o emblema "Poesia é só uma", apresentava como objetivo "arquivar a atividade da poesia atual sem dependência de escolas ou grupos literários, estéticas ou doutrinas, fórmulas ou programas", subscrevendo, no início da segunda série, uma conceção de poesia como "um compromisso firmado entre um ser humano e o seu tempo, entre uma personalidade e uma sua consciência sensível do mundo, que mutuamente se definem" e uma definição de poeta como "homem destinado a nele se definir a humanidade. Um ser capaz de ter todo o passado íntegro no presente e capaz de transformar o presente integralmente em futuro", através de uma "atitude de lucidez, compreensão e independência". É nas edições Cadernos de Poesia que publica as suas primeiras obras poéticas: Nós Não Somos deste Mundo, em 1941 e, no ano seguinte, Anoitecendo a Vida Recomeça. Entre 1942 e 1943, fundou a revista Aventura, contando como redatores Eduardo Freitas da Costa, José Blanc de Portugal, Jorge de Sena e Manuel Braamcamp Sobral, e apresentando como coordenadas da publicação uma orientação espiritual católica, o acolhimento nas suas páginas de "todas as expressões de beleza, todas as formas do trabalho do homem", enquanto expressões de um "Deus - motivo de toda a criação, origem de toda a justiça", seja sob a forma de contribuições de ordem literária, artística, filosófica, religiosa ou científica; e a união dos seus membros num "processo de integração espiritual", numa "cidadela fundamentada na AMIZADE". A partir de O Livro do Nómada Meu Amigo, de 1958, a presença dos territórios por onde viajou e, sobretudo, de Timor assumir-se-á como "objeto em que se concretiza a aproximação do poeta consigo mesmo e com a vida humana dos outros" (SENA, Jorge de - "Nota de Abertura" a Paisagens Timorenses com Vultos, 1974). Numa viagem que vai do sensível ao metafísico, a poesia parte então do deslumbramento diante da paisagem, para, do seu "manuseamento subjetivo" ("Justificação" do autor a Uma Sequência Timorense, 1970), ir ao encontro total do indivíduo consigo, com o outro e com Deus, numa "experiência pouco menos que mística" (ibi), para voltar como "homem - perene político", ao mundo da circunstância existencial e das exigências éticas, manifestando a indignação e a dor ante a destruição ecológica, a desagregação caótica das sociedades ultramarinas, o devir anárquico do Portugal pós-25 de abril. Mercê do seu trajeto profissional e de uma personalidade que recusou integrar qualquer tipo de "grupelhos" ideológicos ou literários, a poesia de Ruy Cinatti possui uma voz própria, sem comparação com qualquer outra experiência poética contemporânea, nascida de uma liberdade métrica e lexical total, que consegue integrar na obra poética materiais tradicionalmente não poéticos; eivada de uma particular relação a espaços e populações, cuja fragilidade parece condená-los a uma exterminação contra a qual o poeta tinha consciência de não poder lutar, mas que motiva composições de revolta e de grande intensidade emocional, como as de Timor-Amor ou de Paisagens Timorenses com Vultos; originalidade reforçada por uma "associação entre a alma e a natureza, que mutuamente se correspondem e interpenetram" (cf. AMARAL, Fernando Pinto do - prefácio a Obra Poética, 1992, p. 20), e que impõe a leitura, na sua poesia de outras viagens, as da peregrinação interior do homem "que a si próprio impõe o conhecimento do ser para poder salvar-se, como homem e como alma" ("Comentário Disponível" do autor, Obra Poética, p. 156). 
Ruy Cinatti foi distinguido com o Prémio Antero de Quental, pela obra O Livro do meu Amigo Nómada (1958), e com o Prémio Nacional de Poesia, por Sete Septetos (1967).

 in  http://www.infopedia.pt/$ruy-cinatti, Porto: Porto Editora, 2003-2016. 







