segunda-feira, 4 de novembro de 2019

Se a morte fosse uma rosa obscura – Crónica de Eduardo Prado Coelho sobre Roberto Juarroz




SE A MORTE FOSSE UMA ROSA OBSCURA

1. Foi tarde, por volta de 89, a partir de uma antologia de Roger Munier, um dos seus tradutores franceses, que descobri a poesia de Roberto Juarroz. Anteriormente, este nome designava alguém que me aparecia vinculado ao amplo círculo de amizades e cumplicidades de António Ramos Rosa. Era já uma excelente referência. Mas as primeiras leituras de Juarroz são absolutamente decisivas quanto ao desenrolar do processo de informação: ou há uma rejeição, e isso sucede frequentemente, por motivos a que tentarei voltar com mais cuidado e demora, ou há uma fascinação, que faz que durante meses e meses esta poesia passe a intervir abusivamente em tudo o que escrevemos ou lemos, como uma espécie de horizonte silencioso e voraz. No meu caso, reconheço-o com prazer, foi a fascinação que prevaleceu.
Nunca cheguei a ver Juarroz ao vivo. Sei que passou pelo Centro Pompidou, onde leu alguns dos seus poemas, sei também que era um leitor espetacular, com uma elocução apaixonada e dramática. Tomo agora conhecimento pelos jornais que morreu há semanas, em Buenos Aires, com setenta anos de idade. Numa obra que obstinadamente se chamou desde o princípio Poesia Vertical, e de que pude ler até ao décimo terceiro volume, pergunto-me em que termos se concluiu: com poemas disseminadamente verticais, ou com novos volumes prolongando a academia implacável da numeração?
Num belo volume de pensamentos e aforismos, também eles designadamente como "verticais", para o qual o meu amigo Albano Martins me chamara a atenção, pode-se ler a dada altura: "Cada coisa traz em si a sua própria antítese. Não poderia existir sem ela. A condição da realidade é a sua própria contradição. Imaginar uma realidade sem contradição é uma outra contradição". Isto explica um pouco o mecanismo que move os textos de Juarroz – uma espécie de vocação exacerbada para a dialética. Noutros termos, podemos até recear que o comando das operações não pertença às palavras (o que geralmente acontece, mas nem sempre), mas, sim, a uma lógica abstrata e exangue do pensamento. Porque Juarroz não aposta nem numa metaforicidade expansiva, nem numa relação privilegiada com a realidade. As metáforas, quando existem, constroem-se quase sempre no próprio poema, à vista do leitor, e parecem encaixilhadas. O real, esse, é convocado sempre como um tipo de "exemplo" ou como um "motor de arranque". Os textos são essencialmente silogismos alargados, em que o leitor sente as linhas de recorte, os pontos em que as colagens se fizeram, o peso das dobradiças que rangem.
No entanto, funciona. E de que modo! Porque esta poesia em que o pensamento parece sobrepor-se à linguagem tem a extraordinária coragem de nos propor um pensamento em incessante derrota, continuamente confrontado com tudo o que lhe falta, e nos falta, com tudo o que nos escapa, com tudo o que é invisível, pela razão muito simples de ser excessivamente visível, próximo, fraternal: "Y aprender la transparência es el comienzo/ de aprender el invisible".
Àqueles que poderiam censurar Juarroz pela construção ostensivamente geométrica dos seus poemas, ele poderá responder que a poesia é em si mesma "uma outra ordem do espaço: uma geometria do aberto": "Hay ángulos que no pueden cerrarse / y que ninguna linea convertirá en figura. / ElIos resumen el destino. / Tampoco el destino puede cerrarse. // EI amor conoce esos ángulos / y con frecuencia acude a ellos. / También el pensamiento y la palabra. / También los párrafos deI viento. // Pero no hay instrumento que puede medirlos, / no hay geometria que los abarque. / ElIos resumen a otro orden deI espacio: / la geometría deI abierto."


