quinta-feira, 4 de julho de 2019

A Procura da Poesia, Carlos Drummond de Andrade





A Procura da Poesia

Não faças versos sobre acontecimentos.
Não há criação nem morte perante a poesia.
Diante dela, a vida é um sol estático,
não aquece nem ilumina.
As afinidades, os aniversários, os incidentes pessoais não contam.
Não faças poesia com o corpo,
esse excelente, completo e confortável corpo, tão infenso à efusão lírica.

Tua gota de bile, tua careta de gozo ou de dor no escuro
são indiferentes.
Nem me reveles teus sentimentos,
que se prevalecem do equívoco e tentam a longa viagem.
O que pensas e sentes, isso ainda não é poesia.

Não cantes tua cidade, deixa-a em paz.
O canto não é o movimento das máquinas nem o segredo das casas.
Não é música ouvida de passagem, rumor do mar nas ruas junto à linha de espuma.

O canto não é a natureza
nem os homens em sociedade.
Para ele, chuva e noite, fadiga e esperança nada significam.
A poesia (não tires poesia das coisas)
elide sujeito e objeto.

Não dramatizes, não invoques,
não indagues. Não percas tempo em mentir.
Não te aborreças.
Teu iate de marfim, teu sapato de diamante,
vossas mazurcas e abusões, vossos esqueletos de família
desaparecem na curva do tempo, é algo imprestável.

Não recomponhas
tua sepultada e merencória infância.
Não osciles entre o espelho e a
memória em dissipação.
Que se dissipou, não era poesia.
Que se partiu, cristal não era.

Penetra surdamente no reino das palavras.
Lá estão os poemas que esperam ser escritos.
Estão paralisados, mas não há desespero,
há calma e frescura na superfície intata.
Ei-los sós e mudos, em estado de dicionário.
Convive com teus poemas, antes de escrevê-los.
Tem paciência se obscuros. Calma, se te provocam.
Espera que cada um se realize e consume
com seu poder de palavra
e seu poder de silêncio.
Não forces o poema a desprender-se do limbo.
Não colhas no chão o poema que se perdeu.
Não adules o poema. Aceita-o
como ele aceitará sua forma definitiva e concentrada
no espaço.

Chega mais perto e contempla as palavras.
Cada uma
tem mil faces secretas sob a face neutra
e te pergunta, sem interesse pela resposta,
pobre ou terrível, que lhe deres:
Trouxeste a chave?

Repara:
ermas de melodia e conceito
elas se refugiaram na noite, as palavras.
Ainda húmidas e impregnadas de sono,
rolam num rio difícil e se transformam em desprezo.

Carlos Drummond de Andrade, A rosa do povo, 1945

Jorge de Sena
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Uma das constantes na obra poética de Carlos Drummond de Andrade é o questionamento da própria poesia. Os versos transcritos retratam justamente a terceira fase de labor artístico de Carlos Drummond, fase essa em que passado o medo e a indignação oriundos dos tempos pós-guerra, ele resolveu mostrar sua face oculta. Face essa em que ele se volta para um questionamento metafísico, posicionando-se de forma reflexiva acerca de algumas questões voltadas para a condição humana, tais como a morte, a vida, cujas respostas eram encontradas por meio do próprio fazer poético.   Para ele, a palavra representava a matéria-prima para satisfazer os seus reais objetivos, pois era nela que encontrava um campo fecundo para desenvolver “seus experimentos”, digamos assim, enquanto cientista observador das questões humanas.
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No contexto do livro, a afirmação do caráter verbal da poesia e a incitação a que se penetre “no reino das palavras”, presentes no poema, indicam que, para o poeta de A rosa do povo, as intenções sociais da poesia não a dispensam de ter em conta o que é próprio da linguagem.
Um dos temas mais relevantes do livro A Rosa do Povo é a questão social, presente em poemas que discutem o contexto da Segunda Guerra Mundial ou a reificação na sociedade burguesa. Contudo, os dois poemas que abrem a obra apresentam temática metalinguística: “Consideração do Poema” e “Procura da Poesia”. Neste último, o poeta acentua o caráter autônomo do universo poético: por mais que trate de questões relativas ao mundo concreto, a verdadeira poesia não pode prescindir do trabalho íntimo e constante com a linguagem.
Embora o enunciado da alternativa correta afirme que “as intenções sociais da poesia não a dispensam de ter em conta o que é próprio da linguagem”, pode-se argumentar que não são exatamente as “intenções sociais” que não dispensam as questões relativas à linguagem. Antes pelo contrário: a essência da poesia, tal como está no texto, faz de todos os outros temas e assuntos seus possíveis objetos.

