domingo, 10 de junho de 2018

«Camões e a Tença» ou «Que farei(s) com este livro?»




   
      CAMÕES E A TENÇA



     Irás ao paço. Irás pedir que a tença
     seja paga na data combinada
     Este país te mata lentamente
     País que tu chamaste e não responde
     País que tu nomeias e não nasce

     Em tua perdição se conjuraram
     calúnias desamor inveja ardente
     e sempre os inimigos sobejaram
     a quem ousou seu ser inteiramente

     E aqueles que invocaste não te viram
     porque estavam curvados e dobrados
     pela paciência cuja mão de cinza
     tinha apagado os olhos no seu rosto

     Irás ao paço irás pacientemente
     pois não te pedem canto mas paciência


     Este país te mata lentamente


Sophia de Mello Breyner Andresen, Dual, 1972



Questionário

1. Caracterize as relações entre Camões e o Paço referidas no poema (vv. 1-3 e 14-16).

2. Apresente uma leitura possível para a expressão «ousou seu ser inteiramente» (v. 9).

3. Explicite o sentido das metáforas presentes nos versos 12 e 13.

4. Comente, na sua dimensão simbólica, este retrato de Camões.



Cenários de respostas

1. A característica principal dessas relações é a dependência, pois Camões precisa da tença que lhe é paga pelo Paço para sobreviver, embora ela seja escassa e paga com dificuldade. Associados a essa dependência estão a humilhação e o desconforto, dado que a tença não é um reconhecimento do seu talento de poeta, mas uma esmola pela qual o fazem esperar.

2. A expressão «ousou seu ser inteiramente» (v. 9) pode, por exemplo, remeter para uma das seguintes leituras:
– a figura do poeta que cantou a pátria nos feitos gloriosos das suas viagens marítimas, mas também arriscou viajar pelo mesmo mundo que essas viagens descobriram;
– a corajosa aventura que constituiu a vida do poeta, por oposição aos que ficaram «curvados e dobrados» (v. 11), alimentando «Calúnias desamor inveja ardente» (v. 7);
– a independência total com que o poeta escreveu, sem patronos nem protetores que lhe assegurassem a subsistência e lhe condicionassem o discurso.

3. Os versos «Pela paciência cuja mão de cinza / Tinha apagado os olhos no seu rosto» (vv. 12-13) contêm uma sequência de duas metáforas: a primeira é «mão de cinza», significando a indiferença ou o entristecimento a que essa paciência acaba por conduzir, e a segunda é «Tinha apagado os olhos no seu rosto», significando, nomeadamente, a perda da lucidez e da consciência crítica.

4. Este poema oferece um retrato dos últimos anos de vida de Camões. Um elemento especialmente importante da sua dimensão simbólica é formulado por um verso que não só se encontra repetido como é aquele que termina o poema: «Este país te mata lentamente» (vv. 3 e 16). Por ele se exprime a ideia de que a devoção, o empenho e o génio do poeta foram sistematicamente incompreendidos e desprezados por «Calúnias desamor inveja» (v. 7) dos seus contemporâneos. A condição do homem que é capaz do «canto» (v. 15) mais elevado – mas a quem só pedem «paciência» (v. 15) – é, então, marcada pela impotência e pela desilusão.

Prova Escrita de Literatura Portuguesa - 10.º e 11.º Anos de Escolaridade. Prova 734/2.ª Fase (Exame Nacional do Ensino Secundário, Decreto-Lei n.º 74/2004, de 26 de março). GAVE, 2011

 


     POEMA PARA LUÍS DE CAMÕES

     A terra basta onde o caminho pára,
     Na figura do corpo está a escala do mundo.
     Olho cansado as mãos, o meu trabalho,
     E sei, se tanto um homem sabe,
     As veredas mais fundas da palavra
     E do espaço maior que, por trás dela,
     São as terras da alma.
     E também sei da luz e da memória,
     Das correntes do sangue o desafio
     Por cima da fronteira e da diferença.