Para Ruy Cinatti, regressar à terra significa, a um nível imediato, regressar à origem, "missão do poeta que de uma vez para sempre se colocou perante si e a Natureza naquele estado puro com que nasceu" (apud Stilwell 1995, 45). Só que a pulsão da origem e a busca desse estado puro traduzem-se obrigatoriamente na primeira pulsação do olhar em estado nascente, e é neste sentido concreto que a divisa "olhos novos para contemplar mundos novos", gravada à mão num apontamento inédito que evoca "uma noite no mar alto algures entre Cabo Verde e Bissau" (idem, 3z e 394), deve ser equacionada como a dobradiça que articula dois dos grandes núcleos temáticos que compõem a obra poética de Ruy Cinatti, a infância e a viagem. […]
A infância e a viagem constituem os dois estados nascentes de um poeta que, ao emergir da sua crisálida, entende que partir equivale rigorosamente a nascer. O que está em causa é apenas a mais completa novidade e a contínua surpresa do mundo, facultadas pela visão em permanente estado de deslumbramento. Se existe um impulso adâmico na poesia de Ruy Cinatti, é aqui que ele se situa, no lugar onde o princípio do homem e o princípio da humanidade, a Infância e o Paraíso se cruzam no movimento das pálpebras que pela primeira vez se abrem, para contemplar à luz do sol, como quis Caeiro, "a eterna novidade do Mundo", contrariando o entrópico "tédio da retina" instaurado pela rotina, a fim de aí se gerarem as "palavras nunca escritas" (idem: 342) e de se consumar essa singular identidade entre Poeta e Criança que Baudelaire apregoou em termos inesquecíveis. Neste contexto, toma todo o sentido a citação que Ruy Cinatti faz de George Calderon, sobre um Tahitiano, "Tudo o que Amaru faz é poesia, porque ele começa sempre no princípio" (apud Stilwell 1995: 241). Como em Caeiro, trata se de aprender a desaprender, ou de preservar aquilo a que Cinatti expressivamente chama, em Memória Descritiva, o "dom de pasmar" (Cinatti 1992: 328). O pasmo provoca o espasmo do olhar perante o mundo, colocando os "olhos fora d'órbita" (idem: 374), e esta é a mais essencial deslocação que gera aquilo que João Gaspar Simões designou como o "nomadismo estrutural" de Ruy Cinatti (Simões 1999a: 307) – encetado com os "olhos vagabundos" de O Livro do Nómada Meu Amigo (Cinatti 1992: 109) -, assim como a composição mais adolescente do que propriamente infantil do seu verso. […]

Ler mais: “Olhos novos para contemplar mundos novos: corografias de Ruy Cinatti”, Joana Matos Frias. Cadernos de Literatura Comparada - 24/25. Deslocações Criativas. Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, junho/ dezembro 2011


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    A Geração dos Cadernos de Poesia
 
Quando se extingue a revista Presença e começa a ganhar força o movimento neorrealista, a literatura portuguesa vive um clima de irredutível polémica entre as conceções da «poesia pura» e da «poesia social», que no fundo representa uma crise do processo modernista iniciado pela geração de Orpheu. É com o propósito de empreenderem uma superação ética do impasse, sem prejuízo da diversidade estética, que surgem os Cadernos de Poesia (1940-1953), dirigidos por Tomaz Kim, José Blanc de Portugal e Ruy Cinatti. Todavia, o empreendimento irá frutificar numa atitude original que concilia o esteticismo modernista e o empenhamento ético da poesia. Alguns dos autores associados aos Cadernos de Poesia, como Jorge de Sena, Sophia de Mello Breyner Andresen e Eugénio de Andrade, terão uma influência decisiva nas opções estéticas das novas gerações a partir de meados do século.

