A IDEIA
IV
Conquista, pois, sozinho o teu Futuro,
Já que os celestes guias te hão deixado,
Sobre uma terra ignota abandonado,
Homem -‑ proscrito rei ‑ mendigo escuro!
Se não tens que esperar do céu (tão puro
Mas tão cruel!) e o coração magoado
Sentes já de ilusões desenganado,
Das ilusões do antigo amor perjuro;
Ergue-te, então, na majestade estoica
De uma vontade solitária e altiva,
Num esforço supremo de alma heroica
Faze um templo dos muros da cadeia.
Prendendo a imensidade eterna e viva
No círculo de luz da tua Ideia!
Já que os celestes guias te hão deixado,
Sobre uma terra ignota abandonado,
Homem -‑ proscrito rei ‑ mendigo escuro!
Se não tens que esperar do céu (tão puro
Mas tão cruel!) e o coração magoado
Sentes já de ilusões desenganado,
Das ilusões do antigo amor perjuro;
Ergue-te, então, na majestade estoica
De uma vontade solitária e altiva,
Num esforço supremo de alma heroica
Faze um templo dos muros da cadeia.
Prendendo a imensidade eterna e viva
No círculo de luz da tua Ideia!
Antero de Quental
TEXTOS DE APOIO
A Ideia ‑ No primeiro soneto desta série, chega à conclusão que Deus desapareceu da Terra. No 2.°, porque o nome de Deus se apagou, até os astros são ateus e, como lei única, só querem o infinito. No 3.°, diz que importa reagir e procurar outro caminho, talvez mais luminoso, fora do cristianismo. No 4.°, sacode o orgulho do homem e exorta-o a conquistar, sem guias celestes, só com a sua Ideia, o seu futuro. No 5.°, pergunta quem é a Ideia. Não sabe defini-la. É algo de vago e impreciso. Chama-lhe peregrina, pálida imagem com alguma coisa de divina. No 6.°, considera a Ideia a esposa do homem, a grande razão de ser da sua vida. No 7.°, fala do consórcio, do «noivado da alma com a Ideia», num certo lugar distante, indefinido, «Lá, no seio da eterna claridade, / Aonde Deus à humana voz responde». Mas não chega a localizá-la. É neste soneto que define a Ideia - esta é o símbolo da Verdade. No 8.°, finalmente, esclarece que é na consciência do homem que se encontra o lugar para o «noivado da alma». Só lá se pode realizar essa união.
Literatura Prática (sécs. XIX-XX) 11º Ano, Lilaz Carriço, Porto Ed., 1986 (4ª ed.), pp. 194-195.
[…] Esse retorno será o núcleo de construção dos sonetos sobre «A Ideia». Não é já um retorno, é uma transmutação. Já que os deuses desapareceram (em termos em tudo similares aos das «Saudades Pagãs»: «Pois que os deuses antigos e os antigos / Divinos sonhos por esse ar se somem» mas ampliando-se logo inicialmente ao Deus do Cristianismo: «Deus tapou com a mão a sua luz, / E ante os homens velou a sua face!») o Homem, confinado a si mesmo, vai construir o seu próprio templo, «prendendo a imensidade eterna e viva / no círculo de luz da [t]sua Ideia!". Este é uma espécie de projeto inicial, primeira sequência em quatro sonetos de uma história de morte e ressurreição, de perda e invento, em que um absoluto herdado e decorativo se substitui pela construção pessoal e coletiva de uma «aspiração» (a palavra é fortemente anteriana) comum; o V soneto é o da identificação da Ideia, o do seu reconhecimento pela necessidade de fixação da sua natureza ‑ e é talvez um dos mais flagrantes exemplos do poema de ideias fortemente implicado numa mensagem poética vigorosa e sugestiva; natureza evanescente, coincidindo com o ideal simbolista, inapreensível e multímoda na sua mutação incessante ‑ imagem liquefeita, pequenina luz, nuvem, e sabemos como estes três elementos, água, fogo e ar são essenciais na imagística anteriana, já que a terra é a síntese realmente ideológica da cosmovisão que os envolve; este soneto organiza por si só uma sequência complexa de três momentos convertíveis em três micronarrativas: após a identificação da ideia, o apelo é o de um encontro necessário e ansioso, união de salvação simultaneamente erótica e terapêutica, para se terminar no abandono, deceção ou insatisfação de um encontro que não dá tudo, que promete mais do que cumpre. Os sonetos VI e VII dão conta da prossecução do encontro amoroso e matrimonial entre os homens e a ideia (o sujeito poético oscila entre o «vós» e o «nós») e, no último soneto, é o problema do espaço, dolugar da ideia que se coloca: «o espaço é mudo», o silêncio dá conta do vazio que aponta o além, «o céu da ideia», o absoluto romântico-simbolista; e é este percurso de incidência narrativa, reabsorvido na ressonância da exclamação do nada, que se detém na incidência lírica da paragem, de que o soneto «Contemplação» é um dos momentos mais esteticamente conseguidos.
