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quinta-feira, 24 de novembro de 2016

INSÓNIA

Morpheus, Ego Rodriguez


UM RESTO DE INSÓNIA

 

A noite chegou até ele sem bater à porta;

devagar, instalou-se no sofá da sala, escureceu

os cantos, roubou a luz às lâmpadas. E

não abriu a boca: enquanto ele, sem nada

compreender, a empurrava para longe de si,

tentava abrir as janelas, acendia velas,

que ela soprava por trás. A noite chega,

assim, afirmando a sua presença. Não dá

descanso, a não ser que a aceitem como ela é:

mas não é fácil tê-la dentro de casa, nem conviver

com os seus gestos de treva. Talvez se possa,

apenas, murmurar esse nome que ela nos

roubou, um dia, e que só agora se nos torna

necessário lembrar; ou invocar uma proteção

ilusória, a deusa diurna, de cabelos iluminados

pelo ouro primaveril. Tudo inútil – e como ela

se ri!, a noite branca que o obriga a manter

os olhos abertos, fixando o último fio de luz,

como se também a sua vida escorresse por aí…

 

Nuno Júdice, A fonte da vida. Lisboa, Quetzal, 1997


Asaliah, INSOMNIA (2020)




O primeiro sofredor de insónia de que a literatura ocidental nos dá conta é nada menos que Zeus. Já por aí se pode inferir que o problema não escolhe as suas vítimas consoante a sua dignidade ou importância, mas toca a tod@s. Tanto sofre de insónia o bilionário deitado na sua cama em Park Avenue como o pobre no seu covil. No início do Canto II da Ilíada, a insónia de Zeus tem, ainda, uma característica amarga que todos os insomníacos conhecem: é tão desesperante sentirmos a meio da noite que, no mundo inteiro, a única pessoa que não está a dormir somos nós. Sobretudo se estamos deitados na cama ao lado de alguém que está a dormir – como no caso de Zeus, mais uma vez, no referido episódio da Ilíada.
No entanto, se olharmos para a literatura grega no seu todo, vemos que a insónia (γρυπνία) nem sempre é vista em termos exclusivamente negativos. A insónia é sentida como dádiva grata para aqueles que se dedicam à arte da palavra. O facto de o poeta não conseguir dormir de noite é um bom motivo para se sentar à luz da candeia, a burilar e aperfeiçoar os seus versos. Uma poeta do século III antes de Cristo saúda o aparecimento do grande poema de Arato sobre astros e constelações como fruto da insónia do poeta. Para se escrever poesia que valha a pena, é preciso queimar as pestanas. A mesma ideia aparece muitos séculos mais tarde no filme Rich and Famous de George Cukor, quando Jacqueline Bisset no papel de uma escritora diz “if your writing doesn’t keep you awake all night it won’t keep anyone else awake either”.
Na literatura grega mais tardia – já da época cristã – os padres do deserto elogiam muito essa graça divina que é a insónia, já que alegadamente nada faz melhor à alma do que privar o corpo de sono. Esta ideia, formulada por João Clímaco na sua Escada do Paraíso, não é obviamente partilhada pela psicologia moderna, que vê a coisa pela perspectiva contrária: nada faz tanto mal à alma como não dormir. O sono é fundamental.
Uma das razões pelas quais os padres do deserto desaprovavam o sono tinha a ver com a vulnerabilidade do cérebro humano a imaginações eróticas quando é abraçado pelos braços de Morfeu. Todos os pensamentos que conseguimos afugentar ou recalcar durante o dia são como melgas que esperam apenas que adormeçamos para logo atacar. Claro que não cabe aqui um relato de todos os sonhos eróticos que já tive na minha vida (felizmente esquecem-se com uma facilidade enorme), mas quantas e quantas vezes não acordei estarrecido com o facto de ter sonhado ter ido para a cama com alguém cuja atracção erótica à luz do dia nunca se me impusera. Estes sonhos são especialmente incomodativos para pessoas que de dia negam a sua verdadeira orientação sexual, dado que, no mundo do sonho, não é certamente com mulheres que sonha o gay recalcado, casado e pai de filhos. Para homens que procuram viver um quotidiano de castidade por razões de índole religiosa (ou porque são padres ou monges ou porque optaram, enquanto leigos, pela castidade), haverá fases das suas vidas em que a insónia – como modo de escapar a desagradáveis sonhos sexuais – será uma amiga assaz bem-vinda.
Por isso, na sua fascinante Escada do Paraíso (escrita em grego em inícios do século VII depois de Cristo), o monge João Clímaco escreve o seguinte: “a insónia mantém o espírito puro. O monge que não dorme combate a luxúria; o que dorme, dorme com ela. A insónia é a supressão da luxúria, é a libertação das fantasias em sonho. O monge que sofre de insónia é um pescador de pensamentos: no silêncio da noite consegue apanhá-los mais facilmente”.
Ceder ao sono, neste ideário ascético, é visto como sinal de fraqueza, como incapacidade de superar as exigências do corpo, como incapacidade de lhes sobrepor as razões da espiritualidade e do intelecto. Mas, por outro lado, dormir é tão bom! Muitas vezes na minha vida me tenho insurgido contra visitas inoportunas da insónia, mas até hoje tenho optado por lidar com ela de forma amigável, sem tentar vencê-la por meios químicos. Já me aconteceu estar toda a noite na cama de olhos fechados, mas – como o pescador de pensamentos de João Clímaco – completamente acordado. E claro que já me exasperei com quem ressonava beatificamente ao meu lado. Hoje aceito que na minha idade é normal dormir menos, e esforço-me por acolher, cada noite, a presença alternada no meu quarto desses dois amigos gregos que me acompanharão até ao fim da vida: o sono (πνος) e a insónia (γρυπνία). Desde que quem durma ao meu lado não ressone, tudo bem.
(na foto: a minha cadela Thisbe claramente desagradada há muitos anos por eu estar a dormir – e ela não)