 

 
Ruy Cinatti

 

O percurso biográfico de Ruy Cinatti (Londres, 1915 - Lisboa, 1986) contribui em grande parte para a compreensão da poesia de que é autor, desde a sua íntima relação com a Inglaterra, onde nasceu e fez estudos de etnologia e antropologia social, o que lhe possibilitou o conhecimento da literatura inglesa contemporânea, até aos trabalhos de pesquisa, enquanto engenheiro agrónomo, nas áreas da fitogeografia e da meteorologia, ou, ainda, até às ligações profissionais e vivenciais com o então Ultramar português e às sucessivas permanências em Timor, de 1946 a 1966.
Cinco anos após a publicação, em 1936, na revista Mundo Português, do conto juvenil Ossobó, reeditado em 1967, Ruy Cinatti estreia-se em livro, numa edição dos Cadernos de Poesia, com Nós não Somos deste Mundo (1941), patenteando uma discursividade romântica plena de referências católicas, que irá progredir para um misto de imagismo firme, conciso, e de prosaísmo circunstancial cuja originalidade figura entre as mais notáveis expressões poéticas do século XX. A representação imediata e evasiva do sentimento religioso cedo se contém num abstracionismo emocional com preocupações ético-humanistas e numa ironia transcendente moldada em intensas fulgurações imagísticas do real concreto. No essencial, a poesia de Ruy Cinatti estriba-se numa retórica contrapontística, ao mesmo tempo elíptica e aglomerativa, ou simbolista e realista, dispersando-se pela tematização, em registos que oscilam entre a melancolia e a violência satírica, dos mundos dissipados com a queda do Império e a Revolução de Abril, «ilhas perdidas» de que S. Tomé e Timor representam a figuração absoluta. Emocionalmente meditativa e narrativa, de expressão agreste e enxuta, é sua característica específica a mestria com que funde descrição e alusão num antilirismo épico conduzido pelo rigor fenomenológico, não raro fotográfico ou cinematográfico, das «imagens radiantes / que se antepõem / indiferentes a toda a estilística», pela vivência imanente do tempo como fluxo de aparições concretas e, de forma notória, pelo nomadismo heterotópico de uma «corografia emotiva» cheia de floras, faunas e sinais antropológicos de uma nitidez deslumbrante.
Em 1942, ano em que funda a revista Aventura (1942-1944), o autor publica, ainda sob a égide dos Cadernos de Poesia, o segundo volume de poemas, Anoitecendo, a Vida Recomeça. Em 1958, com O Livro do Nómada Meu Amigo, encerra o que podemos considerar um primeiro de quatro ciclos imbricados na sua evolução poética. Em Nós não Somos deste Mundo, destaca-se um adolescentismo contemplativo e alegórico, por vezes rememorativo e de grande densidade metafórica, variando entre o panteísmo paradisíaco em «horizontes tropicais» onde se revela a «terra genesíaca», o visionarismo rimbaldiano que sonda «os acordes secretos I Do mais íntimo ser» e a religiosidade vincadamente católica que faz vibrar no verso o encantamento de Deus. Em Anoitecendo, a Vida Recomeça, num discurso mais metafórico e evocativo, adensa-se a vidência de um sujeito que se forma entre o sentimento de «saudade de uma luz perfeita» e a meditação sobre um futuro figurado como «inocência do mundo», a escuta da «intimidade I Dos ritmos naturais» e a imaginação prosopopeica da «linguagem das coisas, linguagem do inanimado movendo-se». A conciliação do animismo e do nomadismo, que se faz sentir nestes dois conjuntos, vai atingir um alto grau de tensão com O Livro do Nómada Meu Amigo, em que o sonho de um mundo oculto a reaver acaba por coexistir com o despertar de um estado de vigília, a que a evidência da memória e a solidão meditativa trazem um acréscimo de atenção, voltada para a condição humana sob o olhar integrador de Deus (cf. «O Fenómeno Humano»: «A terra inteira erguida ao céu profundo. / Cada passo da História me é presente. / Sou o compasso do mundo. // Nele caminho, nele contemplo o nadai Da minha condição que é toda a sua»). A esta passagem da posição de vidência para uma posição de vigilância corresponde a descoberta de um sujeito que pensa e que instala na metáfora a função ordenadora de uma dualidade retórica, habilmente estruturada pela brevidade e pelo desenvolvimento discursivo (cf. «Linha de Rumo»: «Medito. Ordeno. / Penso o futuro a haver. / E sigo deslumbrado o pensamento I Que se descobre»).