2. Leia-se esse brevíssimo poema de Juarroz: "Rostros que van, / rastros ue vuelven. // Hay una sola diferencia: la lluvia, en el camino, / moja más a los que vuelven." De certo modo, grande parte da poética de Roberto Juarroz pode ser deduzida a partir destes versos. O esquema fundamental é o do quiasmo, figura que designa uma espécie de simetria cruzada. No entanto, o termo final nunca é idêntico ao termo inicial. Precisamente pelo caminho há rastro de uma diferença quase invisível, mas que vem desequilibrar o todo, desconjuntá-lo, barrar de impossibilidade qualquer ideia de sistema ou clausura, esvaziar o pensamento até à nudez do mundo, ao deserto imenso das palavras.
A ideia de verticalidade responde a este efeito siderante da diferença, "este defeito fundamental que o acaso distribui": “El errar que comete una cosa / aI caer de tus manos, la absurda equivocación de una hoja / al no caer sobre la tierra, / la confusíon de un aroma / que emigra de una flor / y se va perfurmar un pensamíento / no deben atribuirse / a sus modales inexpertos / sino al defecto fundamental que el azar distribuye / como una noche quebrada / por el apocalipsis encubierto de los dias." E daí a ideia obsessiva de que, no jogo dos extremos aparentemente simétricos, há um que sempre falta: "El misterio no tiene dos extremos: / tiene uno. / El unico extremo del mistério está en el centro / de nuestro proprio corazón. // sin embargo, / no dejaremos nunca de buscar otro extremo, / el extremo que no existe".
3. É por isso que a energia de pensamento que move esta poesia não deve assustar-nos. Ela propõe-se como a linha rasa da humildade mais obstinada perante o imenso desafio que é o das palavras e o da realidade. Este pensamento não forma conceito, é evanescente e biodegradável, desfaz-se numa lógica de fumo, no tecido mais ralo da matéria: "Habrá partículas tan finas, / tan leves, tan discretas, / que duren siempre en suspensíon?".
Roberto Juarroz sabe que tudo é sempre começo ("Hasta dios no es más que un comienzo") e afloramento ("Vivir parece sólo un roce con el ser"). Esta poesia confronta-se permanentemente com a ausência e com a fuga incoativa das formas. Combate permanente que encontra o seu espelho de metáforas da morte: "La muerte no tiene forma. / La vida dona sus formas a la muerte. / No sabemos si ésta a veces las adopta / porque las formas no regresan. // Si la muerte fuese una rosa oscura / y el hombre tivera ojos para verla, / sabríamos que sucede con las formas. // Pero entonces y no sería necessário / conocer el destino de las formas: / basteria con aspirar profundamente / el oscuro perfume de esa rosa.”

Se a morte fosse uma rosa obscura”, crónica de Eduardo Prado Coelho para o suplemento Leituras do jornal Público. Sábado, 29 de abril de 1995, p. 12.




CARREIRO, José. “Se a morte fosse uma rosa obscura – Crónica de Eduardo Prado Coelho sobre Roberto Juarroz”. Portugal, Folha de Poesia, 04-11-2019. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2019/11/se-morte-fosse-uma-rosa-obscura.html


domingo, 3 de novembro de 2019

Maria Gabriela Llansol, por Eduardo Prado Coelho



ERVILHAS E BACH

1. Página 24: "e a um dado momento senti que o Diário ia tornar· se um livro/obra, com seus moventes e figuras contracenando comigo na primeira pessoa." Donde, "Lisboaleipzig 1 – o encontro inesperado do diverso" (Rolim), texto de Maria Gabriela Llansol, surge sob a forma de Diário – isto é, os fragmentos de escrita têm lugar e data, embora, primeira transgressão às normas do género, a sequência cronológica apareça redistribuída segundo uma lógica que vai para além da mera ordenação dos dias. Digamos que a "forma diário" pode ser definida como uma estrutura material, na medida em que "são estruturas materiais que permitem a transformação da matéria em matérias mais leves".
Vale a pena ainda sublinhar outro ponto. Este livro inclui a abertura de Lisboaleipzig, mas na página 82 encontramos uma frase-dobradiça, "Dedico-vos estes textos", que permite a passagem para uma categoria de textos que podem ser classificados num duplo e talvez paradoxal estatuto: são textos circunstanciais, isto é, forçados por circunstâncias ditas "exteriores" (a entrega de um prémio, uma viagem ao estrangeiro, uma solicitação para uma conferência, o prefácio para um livro), mas, ao mesmo tempo, são textos "teóricos" (isto é, parecem estruturar a concetualidade emergente no textos "literários", embora, na medida em que são textos que deliberadamente “se escrevem”, cada estrutura que se faz é no mesmo gesto uma estrutura que se desfaz, porque "o pensamento é uma região nebulosa que se torna clara através de linhas geométricas que se fraturam, finalmente, quando escrevo").
Como propõe Llansol, ao sair da leitura (donde se não sai) de Spinoza, e de um dos seus comentadores, Martial Guéroult, o texto que "vou escrever" é já o texto que "voo a escrever": "quem voa, trabalha para tornar mais complexa, e aberta, a natureza”.