Frederico Lourenço, "Insónia",  Facebook24-11-2016



INSÓNIA

 

Não durmo, nem espero dormir.

Nem na morte espero dormir.

 

Espera-me uma insónia da largura dos astros,

E um bocejo inútil do comprimento do mundo.

 

Não durmo; não posso ler quando acordo de noite,

Não posso escrever quando acordo de noite,

Não posso pensar quando acordo de noite —

Meu Deus, nem posso sonhar quando acordo de noite!

 

Ah, o ópio de ser outra pessoa qualquer!

 

Não durmo, jazo, cadáver acordado, sentindo,

E o meu sentimento é um pensamento vazio.

Passam por mim, transtornadas, coisas que me sucederam —

Todas aquelas de que me arrependo e me culpo —;

Passam por mim, transtornadas, coisas que me não sucederam —

Todas aquelas de que me arrependo e me culpo —;

Passam por mim, transtornadas, coisas que não são nada,

E até dessas me arrependo, me culpo, e não durmo.

 

Não tenho força para ter energia para acender um cigarro.

Fito a parede fronteira do quarto como se fosse o universo.

Lá fora há o silêncio dessa coisa toda.

Um grande silêncio apavorante noutra ocasião qualquer,

Noutra ocasião qualquer em que eu pudesse sentir.

 

Estou escrevendo versos realmente simpáticos —

Versos a dizer que não tenho nada que dizer,

Versos a teimar em dizer isso,

Versos, versos, versos, versos, versos...

Tantos versos...

E a verdade toda, e a vida toda fora deles e de mim!

 

Tenho sono, não durmo, sinto e não sei em que sentir

Sou uma sensação sem pessoa correspondente,

Uma abstração de autoconsciência sem de quê,

Salvo o necessário para sentir consciência,

Salvo — sei lá salvo o quê...

 

Não durmo. Não durmo. Não durmo.

Que grande sono em toda a cabeça e em cima dos olhos e na alma!

Que grande sono em tudo exceto no poder dormir!

 

Ó madrugada, tardas tanto... Vem...

Vem, inutilmente,

Trazer-me outro dia igual a este, a ser seguido por outra noite igual a esta...

 

Vem trazer-me a alegria dessa esperança triste,

Porque sempre és alegre, e sempre trazes esperanças,

Segundo a velha literatura das sensações.

 

Vem, traz a esperança, vem, traz a esperança.

O meu cansaço entra pelo colchão dentro.

Doem-me as costas de não estar deitado de lado.

Se estivesse deitado de lado doíam-me as costas de estar deitado de lado.

 

Vem, madrugada, chega!

 

Que horas são? Não sei.

Não tenho energia para estender uma mão para o relógio,

Não tenho energia para nada, para mais nada...

Só para estes versos, escritos no dia seguinte.

Sim, escritos no dia seguinte.

Todos os versos são sempre escritos no dia seguinte.

 

Noite absoluta, sossego absoluto, lá fora.

Paz em toda a Natureza.

A Humanidade repousa e esquece as suas amarguras.

Exatamente.

A Humanidade esquece as suas alegrias e amarguras,

Costuma dizer-se isto.

A Humanidade esquece, sim, a Humanidade esquece,

Mas mesmo acordada a Humanidade esquece.

Exatamente. Mas não durmo.

27-3-1929

Poesias de Álvaro de Campos. Fernando Pessoa. Lisboa: Ática, 1944 (imp. 1993).  - 273.

Disponível em: http://arquivopessoa.net/textos/2358

 


Caspar David Friedrich, "O viajante sobre o mar de névoa", 1818



INSÓNIA

Ó retrato da morte, ó noite amiga
Por cuja escuridão suspiro há tanto!
Calada testemunha do meu pranto,
De meus desgostos secretária antiga!

Pois manda Amor, que a ti somente os diga,
Dá-lhes pio agasalho no teu manto;
Ouve-os, como costumas, ouve, enquanto
Dorme a cruel, que a delirar me obriga:

E vós, ó cortesãos da escuridade,
Fantasmas vagos, mochos piadores,
Inimigos, como eu, da claridade!

Em bandos acudi aos meus clamores;
Quero a vossa medonha sociedade,
Quero fartar meu coração de horrores.

Bocage






OS ANJOS DA MEIA NOITE

PHOTOGRAPHIAS

Quando a insônia, qual lívido vampiro,
Como o arcanjo da guarda do Sepulcro,
Vela à noite por nós,
E banha-se em suor o travesseiro,
E além geme nas franças do pinheiro
Da brisa a longa voz ...