O segundo ciclo, que compreende e consolida os traços mais característicos e originais da poética do autor, é representado por Sete Septetos (1967), O Tédio Recompensado (1968), Memória Descritiva (1971), Conversa de Rotina (1973) e 56 Poemas (1981). O conjunto de 1967, livro magistral a vários títulos, aprofunda os temas do nomadismo e da demanda do espaço paradisíaco («A dolorosa mensagem / da nossa vida / é esta: caminhar sempre»; «as voltas que dou ao mundo / em busca de paraísos»), mas introduz, numa linguagem mais analítica, meditativa e concreta, uma orientação temática para a intersubjetividade e a historicidade humanas, a liberdade e o amor, a justiça, a visão e a cegueira (cf. o admirável «Primeiro Septeto»). O Tédio Recompensado, mediante uma poética da literalidade e um discurso da evidência ecfrástica, incisivo na ironia e nas imagens, provoca uma passagem irreversível da esfera contemplativa para o plano da ação, do sonho para a vigília, do infigurável para a figurabilidade da presença («Dá-te apenas na ação que é a palavra / mais certa deste mundo»; «Livrai-me dos sonhos /em delírio»; «Perturba / o ar com a tua presença»), o que permite alargar o raio intencional a áreas temáticas como a condição humana, a incomunicabilidade e o humanismo filantrópico, ou a vivências concretas como a da solidão no mundo e a da perceção do trágico, a do quotidiano lisboeta e a de inúmeros lugares exóticos. Memória Descritiva é, como o título sugere, um livro que se estrutura sobre uma enunciação onde a memória do tempo e do espaço instala o tempo e o lugar da memória como origem da figura no interior do discurso, isto é, como origem diferencial de uma visualidade interna fundada na experiência do olhar, «contra o tédio da retina» e «o imbecil quotidiano», e numa objetividade desenhada pelo fluxo dos estados de consciência poeticamente vividos. O envolvimento retórico da loci descriptio, o eliptismo sintático da expressão direta, os sucessivos efeitos de naturalidade ou banalidade e a truculência satírica sem freio sustentam em grande medida a força desautomatizante do verso e da imagem, contra «Esta coisa tão alta e tão bisonha I de fazer versos como quem mete a rolha / na boca». Conversa de Rotina, de título igualmente motivado, representa sobretudo uma deriva para uma poética da coloquialidade, tecida por um «tom distraído» caricaturalmente rotineiro, irónico ou satírico, de que resulta uma originalíssima «poesia feita / em forma de piada» a que não falta o ludismo da invenção verbal, saltitando com desenvoltura por «Faits Divers» como «A Força do Hábito», «A Pequena Angústia», o «tedium-vitae» ou a «Conversa de sempre». Neste livro, que figura o «Mundo real anunciado», o invisível enquanto objeto poético é submetido a uma negação radical, que desprende Ruy Cinatti da linha rimbaldiana e rilkiana recenseável em muitos dos seus versos (veja-se, por exemplo, «Lembrando um Cão Chamado Zambeze»: «Por onde andamos nós, poetas, vendo loque não vemos?»). Por fim, 56 Poemas, com organização de João Miguel Fernandes Jorge, consiste numa antologia de «poemas anteriormente publicados em folhas volantes e depois agrupados em coletâneas ainda inéditas», e nela sobressaem, por um lado, o tom não raro burlesco, ácido e verrinoso, o erotismo e o humor negro, o fait -divers e os costumes, definições botânicas eruditas e abundantes referências culturais, uma topografia poética que presentifica paisagens e lugares como Veneza, Beira ou Timor, e, por outro lado, a reconciliação dos pólos místico e empenhado, da atitude religiosa e do enlace intersubjetivo («O que procuro - algumas palavras / que me revelem o prodigioso / mistério aberto entre duas almas»).