2. Nunca Maria Gabriela Llansol explicitou tão bem as dificuldades que se colocam à aproximação da sua obra. Ela própria nos fala num "pacto de inconforto". Arranca do exemplo de uma frase: "Uma parte da minha vida ajustou-se ao pátio." E comenta-a assim: "Quando escrevi esta frase, eu estou a ver o pátio, mas quem não lê não sabe de quem é a vida que se ajustou ao espaço do pátio."
Notemos: primeiro, a passagem do passado ("escrevi") para o presente ("estou a ver"); segundo, a distinção entre aquele-que-lê-não-lê ("mas quem não lê não sabe) daquele que lê-e-sabe-o-que-é-ler.
E Maria Gabriela Llansol acrescenta: "Muitos dos que me leem têm dificuldade em ajustar-se ao pacto de leitura que os meus textos supõem: o de saberem quem está emancipado. E sabê-lo sem sombra de dúvida. Os meus textos supõem um pacto de inconforto." E um pouco mais adiante surge este dizer luminoso: "Devo reconhecer que o meu texto, ao deixar inseguro o sujeito que enuncia, se dirige de facto ao ansiar do coração, e o coloca na sombra da dúvida. E, se o coração persiste em ler, é, porque há nele um fulgor estético que o ilumina o próximo passo, e o faz apoiar no detalhe justo e irrecusável."
Permitam-me que volte a sublinhar alguns pontos. Primeiro, a passagem do "saber sem sobra de dúvida", expressão comum, que designa um saber de claridade absoluta, sem sombra, sem resto, sem réstia de noite, solar e diurno, pretendendo ser capaz de olhar o sol, e a morte, de frente, para um saber que viaja na sua própria sombra, que a aceita, que a trata por tu, que se abriga nela, que se coloca à sombra da sua sombra. Llansol nunca enfatiza o enigma: domestica-o sem o açaimar, torna-o doméstico: "o meu real é estar a descascar estas ervilhas e ouvir Bach" (note-se a insistência do concreto: "estas").
Segundo ponto: o texto deixa inseguro, mas quem? "O sujeito que enuncia." Isto é, não se trata apenas da insegurança do leitor face a um texto que o autor dominaria, mas da insegurança liminar daquele que escreve. Escrever não é mais do que este passar a insegurança de mão em mão. Ou, se preferirem, de coração em coração. Porque, se o leitor que eu sou continua a ler, mesmo quando o sentido vacila e a razão se desassossega, é porque, em mim, ou melhor, em nós, é o coração que persiste em ler. Donde, aquele que sabe ler com o coração. Mas Llansol acrescenta algo que corresponde precisamente ao que eu aqui mesmo tenho tentado fazer: a leitura-do-coração apoia-se no "detalhe justo e irrecusável".
Este aspeto é absolutamente fundamental: porque, como acontece com quase todos os grandes autores, o leitor pode pegar no último livro de Llansol e supor que se trata "do que já conhece" (ou do [que] se habitou a desconhecer). Só a leitura rasante ao texto é capaz de captar "o detalhe justo e irrecusável". Só a leitura encostada ao coração do texto, só a leitura clínica de uma respiração, desabitua e permite surpreender a diferença, ou melhor, a microscópica explosão de diferenças, ou melhor ainda, porque já nem sou eu quem o diz, mas um coração partilhado "o encontro inesperado do diverso". Donde “escrever é levar a leitura pelo seu caminho de modo que quem lê sobreviva ao seu encontro".
Barthes propôs um dia a distinção entre textos de "plasir" e textos de "jouissance". Os textos de "plasir" são uma arte de viver – situam-se na face interna do enigma da vida, percorrem-no frase a frase, como uma carícia, um afago animal antes do sono. Os textos de "jouissance" são, na sua verticalidade inexorável, um exercício de sobrevivência – suspendem-se, como um suicida no rebordo da janela, na face externa do enigma da vida, mas escrevem-se letra a letra, tropeçando na ilegibilidade destas letras, e por isso resistem à queda: o texto é "um espaço matinal de contra-sangue".
3. Devemos, portanto, dizer claramente que "Lisboaleipzig" é um texto de “jouissance", com os riscos inerentes para quem escreve e para quem lê. Porque a "jouissance" passa por um eclipse, uma rasura, uma síncope do sentido, um momento de autismo transcendental, que só a violência do texto pode ultrapassar. Neste livro podemos encontrar o relato de uma cena primitiva que é aquela, admirável, em que Maria Gabriela conduz a criança emudecida, Ad, até ao lugar do "texto sem fim" – "feito de sinais, gatafunhos, que escrevem, mutuamente, que as nossas presenças não nos fazem mal, nem medo". Esta cena repete a crise criativa de outra figura autobiograficamente fundamental: a da rapariga que temia a impostura da língua.
Mas é afinal em cada dia, em cada manhã do livro, em cada despertar do texto, que esta cena regressa, volta e se revolta; "Sentei-me na cama, com a mão na boca, levantada pela palavra; a primeira fase de articulação é inaudível, depois, a garganta sussurra, desce o papel de pensar para a mão direita que guia o sussurro sobre o lápis; enfim, é manhã de sábado, e o dia que amanhece – vital para mim. Estas emoções, em certos períodos, repetem-se quotidianamente.”


