segunda-feira, 6 de abril de 2020

Não era noite nem dia, Manuel da Fonseca

Branco Cardoso, Alentejo 5http://brancocardoso.blogspot.com/2011/09/alentejo-pintura-oleo.html



ESTRADAS

Não era noite nem dia.
Eram campos campos campos
abertos num sonho quieto.
Eram cabeços redondos
de estevas adormecidas.
E barrancos entre encostas
cheias de azul e silêncio.
Silêncio que se derrama
pela terra escalavrada
e chega no horizonte
suando nuvens de sangue.
Era hora do poente.
Quase noite e quase dia.

E nos campos campos campos
abertos num sonho quieto
sequer os passos de Nena
na branca estrada se ouviam.
Passavam árvores serenas,
nem as ramagens mexiam,
e Nena, pra lá do morro,
na curva desaparecia.

Já de noite que avançava
os longes escureciam.
Já estranhos rumores de folhas
entre as esteveiras andavam,
quando, saindo um atalho,
veio à estrada um vulto esguio.
Tremeram os seios de Nena
sob o corpete justinho.
E uma oliveira amarela
debruçou-se da encosta
com os cabelos caídos!
Não era ladrão de estradas,
nem caminheiro pedinte,
nem nenhum maltês errante.
Era António Valmorim
que estava na sua frente.

— Ó Nena de Montes Velhos,
se te quisessem matar
quem te havera de acudir?

Sob este corpete justinho
uniram-se os seios de Nena.

— Vai te António Valmorim.
Não tenho medo da morte,
só tenho medo de ti.

Mas já a noite fechava
a saída dos caminhos.
Já do corpete bordado
os seios de Nena saíam
— como duas flores abertas
por escuras mãos amparadas!
Ai que perfume se eleva
do campo de rosmaninho!
Ai como a boca de Nena
se entreabre fria fria!
Caiu-lhe da mão o saco
junto ao atalho das silvas
e sobre a sua cabeça
o céu de estrelas se abriu!

Ao longe subiu a lua
como um sol inda menino
passeando na charneca…
Caminhos iluminados
eram fios correndo cerros.
Era um grito agudo e alto
que uma estrela cintilou.
Eram cabeços redondos
de estevas surpreendidas.
Eram campos campos campos
abertos de espanto e sonho…

Manuel da Fonseca (1911-1993), Planície, Coimbra, 1941




As cores, os sons e os movimentos da planície alentejana estão, por exemplo, magistralmente reunidos no poema “Estradas”, composição de Planície. Cinematograficamente, o movimento da objetiva em abertura, que vai de um plano de proximidade a um plano longínquo, é conseguido graficamente através da repetição sintática do substantivo, como a sugerir horizontalmente a vastidão longilínea da terra:

Não era noite nem dia
Eram campos, campos, campos
abertos num sonho quieto. (“Estradas”, poema de Planície)

Ainda é digno de nota o emprego dos significantes sensoriais no poema, que remetem à audição (o silêncio, os passos de Nena que sequer se ouviam na estrada, a ausência do vento, que mais uma vez implica em silêncio, e contribuem para a atmosfera de isolamento da menina que terá ali a sua primeira experiência de amor, e adiante os rumores de folhas que anunciam a chegada do amante), ao olfato (o perfume do campo de rosmaninho), ao tato (os seios que tremem sob o corpete justinho, e a seguir são amparados por escuras mãos, a boca fria de Nena que se entreabre) e à visão (as diversas cores que brilham no poema: o azul e o vermelho na primeira estrofe; o branco, o negro e o amarelo na segunda; a oposição entre a escuridão da noite – física e metafórica, pois a noite é também metáfora do amante de escuras mãos que fechava a saídas dos caminhos, impedindo a passagem de menina - e a claridade trazida pela Lua, nas estrofes finais, remetendo ao percurso de descoberta da sexualidade vivido pela jovem menina tornada mulher, já anunciado no verso final da primeira estrofe “Quase noite e quase dia”, a noite física e o dia metafórico de início da vida de Nena).