O terceiro ciclo prossegue o mesmo tipo de disposição retórica, mas é determinado por uma explícita unidade temática, referente à vivência poética do antigo espaço ultramarino português, com especial destaque para Timor, e à descrição dolorosa de um império em ruínas ante o olhar desesperado do sujeito. Integra os conjuntos Crónica Cabo-Verdiana (1967), Uma Sequência Timorense (1970), Os Poemas do Itinerário Angolano (1974), Timor-Amor (1974), Paisagens Timorenses com Vultos (1974) e Lembranças para S. Tomé e Príncipe - 1972 (1979). Crónica Cabo-Verdiana, subscrito pelo pseudónimo Júlio Celso Delgado, exibe uma desassombrada sátira ao colonizador e seus instrumentos de repressão, em contraponto com a representação lacerante da seca e da fome, da miséria, dos costumes e das lendas que tipificam o colonizado. Dando mostras de uma vasta gama de recursos, Ruy Cinatti compõe uma polifonia textual plena de variações de registo e de sobreposições de planos espácio-temporais, por onde perpassam continuamente o pitoresco da linguagem local e a ironia do concreto em narrativas versificadas de tonalidade popular, transcrições paródicas e anotações socioculturais, estatísticas ou geográficas de alto teor corrosivo. Uma Sequência Timorense, diretamente conectado a O Livro do Nómada Meu Amigo mediante a importação de uma dúzia de poemas, assume, conforme declara o poeta na «Justificação» preliminar, o estatuto de testemunho de «experiências de vida» em Timor. Conjunto de «meditações de um agrónomo-fito geógrafo e de um antropólogo» que testemunham «uma existência condicionada por determinantes morais e científicas», representa o «complemento de um ajuste de contas iniciado em Sete Septetos, estes voltados para o indivíduo e para o seu mundo ético e metafísico». O «poema-crónica» enraíza-se no «mundo da circunstância existencial» e visa desenvolver a dialética «pensamento e ação», isto é, a ideia de transformação da realidade através da linguagem poética. Assiste-se, verso após verso, à narração de «factos da experiência», com alternância de pequenas histórias e meditações existenciais, e à descrição ecfrástica de lugares, com uma toponímia local e um exotismo vocabular sob uma atmosfera de fome, crenças e lendas, numa osmose de naturezas que opera uma perfeita adequação e uma recíproca vibração entre a secura da paisagem e a secura da língua: «o estilo seco / da paisagem:/ letra de ninguém/ na minha prosa [...]. Fascino-me,/ moendo, remoendo até ao cimo/ palavras também secas, / quase estilhaçadas». Esta aderência, mais dialética do que mimológica, catalisa um efeito de vertigem e metamorfose, que a «terrível mutação das formas naturais» e os «pedaços de realidade sentidos até ao paroxismo» procuram sintetizar numa linguagem taquigráfica sacudida por constantes rajadas de imagens. Este livro terá uma solução de continuidade temática, em 1974, por um lado, em Timor-Amor, canto amoroso à «mulher-ilha» no «momento histórico» da ocupação indonésia, percorrido por ondas de um polemismo que não se resigna com o desinteresse do poder revolucionário português pelo destino do território, e, por outro lado, em Paisagens Timorenses com Vultos (nota de abertura de Jorge de Sena), uma «corografia emotiva de Timor» invadida por vivências e itinerários «do nómada meu amigo». Os Poemas do Itinerário Angolano oferece sucessões de relatos de viagem por terras de Angola, intensificados, mediante uma técnica de justaposição de imagens que gera um efeito fenomenológico de aparição súbita, por descrições e anotações de ordem histórica ou