     Meu amigo, meu espanto, meu convívio,
     Quem pudera dizer-te estas grandezas,
     Que eu não falo do mar, e o céu é nada
     Se nos olhos me cabe.
     A terra basta onde o caminho pára,
     Na figura do corpo está a escala do mundo.
     Olho cansado as mãos, o meu trabalho,
     E sei, se tanto um homem sabe,
     As veredas mais fundas da palavra
     E do espaço maior que, por trás dela,
     São as terras da alma.
     E também sei da luz e da memória,
     Das correntes do sangue o desafio
     Por cima da fronteira e da diferença.
     E a ardência das pedras, a dura combustão
     Dos corpos percutidos como sílex,
     E as grutas do pavor, onde as sombras
     De peixes irreais entram as portas
     Da última razão, que se esconde
     Sob a névoa confusa do discurso.
     E depois o silêncio, e a gravidade
     Das estátuas jazentes, repousando,
     Não mortas, não geladas, devolvidas
     À vida inesperada, descoberta.

     E depois, verticais, as labaredas
     Ateadas nas frontes como espadas,
     E os corpos levantados, as mãos presas,
     E o instante dos olhos que se fundem
     Na lágrima comum. Assim o caos
     Devagar se ordenou entre as estrelas.

     Eram estas as grandezas que dizia
     Ou diria o meu espanto, se dizê-las
     Já não fosse este canto.

José Saramago, Poemas Possíveis, 1966 e Provavelmente Alegria, 1970



     QUE FAREI COM ESTE LIVRO?

Palácio do conde de Vidigueira. D. Vasco da Gama1, a condessa D. Maria de Ataíde, Luís de Camões, frei Manuel da Encarnação, aias, moços de câmara.

CONDE DE VIDIGUEIRA
(A quem um criado veio dar um recado em voz baixa)
Trá-lo cá. (Para a condessa.) Vem aí Luís Vaz de Camões saber a resposta à sua carta. (Para os outros.) Não vos retireis, que o negócio é de pouca monta2 e nenhum segredo...

LUÍS DE CAMÕES
(À entrada)
Senhor conde... (Faz vénia, depois repete-a na direção da condessa.) Senhora condessa...

CONDE DE VIDIGUEIRA
Entrai, senhor Luís Vaz.

LUÍS DE CAMÕES
Recebi o vosso recado, senhor conde. Vossa Mercê mandou-me chamar, aqui estou... Posso esperar que tenhais lido a minha carta e as oitavas que juntei?

CONDE DE VIDIGUEIRA
Li a carta e os mais papéis que vieram com ela. Dizei por claro o que pretendeis.

LUÍS DE CAMÕES
Senhor conde, a carta pedia a vossa proteção para as oitavas que por cópia estão em vossas mãos e para as irmãs delas que em minha casa ficaram. Disse-vos que é uma obra composta sobre os feitos dos portugueses e a navegação para a Índia, em que esteve vosso avô como capitão-mor.

CONDE DE VIDIGUEIRA
Decerto não quereis contar-me a história da minha família. (Risos das aias.)

LUÍS DE CAMÕES
Não poderia ser essa a minha intenção. Vossa Mercê mandou que por claro me explicasse.

CONDE DE VIDIGUEIRA
Mas não para vos ouvir repetir a carta nem os versos. Abreviemos.

LUÍS DE CAMÕES
Espero a resposta de Vossa Mercê.

CONDE DE VIDIGUEIRA
Por escrito a receberíeis, mas em atenção à memória de meu avô e de meu pai, a quem sucedi nesta casa da Vidigueira, mandei-vos chamar. Pedis proteção na vossa carta. Que proteção é a que esperais?

LUÍS DE CAMÕES
A que for justa para a minha obra e digna da memória do vosso antepassado.


José Saramago, Que Farei com Este Livro?, Lisboa, Caminho, 1980

Vocabulário e notas
1 D. Vasco da Gama – terceiro conde de Vidigueira, neto do navegador Vasco da Gama.
2 monta – importância.

Questionário
1. Identifica as personagens referidas na indicação cénica «(Para os outros.)» (linhas 5 e 6).