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Este poema é dividido em duas partes. Na primeira, apresentam-se proibições sobre o que não deve ser a preocupação de quem estiver pretendendo fazer poesia. Sua matéria-prima, de acordo com o raciocínio exibido, não são as emoções, a memória, o meio social, o corpo.
Na segunda, parte explica-se qual é a essência da poesia: o trabalho com a linguagem. O poema pode até apresentar temática social, existencial, laudatória, emotiva, mas tem de, acima de tudo, dar atenção à elaboração do texto, ou seja, saber lidar com a função poética da linguagem.

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A primeira estrofe do poema de Carlos Drummond de Andrade expressa uma proposta de criação poética que difere da proposta poética romântica, pois há uma ideia de que a poesia não deve ser buscada nos temas quotidianos ou sociais, ou seja, a criação poética não pode ser encontrada na subjetividade do eu criador ou na objetividade do real observado, mas deve ser o resultado de um esforço de elaboração que passa pelo trabalho estético com as palavras.
Com isso, vemos que a proposta de criação de Drummond difere daquela apresentada pelos românticos em geral, pois estes defendiam a poesia como sinônimo de "expressão da subjetividade".
Fonte: http://professor.bio.br/portugues/comentarios.asp?q=7318&t=Literatura

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Marlene Correia, “A poética da pedra” in Drummond: a magia lúcida, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed., 2002








A Procura da Poesia, Carlos Drummond de Andrade” in Folha de Poesia, José Carreiro. Portugal, 04-07-2019. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2019/07/a-procura-da-poesia-drummond.html


terça-feira, 25 de junho de 2019

Calafonas e Calafões

Monumento ao Emigrante Açoriano, Ponta Delgada



À CONVERSA COM JOÃO DE MELO

Vemos as casas os carros os fatos os vestidos
sabemos o suor a fábrica a máquina a vaca
adivinhamos o sentido da vida os sentidos
de uma saudade que bate e às vezes mata

Ouvimos a palavra perdida como nova
provamos-lhe o sabor trazido na bagagem
olhamos corpos rostos nossos - são a prova
de uma viagem sem fim ao fim da viagem

Calafona será vocábulo desprezível
para gente de tanta lágrima mas feliz
é porém o erro a palavra incorrigível
para gente e lágrimas como a gente diz

Vasco Pereira da Costa, Ilhíada antes e depois (poesia 1972-2012)
Vila Nova de Gaia, Calendário das Letras, setembro 2012
ISBN: 978-972-8985-63-9






CALAFONAS - De regresso à ilha, todos quantos os tinham emigrado para os EUA eram conhecidos pela forma jocosa de calafonas, numa alusão estropiada aos habitantes da Califórnia. Nesse estado norte-americano, as colónias de açorianos eram muito importantes, estando ligadas à pesca e à criação animal. Porém, a maior parte dos emigrantes micaelenses privilegiava a costa Leste, onde se integravam na estrutura industrial existente. Tendo emigrado numa altura em que os ricos escasseavam, a chegada ao novo mundo abriu-lhes consumos desconhecidos e insuspeitados na sua terra. De regresso à ilha, gostavam de mostrar as novas aquisições e, sobretudo, passear-se com as novidades «ainda» ausentes na ilha. O guarda-roupa, inusitado, causava estranheza pelo colorido e, por isso, todos quantos nas ilhas adotavam comportamentos e atitudes diferentes, porque ainda desconhecidas, passaram a ser «calafonas».