Quando sangrenta a luz no alampadário
Estala, cresce, expira, após ressurge,
Como uma alma a penar;
E canta aos quizos rubros da loucura
A febre - a meretriz da sepultura
A rir e a soluçar...

Quando tudo vacila e se evapora,
Muda e se anima, vive e se transforma.
Cambaleia e se esvai...
E da sala na mágica penumbra
Um mundo em trevas rápido se obumbra...
E outro das trevas sai...

........................................................................

Então... nos brancos mantos que arregaçam
Da meia-noite os Anjos alvos passam
Em longa procissão!
E eu murmuro ao fitá-los assombrado:
São os Anjos de amor de meu passado
Que desfilando vão...

Almas, que um dia no meu peito ardente
Derramastes dos sonhos a semente,
Mulheres, que eu amei!
Anjos louros do céu! virgens serenas!
Madonas, Querubins ou Madalenas!
Surgi! aparecei!

Vinde, fantasmas! Eu vos amo ainda;
Acorde-se a harmonia à noite infinda
Ao roto bandolim ...

.....................................................................

E, no éter, que em notas se perfuma,
As visões s'alteando uma por uma...
Vão desfilando assim!...

1.ª SOMBRA

MARIETA

Como o gênio da noite, que desata
O véu de , rendas sobre a espádua nua,
Ela solta os cabelos... Bate a lua
Nas alvas dobras de um lençol de prata

O seio virginal que a mão recata,
Embalde o prende a mão... cresce, flu
Sonha a moça ao relento... Além na
Preludia um violão na serenata!...

...Furtivos passos morrem no lajedo...
Resvala a escada do balcão discreta...
Matam lábios os beijos em segredo...

Afoga-me os suspiros, Marieta!
Oh surpresa! oh palor! oh pranto! oh medo!
Ai! noites de Romeu e Julieta. . .

2.ª SOMBRA

BÁRBORA

Erguendo o cálix que o Xerez perfuma.
Loura a trança alastrando-lhe os joelhos,
Dentes níveos em lábios tão vermelhos,
Como boiando em purpurina escuma;

Um dorso de Valquíria... alvo de bruma,
Pequenos pés sob infantis artelhos,
Olhos vivos, tão vivos, como espelhos,
Mas como eles também sem chama alguma;

Garganta de um palor alabastrino,
Que harmonias e músicas respira...
No lábio - um beijo... no beijar - um hino;

Harpa eólia a esperar que o vento a fira,
— Um pedaço de mármore divino...
— É o retrato de Bárbara - a Hetaira. —

3.ª SOMBRA

ESTER

Vem! no teu peito cálido e brilhante
O nardo oriental melhor transpira!
Enrola-te na longa cachemira,
Como as judias moles do Levante,

Alva a clâmide aos ventos - roçagante...
Túmido o lábio, onde o saltério gira...
Ó musa de Israel! pega da lira...
Canta os martírios de teu povo errante!

Mas não... brisa da pátria além revoa,
E ao delamber-lhe o braço de alabastro,
Falou-lhe de partir... e parte... e voa. . .

Qual nas algas marinhas desce um astro...
Linda Ester! teu perfil se esvai... s'escoa...
Só me resta um perfume... um canto... um rastro...

4.a SOMBRA

FABÍOLA

Como teu riso dói... como na treva
Os lêmures respondem no infinito:
Tens o aspecto do pássaro maldito,
Que em sânie de cadáveres se ceva!

Filha da noite! A ventania leva
Um soluço de amor pungente, aflito...
Fabíola!... É teu nome!... Escuta é um grito,
Que lacerante para os céus s'eleva!...

E tu folgas, Bacante dos amores,
E a orgia que a mantilha te arregaça,
Enche a noite de horror, de mais horrores...

É sangue, que referve-te na taça!
É sangue, que borrifa-te estas flores!
E este sangue é meu sangue... é meu... Desgraça!

5.ª e 6.ª SOMBRAS

CÂNDIDA E LAURA

Como no tanque de um palácio mago,
Dous alvos cisnes na bacia lisa,
Como nas águas que o barqueiro frisa,
Dous nenúfares sobre o azul do lago,

Como nas hastes em balouço vago
Dous lírios roxos que acalenta a brisa,
Como um casal de juritis que pisa
O mesmo ramo no amoroso afago....

Quais dous planetas na cerúlea esfera,
Como os primeiros pâmpanos das vinhas,
Como os renovos nos ramais da hera,

Eu vos vejo passar nas noites minhas,
Crianças que trazeis-me a primavera...
Crianças que lembrais-me as andorinhas! ...

7.ª SOMBRA

DULCE

Se houvesse ainda talismã bendito
Que desse ao pântano - a corrente pura,
Musgo - ao rochedo, festa - à sepultura,
Das águias negras - harmonia ao grito...,

Se alguém pudesse ao infeliz precito
Dar lugar no banquete da ventura...
E tocar-lhe o velar da insônia escura
No poema dos beijos - infinito...,

Certo. . . serias tu, donzela casta,
Quem me tomasse em meio do Calvário
A cruz de angústias que o meu ser arrasta!. . .

Mas ,se tudo recusa-me o fadário,
Na hora de expirar, ó Dulce, basta
Morrer beijando a cruz de teu rosário!...