2. Indica a que se refere Luís de Camões com as expressões «oitavas» (linha 18) e «obra composta sobre os feitos dos portugueses e a navegação para a Índia» (linhas 19 e 20).
Justifica a tua resposta.

3. Relê as linhas 17 a 20.
Indica a razão pela qual Luís de Camões dirige ao conde de Vidigueira o pedido de proteção.

4. Na sua quarta fala, o conde de Vidigueira afirma: «Decerto não quereis contar-me a história da minha família.» (linha 22).
Explica estas palavras do conde, evidenciando a sua intenção ao proferi-las.

5. Lê o comentário seguinte.
Pela leitura das falas do conde de Vidigueira, percebe-se que ele não vai conceder a proteção pedida por Luís de Camões.
Apresenta dois argumentos a favor deste comentário, considerando as falas do conde ao longo do texto.


Cenários de respostas

1. Identifica frei Manuel da Encarnação, aias e moços de câmara.

2. Indica que Luís de Camões se refere a Os Lusíadas e justifica, afirmando que é uma obra escrita em estrofes de oito versos, que tem como matéria os feitos dos portugueses e a viagem para a Índia.

3. Indica que Luís de Camões dirige ao conde de Vidigueira o seu pedido, uma vez que há uma relação de parentesco entre o conde e Vasco da Gama, personagem da obra para a qual Camões pede proteção.

4. Explica que o conde quer mostrar a Luís de Camões que este não pode ter a pretensão de lhe contar a história da sua própria família e refere que a intenção do conde é menosprezar Luís de Camões.

5. Argumenta que as falas do conde de Vidigueira indiciam que ele não vai conceder a proteção pedida, por um lado, por não considerar o assunto importante – «o negócio é de pouca monta» (linha 6) – e, por outro, por manifestar impaciência em falas como «Decerto não quereis contar-me a história da minha família.» (linha 22) ou «Abreviemos.» (linha 26).

Prova Escrita de Língua Portuguesa - 3.º Ciclo do Ensino Básico. Prova 22/1.ª Chamada (Exame Nacional do Ensino Secundário, Decreto-Lei n.º 6/2001, de 18 de janeiro). GAVE, 2011





Lisboa, Mouraria, casa de Luís de Camões, princípio de maio de 1570.

Diogo do Couto (Falando de fora) – Luís Vaz mora nesta casa?

Ana de Sá (Abrindo a porta) – Nesta mesma. Vós, quem sois?

Diogo do Couto – Diogo do Couto, amigo e companheiro de vosso filho, para vos servir.

Ana de Sá – Vós sois Diogo do Couto? Entrai. E não repareis na pobreza da casa, que é de mulher velha e viúva. E, se não fica mal dizer, só desde há duas semanas mãe outra vez.

Diogo do Couto – Senhora, de casas pobres falais com homem de muita experiência que não viveu em palácios, ou quando neles habitou não foi em salas e aposentos principais. Tal como vosso filho.

Ana de Sá – Sentai-vos, sentai-vos. Deixai que olhe bem o rosto do amigo do meu Luís.

Diogo do Couto – Outros tem.

Ana de Sá – Mas nenhum melhor do que vós. (Outro tom) Porém não devo ser injusta para quantos, com tão grande generosidade, restituíram o filho aos braços de sua mãe ao cabo de dezassete anos. Dezassete anos que esperei aqui por ele, sem notícias, ou tão poucas, pensando se estaria morto, se por lá me teria ficado, nessas terras estranhas donde nenhum bem nos veio nunca, e já não virá.

Diogo do Couto – Não gostais da Índia?

Ana de Sá – Que é a Índia?

Diogo do Couto – Senhora, que pergunta a vossa. Não cuidava eu, quando desembarquei, que alguém me pusesse em Lisboa questão de tanta dificuldade. Que resposta vos hei de dar?
Ana de Sá – Vós o sabereis.

Diogo do Couto – Sei o que é a Índia agora. Vem de lá a especiaria, a seda, todas essas riquezas que chegam ao reino.

Ana de Sá – Da Índia sabeis certamente muito mais do que isso.

Diogo do Couto – Tendes razão. A Índia será, ou cuido que já o é, uma doença de Portugal. Queira Deus que não mortal doença.

