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sexta-feira, 22 de março de 2013

EPIDAURO (Sophia de Mello Breyner Andresen)




EPIDAURO

O cardo floresce na claridade do dia. Na doçura do dia se abre o figo. Eis o país do exterior onde cada coisa é:

     trazida à luz
     trazida à liberdade da luz
     trazida ao espanto da luz


Eis-me vestida de sol e de silêncio. Gritei para destruir o Minotauro e o palácio. Gritei para destruir a sombra azul do Minotauro. Porque ele é insaciável. Ele come dia após dia os anos da nossa vida. Bebe o sacrifício sangrento dos nossos dias. Come o sabor do nosso pão a nossa alegria do mar. Pode ser que tome a forma de um polvo como nos vasos de Cnossos. Então dirá que é o abismo do mar e a multiplicidade do real. Então dirá que é duplo. Que pode tornar-se pedra com a pedra alga com a alga. Que pode dobrar-se que pode desdobrar-se. Que os seus braços rodeiam. Que é circular. Mas de súbito verás que é um homem que traz em si próprio a violência do toiro.

Só poderás ser liberta aqui na manhã d’Epidauro. Onde o ar toca o teu rosto para te reconhecer e a doçura da luz te parece imortal. A tua voz subirá sozinha as escadas de pedra pálida. E ao teu encontro regressará a teoria ordenada das sílabas — portadoras limpas da serenidade.

Sophia de Mello Breyner Andresen, in Geografia, 1967

Teatro de Epidauro

Na sua Obra poética, a escritora oferece indícios de que é na declamação, ou na leitura que nos penetra os ouvidos, que reside a “sorte de conhecer o poema”, estando também presente o aprendizado da sílaba e o da poesia de Sophia: “A tua voz subirá sozinha as escadas de pedra pálida. E ao teu encontro regressará a teoria ordenada das sílabas – portadoras limpas da serenidade” (ANDRESEN, 1991b, p. 65). A presença de um princípio teórico em Sophia de Mello Breyner Andresen expressa-se, no poema “Epidauro”, retirado da obra Geografia (1967), através de uma “teoria ordenada das sílabas”, articulada com uma linguagem rica em símbolos da Antiguidade clássica, dado que se estabelece em relação ao título do poema e à presença de certas evocações da cultura grega ao longo do discurso. Segundo Alfredo Bosi (2000), a concepção de som no poema pode ser associada à voz: “a voz abre caminho para que se dê uma nova presença dos seres: a re-presentação do mundo sob as espécies de significados que o espírito descola do objeto. A voz produz, no lugar da coisa, um fantasma sonoro, a palavra” (BOSI, 2000, p. 72). A palavra tem um sentido de voz na poesia de Andresen, conforme a escritora informa aos leitores no trecho final em “Arte Poética V”:

 

Tempos depois, escrevi estes três versos:

 

A voz sobe os últimos degraus

Oiço a palavra alada impessoal

Que reconheço por não ser já minha.

 

Essa palavra, representada na voz desprendida do sujeito lírico, que sobe sozinha as escadas no antigo teatro, chama atenção para os primeiros conceitos de poesia lírica no mundo antigo, para os conceitos de som, de metro e de ritmo, para a concepção de movimento, dos quais a lírica de Sophia pode tomar corpo: “Só poderás ser liberta aqui na manhã d’Epidauro” (ANDRESEN, 1991b, p. 65). Por outro lado, as sílabas “portadoras limpas da serenidade” também fazem alusão à poesia produzida pelos gregos, cuja técnica utilizava um sistema quantitativo para medir os versos pela unidade de tempo, já que, por meio delas, é possível conhecer a alternância entre sons fortes e fracos, podendo-se sentir a cadência do verso e estabelecer um sentido. O ensinamento sobre uso da voz e o recebimento de uma teoria das sílabas aproximam-se da concepção da arte como inspiração das musas, representada na voz alta e livre, destinada a um público, uma arte produzida para uma ocasião de recitação e de performance, de interiorização e de exteriorização, como ressalta Johannes Pfeiffer (1966):

 

[...] o metro é o exterior e o ritmo o interior; o metro é a regra abstrata, o ritmo a vibração que confere vida; o metro é o Sempre, o ritmo o Aqui e o Hoje; o metro é a medida transferível, o ritmo é animação intransferível e incomensurável (PFEIFFER, 1966, p. 18, apud CHOCIAY, 1974, p. 3).

 

Na Obra poética, o metro e o ritmo são analisados e entendidos como a música da poesia, pois se manifestam em um arranjo de sons, em uma melodia de sílabas átonas e de sílabas tônicas, para representar a visão de mundo da escritora, como assinala Sophia Andresen em “Arte poética II”, do livro Geografia (1967), para alertar o leitor acerca da questão: “Se um poeta diz ‘obscuro’, ‘amplo’, ‘barco’, ‘pedra’, é porque estas palavras nomeiam a sua visão de mundo, a ligação com a coisas” (ANDRESEN, 1991b, p. 96).