“Ervilhas e Bach”, crónica de Eduardo Prado Coelho para o suplemento Leituras do jornal Público. Sábado, 15 de outubro de 1994, p. 12.




CARREIRO, José. “Maria Gabriela Llansol, por Eduardo Prado Coelho”. Portugal, Folha de Poesia, 03-11-2019. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2019/11/maria-gabriela-llansol-por-eduardo.html


terça-feira, 29 de outubro de 2019

São tantas coisas para perder - Crónica de Eduardo Prado Coelho sobre O jogo de fazer versos, de Luís Filipe de Castro Mendes




SÃO TANTAS COISAS PARA PERDER

A evitar: o constrangimento. Como se a amizade que me liga a um autor (neste caso, Luís Filipe de Castro Mendes) me pudesse, ou devesse, impedir de escrever sobre ele. Nem a amizade nem o ódio. Tenho procurado que a escrita se não mova por afetos que não derivem da própria escrita. Daí a rejeição de frases deste tipo: "odeia-me tanto que até escreve..." Puro engano. Odeio frases, ideias, propósitos de fala, mas não odeio pessoas, não odeio ninguém, quando escrevo sobre alguém. O mesmo em relação à estima, aos afetos antigos, às cumplicidades. A amizade está antes, atenta, suspensa, mas suspende-se a si própria no limiar do texto para se entregar ao puro exercício da leitura. E só depois regressa, grata, reconhecida, comovida, para celebrar o facto de um texto ter sido possível entre dois momentos de amizade.
2. A evitar ainda: o reconhecimento precipitado de um gesto, ou do sentido que somos levados a atribuir-lhe. Neste caso, o de Luís Filipe de Castro Mendes, no seu último livro. O jogo de fazer versos (Quetzal Editores), que parece erguer-se inteiramente apolado na intenção de regressar a uma poética clássica.
Assim, aconselha-nos Castro Mendes a não tomar inteiramente à letra a recomendação de Ezra Pound: "Make it new". Pois sim: "MAKE IT NEW – e que inventaste?/ Os ritmos canónicos guardaste.// A rima pobre e a graça faceira/ de quem a poesia não se abeira// foram só uma pose na paisagem./ Depois de tudo embalar, seguir viagem".
Donde, evitar a pose do novo. Equiparada no poema-carta a Fernando Echevarria a "mastigadas fórmulas sem ama/ sem dono nem senhor há tanto ano." Poderíamos daqui retirar a convicção de que Castro Mendes se teria assumido numa postura dita pós-moderna. Só um pormenor estraga a dedução: Castro Mendes acredita, plenamente, numa crença sem falhas, na poesia como senhor absoluto, soberano, impiedoso, no fausto dos seus cânones e preceitos. É até essa crença que funciona aqui como pedra de escândalo. Onde outros escolhem uma estratégia furtiva, para se não deixarem comprometer com o excesso de lirismo que nos sobrou neste tempo de desertos (cf. Vasco Graça Moura), Castro Mendes prefere um empenhamento integral no jogo de fazer versos, com a plenitude dos seus códigos e convenções. Há portanto um movimento de retorno, e uma dúvida generalizada em relação a tudo o que foi o aparato das vanguardas, e que hoje aparece como “poetar sem cor e sem surpresa". Neste ponto Castro Mendes rompe com um dos pressupostos da modernidade, que era o de um nó de solidariedade ativa entre a vanguarda política e a vanguarda literária. É verdade que alguns já tinham feito algo de semelhante quando procuraram na tradição de uma literatura reconstituir o corpo verbal de um povo (de Aragon a Alegre, passando episodicamente por algum Guillevic ou algum Carlos Oliveira). Só que em Castro Mendes essa dimensão está ausente: corpo, sim, mas apenas o corpo da poesia, sem transferências.
Contudo, devemos abordar esta questão com algumas precauções. O que sinto como leitor atento deste livro é que o regresso surge ao mesmo tempo como inevitável e impossível. Regresse-se, sim, mas ao lugar de uma perda. A poesia, esta poesia, é um trabalho sobre restos. Mais do que nunca a poesia de Luís Filipe de Castro Mendes nos surge como um trabalho de luto ("Se nos morreu às mãos toda utopia/ é que sobra em palavras a Poesia", e assim "poesia é o que faço desses restos / que ficam nas palavras por mudar"). São tantas coisas para perder!