Ana de Sá – Senhor Diogo do Couto, eu não sei ler. Luís Vaz trouxe aí muitos papéis...

Diogo do Couto Papéis ilustres, que os conheço.

Ana de Sá – Aí se senta os dias a corrigir, a ler em voz alta. Muito do que diz não sei entender, é tudo um falar de deuses e deusas, nomes de terras e mares desconhecidos, prodígios, coisas nunca vistas, quem, neste bairro da Mouraria, seria capaz de imaginar o mundo assim?

Diogo do Couto – O mundo tem ainda muito mais que ver e admirar.

Ana de Sá – Há dias pedi-lhe que me lesse uma passagem mais clara, que pudesse chegar melhor ao meu entendimento, e ele pôs-se a olhar para mim com um ar muito grave1, e depois de procurar leu-me a fala do velho2 que esteve na partida das naus para a Índia. Estais lembrado?

Diogo do Couto – Como do meu próprio nome. Ó glória de mandar, ó vã cobiça dessa vaidade a que chamamos fama...3

Ana de Sá – Esses versos escreveu-os Luís Vaz na Índia, não foi?

Diogo do Couto – Decerto.

Ana de Sá – Então, quando vós dizeis que a Índia será uma doença de Portugal, estais declarando doutro modo aquilo que meu filho disse nas oitavas que me leu. É assim que eu entendo.

Diogo do couto – Discreta sois.

Ana de Sá – Zombais de uma pobre velha ignorante. Tive tempo para pensar no meu filho, nessas terras e nessas viagens. Dezassete anos a pensar são muitos pensamentos. Outra vez vos digo obrigada, senhor Diogo do Couto, por mo terdes trazido.

José Saramago, Que Farei com Este Livro?, Lisboa, Caminho, 1999, pp. 47-51. (Texto com supressões)

NOTAS
1 grave – sério. 2 velho – referência ao Velho do Restelo, figura que, em Os Lusíadas, se dirige aos navegadores no momento da partida da armada de Vasco da Gama para a Índia. 3 Ó glória de mandar, ó vã cobiça dessa vaidade a que chamamos fama... – referência ao início da fala do Velho do Restelo em Os Lusíadas.


QUESTIONÁRIO:

1. Assinala todas as alíneas que, de acordo com o texto, correspondem a informações sobre a personagem Luís de Camões.

A – Vivia com a mãe no início de maio de 1570.
B – Fez segredo da sua amizade com Diogo do Couto.
C – Viveu em espaços humildes durante a sua vida.
D – Regressou à pátria graças às diligências da mãe.
E – Partilhou os seus escritos com Diogo do Couto.

2. «só desde há duas semanas mãe outra vez»
Explicita o sentido destas palavras de Ana de Sá, tendo em conta as suas afirmações ao longo da conversa com Diogo do Couto.

3. Diogo do Couto e Ana de Sá usam diferentes expressões para se referirem à epopeia Os Lusíadas, nomeadamente: «Papéis ilustres» e «oitavas».
Completa os espaços em branco para explicitares duas informações sobre Os Lusíadas a partir destas expressões.

A referência às «oitavas» permite-nos saber que as estrofes de Os Lusíadas têm (A) ……………………….

Já na expressão «Papéis ilustres», o adjetivo destaca (B) ………………………. da obra.

4. Ao longo do texto, surgem ideias contrastantes sobre a Índia.
Explica em que consiste esse contraste.

5. Relê as linhas desde “Ana de Sá – Então, quando vós dizeis (…) até “Diogo do couto – Discreta sois.”

Assinala a opção que, de acordo com o texto, completa a frase seguinte.

O comentário que Ana de Sá faz aos versos de Os Lusíadas permite a Diogo do Couto concluir que ela é

A – reservada.
B – cautelosa.
C – ingénua.
D – perspicaz.

6. Imagina que eras o encenador desta peça e que estavas com os atores a ensaiar esta cena.
Que conselho darias à atriz que iria desempenhar o papel de Ana de Sá para a auxiliar a representar a mudança de tom prevista na indicação cénica «Outro tom»?
Justifica a tua opção, tendo em conta o contexto em que surge a indicação cénica.