Rosa Maria Martelo (2005, p. 61) considera que é uma característica da poesia de Andresen traçar uma sequência organizada de sons, salientando que essa teoria não implica a assimilação tradicional de um sistema, nem pode ser compreendida como algo imposto ao poema, mas refere-se a uma peregrinação ou um desfile solene. Segundo a pesquisadora, é importante compreender o pensamento da escritora, quando ela procura demonstrar a teoria através da distinção entre declamar e ouvir. Nesse sentido, Sophia Andresen enfatiza o valor atribuído ao som produzido no anfiteatro de Epidauro para sua criação poética, conforme pode ser analisado no trecho final do texto “Arte poética V”: “Um dia em Epidauro – aproveitando o sossego deixado pelo horário de almoço dos turistas – coloquei-me no centro do teatro e disse em voz alta o princípio de um poema. E ouvi, no instante seguinte, lá no alto, a minha própria voz livre, desligada de mim” (ANDRESEN, 1991b, p. 349, apud MARTELO, 2005, p. 61). No Epidauro está “a teoria ordenada das sílabas”, que é revelada não só na audição de sons dos fonemas, mas, principalmente, na relação dos sons entre si, que se ordenam ou se organizam, com o fim de mostrar um sentido ao leitor. Este pode ser percebido verso a verso, na repetição de sílabas e no interior dos versos, sendo preciso ainda comparar suas repetições e suas variações, para melhor compreender os diferentes significados do texto poético: “trazida à luz/ trazida à liberdade da luz/ trazida ao espanto da luz” (ANDRESEN, 1991b, p. 65).

A Poética Musical de Sophia de Mello Breyner Andresen, Karoline Pereira. Porto Alegre, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2021


sporadicq:  Minotaur in Labyrinth, Roman mosaic at Conímbriga, Portugal.:
Minotauro, Conimbriga


“…sob os muros de Cnossos”: o Minotauro e o labirinto 

Como é sabido, o Minotauro era um monstro com cabeça de touro e corpo de homem, fruto da relação entre a mulher do rei Minos, Pasifae, com um touro; a criatura foi encerrada num labirinto construído por Dédalo, e todos os anos sete jovens e sete donzelas eram trazidas de Atenas para que o monstro as devorasse; mais tarde, com a ajuda de Ariadne, o Minotauro seria morto pelo herói Teseu (Grimal, 1999: 314). Este mito interessa particularmente a Sophia e, num poema em prosa de Geografia intitulado “Epidauro”, o sujeito poético, que parece identificar-se com a autora (reparese no feminino “vestida”) assume-se como uma espécie de Teseu (“Gritei para destruir o Minotauro”), procurando vencer o monstro não através da espada, mas da representação:

 

(…) Eis-me vestida de sol e de silêncio. Gritei para destruir o Minotauro e o palácio. Gritei para destruir a sombra azul do Minotauro. Porque ele é insaciável. Ele come dia após dia os anos da nossa vida. Bebe o sacrifício sangrento dos nossos dias. Come o sabor do nosso pão a nossa alegria do mar. Pode ser que tome a forma de um polvo como nos vasos de Cnossos. Então dirá que é o abismo do mar e a multiplicidade do real. Então dirá que é duplo. Que pode tornar-se pedra com a pedra alga com a alga. Que pode dobrar-se que pode desdobrar-se. Que os seus braços rodeiam. Que é circular. Mas de súbito verás que é um homem que traz em si próprio a violência do toiro. (…) (Andresen, 1996: 65).

 

O Minotauro simboliza o medo, que é vencido quando representado; e daí o título do poema, Epidauro, o mais famoso dos teatros gregos. Assim se retoma o tema da origem do género trágico, bem explicada por Friedrich Nietzsche (1844-1900) no seu famoso ensaio O nascimento da tragédia, de 1872. Aí, o autor refere que a Grécia Antiga não era só feita de claridade apolínea, mas também de força dionisíaca, e explica como ambas se conjugaram para dar origem à tragédia. Sophia, no ensaio O Nu na Antiguidade Clássica, torna muito clara essa relação:

 

O espírito apolíneo aparece sempre conjugado com a força dionisíaca. (...) A claridade grega é uma claridade que reconhece a treva e a enfrenta. A claridade daqueles que interrogam a esfinge e que penetram no labirinto para combater a escuridão e a violência do toiro. Os Gregos inventam a tragédia porque sabem que a treva existe e a interrogam e a enfrentam (Andresen, 1992: 23).

 

No poema acima transcrito, o medo constante (“come dia após dia os anos da nossa vida”), que também pode ser simbolizado por um “polvo” rodeando o homem por todos os lados, é infundido, conclui Sophia, não tanto pelos monstros exteriores ao homem mas pelos seus próprios labirintos interiores e pela violência com que trata o seu semelhante – “é um homem que traz em si próprio a violência do toiro”. Assim, a representação do medo, através da tragédia, foi um excelente método para o exorcizar, como constatamos num outro poema de Dual, intitulado “O poeta trágico”:

No princípio era o labirinto

O secreto palácio do terror calado

Ele trouxe para o exterior o medo

Disse-o na lisura dos pátios no quadrado

De sol de nudez e de confronto

Expôs o medo como um toiro debelado

                               (Andresen 2004: 60)

 


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