3. A grande tarefa do leitor consiste em tentar apreender até que ponto esta perda inevitável se escreve no registo específico da enunciação deste livro. E também da sua montagem. Não é paródia (daí a recusa das etiquetas pós-modernas). Mas não é também necessariamente ironia. Há alguma distância no virtuosismo prosódico, mas também um enorme comprazimento, que só acontece porque o autor acredita numa ética da forma, mesmo quando essa forma é apenas a forma de uma ausência. Tudo se perde, a começar pelo tempo, que é o lugar expansivo da ilimitada perdição. Mas é precisamente porque tudo se perde que um verso se não pode perder. Donde, um verso diz o que se perde num movimento íntimo que o desdiz. E o tom em que este livro se grava em nós, o seu timbre e o seu humor, têm muito a ver com este jogo, sério como nenhum mais, entre o dizer e o desdizer. Nem ironia nem paródia. Antes o sentido benjaminiano da alegoria e das ruínas. E o registo freudiano de "Unheimlich": não a presença do infamiliar, mas a infamiliarização da presença, o que nela se desprende de nós ao prender-nos. "Nada sabemos e de não saber/ é que acontece ser a voz inteira"
Daí a dificuldade e alguma resistência que sentimos ao ler estes poemas. Porque eles são-nos estranhos na sua recusa dos nossos atuais códigos de reconhecimento, e nós deslizamos sobre a mecânica demasiado certeira da letra e da literalidade do dizer, e somos tentados a deixar descair a atenção para o andamento quase monótono das formas e a esquecer a densa engrenagem conceptual que a letra sustenta. Ou a senti-los como um jogo em que o lúdico se sobrepõe a tudo o mais. E isto apesar de um portentoso trabalho de montagem e composição realizado pelo autor: a organização deste livro como uma espécie de malha de textos, citações, alusões, traduções, retroversões, referências e intertextualidades explícitas ou difusas, é absolutamente exemplar.
4. A lembrar: que poetas portugueses, como Luís Filipe de Castro Mendes, falam de Sarajevo: "Vivemos esta espécie de anos trinta/ com bandeiras e dor por pensamento/·causas que a guerra torce num lamento/ e da desolação da matéria-prima// O fumo além das terras percebido/ deixa-nos vaguear neste deserto/ feito pura incerteza e desconcerto,/ dos sonhos da Razão perfeito olvido.// Demora-se entre sombras a figura/ que vimos prender fogo nas areias / acesas num rumor de noite escura.// Quanto custa esquecer as nossas ideias,/ quando vemos que o brilho dessa cura/ resplandece nas mais dúbias bandeiras!"
Ou como João Miguel Fernandes Jorge, nesse esplêndido livro que é "O Barco Vazio": "Na Europa, se estivermos voltados para o norte,/ situa-se à direita esse tão fundo pátio de/ chão cimentado por cadáveres. Corpos/ alinhados na sombra,/  superfície de parede/ devorada, outono e inverno, pelo estéril/ salitre. Uma voz sobrevoa. Ninguém/ conhece o profeta que/ a faz dizer a verdade e não ser acreditada.// Sobrevive à guerra e vive o disfarce do seu grito/ num domínio da Bósnia. Voz que gravou/ o que tinha sido obrigada a esquecer./ A terra possui o coração do açougueiro. "
Em véspera de eleições europeias, é útil que poetas o recordem.