CENÁRIO DE RESPOSTAS:

1. A; C; E.

2. Explicita, de forma completa, o sentido das palavras de Ana de Sá, referindo os três elementos previstos:
– o facto de o filho de Ana de Sá ter regressado (para junto de si, o que a leva a sentir-se mãe de novo);
– o facto de esta ter tido poucas ou nenhumas notícias do filho / não saber se o filho estava vivo ou morto; / o facto de o filho ter estado muito longe;
– o longo período de ausência do filho.

(Exemplo de resposta completa: Ana de Sá sente-se mãe outra vez, porque esteve muitos anos sem ter notícias do filho e agora ele voltou para junto de si.)

3. (A) oito versos; (B) o valor / a excecionalidade.

4. Explica, de forma completa, em que consiste o contraste na caracterização da Índia, explicitando as duas perceções:
– uma perceção positiva da Índia, enquanto fonte de riquezas;
– uma perceção negativa da Índia, enquanto local de onde não vem nenhum bem / enquanto símbolo de vaidade e de cobiça.

(Dois exemplos de respostas completas:
a No texto, a Índia é fonte de riquezas que chegam ao reino; no entanto, é também referida como um local de onde não vem nenhum bem.
a Diogo do Couto refere a Índia como um local de onde vêm muitas riquezas. No entanto, também refere que esta é uma doença de Portugal, que poderá até ser mortal.)

5. D

6. Explicita o conselho a dar à atriz e justifica-o, de forma completa, tendo em conta o contexto em que surge a indicação cénica. Na resposta, deve referir-se:
– em que consiste a alteração de tom prevista na indicação cénica;
– uma justificação coerente com a alteração proposta, que tenha em conta o contexto em que surge a indicação cénica.

(Dois exemplos de respostas completas:
a Se estivesse a encenar esta peça, diria à atriz para usar um tom mais humilde, uma vez que a personagem estava envergonhada por não valorizar o esforço dos outros amigos de Camões, que também o ajudaram a regressar.
a Terás de usar um tom forte, pois a personagem está a reconhecer que seria injusta ao não ter em conta que os outros amigos do filho foram determinantes para o seu regresso.)

Fonte: Prova Final de Português - 3.º Ciclo do Ensino Básico. Prova 91 (9.º Ano de Escolaridade. Decreto-Lei n.º 139/2012, de 5 de julho). IAVE – Instituto de Avaliação Educativa, I.P., 2011


 



 

Tipografia de António Gonçalves, outubro de 1571. Luís de Camões, António Gonçalves, Servente.

 

LUÍS DE CAMÕES: (Entrando.) Guarde-vos Deus, mestre António Gonçalves.

ANTÓNIO GONÇALVES: Boa seja a vinda de Vossa Mercê.

LUÍS DE CAMÕES: Já saberei se foi a vinda boa ou má, consoante as notícias que aí tiverdes para me dar. Tirastes as contas do meu livro? Podeis-me dizer agora quanto custará a imprimissão1, e as mais despesas?

ANTÓNIO GONÇALVES: Nenhum outro livreiro de Lisboa vos faria melhor preço, senhor Luís de Camões.

LUÍS DE CAMÕES: Estais-vos louvando antes do tempo, mestre Gonçalves. Mau é já isso.

ANTÓNIO GONÇALVES: Tranquilizai-vos. Tenho aqui apontadas todas as verbas, o papel, a tinta, o meu ganho e de quem me ajuda, enfim, compor, imprimir, dobrar e coser trezentos volumes, Vossa mercê haverá de pagar quarenta mil réis.

LUÍS DE CAMÕES: Quarenta mil réis?

ANTÓNIO GONÇALVES: E creia Vossa Mercê que não é exagerado.

LUÍS DE CAMÕES: E vós sabeis se tenho quarenta mil réis?

ANTÓNIO GONÇALVES: Vossa Mercê perdoará. Nem Vossa Mercê mo disse quando veio aqui perguntar quanto lhe custaria o livro, nem eu fui tão atrevido que o quisesse averiguar de vós ou de outrem.