geográfica. Lembranças para S. Tomé e Príncipe -1972 reinstaura a memória na origem do poema, ao fixar instantâneos da «ilha-memória» de que Ossobó já dera conta, na sequência de uma viagem tropical do poeta em 1935. A escrita, na «precisão íntima» das imagens, apresenta-se como ato de reconstituição de ilhas edénicas e luxuriantes que, sendo objetos concretos de uma visão poética, geograficamente localizados, com o seu panorama e os seus vestígios do passado, não deixam de preencher o tópico de uma utopia do espaço insular originário, de uma «manhã imensa» que percorre toda a mitologia de Ruy Cinatti.
Por fim, o quarto ciclo, ostensivamente satírico e panfletário, subaproveitando de forma intencional as qualidades da linguagem direta e agreste refinadas a partir de Sete Septetos, engloba Borda d'Alma (1970), Cravo Singular (1974), O a Fazer, Faz-se (1976) e Import-Export (1976). Borda d'Alma, saído em edição ciclostilada, fora do mercado (2.ª ed., 1973), contando com a colaboração «contrapontística» de José Blanc de Portugal e declarando-se impressa «Na Oficina dos antigos 'Cadernos de Poesia'», procede, na totalidade dos poemas, datados de 1969, a uma sátira corrosiva, com nuances parodísticas e derisórias, do sistema eleitoral e da classe política, do regime fascista e da guerra colonial, do destino da Pátria e do Império. Por seu turno, Cravo Singular constitui uma sátira violenta, a quente, dos caminhos revolucionários de Abril. Escritos nos dias que se seguiram à Revolução de 1974, os poemetos, não raro simples pinceladas verbais, registam testemunhos em direto de um observador que se vê a si mesmo alterado pelo excesso das circunstâncias e derrubado do alto da sua euforia para o fundo da desilusão e da amargura, exalando um estado de espírito em tudo semelhante ao evidenciado no «protesto» de Timor-Amor. O rescaldo da Revolução será objeto de O a Fazer, Faz-se e Import-Export, respetivamente «meditação quotidiana» e «memória descritiva» dos «pós-tempos do 25 de Abril», portanto ainda referenciais e de incidências satíricas, com incremento de cedências ao banal da expressão e à expressão do banal. O ciclo termina, significativamente, com o efeito de distorção da paródia anfigúrica intitulada «Ponto Final»: «6 giligentes aplioides puntos / finisterraicos médio bibilutos / colidos látê os maléculoides».
Fora destes quatro ciclos encontra-se o derradeiro livro publicado em vida do autor, Manhã Imensa (1984), que na economia da obra desempenha uma função de síntese e de cúpula. Sob o signo de Calderón, a vida, de que esta poesia procurou figurar e transfigurar experiências radicalmente vividas, reduz-se ao seu sentido essencial de teatro do mundo. Assim, a poesia de Ruy Cinatti, quando parece «anoitecer» e apagar-se na noite escura, ilumina-se e «recomeça» no deslumbramento matinal de uma «manhã imensa». A origem da poesia regressa numa nova claridade: a vivência alucinatória do sonho, o visionarismo diabolizado, e sempre a carga simbólica de um paraíso terrestre, entre Deus e Timor.
De Ruy Cinatti, também autor de vários trabalhos científicos nos domínios da fitogeografia, da meteorologia e da antropologia cultural, foi ainda editada, em 1951, a antologia Poemas Escolhidos, sob a égide dos Cadernos de Poesia, com organização de Alberto de Lacerda. Apesar de ter vindo a público, em 1992, o volume de conjunto Obra Poética (org. de Fernando Pinto do Amaral), permanecem inéditos, no espólio legado à Casa do Gaiato de Lisboa, numerosos textos epistolares, documentais e literários, a cargo de Peter Stilwell. Nos últimos anos, foram dados à estampa os livros de versos Corpo-Alma (1994), Tempo da Cidade (1996), Um Cancioneiro para Timor (1996) e Archaeologia ad Usum Animae (2000).
Luís Adriano Carlos, História da Literatura Portuguesa.
Volume 7. As Correntes Contemporâneas, Lisboa, Publicações Alfa, 2002