São tantas coisas para perder”, crónica de Eduardo Prado Coelho para o suplemento Leituras do jornal Público. Sábado, 4 de junho de 1994, p. 12.



CARREIRO, José. “São tantas coisas para perder  - Crónica de Eduardo Prado Coelho sobre O jogo de fazer versos, de Luís Filipe de Castro Mendes”. Portugal, Folha de Poesia, 29-10-2019. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2019/10/sao-tantas-coisas-para-perder-por.html


domingo, 27 de outubro de 2019

Bilhete postal para Manuel Alegre - esta e outra crónica de Eduardo Prado Coelho



BILHETE POSTAL PARA MANUEL ALEGRE

1. Esta crónica devia, portanto, começar assim: "Meu caro Manuel Alegre, há muito tempo que não nos encontramos, seria boa altura, penso, para conversarmos."
O pretexto é simples. Na contracapa do seu último livro, os "Sonetos do Obscuro Quê", Manuel Alegre, ou as Publicações Dom Quixote, decidiram incluir o extrato de um verbete que eu redigi já há bastante tempo para o "Grande Dicionário da Literatura Portuguesa e da Teoria Literária", projeto inacabado, que partiu de uma iniciativa de João José Cochofel. Que diz o meu texto? Isto: "O poema não fica no papel: percorre as cidades e as aldeias, os opressores e os oprimidos, circula, gira incessantemente entre as pessoas e as coisas, o real e o possível. O poema, para Manuel Alegre, é um lugar, um espaço vivo. É também um espaço em que se prolonga a história política e poética de um povo."
A gente percebe que este texto tem uma data. Que importa? É uma data bem viva, estamos profundamente ligados a ela, e não tenho nesta matéria uma vírgula a alterar.