O tom da narração lembra ainda o exercício do contador de histórias, através de vários recursos, como:

1) o predomínio dos verbos no pretérito imperfeito, típico das narrativas tradicionais, como os contos de fadas, o que, associado à técnica cinematográfica da linguagem, de ampliação e redução da objetiva, dá a impressão de que a história vai se desenrolando às vistas do leitor, como em um filme;

2) as anáforas do verbo ser no pretérito imperfeito, no versos da primeira estrofe – “Eram campos, campos, campos” / “Eram cabeços redondos” / “Era a hora do poente”, ou a repetição paralelística do advérbio “Já”, complementado pelo advérbio “quando”, nos versos da segunda estrofe – “ da noite que avançava”/ “ estranhos rumores de folhas”/ “quando, saindo um atalho”, que sugerem uma ação em continuum interrompida por outra, assim como a estrada da vida da personagem de repente se modifica;

3) a atmosfera típica das cantigas de amigo medievais, que encenam o exercício do amor através dos elementos da natureza - como a moça que vai ao alto e encontra o cervo que volve a água, ou a moça que vai lavar camisas e as tem levadas pelo vento, que metaforiza o amado –; aqui a experiência de amor vem conotada nos elementos da natureza, como as estevas, os cabeços redondos, a noite, as flores, a estrela, e nos significantes sensoriais que revelam uma linguagem sensorial bastante correlata à experiência vivida no nível do conteúdo;

4) a repetição paralelística de expressões, como as referências aos seios de Nena – a cada referência modificados num crescente de aproximação erótica -, ou a repetição com variação dos versos que fazem abrir e fechar o poema, mostrando no entanto a diferença da paisagem, e, conseqüentemente, das vidas que nela se personificam:

Não era noite nem dia.
Eram campos, campos, campos
abertos num sonho quieto.
Eram cabeços redondos
de estevas adormecidas. (versos 1 a 5)
Eram cabeços redondos
de estevas surpreendidas.
Eram campos, campos, campos
abertos de espanto e sonho... (versos 68 a 70)



FONTE:
“Memória e tradição do contar na experiência e na permanência neorrealista”, Michele Dull Sampaio Beraldo Matter. Congresso Internacional da Associação Internacional de Professores de Literatura Portuguesa (24.: 2014: Campo Grande, MS). Anais do 24º Congresso Internacional de Professores de Literatura Portuguesa, 20 a 25 de outubro de 2013, Campo Grande/MS/Brasil [recurso eletrônico] / Santos, Rosana Cristina Zanelatto... [et al.], organizadores. – Campo Grande: Ed. UFMS, 2014.



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CARREIRO, José. “Não era noite nem dia, Manuel da Fonseca”. Portugal, Folha de Poesia, 06-04-2020. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2020/04/nao-era-noite-nem-dia-manuel-da-fonseca.html



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domingo, 5 de abril de 2020

Inês de Leiria



Inês de Leiria

Encontrou Fernão Mendes
No interior da China
(E em que apuros ele ia!)
A velha portuguesa,
Chamada Inês de Leiria,
Que de repente reza:
Padre Nosso que estais nos céus...
Era de português o que sabia.

Ouvindo Fernão Mendes
Esta voz que soava
(Fernão cativo e cheio de tristeza!)
O português sorria...
Padre Nosso, que estais nos céus...
A velha mais não sabia,
Mas bastava.

Boa Inês de Leiria,
Cara patrícia minha,
Embora te fizesse
A aventura imortal
De Portugal
Chinesa muito mais que portuguesa,
- Pois por esse sorriso de Fernão
Tocas-me o coração.

Deste-lhe em tal ensejo,
Entre as misérias da viagem,
O mais gostoso e saboroso beijo
- O da Linguagem!

Afonso Lopes Vieira, Onde a Terra se Acaba e o Mar Começa.
Lisboa: Livraria Bertrand, 1940, pp. 39-40.

 

Poema inspirado no capítulo 91 da Peregrinação, de Fernão Mendes Pinto, cujo episódio de Inês de Leiria a seguir se transcreve:

Uma mulher que estava ali presente […], ouvindo a nossa conversa respondeu:
– Coisa é essa de que ninguém se deve espantar, porque nunca ali vimos senão ficarem na maior parte sepultados no mar os que muito labutam no mar, e por isso, amigos meus, o melhor e mais certo é fazer conta da terra e trabalhar na terra, já que Deus foi servido de nos fazer de terra.
E dando-nos com isto dois mazes de esmola como a pobres, nos recomendou muito que não curássemos de fazer viagens compridas onde Deus permitia fazer as vidas tão curtas. Mas logo após isto, desabotoou a manga de um gibão de cetim roxo que trazia vestido, e arregaçando o braço nos mostrou uma cruz que nele tinha esculpida como ferrete de mouro, muito bem feita, e nos disse: – Conhece porventura algum de vós outros este sinal que a gente da verdade chama cruz, ou ouviste-o alguma hora nomear?
Ao que nós todos, em o vendo, pondo os joelhos em terra com devido acatamento, e alguns com as lágrimas nos olhos, respondemos que sim, a que ela dando um grito e levantando as mãos para o céu, disse alto: – Padre Nosso que estais nos céus, santificado seja o teu nome –; e isto disse-o na linguagem portuguesa, e tornando logo a falar chim, como quem não sabia mais do português que estas palavras, nos pediu muito que lhe disséssemos se éramos cristãos, a que todos respondemos que sim, e tomando-lhe todos juntos o braço em que tinha a cruz a beijámos e dissemos tudo o que ela deixara por dizer da oração do Padre-Nosso, para que soubesse que lhe falávamos verdade.


Apontamento sobre o episódio de Inês de Leiria, na Peregrinação, de Fernão Mendes Pinto:

No que se refere ainda à abordagem das imagens do feminino na obra [Peregrinação] surge uma figura, a nosso ver, bastante interessante na medida em que se distingue de todas as outras pelas suas características. Essa figura é Inês de Leiria, que tem como traço distintivo o facto de ser mestiça. Inês de Leiria era filha de Tomé Pires, um português, que havia ido «por embaixador a el-rei da China» o qual se casara com uma gentia que convertera ao cristianismo.
Assim sendo, Inês de Leiria cresceu num ambiente cristão, ao qual se mantinha fiel, pois o seu pai havia convertido «muitos gentios à fé de Cristo, (…) que ali em sua casa se ajuntavam sempre aos domingos a fazer a doutrina». Os portugueses são, mais uma vez, beneficiados da caridade feminina, pois Inês de Leiria providencia-lhes mantimento e dinheiro, o que foi muito apreciado. Há, neste episódio uma identidade religiosa que vai permitir que se estabeleça uma relação de confiança. Este episódio revela-se também significante na medida em que nos mostra uma referência à mestiçagem, bem como ao processo de cristianização que ia sendo levado a efeito no Oriente.
Inês de Leiria pertenceria, certamente, a uma comunidade cristã que ainda manteria a autenticidade dos valores cristãos, tal como nos é dito: «E assim viviam todos muito conformes e amigos, sem haver ódio entre eles ou inimizade alguma.»

Identidade e Alteridade na Peregrinação de Fernão Mendes Pinto, dissertação de mestrado apresentada à Universidade de Aveiro, por Carla Margarida Martins Tavares, 2008.




CARREIRO, José. “Inês de Leiria”. Portugal, Folha de Poesia, 05-04-2020. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2020/04/ines-de-leiria.html