8.ª SOMBRA

ÚLTIMO FANTASMA

Quem és tu, quem és tu, vulto gracioso,
Que te elevas da noite na orvalhada?
Tens a face nas sombras mergulhada...
Sobre as névoas te libras vaporoso ...

Baixas do céu num vôo harmonioso!...
Quem és tu, bela e branca desposada?
Da laranjeira em flor a flor nevada
Cerca-te a fronte, ó ser misterioso! ...

Onde nos vimos nós? És doutra esfera ?
És o ser que eu busquei do sul ao norte...
Por quem meu peito em sonhos desespera?

Quem és tu? Quem és tu? - És minha sorte!
És talvez o ideal que est'alma espera!
És a glória talvez! Talvez a morte!

Castro Alves, Santa Izabel, agosto de 1870


Insomnia, Chris Duke




     O tema da insónia, provocada pela ausência do amado, é desenvolvido na poesia trovadoresca galego-portuguesa, por poetas como Juião Bolseiro (Da noite d' eire poderam fazer”, “Aquestas noites tam longas que Deus fez em grave dia”,  “Sem meu amigo manh'eu senlheira) e Pedro Anes Solaz/Pedr’Eanes Solaz ("Eu velida nom dormia").




segunda-feira, 21 de novembro de 2016

Consanguinidade entre a música e a alma

O mais íntimo tutano da alma


Jan Kupecký - O Pintor David Hoyer (1716) 
Uma expressão que sempre me fascinou desde que a encontrei pela primeira vez no v. 255 do Hipólito de Eurípides é “o mais íntimo tutano da alma”. Fascinou-me, acima de tudo, a ideia expressa nessa tragédia grega de que tal zona da alma é vulnerável a sensações neurológicas como o amor. A reflexão feita pela Ama de Fedra, na referida peça, é que quando o amor atinge o mais íntimo tutano da alma, o que daí resulta é perigoso.
No entanto, há outra coisa que, além do amor, é capaz de atingir em cheio o mais íntimo tutano da alma: a música. E esta também acarreta perigos que podem prejudicar a alma, tanto mais porque há uma espécie de consanguinidade entre a música e a alma, como se ambas partilhassem da mesma essência. Por isso, a alma é ainda mais receptiva – e vulnerável – à música do que ao amor.

Na verdade, já os Pitagóricos na Grécia entendiam a alma em termos de harmonia musical e, se relermos o Livro III da República de Platão, encontramos afirmações que confirmam a ideia de que os Gregos já tinham plena noção de como somos profundamente afectados pelo efeito da música. A conversa naquele livro da grande obra platónica gira em torno dos modos musicais: há modos que nos deixam tristes, outros que incentivam a moleza, outros que nos tornam efeminados, pelo que não podem ser utilizados nos cantos guerreiros.
Platão também não parece aceitar assim sem mais nem menos todos os instrumentos musicais: os que poderão ser utilizados na Cidade por si idealizada são os de corda dedilhada: a lira, a cítara, etc. (Devo dizer que, como cravista, fico aliviado pelos instrumentos de corda dedilhada escaparem ao opróbrio platónico, já que o cravo é um instrumento em que as cordas são beliscadas e não percutidas, como no caso do piano.)
Pondo agora de parte o meu preconceito positivo em relação a liras, harpas, alaúdes e cravos, pergunto-me muitas vezes sobre o que acontece ao tutano mais íntimo da alma quando somos expostos a certo tipo de música. Penso nas três vezes que tive oportunidade de ouvir ao vivo a “Paixão segundo São Mateus” de Bach. É difícil descrever o efeito que esta obra, ouvida integralmente ao vivo, exerce sobre o tutano mais íntimo da alma; mas em qualquer um dos casos, saí do Grande Auditório da Fundação Gulbenkian com a sensação de o efeito da obra em mim ter sido de me transformar numa pessoa completamente diferente. Claro que, fisicamente, eu era a mesma pessoa, tão gordo ou tão magro quando era no momento em que começou o concerto. A minha alma é que se tornara diferente. O seu mais íntimo tutano tinha sido atingido.
Frederico Lourenço, Facebook, 21-11-2016.