2. Mas gostaria, para já, de pegar nas coisas por outra ponta. Tive noutro dia oportunidade de ver a participação de Manuel Alegre no programa televisivo de Maria João Seixas, ao lado de AI Berto e David Mourão-Ferreira. Como lhe vem sendo habitual, Manuel Alegre pegou no tema de "uma nova censura" que se teria instalado em Portugal, que impediria que se falasse dos escritores portugueses, ou que imporia que deles se dissesse mal sistematicamente. Ao mesmo tempo referiu os malefícios de uma influência universitária no domínio da crítica, e a moda de um neoacademismo formalista.
Era sobre isto que para já gostaria de conversar. Primeiro, desagrada-me a expressão "nova censura", e vou explicar porquê. O conceito de "censura" está ligado a formas de silenciamento e opressão por motivos políticos, ideológicos ou morais, isto é, por um elenco eventual de razões que são exteriores à ordem especificamente artística. Se existem motivos de tipo estético que levam a que se fale menos, ou nem mesmo se fale, de certas correntes, isso pode ser lamentável, mas pertence a um outro registo da vida cultural: o do confronto e alternância entre correntes de teoria e sensibilidade estética. Ora esse confronto deve realizar-se no terreno do próprio combate estético. A expressão “nova censura" é um pouco demagógica porque vai buscar a memória magoada de outras situações e vai invocar motivações extraliterárias para intervir num combate que deveria ser estritamente literário. Além disso, a expressão "nova censura" parece supor uma espécie de "complot" organizado de um modo metódico destinado a calar as vozes incomodativas. Ora a ideia de "complot" é um truque um pouco estafado, que por isso mesmo exige uma longa série de provas inequívocas, e tem a "vantagem" fácil de impor no leitor, com custos reduzidos, a ideia não provada de que as vozes silenciadas são por isso mesmo "vozes incomodativas". Serão? Não estou certo.
Em segundo lugar, julgo que Manuel Alegre confunde três coisas. A primeira tem da minha parte um aplauso incondicional. Sim, estou plenamente de acordo com o facto de que se fala muito pouco de poesia nos jornais portugueses. Não apenas de poesia, mas de literatura em geral. O destino de um livro traça-se praticamente entre as páginas do "Expresso", as do PUBLICO, as do “Jornal de Letras", e as da revista "Ler", o resto quase não conta, ou tem muito pouco peso. Devemos reconhecer que é pouco, que as rádios e as televisões não ajudam, e que o panorama é desconsolador. Revistas como "Limiar" ou "Hífen" (de que acaba de sair mais um esplêndido número) são fenómenos raros. Julgo que a poesia em Portugal vai perdendo leitores dia após dia. Neste ponto julgo que o combate a travar merece a plena concordância daqueles que desde sempre se sentem ligados a estas coisas.
Já não seguirei Manuel Alegre com a mesma desenvoltura na ideia de que existiria uma má vontade generalizada contra a literatura portuguesa. Quem ler com atenção as páginas culturais das publicações acima referidas verifica mesmo uma atenção considerável em relação à literatura portuguesa, e o gosto em se valorizar tudo o que de mais interessante se vai produzindo em Portugal. O que importa é evitar as falsas alternativas: entre aqueles que abdicam de qualquer posição crítica em relação a um texto apenas porque ele é português e aqueles estilo Vasco Pulido Valente que acham que o único meio de que dispõem para ultrapassarem a sua própria mediocridade em termos culturais é reduzirem toda a literatura portuguesa à mediocridade que os caracteriza.
3. E chegamos ao terceiro ponto, que é obviamente o mais delicado. Porque passa por questões de gosto, sempre temporalmente condicionadas, mas que se alicerçam em evidências que facilmente se generalizam. E neste plano devo reconhecer que os gostos do tempo não levam à valorização de uma poesia como a de Manuel Alegre. E compreendo que um autor que viveu o início do seu trabalho numa espécie de sintonia mágica com os sentimentos do seu país (o que eu tentei dizer na frase citada) se sinta profundamente atingido quanto verifica que as coisas mudaram, e que nem sempre disponha dos instrumentos adequados para interpretar essa mudança.
Para mim, a poesia inicial de Manuel Alegre tinha a evidência de um tempo histórico. Não sei hoje dizer se a sentia pelas razões políticas que nela existiam ou pelo modo como ela as convertia em razões estéticas. A memória afetiva que tenho do momento em que as li é algo que quero preservar na sua pureza e ambivalência. Faz parte intrínseca do meu património emocional.
O que gostaria de explicar demoradamente a Manuel Alegre é que se hoje tenho mais dificuldade em escrever sobre a sua poesia é porque o mecanismo deixou pura e simplesmente de funcionar. A poesia de Alegre, na minha opinião, vive agora demasiado dos sinais exteriores de um momento mítico que já não existe senão na memória afetiva de alguns de nós. E gostaria de dizer mais. Comparemos estes "Sonetos do Obscuro Quê" com um dos mais espantosos livros de poesia publicados em Portugal nos últimos tempos, "A Poeira Levada pelo Vento" de Joaquim Manuel Magalhães. Neste encontro a vida escrita na sua forma mais violenta e visceral. E é precisamente no livro de Alegre que descubro os indícios de formalismo e neoacademismo. O indizível de Rilke não se diz, mostra-se, e Alegre limita-se a dizê-lo. Uma poesia que diz o "obscuro quê" tem de ser ela própria essa obscuridade que diz, e não a mera exterioridade cantante desse dizer. O que sinto que me falta na atuaI poesia de Manuel Alegre é precisamente a emoção, a raiva, o corpo, a luta renhida e esfarrapada com as palavras, a vida como razão extrema.

Bilhete postal para Manuel Alegre”, crónica de Eduardo Prado Coelho para o suplemento Leituras do jornal Público. Sábado, 2 de abril de 1994, p. 12.
 
 
Bilhete postal para Manuel Alegre”, crónica de Eduardo Prado Coelho
 para o suplemento Leituras do jornal Público.
 Sábado, 2 de abril de 1994, p. 12.

 
 
Uma saudade de saudade, uma paixão”, crónica de Eduardo Prado Coelho
 para o suplemento Leituras do jornal Público.
 Sábado, 3 de fevereiro de 1996, p. 12.




CARREIRO, José. “Bilhete postal para Manuel Alegre  - esta e outra crónica de Eduardo Prado Coelho”. Portugal, Folha de Poesia, 27-10-2019. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2019/10/bilhete-postal-para-manuel-alegre-por.html