“Calafonas”, in Dicionário sentimental da ilha de São Miguel de A a Z, 
Fátima Sequeira Dias, Ponta Delgada, Publiçor, janeiro 2011 (1ª edição)


 

Calafão é regionalismo açoriano, significa «aquele que retorna ao arquipélago».
O que o Grande Dicionário da Língua Portuguesa, de José Pedro Machado, regista é a forma calafona, que o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa inclui, atribuindo-lhe origem obscura. Mas é o próprio Machado (op. cit.) que dá a pista: a par de calafona, existe califonho califórnio, o que indica que estes termos se devem relacionar com CalifórniaCalafão e calafona serão afinal variantes da adaptação portuguesa da pronúncia americana de Califórnia.






São conhecidos por calafões ou calafonas (emigrantes da Califórnia ou de qualquer outra parte da América). Durante as férias exibem os sinais de riqueza, avivando deste modo o desejo de emigrar entre os que nunca o fizeram, criando um efeito de mimetismo. Aliás, a caminho de Santa Maria, quando o avião se aprestava para aterrar e aos passageiros era pedido que apertassem os cintos de segurança, observei como um calafona retirava, apressadamente, de uma caixa, que o marido nervosamente segurava nas mãos, vários cordões de ouro, que, apressadamente, enrolou ao pescoço, e grossos anéis, que, com precipitação, distribuiu pelos dedos. Só depois, enfim, instigada pela hospedeira de bordo, se preocupou em apertar o cinto de segurança. Calafões ou calafonas induzem um fenómeno importante na dinâmica de prestígio e das relações sociais da ilha. Em Vila do Porto é ostensiva a forma como se passeiam, denotando todo o seu porte conspícuo — as passadas largas e lentas, a barriga avultada, os bonés americanos, as pernas bronzeadas que o uso de curtos calções deixa a descoberto —, signos de quem «venceu na vida».

 

José Machado Pais, “Aventuras, desventuras e amores na ilha de Santa Maria dos Açores”, in Análise Social, vol. XXVIII (l23-l24),1993 3 (4.0-5.0), 1011-10



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A procura de melhores condições de vida, a guerra colonial e provavelmente o espírito de aventura, levaram muitos dos porto formosenses a rumar principalmente aos Estados Unidos e Canadá, deixando para trás uma aldeia cada vez mais despovoada.

No início, o contraste entre o emigrante que voltava a Porto Formoso em férias e os que lá tinham ficado era muito expressivo, mas a progressiva melhoria de condições de vida na ilha, e os processos de globalização e homogeneização de hábitos têm vindo a atenuar as diferenças ao ponto de haver agora habitantes que afirmam existir um contraste no sentido inverso. Vejam-se alguns testemunhos deixados no blogue “A casa da Mosca50

Quando perguntamos aos emigrantes que nos visitam o que é que eles acham do Porto Formoso, normalmente as opiniões são unânimes: "Esta terra esta muito melhor", "Vocês já tem tudo ca", "Já estão como na América...", "Já não precisamos de mandar roupa e chinchelarias nas barricas" (Cavalete51 | 8/3/06 16:06)

Antigamente quando um "calafão" vinha das Américas notávamos nele uma evolução que ainda faltara em nós cá. Hoje o caso inverte-se, somos nós que apresentamos uma nítida evolução quer na informação, no vestuário, no tipo de conversa etc. A internet e consequente globalização reflete-se mais em nós de cá do que os de lá que um dia nasceram cá. gnussen52 | 9/3/06 06:54

 