MUSICOTERAPIA
A música na Antiguidade Grega era considerada a Arte das Musas, sendo uma forma de revelação divina, e se demonstrava importante para harmonização do corpo e da mente (TYSON, 1981). Segundo Podolsky (1954), Platão acreditava que a saúde mental e física poderia ser obtida através da música. Os gregos entendiam que a música possuía um Ethos, ou seja, ela podia criar determinados estados de ânimo. Eles consideravam dever do Estado regular a música para estimular o crescimento moral e ético dos cidadãos (TYSON, 1981). A crença da música como um estimulador da mente, e em seu poder profilático é tida por Tyson como um dos primeiros princípios relacionados à música como terapia. Na mitologia grega há diversos exemplos da música sendo utilizada como elemento curativo. Porém, o primeiro uso da música como uma modalidade terapêutica, segundo Podolsky (1954), vem dos gregos Zenocrates, Sarpender e Arion, que utilizavam a harpa para diminuir surtos violentos de pessoas com mania, evitando o uso do método mais comum, o da força física. […]
O médico Robert Burton (1577-1640) foi um dos primeiros a escrever a respeito dos efeitos da música em tratamentos médicos, especialmente da melancolia. Em sua obra “Anatomia da Melancolia” – publicada em 1621, Burton (1961/2012) descreve os efeitos terapêuticos da música, discorrendo sobre as possibilidades da música extenuar medos e fúrias, e do uso da música como cura de “aborrecimentos da alma”. Com relação à melancolia ele colocava que a música podia alegrar o melancólico e reavivar sua alma, mas também advertia quanto aos malefícios e doenças que podem ser “geradas pela música”.
No fim do século XVIII começam a ser estudados os efeitos fisiológicos da música (TYSON, 1981; COSTA, 1989). A partir do advento do Empirismo, buscavam-se terapias no fazer psiquiátrico que atingissem o sistema sensorial dos internos. A música, assim, possuía um lugar privilegiado nas pesquisas da época (COSTA, 1989). As pesquisas desenvolvidas nesse período abordavam os efeitos dos sons no sistema sensorial humano. Eram utilizados os elementos da música (ritmo, melodia, harmonia) para verificar as influências fisiológicas da música e seu impacto sobre os sentimentos do homem (TYSON, 1981).
Ler mais: “A História da musicoterapia na psiquiatria e na saúde mental: dos usos terapêuticos da música à musicoterapia”, Mariana Cardoso Puchivailo e Adriano Furtado Holanda. Revista Brasileira de Musicoterapia Ano XVI n° 16 ANO 2014. p. 122-142.


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sábado, 19 de novembro de 2016

O poema tem mais pressa que o romance






ARREPENDO-ME DE A METER NUM ROMANCE

O poema tem mais pressa que o romance,
Asa de fogo para te levar:
Assim, pois, se houver lama que te lance
Ao corpo quente algum, hei de chorar.

Deus fez o poeta por que não descanse
No golfo do destino e amores no mar:
Vem um, de onda, cobri-la — e ela que dance!
Vem outro — e faz menção de me enfeitar.

Os outros a conspurcam, mas é minha!
Chicoteá-la vou com a própria espinha,
Estreitam-me de amor seus braços mornos,

Transformo seus gemidos em meus uivos
E torno anéis dos seus cabelos ruivos
Na raspa canelada dos meus cornos.