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sábado, 4 de abril de 2020

A Poesia Experimental Portuguesa de Melo e Castro

Por: Isaac Ramos



Melo e Castro, no começo da década de 60, no século XX, foi quem colocou a poesia experimental portuguesa em pé. Ernesto Manuel de Melo e Castro é um poeta que tem uma postura/atitude de vanguarda em estado de permanência. Nasceu em 1932, em Covilhã, Portugal. Publicou seu primeiro livro Sismo (1952) quando tinha 20 anos de idade e, no ano seguinte, Salmos em (1953). No entanto, Ideogramas (1962) é considerada a primeira obra concretista publicada em Portugal. Esta contribuiu significativamente para alinhá-lo aos demais poetas que trabalhavam com visualidade em Portugal, no Brasil e demais países do mundo ocidental. Esse texto tecerá algumas considerações de crítica e análise literária de trabalhos desse período e de outros posteriores.
Durante quarenta e cinco anos Melo e Castro exerceu a profissão de engenheiro têxtil paralelamente a de escritor, dedicando-se também ao ensino tecnológico. Sua prática profissional pode ter contribuído para o afinamento do olhar e de seu fazer poético. Dentre as antologias de poesia experimental, destaco Trans(a)parências, (1989), livro que ganhou o grande prêmio de poesia Inaset – Inapa de 1990, em Portugal e Antologia efêmera: poemas 1950-2000, publicada pela Nova Aguilar, no ano de 2000.
Melo e Castro possui mais de 30 títulos de poesia e 17 de ensaios de crítica e teoria literária. É pioneiro em videopoesia (Rodalume, 1968). Entre 1985 e 1989 desenvolveu na Universidade Aberta de Lisboa um projeto de criação de videopoesia denominado Signagens. Há alguns anos vem produzindo infopoesia e realizando seminários de discussão e produção de infopoesia. A invenção e radicalidade podem ser consideradas como marca estética desse autor.
Sobre o autor, considerando artigos de livros, revistas e jornais, há mais de 75 textos, conforme informação postada no site www.po-ex.net, o mais completo e documentado site português sobre poesia experimental, que possui farto material para pesquisadores, simpatizantes e leigos, com ilustrações a partir de originais. A responsabilidade fica a cargo de uma grande equipe da UFP (Universidade Fernando Pessoa), de Portugal, coordenada por Rui Torres, sete professores, três bolsistas, dois consultores (um deles o próprio Melo e Castro, em 2005; outro, o brasileiro Sergio Bairon, em 2006) e muitos amigos do projeto. Da mesma forma que no Brasil, arquivos digitais disponibilizados na internet vêm suprir a falta de bibliografia no mercado e nas bibliotecas.
É como poeta Melo e Castro permanece. O autor costuma afirmar que é o pioneiro em videopoesia, em Portugal. Ele declarou certa vez que o sucesso de sua primeira obra concreta, Ideogramas, de difícil assimilação, teria sido facilitada pela publicação em Portugal de uma compilação da poesia concreta do grupo paulista Noigrandes, organizada pela embaixada do Brasil em Lisboa, no ano de 1962.
Aponta dois acontecimentos que antecederam o aparecimento em Portugal de manifestações originais da poesia experimental. Primeiro, seria a rápida visita a Lisboa de Décio Pignatari em 1956, segundo ele sem resultados significativos, após o histórico encontro com Gomringer42; segundo, a publicação da coletânea há pouco referida. Conforme Castro “em Portugal, nunca houve, no entanto um grupo organizado de poetas concretos, tendo a Poesia Concreta interessado a determinados poetas em determinada altura, como via de alargamento da sua pesquisa morfossemântica”43, afirma no capitulo intitulado “A poesia experimental portuguesa” (CASTRO & HATHERLY: 1981, p.9). Para entendermos melhor a trajetória da poesia experimental portuguesa é fundamental ler essa obra. É importante frisar que não se trata de uma compilação de manifestos como foi o livro Teoria da poesia concreta: textos críticos e manifestos 1950-1960, organizado pelos concretistas paulistas do Noigandres.
Para Castro (1993, p.41), “moda e consumo são duas facetas fundamentais da vida atual” e a razão por que um livro insólito como Ideogramas tenha encontrado editor estaria estruturalmente justificada e corresponderia ao esnobismo mental das elites consumidoras de obras de arte de Portugal. Mesmo diante dessa situação um tanto insólita, do ponto de vista estético, o autor reconhece que depois de ter vivido experiências de criação poética com os livros Entre o som e o sul (1960), Queda livre (1961) e Mudo mudando (1962), teria adquirido “uma técnica espacial do verso, de uma sintaxe não-discursiva e de uma dimensão plástica da imagem” (op.cit., p.42). E, curiosamente, alega que somente em 1961, teve conhecimento profundo e complexo sobre os trabalhos dos irmãos Campos, Pedro Xisto, Décio Pignatari e Eugen Gomringer. Após conhecê-los, afirmou ter sentido uma enorme alegria e que teria encontrado o que ele próprio desejava e sentia que era urgente se realizar. Talvez isso ajude a explicar os diversos diálogos sintático-visuais dos seus ideogramas com trabalhos de Augusto de Campos, Haroldo de Campos e Décio Pignatari.
Mesmo tendo chamado seus “Ideogramas” de poesia concreta, Castro – juntamente com seus contemporâneos – logo adotaria a terminologia poesia experimental para nominar o que produziam. Cabe esclarecer que a realidade política em Portugal era bem diferente da vivida no Brasil. Era o tempo da ditadura salazarista e os poetas portugueses encontraram outros temas para compor seus trajetos. Na época em que participaram como colaboradores da revista Poesia Experimental (1964), esses poetas não eram de todo jovens. Castro tinha 32 anos; Hatherly, 35; Aragão (editor juntamente com Herberto Helder), 39 e Sallete, 42. A maioria dos participantes tinha publicado mais de um livro. No entanto, essas publicações não possuíam, necessariamente, uma postura estética assumida como poética visual. A revista em si teve dois números intercalados por dois anos, cujo nome, que denominava os adeptos dessa poética, foi dado pelos editores Aragão e Hélder.
Castro entende que pela primeira vez se propôs no seu país uma posição ética de recusa e de pesquisa, que em si própria seria um meio de destruição do obsoleto, uma desmistificação da mentira, uma abertura metodológica para a produção criativa. Amparado nesse primeiro princípio, o segundo seria o de que essa referida produção se projetaria no futuro e encontraria o modo certo para agir no momento exato, quando o povo e a língua dela necessitassem 44 (CASTRO, 1981, p. 11).
Nos seis primeiros livros de Melo e Castro, não ocorreram momentos de ousadia estética ou radicalidade na mesma proporção em que ocorre em Ideogramas. Para entendermos um pouco mais esses movimentos, é importante conhecermos as origens da chamada poesia concreta e para podermos remeter aos diversos tipos de poemas visuais da atualidade. Explicamos: todo poema concreto pode ser considerado visual, mas nem todo poema visual é concreto. Partindo da expressão utilizada por Augusto de Campos, verbivocovisual (verbal + voz + visual) e empregada largamente pelos concretistas de Noigandres, pode-se dizer que não é tarefa fácil entender as relações paradigmáticas e mesmo sintagmáticas do referido movimento.
Melo e Castro partiu da palavra poética para chegar à visualidade. Foi um percurso consciente, experimentador e, sobretudo, revolucionário. Isso pode ser constatado nos casos que virão a seguir.