Maria Alzira Seixo, “Antero e a poesia de ideias” in Congresso Anteriano Internacional – Actas [14-18 outubro 1991]. Ponta Delgada, Universidade dos Açores, 1993.
Sonetos incluídos textualmente n’Os Sonetos Completos (o último da série o VIII, não figurava na 1ª edição das Odes Modernas: na 2ª edição, aparece com a data de 1871). Assim como a palavra Revolução exprimia o sonho de reforma social assim Ideiaresume o seu pensamento filosófico. No sistema hegeliano, a filosofia era a ciência da Ideia absoluta.
Repare-se como já nas Odes o soneto filosófico surge plenamente realizado, quer quanto à forma, quer quanto ao conteúdo. O processo artístico aqui documentado – concretizar, tornar plástica e sensível a abstração – converte-se numa das características do lirismo anteriano.
Recorde-se o comentário de Fidelino de Figueiredo (Antero, pág. 74): «O que Antero faz é meter o mundo requintado das ideias abstratas e das suas singulares ansiedades metafísicas, no mundo comum das sensações de forma e cor e dos normais sentimentos humanos.»
[O IV soneto da série] “A Ideia” exprime claramente uma mística política e social e o otimismo anteriano, isto é, a afirmação do Antero apolíneo.
Maria Ema Tarracha Ferreira, Antologia Literária Comentada. Século XIX. Do Romantismo ao Realismo. Poesia,
Lisboa, Editora Ulisseia, 1985, 2ª edição.
Na poesia anteriana, o plano real é sempre confrontado com o plano do ideal.
Ao perspetivar-se a poesia de Antero de Quental não parece difícil relevar várias dicotomias, entre as quais o real/o ideal, dicotomia que perpassa por quase todas as suas fases poéticas.
Assim, mesmo num primeiro momento, onde a mulher assume papel relevante, o mundo do ideal é colocado em destaque. A mulher a que Antero alude não é definida em termos concretos, é antes "uma miragem", um "Ideal", um “sonho”. Nunca a figura feminina se assume como sensual, com contornos bem definidos.
E se nesta 1ª fase se deteta esta dualidade, ela surge ainda mais acentuada na poesia de intervenção, do apostolado social. Aqui constata-se a necessidade de intervir no sentido de, pelo Amor e pela Justiça, poder transformar a sociedade. Acredita poder encontrar o Ideal que incessantemente busca e, pleno de otimismo, revela-se o apolíneo anteriano, aquele que busca a verdade e a luz, comandado por uma força, a que chama vontade. Afirma mesmo que o homem não precisa da ajuda divina e que sozinho pode conquistar o seu futuro ("A Ideia"). Pode até subir a "escada multiforme" para encontrar a liberdade, o ideal, superiorizando-se a Deus, que identifica com um mundo em ruínas.
Mas o contacto com o real fá-lo perder a esperança de transformação que idealizou, lançando-se por isso no pessimismo que o fará conotar com o noturno e negativo. Para obter a paz de espírito de que necessitava, vai procurar um novo ideal, agora no mundo místico, no domínio do budismo do Nirvana, isto é, no transcendente. Posteriormente vai ainda procurar reafirmar-se este transcendentalismo quando, numa fase final, procura reconciliar-se com Deus para atingir o absoluto que, obviamente, não poderá atingir-se no mundo real.
Parece pois ser possível identificar-se a dicotomia real/ideal na poesia anteriana, embora o idealismo supere o concreto, o real, porque este último o transforma num ser angustiado.
Dossier Exame ‑ Português A, 12º ano,
Maria José Peixoto, Célia Fonseca, Edições ASA, 2003
ISBN: 972-41-3415-6
Maria José Peixoto, Célia Fonseca, Edições ASA, 2003
ISBN: 972-41-3415-6
QUESTIONÁRIO INTERPRETATIVO
1. Caracteriza o destinatário da mensagem poética, comprovando a tua resposta com citações.
2. Comenta a expressividade das metáforas presentes no seguinte verso: “Homem ‑ proscrito rei ‑ mendigo escuro!”
3. Pronuncia-te acerca da relação Homem/Deus, tal como a entende o sujeito poético.
4. Divide o soneto em duas partes lógicas, justificando a divisão efetuada.
5. Explicita a relação sujeito poético/destinatário da mensagem poética.
6. Indica dois recursos linguísticos e/ou estilísticos de que se serve o sujeito poético para enfatizar a sua mensagem, exemplificando-os.
7. Tendo em conta a divisão proposta por António Sérgio, identifica a faceta em que se incluirá este soneto, explicando-a.
angústia existencial. Figurações do poeta. Diferentes configurações do Ideal
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para análise literária de textos de Antero de Quental, por José Carreiro. In:
Lusofonia – plataforma de apoio ao estudo da língua portuguesa no mundo, 2021
(3.ª edição) <https://sites.google.com/site/ciberlusofonia/PT/Lit-Acoriana/antero-de-quental>
[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2012/10/23/A.Ideia.aspx]