Amaya Sumpsi Langreo, Apanhados na rede. Considerações acerca das noções de progresso e modernidade na comunidade piscatória de Porto Formoso. Lisboa, FCSH da Universidade Nova de Lisboa, 2012

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50 Nalguns casos, foi possível aceder a informação sobre os usuários do blogue, por estes usarem o seu nome como nickname, ou por assumirem publicamente a sua identidade por trás da alcunha. Em qualquer caso, e dado a natureza do blogue, nestes casos opta-se por indicar apenas a informação básica e relevante para esta tese, omitindo a identidade. O mesmo não acontece nos testemunhos recolhidos e filmados diretamente por mim, pois nestes casos as pessoas não tiveram nenhum problema em assumir a identidade no filme e no trabalho (sendo este um requisito indispensável para serem filmados).

51 Homem de 36 anos natural de Porto Formoso. Viveu lá até se casar, e atualmente reside em Ponta Delgada, onde trabalha como professor universitário.

52 Jovem de 31 anos, natural de Porto Formoso e amigo de infância do Bruno Raposo (Regedor), é aficionado à leitura e escreve poesia desde jovem.

 




CEMETERY, Alfred Lewis

In “Cemetery”, Alfred Lewis recollects a childhood experience when he and a group of boys were returning from Sunday school and happened to pass by lhe village graveyard. At the time, the undertaker was busy digging a new grave. The boys, however, simply stood there

in awe as he disappeared
Into his own crevass
Until the sound of rotten planks reached us
And up came the awful shower
—Tibias , ribs, an empty skull—
Tainted by the smell ofmoths.

"Time to remove old Calafona,”
Our friend, the digger said, heaxvy with thoughts.
Seven years dead; came back with sacks
Of gold, bought a cow and fed the village.
A vow to Our Lady. Laughed, winked at the girls,
Grew fat and died one day.
That's the way it is, when you're old." (52—53)

“Calafona" is the name Azoreans traditionally ascribe to the Portuguese immigrants who settled in California. This particular “Calafona" embodies the mentality of most senior-citizen immigrants, especially in their desire to return to their native country to die after having secured a sound financial position for themselves and their children. In addition, this poem indirectly touches upon a recurrent theme in Lewis's poetry and fiction, namely his realization that America “devours" these immigrants' vigour and youth. When thcy return to the Azores after a life of toil in America, they are not more than food for worms. T his is the price one must pay when emigrating. But while America kept this “Calafona's" youth, he earned a decent livelihood there, whereas ifhe had remamed in the Azores, he would have struggled to survive. While the boys do not grasp this message, as a mature man remmiscing about this episode in this poem, Lewis reflects on the opportunities America offered him and his countrymen.

Reinaldo Francisco Silva, “Alfred Lewis as a Writer of Transition”
 in Portuguese American Literature, Penrith: Humanities - Ebooks.co.uk, 2010.



CALAFONAS

Se sou calafona
pois assim o quero
ou shoa que ir à ilha
é bom p'ra um gud time
mas ver Tê-Vê
não há melhor como cá
I mean, you não!
as coisas lá são okay
mas só para visitar
dou-me bem com os
calafonas portuguêses
dos meus velhos lugares
agora sou migrante
nesta nova nação
daqui é que já ninguém me tira
e as dólas
é a minha nova moeda
é o meu melhor pão.

Arnaldo Dias Baptista, Raízes, EUA, Xlibris Corporation, 2010
ISBN Ebook 978-1-4771-6253-8


   Poderá também gostar de:



Mário Moura, “Portugees there, Calafonas here”, Associação dos Emigrantes Açorianos e Câmara Municipal da Ribeira Grande, [2015?]. Disponível em: https://slideplayer.com/slide/4285801/#.XRKadGNMRFR.google




“Calafões e Calafonas” in Folha de Poesia, José Carreiro. Portugal, 25-06-2019. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2019/06/calafonas.html