LUÍS DE CAMÕES: Perdoai-me antes vós, mestre António Gonçalves. Todas as coisas neste mundo têm o seu preço. Fico sabendo quanto vale o vosso trabalho, porém assim não chegarei a saber quanto vale o meu.

ANTÓNIO GONÇALVES: Sabereis, quando tiverdes vendido os livros. De mais, tendes o privilégio de venda por dez anos, é o que está escrito no alvará2 de el-rei.

LUÍS DE CAMÕES: Para vender, é preciso ter o quê. E eu, por enquanto, o que tenho é saber que haverei de pagar quarenta mil réis, se quiser que tantos anos gastos a compor o meu livro deem seus frutos em obra impressa.

ANTÓNIO GONÇALVES: É este o costume. Não podemos mudar o mundo. Eu não posso. Vossa Mercê traz-me o livro para imprimir, paga-me a minha despesa e o meu ganho, e eu imprimo. É como ir comprar sardinhas à Ribeira. Dinheiro nesta mão, pescado na outra. Figure-se Vossa Mercê que isto não é negócio de livros, mas que eu sou pescador, fui ao mar e trouxe peixe.

LUÍS DE CAMÕES: Gentil é a comparação. Dizei-me, mestre: quando fostes ao mar, não vistes por lá um náufrago? Esse era eu.

[…]

LUÍS DE CAMÕES: Dai-me cá esses desgraçados papéis, que a vontade me está vindo de os lançar ao mar, por onde já andaram. Melhor seria se lá tivessem ficado, mais quem os escreveu.

ANTÓNIO GONÇALVES: Pecado seria.

LUÍS DE CAMÕES: Descansai. Mais fácil seria lançar-me eu às águas. Se tal vos vierem dizer que aconteceu, ide ao lugar e encontrareis o meu livro na praia, debaixo duma pedra, à vossa espera. Quero crer que então vos não recusaríeis a imprimi-lo.

ANTÓNIO GONÇALVES: Bom desenfado3 é o vosso.

LUÍS DE CAMÕES: Será. Mestre António Gonçalves, cá vos deixo. Quem sabe se nos voltaremos a ver?

ANTÓNIO GONÇALVES: Quem sabe? (Sai Luís de Camões.)

SERVENTE: Mestre, que queria o senhor Luís de Camões dizer com aquelas palavras tão graves?

ANTÓNIO GONÇALVES: Talvez nem ele o saiba. Está calado, e trabalha.

 

José Saramago, Que Farei com Este Livro?, Lisboa, Caminho,1980 (texto com supressões)

 

__________

1 imprimissão – ato ou efeito de imprimir.

2 alvará – antigo documento assinado pelo rei sobre negócios de interesse público ou particular.

3 Desenfado – 1. alívio do enfado; distração; divertimento. 2. serenidade do espírito.

 

Para responderes a cada item, seleciona a opção mais adequada ao conteúdo do texto.

1. A segunda intervenção do mestre António Gonçalves revela um sentimento de

a) altruísmo.

b) presunção.

c) apatia.

d) condescendência.

 

2. Luís de Camões, na sua intervenção entre as linhas 19 e 21, pretende introduzir a ideia de que o valor do seu trabalho, quando comparado com o do mestre António Gonçalves, está numa situação de

a) igualdade.

b) superioridade.

c) indefinição.

d) inferioridade.

 

3. A palavra «náufrago» (linha 34), no contexto em que ocorre, é uma

a) metáfora.

b) hipérbole.

c) ironia.

d) comparação.

 

4. Luís de Camões, na sua penúltima intervenção textual, em situação de hipotético suicídio, lançando-se às águas,

a) insinua que jamais deixaria o seu livro ao mestre António Gonçalves, para que este o imprimisse.

b) sugere que a sua vida é menos importante do que a sua obra.

c) explica que a obra e o seu autor são um todo indissociável.

d) faz uma crítica ao país, que, no seu entender, nunca o reconheceria em vida.

 

Chave de respostas: 1.b; 2.c; 3.a; 4.b.