      A poética vitoriana, percebida na estrutura do soneto “Arrependo-me de a Meter num Romance”, aborda como filão temático a magnitude do fazer poético, concebida de forma totalizante, um ato de entrega entre o poeta e a poesia.
      O título do poema, por si, já traz um ar de enigma. O eu lírico lamenta um ato cometido contra determinado ser, cuja identificação torna-se oculta, camuflada pelo demonstrativo “a”. Sabe-se que esse ser sofrera uma imposição do sujeito poético: fora encerrado (metido) com brutalidade num romance. Numa primeira visão, pode-se perceber que o título trata de uma desilusão num relacionamento amoroso e que o ser em questão seria uma mulher, obrigada a comprometer-se com o sujeito poético. O fracasso dessa relação reside justamente no fato desse sujeito conscientizar-se de que o romance imposto à mulher amada não condizia com a necessidade da mesma: ela queria algo rápido, porém intenso; já o eu lírico buscava um vínculo mais duradouro e suave.
      O verso inicial (“O poema tem mais pressa que o romance”) funciona como justificativa para a constatação do eu lírico no título no soneto. A partir desse verso, tem-se a real identidade do ser, anteriormente velada. Trata-se da poesia. O fazer poético tem mais urgência que o fazer prosaico, visto que a construção de um poema requer total fluidez da inspiração, uma entrega absoluta do poeta ao sentimento que se quer revelado. Assim também captou Herberto Helder, ao escrever Sobre um Poema: “Um poema cresce inseguramente/ na confusão da carne”. O poema “cresce inseguramente” porque o poeta jamais poderá ter a certeza que o ímpeto que o levou a escrever, impulso “na confusão da carne“, que ainda se encontra no reino abstrato da alma e no pulsar imediato dos sentidos, ainda impreciso e misterioso, virá a se realizar como um corpo total e íntegro. Por isso, o cosmo poético é diferente do romance e não pode ser incluído nesse universo.
      A poesia possui “asas de fogo”, numa referência à Fênix, pássaro mitológico cuja principal característica é a capacidade de regeneração. Sendo as cinzas, das quais a Fênix ressurge, uma visão interpretativa dada a qualquer texto poético, o renascimento da ave alegoriza a potencialidade que a arte poética têm de suportar várias interpretações.  Assim, renascer das cinzas funciona como uma renovação do poético, em cada nova interpretação que o leitor consegue conceber. Contudo, o eu lírico evidencia uma ressalva que poderá afetá-lo. Ele há de chorar, caso lancem lama sobre o corpo quente. A lama representa o despojamento da poesia de sua essência; é camuflá-la, encobri-la de algo que não lhe é próprio, desconfigurá-la. O corpo quente é a vida da poesia, aludindo à ave de fogo, em cujas veias pulsa intensamente a essência vital poética. Se houver alguma tentativa de moldar a poesia, enquadrá-la em paradigmas que não condizem que a dinâmica do fazer poético, o eu lírico chorará, não haverá contentamento. A lama, com sua propriedade gélida, enterrará o corpo quente da poesia, numa visão imagética de sepultamento.
      O ofício do poeta é estar em constante processo de criação, pois “Deus fez o poeta por que não descanse”. O fazer poético é divinizado, o poeta tratado aqui como um “deus” da poesia. O trabalho do poeta se equipara ao trabalho de Deus quando criou o mundo, descansando depois de sete dias, após o episódio genesíaco. Porém, o poeta não descansa. A missão que lhe é destinada é por demais árdua e elaborativa que o torna um ser compenetrado em sua arte poética, não lhe sendo permitido desviar-se “no golfo do destino” para outras veredas, deslumbrar-se com a própria capacidade criacionista que detém. Nem mesmo descansar “no mar (de) amores”, isto é, não se iludir com uma possível e posterior fama ou “glorificação” de seu trabalho, justamente pelo fato de que o fazer poético é sacralizado, desprovido de preocupações terrenas.
      No âmbito artístico, um mar de onda vem e cobre a produção poética do artista “e ela que dance!”. Um segundo mar aparece “e faz menção de (…) enfeitar” o eu lírico. Essa onda, identificada como uma aglomeração de louvores, a fortuna crítica de determinada produção poética, tem o poder de reduzir a importância estética que esta possui, fazendo-a “dançar conforme a música”. Por outro lado, essa mesma onda enaltece a figura do poeta, atribuindo-lhe maior prestígio e relevância, quando quem deveria ser o principal objeto de apreciação é a própria poesia. A pessoa do poeta é um mero instrumento para a concretude de algo maior: o poema.
      Ciente de que “os outros a conspurcam”, a tornem inferior ao poeta, excluída de sua real dimensão, o eu lírico se sente inconformado e, ao mesmo tempo, sente-se no direito de reivindicá-la em sua importância. Ela (a poesia) é dele! O elo que os une é indissociável; são carne da mesma carne, as metades que se juntam num só ser. O poeta é o único que possui o direito de “chicoteá-la (…) com a própria espinha”, e o faz não como os outros, por meio do discurso oralizado, mas com a única arma que dispõe: a palavra escrita. Somente escrevendo a poesia, ele pode castigá-la, “depreciá-la”, “imaculá-la”, isso feito com a espinha de sua inspiração. O sujeito lírico reconhece sua pequenez ao ser tomado “de amor” pelos “braços mornos” da poesia. Novamente, retoma-se o caráter do “corpo quente” atribuído à arte poética, a vivacidade que reside na tessitura do poema, que não lhe queima, mas o aquece. Pela relação poeta/poesia, o aspecto intelectual é deixado de lado, transcende para uma instância maior, alimentada por este envolvimento “amoroso” entre ambos. Contudo, um deve se sobressair diante do outro; e quem cede deve ser sempre o poeta: “Diminua eu para que tu cresças! (Evangelho de São João)”.
      O eu lírico toma posse de todas as emoções que povoam a superfície e a profundeza da poesia. Num processo de materialização da poesia, percebe-se uma espécie de relacionamento entre o poeta com esse ser-mulher-poesia que ganha corpo.   Ela o fala aos ouvidos com “gemidos”, cuja voz suave é tão inaudível que o poeta tem que transformá-los em seus “uivos” agudos, para poder gritar a todo o mundo o que está lhe perpassando a alma nesse instante. O eu lírico também torna os cabelos ruivos (o vermelho retomado como símbolo do ardente que habita a poesia) da poesia-mulher em “anéis”, dado o caráter cíclico que a arte poética apresenta, diferente da superfície lisa, linear que a prosa manifesta. Por fim, a poesia deixa “raspas caneladas” nos “cornos” do poeta. É como se, a cada poema produzido pelo poeta, fosse lhe retirado uma parte de si próprio, retira-se algo que existia em sua essência, deixando-lhe marcas profundas.
      Em resumo, o discurso poético de Vitorino Nemésio no soneto “Arrependo-me de a Meter num Romance” revela a relação indissolúvel do poeta diante de seu labor artístico. O poeta tem que se envolver de corpo e alma quando mergulhado no processo do fazer poético. É um ato de entrega e restritamente vinculado ao momento de inspiração. Por isso, devido a sua unicidade, não se pode meter a poesia num romance, deslocando-a de seu universo para outro universo. Fazer poesia é muito mais do que enquadrá-la num molde prosaico. É o mergulho no insondável de próprio ser, é como pescar a pérola que se traz suspensa na alma. É aventurar-se na descoberta da própria essência.
Saulo Lopes e Wildes de Oliveira Silva
Enviado por Saulo Lopes em 31/01/2012 para:
http://www.recantodasletras.com.br/resenhas/3472168

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► NEMÉSIO,Vitorino, 1901-1978
[Cadernos de caligrafia] / Victorino Nemésio. — 1973-1977. — 2 cadernos : [130] p. em 66 f. : il. ; 12,6 x 17,3 cm ou menos