Meninos tomaram coragem
Para beberem os rios;
E começaram viagem
Para chegarem aos rios.

Manhã de partida,
Tão fria, tão alva.
Horizonte encantado.
“Olhai, que ali nos vamos”.

Músculos ainda tenros
Empurraram montanhas.
As fontes da água
Resvalam nos vales.

Na foz de todos os rios
Os meninos estão velhos.
A água bebida
Vem do mar profundo.

Meninos bailai.
Bebei os soluços,
Mas dançai, dançai…
Até cair de bruços.

Ruy Cinatti, Nós não Somos deste Mundo


Questionário sobre o poema “Meninos tomaram coragem”, de Ruy Cinatti:

 

1. Regista expressões ou versos que remetam para

a) Percurso

b) Obstáculos

c) Objetivos

d) Determinação

 

2. Podemos dizer que este poema expressa o caminho que se percorre ao longo da vida, desde a infância até à velhice? Justifica a tua resposta.

 

3. Explicita o apelo que o sujeito poético lança na última estrofe.

 

à Assistir à aula n.º 50 de Português – 7.º e 8.º anos (Projeto #ESTUDOEMCASA), sobre "Menino e moço", de António Nobre. "Meninos tomaram coragem", de Ruy Cinatti, 2021-05-04. Disponível em https://www.rtp.pt/play/estudoemcasa/p7828/e541375/portugues-7-e-8-anos (inicia no minuto 14’ 26’’).







***


Quando eu partir, quando eu partir de novo,
A alma e o corpo unidos,
Num último e derradeiro esforço de criação;
Quando eu partir...
Como se um outro ser nascesse
De uma crisálida prestes a morrer sobre um muro estéril,
sem que o milagre lhe abrisse
As janelas da vida... –
Então pertencer-me-ei.
Na minha solidão, as minhas lágrimas
Hão de ter o gosto dos horizontes sonhados na adolescência,
eu serei o senhor da minha própria liberdade.
Nada ficará no lugar que eu ocupei.
O último adeus virá daquelas mãos abertas
Que hão de abençoar um mundo renegado
No silêncio de uma noite em que um navio
Me levar para sempre
Mas ali
Hei de habitar no coração de certos que me amaram;
Ali hei de ser eu como eles próprios me sonharam;
Irremediavelmente...
Para sempre.

Ruy Cinatti, Nós não Somos deste Mundo

***

Linha de rumo

Quem não me deu Amor, não me deu nada.
Encontro-me parado…
Olho em redor e vejo inacabado
O meu mundo melhor.
Tanto tempo perdido…
Com que saudade o lembro e o bendigo:
Campos de flores
E silvas…
Fonte da vida fui. Medito. Ordeno.
Penso o futuro a haver.
E sigo deslumbrado o pensamento
Que se descobre.
Quem não me deu Amor, não me deu nada.
Desterrado,
Desterrado prossigo.
E sonho-me sem Pátria e sem Amigos.
Adrede.

Ruy Cinatti, O Livro do Nómada meu Amigo, Guimarães Editores, 1966


Vocabulário:
Linha de Rumo (título): linha que um navio segue, cortando todos os meridianos sob o mesmo ângulo; linha orientadora.
Desterrado (v. 14): expatriado; exilado.
Adrede (v. 17): propositadamente; deliberadamente.

Questionário sobre o poema “Linha de rumo”:   
  1. Transcreve o verso que comprova que o Amor constitui a razão de viver do sujeito poético.
  2. Explicita a ideia contida no verso “Tanto tempo perdido…” (v. 5), evidenciando o motivo que justifica esta afirmação.
  3. Indica a razão pela qual a frase “Fonte da vida fui” (v. 9) pode ser considerada uma metáfora, identificando o sentimento que domina o sujeito poético.
  4. Explica o sentido do verso “E sonho-me sem Pátria e sem Amigos.” (v. 16), relacionando-o com o último verso. 