Fonte: IV Olimpíadas da Língua Portuguesa. 3.º Ciclo do Ensino Básico. 2.ª Fase. Portugal, Direção-Geral da Educação, 2016-04-21 <https://www.dge.mec.pt/olimpiadas-da-lingua-portuguesa>

 


     TEXTOS DE APOIO SOBRE QUE FAREI COM ESTE LIVRO?

A teatralização de personalidades exemplares da história literária (...) oscila entre a narrativa biográfica, mais ou menos fiel, mais ou menos fantasiada, e uma finalidade didáctica que extrai da luta do artista com o meio social que foi o seu, a matéria-prima para o ensinamento que se propõe. Na intersecção destas duas linhas se situa, precisamente, a peça de Saramago, que no entanto evita com superior inteligência os escolhos inerentes a uma e outra: nem o rigor histórico se dilui numa ilusória fidelidade arqueológica ou no recurso fácil de anacronismos, nem a invenção poética abdica dos seus direitos sem deles todavia nunca abusar, nem a lição que a obra se desprende («a moral da fábula», diríamos antes) é posta em regras que, à maneira dum catecismo, o aluno/espectador deverá decorar...
Luiz Francisco Rebello



Que Farei com Este Livro?, publicado em 1980, poderá consistir numa homenagem a Camões, já que é toda a problemática da publicação de Os Lusíadas que aqui se dramatiza: o desinteresse do rei e da corte, a miserável situação material do poeta e da sua mãe, as relações com a Inquisição, o negócio do impressor. No entanto, a força extraordinária que esta peça adquire, no seu respeito pela situação histórica (política, social e linguística), é a de justamente pode ultrapassá-la para constituir um libelo contra a situação desprotegida do escritor, que é de todos os tempos mas porventura mais nossa, mais atentos que deveríamos ter-nos tronado às relações de produção no meio cultural, nomeadamente no literário - e essa intenção torna-se mais sensível através da proeminência que na acção se dá a personagens como as de Diogo Couto e Damião de Góis, que alargam a simbologia do escritor-poeta à liberdade de pensamento e de contestação. No entanto, não se pode já falar aqui de corpos colectivos, como na peça anterior, embora o meio intelectual e o cortesão estejam bem marcados; trata-se, de preferência, de uma relação entre o indivíduo e o tempo em que vive, inóspito, opressor, indigno - e da relação deceptiva daqui decorrente. Aliás, a peste e o nevoeiro (figurando, respectivamente, a ambiência criada pela Inquisição e a mentalidade confusa do jovem rei D. Sebastião) são motivos alusivos recorrentes deste argumento negativo, onde só as ideias dos intelectuais podem ganhar raiz, amparadas pelo amor, por laivos de espírito de tolerância e pelo sacrifício maior da fidelidade à criação mediante a perda de tudo o mais. A visão que se dá do poeta sustenta-se em toda a força evocativa do seu tempo mas não é uma visão histórica, antes uma visão fabular, porque o destino de Camões inspira ao leitor pena, o de Damião de Góis admiração - e talvez que só a presença marginal, mas insistente, de Diogo do Couto reconduza o tempo aos seus próprios limites, porque decide abandonar a pátria regressando à Índia («Na Índia, não somos mais alegres, é verdade, mas a terra é outra, não terei mais obrigações para com ela, apenas viver», 122) e porque enuncia o programa trans-histórico verdadeiramente construtivo («Os melhores sonhos são os que se fazem com os olhos abertos, não os da cegueira», 52)."

Maria Alzira Seixo, O Essencial sobre José Saramago, Lisboa, Imprensa Nacional- Casa da Moeda, 1987, págs. 34-35.


     LIGAÇÕES EXTERNAS

Sobre o poema "Camões e a Tença", de Sophia Andresen:




Sobre Que Farei com Este Livro?, de José Saramago:





Camões e a Tença ou Que farei(s) com este livro?” in Folha de Poesia, José Carreiro. Portugal, 10-06-2018 (última atualização: 22-09-2022). Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2018/06/camoes-e-tenca-ou-que-fareis-com-este.html