E. M. Castro, “ver”, Ideogramas,1962


O primeiro poema de Ideogramas (1962) é constituído, morfologicamente, por três verbos (“ver”, “ler” e “ter”) e dois advérbios: “não” em três estrofes (negação) e “sim” em uma estrofe (afirmação). Esses últimos estão dispostos de forma isolada de forma a envolver cada grupo de três versos. A leitura discursiva dele pode ser feita na horizontal ou na vertical. Na vertical pode ser lido da seguinte forma: ver ler ter ler ver ser ver ler ser ler ver ter. Dentre os verbos dois têm relação com a visão (“ver” e “ler”) e dois com a existência (“ser” e “ter”). Trata-se do dilema dicotômico da existência. Esse contrassenso é fruto de uma cadeia de paradoxos presente em grande parte de sua obra.
O segundo caso parte de um poema discursivo: “círculo aberto ritmo liberto”.

E. M. Castro, “Círculo aberto”, Ideogramas, 1962

 Geometricamente aparece uma das figuras recorrentes que é o círculo. Nesse sentido a disposição espacial das palavras sugere um globo ocular, dentro do qual estão contidas as palavras que varam a retícula da imagem plástica. É o olhar do poeta que perpassa de forma atomística a conjunção das vanguardas em que ele esteve presente. A visão e audição sinestesicamente compõe a planilha rítmica do poema. Aliás, a imagem pictórica do globo ocular aparece em diversos poemas desde a fase de Ideogramas até a produção mais recente, esta última engloba a produção de infopoesia feita com recursos computacionais.
O poema seguinte é “Pêndulo”. Trata-se de um caligrama, segundo a concepção Apollinaire, constituído pelas letras que compõe a palavra: P, Ê, N, D, U, L, O. A primeira letra aparece 8 vezes, a segunda 6, depois 5, 4, 3, 2 e 1, respectivamente. Temos uma imagem diante do olhar que pode até hipnotizar.

E. M. Castro, “Pêndulo”, Ideogramas, 1962


E. M. Castro, “Tontura”, Ideogramas, 1962


Outro poema é “Tontura”. A palavra título aparece quatro vezes e quatro círculos concêntricos, totalizando dezasseis vezes. Obtém-se novamente uma imagem circular. A tontura é sentida, pode ser provocada ou pode vir como estado poético derivado da palavra matriz. Pode-se dizer, inclusive, em combinações seriais ou matemáticas. Melo e Castro utiliza esse recurso em diversos momentos na sua obra. Não se configura necessariamente como a poesia matemática dos concretistas brasileiros, todavia reflete um conhecimento da álgebra, geometria composicional e outros recursos advindos da matemática e da estatística. “Tontura” é um libelo aos sentidos do leitor. Mesmo quem não seja um leitor iniciado em poema visual pode muito bem atestar a sensação estética do texto de Melo e Castro.
Em situação semântica semelhante, o poema “Hipnotismo”.