Autógrafo a tinta azul, assinado, com datas a vermelho e ilustrações a vermelho e a azul. — Tem como suporte dois cadernos de «autógrafos» com capas cartonadas forradas a napopel castanho e verde, com filete duplo e corte das folhas a ouro. — O primeiro caderno contém cinquenta e três poemas copiados e ilustrados pela mão do autor, incluindo na folha de rosto o título «Caderno de caligraphia / Pertencente à menina Margarida Victória / q. lhe oferece o victorino nemésio» e a data «Lisboa, 29 de Março de 1973» e terminando com um «Índice de primeiros versos». Muitos dos poemas mencionam o local de escrita (Lisboa, Nice, S. Pedro do Estoril e Açores) e a data (29 Mar. 1973-4 Out. 1974). O segundo, com uma folha de rosto semelhante à do primeiro («2º Caderno de Caligraphia / Offereçido / à Menina Margarida Victória / pelo seu / menor criado e bem querido / Victorino Nemésio / Lisboa, 4 de Junho de 1977») inclui apenas 4 poemas, escritos em Barcelona, entre 28 Mar. 1976 e 14 Maio 1977. Existem vários poemas soltos que fariam provavelmente parte deste conjunto, mas não chegaram a ser copiados. — Dois poemas foram publicados na revistaAtlântida, Jan.-Mar. 1979, p. 5-6, e um na Colóquio/Letras, n.º 35, Jan. 1977, p. 59-60. Os dois cadernos foram publicados na íntegra por Luiz Fagundes Duarte, no vol. 3 das «Obras Completas de Vitorino Nemésio», com o título Caderno de Caligraphia e outros poemas a Marga. Lisboa: IN-CM, 2003. — Integram a colecção de Margarida Jácome Correia. Versões anteriores de alguns destes poemas fazem parte do espólio de Vitorino Nemésio (BNP Esp. E11).
BNP Esp. N51/cx. 5
http://purl.pt/13858/1/geneses/1/5-134.html




SINOPSE
Um livro inédito de Vitorino Nemésio (1901-1978), com edição de Luiz Fagundes Duarte, que também assina o prefácio à obra. E ali explica o percurso deste livro, que reúne cerca de 130 poemas do autor de "Mau Tempo no Canal". Nemésio escreveu estes poemas entre Março de 1973 e Maio de 1997, dedicados a D. Margarida Vitória, a última das suas paixões. Antes de morrer, o poeta copiou 53 deles para um caderno, onde escreveu, na folha de rosto: "Caderno de Caligraphia Pertencente à menina Margarida Vitória q. lhe ofereçe o victorino nemésio". Num segundo, a que chamou "Caderno de Caligraphia Offereçido à menina Margarida Vitória pelo seu menor criado e bem querido Victorino Nemésio", estão quatro poemas. A estes, LFD juntou outros 70, que Nemésio não tivera oportunidade de copiar para este segundo caderno por causa da doença, de que viria a falecer. Por dificuldades várias, que o organizador explica no prefácio (questões familiares, sobretudo), só agora, passados 25 anos sobre a morte de Nemésio, o livro vê a luz do dia. E, para além da qualidade literária (Nemésio é um dos maiores escritores da língua portuguesa no séc. XX), o livro vem confirmar o grande sedutor que também era. Como diz Rodrigues da Silva (JL, 19/2/03), referindo-se à sedução que eram as suas aulas, "o que os seus alunos, porém, talvez estivessem longe de imaginar é que ele, já depois de catedrático jubilado, dobrados os 75 anos de idade, escrevesse ainda poemas de amor e paixão como estes que ora se revelam".

"Um quarto de século após a sua morte, de Vitorino Nemésio publicam-se ainda inéditos. Notável! Sobretudo porque, neste caso, não se trata apenas de uma ou outra página solta, mas de todo um corpus poético e de alta qualidade."
R. da S, JL, 19/2/03

"Novo, verdadeiramente novo, para além da intensidade obsessiva do envolvimento, é o sensual, o afrodisíaco, o sexual, o fálico, o vulvar, abordado em termos elevados ou corriqueiros, metafóricos ou directos, e também o divertida e sinceramente 'descomposto' ou sabiamente desarrumado aqui e ali, isto para não dizer maesmo quase desbragado.
"(...) Pode dizer-se que esta sua poesia exprime o amor como uma insaciável apetência do mundo, do mesmo mundo de que ele se torna motor, no sentido em que Dante o dizia, como forma de conhecimento, no sentido também cósmico em que Camões o formulou, e, 'last but not least', enquanto dao existencial, a enlaçar a alma e o corpo com um sentido renovado da vida." 
Vasco Graça Moura, Público, suplemento Mil Folhas, 15/2/03 


14.2.14




[...] Aos 72 anos de idade, um ilustre poeta açoriano começa a escrever exaltados versos de amor tardio a uma mulher. Prolonga essa escrita por cerca de quatro anos e ela ocupa para cima de 220 páginas do volume agora editado pela Imprensa Nacional-Casa da Moeda, em edição da responsabilidade de Luiz Fagundes Duarte, Caderno de Caligraphia e outros poemas a Marga. Pensa em publicar em vida uma parte substancial dessa poesia, embora o livro só venha a sair a 14 de Fevereiro de 2003, isto é, a seis dias de se completarem vinte e cinco anos sobre a sua morte e, pelo menos desta vez adequadamente, a coincidir por um acaso feliz com a data conhecida como «dia dos namora­dos». No deslumbramento que sente, há dois aspectos que permitem relacioná-lo com outros casos: um é o do Garrett das Folhas Caídas, já referido, experiência de maturidade e libertação erótica, vivencial e poética, que na época foi quase revolucionária, mas que hoje, ante os poemas de Nemésio, mais se diria uma tímida produção para ser estudada em colégios de freiras; o outro é um paradigma humano e literário que implica uma experiência em que se cumulam maturi­dade, consciência da idade vivida e rejuvenescimento: refiro-me ao de Fausto e Margarida, com alguma ambiguidade, aliás irrelevante, no deslizamento da identificação com a personagem, Fausto, para a identificação com o próprio autor, Goethe: «Que tudo isto, afinal, são glosas de Goethe e Margarida», diz Nemésio, ou ainda:

No amor de Margarida eu, Goethe, me renovo.
Ah, Goethe victorino, como estes Versos finos cansam!
Goethe, se o for,  —  Victória a Margarida!

Mas paz a Margarida
Na praia da Victória
Onde o mar amanhece
E lhe traz peixe fresco [...]

Para além dos vários jogos de palavras a partir da onomástica, de que fica dado um exemplo, a coincidência de nomes, habilmente explorada pelo poeta português, entre a heroína de Goethe e a musa de Nemésio, funciona de modo a estabelecer o paralelo entre dois homens idosos e sabedores, dois criadores, que se transfiguram pela experiência amorosa. E também nas idades das protagonistas haveria por certo uma notável disparidade, uma vez que a Gretchen do Fausto é uma jovem inexperiente e Margarida Vitória contava 54 anos muito vividos em 1973, à data em que estes textos eclodem e explodem... Mas o princípio actuante de ambas estas figuras femininas, na vida e, para o que nos interessa, na expressão lírica da criação literária, é semelhante porque ambas proporcionam aos seus interlocutores entreverem a recuperação da juventude perdida e um intenso sentimento de felicidade.
  
Vasco Graça Moura
in Discursos vários poéticos ["Anfíbios sistemas de palavras", ou a poesia de amor de Vitorino Nemésio* apresentação de Caderno de Caligraphia e outros poemas a Marga (IN-CM, 2003)]
Edição © Babel, 2013
texto ©Vasco Graça Moura, 2013


6.5.10





carta de Vitorino Nemésio a Margarida




Casaréus do Tòvim,
(Coimbra), 2 Set° 1942. 

A sua carta deu-me muita alegria.  Acabo de lê-la.  Estou na aldeia há dois dias, rodeado de latadas morangueiras, com o vale do Mondego diante de mim, oliveiras derroda e às vezes a paz correspondente... (O meu Jorge partiu pela terceira vez um braço).  Mas basta de paisagem.  O que quero é fazer-lhe chegar rapidamente a minha gratidão por aquilo que me diz.  Vou guardar aquela polegada de cartão como uma das coisas mais honrosas da minha vida.

às vezes, lembrando-me do que tenho cá dentro para dizer, e que poderia sair em poema, romance ou "vida", e vendo a minha baça esterilidade de escritor, apetece-me soltar o "rai’s parto" dos carreiros que por aqui passam com os bois. Não é só o ofício de professor que me tira o tempo : são as mil e uma formas de dispersão para reforçar o orçamento.  Mas depois acontecem-me coisas como esta carta da Margarida, e penso de mim para mim que talvez valha a pena trocar uma hipótese de obra literária pela consolação de sentir que alguma coisa passou do meu entusiasmo a alguém.  "Talvez" !  Que mesquinho !  Mas "com certeza" !...

E até me vejo um velhinho de setenta anos, no esquife do limite de idade, coberto de flores e de cãs (essas minhas difíceis cãs de quarentão sem uma branca), e com uma borla, que ainda não comprei, toda orvalhada de lágrimas...  Haverá música para o"Antigamente a escola era risonha e franca" ?

Perdoe, Margarida ; não há direito de brincar assim numa carta como esta.

Repito que as suas palavras me comovem.  Estimo-as por virem de quem vême pela delicadeza com que escolheu as condições de isenção para mas mandar.

Desejo-lhe boas férias, — verdadeiras, alegres, sem sabedorias.

Minha Mulher retribui os seus cumprimentos.  Lembranças a seu Pai. E creia

na maior estima

Do seu muito amigo


Vitorino Nemésio





Em 1942, Margarida* acabara de se licenciar, com distinção, em Filologia Germânica, na Faculdade de Letras de Lisboa, onde Vitorino Nemésio fôra seu professor. Nesta altura, Vitorino Nemésio ainda não tinha publicado o romance Mau Tempo no Canal(1944).

Vitorino Nemésio é um dos nossos maiores poetas e escritores do século XX. No fim da sua vida, conquistou o público português com a crónica semanal  "Se Bem Me Lembro", programa transmitido pela RTP de 1969 a 1975 em horário nobre.





Vitorino Nemésio e alunos na Faculdade de Letras,
c. 1942**



*Uma fotografia de Margarida aqui

**Detalhe de fotografia reproduzida no livro Retrovisor, Um Álbum de Família.
À direita de Vitorino Nemésio está Maria da Graça Paço d'Arcos. À frente,no canto inferior direito, Maria Violante Vieira.