Novas Leituras. Português 7.º Ano (nova edição), Alice Amaro.
Lisboa, ASA Editores, 2014, p. 220. ISBN: 978-989-23-2258- 2


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Análise

A ilha é de terra e água
e de efeito contra-mútuo:
floresta que, tal a vaga,
ascende do mar à nuvem.
O ar respiram-no todos:
plantas, animais e homens
que no fogo forjam armas
e com elas ferem lume.
O fogo consome os homens
em sua nudez telúrica.
Água, fogo, terra e ar
nutrem de nervo e alma
um panorama essencial.
O fogo é o mais obscuro.

Ruy Cinatti, Uma Sequência Timorense



Morte em Timor

Sobre Timor um fogo fino paira,
alastra, crepita quando da terra se aproxima
e crescente, envolvente, cerca os montes
e coroa se afirma.

Meus olhos sentem a beleza rubra
ululante de cães pela noite fora,
a paciência da floresta destruída,
catana na raiz e depois cinza.

Minha incompreensão em vão procura
ressuscitar as crenças vãs de outrora,
os bosques sagrados onde o frio habita
no temor que as mãos prende e petrifica.

Minha imaginação em vão procura
deter com astros e outras mãos a sina
insidiosa qual a morte de homem
ancorado na árvore que sobre a terra se persigna.

E vejo um monte de palha
ardendo do cimo ao mar que ondula e se derrama nas praias
e contra o denso fumo que circunda,
avanço, resoluto, archote em vida,
proclamando a verdade do cântico,
a dança terreal que me fascina.


Ruy Cinatti, Uma Sequência Timorense


Questionário sobre os poemas “Análise” e “Morte em Timor”:

1. Atenta nos versos:
“O fogo é o mais obscuro.” (in “Análise”, v. 14)
 “Sobre Timor um fogo fino paira.” (in “Morte em Timor”, v. 1)
1.1. Retira dos poemas “Análise” e “Morte em Timor” as palavras/expressões relacionadas com o fogo.
1.2. Na tua opinião, que realidade pretende o sujeito poético transmitir sobre Timor?
1.3. O que tenta o sujeito poético fazer para mudar esta realidade? Justifica com dados textuais retirados do poema “Morte em Timor”.
1.4. Apresenta uma diferença (formal ou temática) entre os dois textos.

Contos & Recontos – Português 7.º Ano (Versão Atualizada – Metas). Carla Marques e Inês Silva, Lisboa, ASA Editores, 2014, pp. 200-201. ISBN: 9789892322551.




Ligações externas:


 BIBLIOTECA UNIVERSITÁRIA JOÃO PAULO II:



CASTELO, Cláudia. Ruy Cinatti: poeta, “agrónomo e etnólogo”, instigador de pesquisas em Timor. In: Atas do Colóquio Timor: Missões Científicas e Antropologia Colonial. AHU, 24‐25 de maio de 2011.

COSTA, Letícia Villela Lima da. Ruy Cinatti: o engenheiro das flores. Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, 2004.

COSTA, Letícia Villela Lima da. Metáforas do Mosaico: Timor Leste em Ruy Cinatti e Luis Cardoso. (Tese) Universidade de São Paulo, 2012.

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CARREIRO, José. Ruy Cinatti. Portugal, Folha de Poesia, 03-05-2018 (última atualização: 20-07-2022). Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2018/05/ruy-cinatti.html (1.ª edição: Lusofonia - Plataforma de Apoio ao Estudo da Língua Portuguesa no Mundo, 2016. Projeto concebido por José Carreiro, disponível em http://lusofonia.x10.mx/literatura_portuguesa/RuyCinatti.htm)