E. M. Castro, “Hipnotismo”, Ideogramas, 1962


Formado pela escrita em ordem direta e inversa, traz em destaque a letra “O”, a qual aparece duas vezes. Essa vogal aparece ampliada no corpo poético como se fossem duas lentes ou dois olhos a observar o texto e por que não dizer o próprio leitor. As duas direções letrais e poéticas cruzam-se com a haste da vogal “O” que sustentam o corpo do poema e da ontologia do ser. Naturalmente, vem-me a imagem plasmática discursiva do dilema de Hamlet “Ser ou não ser eis a questão”. Shakespeare ficaria lisonjeado com a homenagem. Simbolicamente, a imagem das letras em um sentido e a outra em sentido reverso, incluindo as duas vogais “O”, lembram o símbolo do infinito: .
Um poema interessante é chamado de “Combinatória existencial”, retirado do livro Versus – in – versus (1968), contido na Antologia efêmera. Ele traz uma matriz sígnica, composta pelas letras A, B, C, D, F, G, E, H, e uma matriz verbal: “A vida mata-me. O amor imola-me. A noite ofusca-me. A razão desola-me”. A primeira série combinatória das letras se apresenta em quatro quartetos tendo doze letras por linha as quais se apresentam de três em três, como: “ABA ADA AFA AHA”. Ao todo há quarenta e oito letras por estrofe e cento e noventa e duas no total da primeira série combinatória.
Quanto ao desenvolvimento verbal traz nomes (“vida”, “amor”, “noite”, “razão”) e verbos (“mata”, “imola”, “ofusca”, “desola”). O eixo sintagmático do poema é construído por nome + verbo + nome. Essa estrutura sintática se ergue em cadeias semânticas que se multiplicam através de séries combinatórias ou combinações matemáticas. O recurso estilístico predominante é o paradoxo, próprio de Melo e Castro que, a exemplo do paulista Haroldo de Campos e o mato-grossense Silva Freire, pode ser chamado de neobarroco. Na (des)montagem do poema temos dezasseis quartetos com três palavras-chave por verso, conforme apresentado no eixo sintagmático. A apresentação do eixo paradigmático pode ser ampliada além do que veio no texto através do uso de séries combinatórias. Por exemplo:
A vida mata-me a vida
A vida mata-me o amor
A vida mata-me a noite
A vida mata-me a razão

O amor mata-me a vida
O amor mata-me o amor
O amor mata-me a noite
O amor mata-me a razão

Igualmente bem interessante é “A revolta do texto” do livro As palavras só-lidas (1979). No eixo sintagmático temos um sujeito e um predicativo do sujeito. Trata-se de um poema item ou poema caso. Morfologicamente temos artigo + substantivo + adjetivo + verbo de ligação + adjetivo. Sintaticamente temos: adjunto ADN + suj +adj ADN + pred. nominal + predicativo. do sujeito. Trata-se de anáforas metafóricas no exercício da metalinguagem. Predominam a função poética e a metalinguística.

A revolta texto
O texto revolta: é revolto, é revoluteante, é revoltoso, é revoltado, é revoltante, é revolitado, é revolvido.
O texto ruído: é rugido, é ruim, é rubídio, é ruivo, é ruína, é rúptil, é rumoroso, é rútilo, é ruptura, é rumorejo, é rugoso, é ruço.
O texto uso: é urze, é usura, é urubu, é urso, é ustão, é usurpador, é útero, é utopia, é útil, é urro, é uva, é uzifuro.
O texto muro: é música, é mútuo, é musa, é murro, é múmia, é mundial, é múnus, é murcho, é mural, é mutilado, é museu, é mutação, é mortal.
O texto vivo: é vário, é vazio, é vacina, é vaga, é vagaroso, é vagina, é vaivém, é vapor, é vândalo, é válvula é válido, é valete, é vaia, é vagem, é varíola, é varapau.
O texto pau: é pauta, é pávido, é pavio, é paz, é patim, é patente, é pastoril, é parente, é pássaro, é pai, é pasquim, é passageiro, é passível.
O texto impossível: é tórax, é traço, é três.
O texto volta: é volátil, é voltaico, é vômito, é voluta, é vogal, é volúpia, é volume, é vontade, é vulva, é vulnerável, é voz, é voraz, é revolta.

O poeta se utiliza de um amplo leque de possibilidades semânticas e sistêmicas. Anaforicamente temos a palavra texto que se complementa com uma série de adjetivos (“revolta”, “ruído”, “uso”, “muro”, “vivo”, “pau”, “impossível” e “volta”) e vai (circuns)crevendo a partir da primeira letra e adotando combinações rítmicas e sonoras. O texto poético adquire uma velocidade inaudita. E o poeta vai tecendo sua teia lírica que encorpa texto, vomita e volita significados inusuais. Em interessante jogo de palavras o poema mostra suas faces inter e intratextuais. Há uma série de reflexões contidas em cada “discurso poético”. O texto se renova e encadeia ressemantizações.
Nessa breve mostra de trabalhos do poeta português Melo e Castro, procuramos mostrar um pouco de sua poética que contempla não apenas as vanguardas europeias e brasileiras como imprime uma poética singular. O autor já declarou, por mais de uma vez, que não tem preferência por poemas visuais ou discursivos. Isso facilita o trabalho do leitor e do crítico, porque não é preciso ficar preso a discussões estéreis sobre se o que está sendo lido e/ou visto é poema ou não. Melhor é saber desfrutar da leitura de um texto literário e, sobretudo, de um grande poeta contemporâneo.

REFERÊNCIAS
CAMPOS, Augusto de; CAMPOS, Haroldo de; PIGNATARI, Décio. Teoria da poesia concreta: textos críticos e manifestos 1950-1960. 4. ed. Cotia: Ateliê Editorial, 2006.
CASTRO, E. M. de Melo e. Livro de releituras e poiética contemporânea. Belo Horizonte: Veredas & Cenários, 2008. (Coleção Obras em Dobras).
_____. Antologia efêmera [poemas 1950-2000]. Rio de Janeiro: Lacerda, 2000. _____. O fim visual do século XX & outros temas críticos. GOTLIB, Nádia (org.). São Paulo: Edusp, 1993.
_____ & HATHERLY, Ana. PO-EX: textos teóricos e documentos da poesia experimental portuguesa. Lisboa: Moraes Editora, 1981.
RAMOS, Isaac Newton Almeida. Vanguardas poéticas em permanência: a revalidação de Wlademir Dias-Pino e Silva Freire. Tese (doutorado em Letras) – Universidade de São Paulo – 2011. Disponível em http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8156/tde-04052012-090630/pt-br.php. Acesso em: 17 dez. 2013.
POESIA EXPERIMENTAL. Disponível em http://www.po-ex.net/ . Acesso em: 17 dez. 2013.

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NOTAS:
42 Poeta suiço-boliviano que foi responsável por reunir artistas plásticos e poetas em vários países da Europa, sendo o principal interlocutor dos participantes do grupo Noigrandes.
43 Esse texto encontra-se em PO-EX: textos teóricos e documentos da poesia experimental portuguesa. Moraes Editores: Portugal, 1981.
44 Na opinião do poeta e crítico isso teria acontecido logo após o 25 de abril de 1974, com a explosão visual que teria invadido cidades, vilas, aldeias e estradas de Portugal.  

FONTE:
“A Poesia Experimental Portuguesa de Melo e Castro”, Isaac Ramos (Departamento de Letras de Alto Araguaia UNEMAT – Universidade Estadual de Mato Grosso). Congresso Internacional da Associação Internacional de Professores de Literatura Portuguesa (24.: 2014: Campo Grande, MS). Anais do 24º Congresso Internacional de Professores de Literatura Portuguesa, 20 a 25 de outubro de 2013, Campo Grande/MS/Brasil [recurso eletrônico] / Santos, Rosana Cristina Zanelatto... [et al.], organizadores. – Campo Grande: Ed. UFMS, 2014.


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  • pOEsIA VISUAL”, Folha de Poesia, José Carreiro, 2010/12/10.



  • O homem-mãe” [de M. Cesariny de Vasconcelos], Folha de Poesia, José Carreiro, 2016/05/25




CARREIRO, José. “A Poesia Experimental Portuguesa de Melo e Castro”. Portugal, Folha de Poesia, 04-04-2020. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2020/04/a-poesia-experimental-portuguesa-de.html


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