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segunda-feira, 30 de janeiro de 2017

Adelaide da Facada, madame Blanche e madame Calado

"O Fado", José Malhoa, 1910

FADO MALHOA

Alguém que Deus já lá tem, pintor consagrado
Que foi bem grande e nos dói já ser do passado,
Pintou numa tela com arte e com vida
A trova mais bela da terra mais querida.

Subiu a um quarto que viu, à luz do petróleo,
E fez o mais português dos quadros a óleo:
Um Zé de samarra, com a amante a seu lado,
Com os dedos agarra, percorre a guitarra
E ali vê-se o fado.

Faz rir a ideia de ouvir com os olhos, senhores.
Fará, mas não p’ra quem já o viu, mas em cores.
Há vozes de Alfama naquela pintura
E a banza derrama canções de amargura.
Dali vos digo que ouvi a voz que se esmera,
Boçal dum faia banal, cantando a Severa.
Aquilo é bairrista, aquilo é Lisboa;
Boémia e fadista, aquilo é de artista,
Aquilo é Malhoa.  



Letra: José Galhardo. Música: Frederico Valério


ADELAIDE DA FACADA
É a personagem que José Malhoa mais trabalhou (conhecem-se seis estudos individuais do pintor). Era vendedora de cautelas. O nome ‘artístico’ tem a ver com uma grande cicatriz que lhe corria no lado esquerdo da cara e, para esconder esse traço, a posição dos dois modelos foi trocada na pintura. Malhoa desejou representá-la despida, ou quase, da cintura para cima e ela posou para o pintor várias vezes descoberta, o que causou ciúmes a Amâncio.
Nos estudos preparatórios do quadro vê-se uma Adelaide com o peito descoberto, um saiote branco e quase deitada, numa pose mais provocadora. Acabaria por ser pintada com ambas as alças da camisa para cima e com uma pesada saia vermelha em vez do saiote branco.

Foi na Mouraria que José Malhoa encontrou as personagens para a sua obra. Conheceu Amâncio Augusto Esteves, “rufia, fadista e tocador de guitarra” que lhe apresentou a vendedora de cautelas e do corpo Adelaide da Facada. Ao longo de mais de um mês, José Malhoa deslocou-se à casa de Adelaide, na Rua do Capelão, para retratar o mais fielmente possível o ambiente que observava. Na Mouraria, não passava despercebido: ficou com a alcunha de ‘pintor fino’ entre prostitutas e moradores; por diversas vezes, teve de se explicar à polícia sobre as razões de estar ali; e passou a frequentar o Governo Civil, para ir buscar os detidos Adelaide e Amâncio e poder continuar a pintura.
Na altura em que Malhoa pintou o quadro, o fado, como expressão musical, começava a popularizar-se entre burgueses, intelectuais e aristocratas; estava a abandonar o meio restrito e marginal de onde provinha e a tornar-se uma indústria do entretenimento. Ora, Malhoa procurou encontrar essas raízes mais antigas da marginalidade da vida fadista.
O pintor sabia bem o que procurava: uma espécie de ‘verdade’ (os especialistas dirão um certo ‘realismo’) que mostrasse um meio pobre e violento, vivendo da economia paralela do roubo, contrabando, jogo e prostituição. Uma parte da vida urbana que, por certo, dividia Malhoa, porque havia nela simultaneamente um fascínio e um ‘fado’, como se àquelas pessoas estivesse traçado o destino. E um certo desdém por um outro género de violência, de que Malhoa se queixava em Lisboa: intrigas, invejas e má vontade, um lado urbano que detestava.
A representação das duas figuras, no quadro, era comum na pintura e nada tem de ‘portugalidade’ – há influências da pintura espanhola e latino-americana – nem de fado propriamente dito, a não ser no sentido que lhe damos de ‘destino’. A transformação da pintura numa imagem que representa a essência de um país é, portanto, uma invenção. A pintura tem influências europeias marcadas e beneficiou de uma popularidade muito grande ao longo do século XX.
Ana Luísa Rodrigues e António Henriques, “O Fado nasceu na Mouraria”, in Rosa Maria n.º 0. Lisboa, Associação Renovar a Mouraria, junho de 2010.





“Não é verdade rapaz? E amanhã há bola
antes de haver cinema madame blanche e parola”

Mário de Cerariny de Vasconcelos, “Pastelaria

* 

A madame Calado,
que a Estalagem construiu
foi uma casa de meninas
alguma esbeltas e divinas
e onde muito rico se divertiu.





A dona do bordel dos ministros que deixou a fortuna à Misericórdia
A incrível história da madame Calado, proprietária da casa de prostituição mais exclusiva de Lisboa. E o testamento escrito por José Hermano Saraiva.

"Esta senhora, Maria da Piedade Calado, caiu na prostituição por força das circunstâncias. Mas se não soube viver, soube morrer", diz Joaquim Nunes das Neves, antigo funcionário da Santa Casa da Misericórdia do Fundão, que guardou uma cópia do testamento da madame Calado, a dona da casa de passe mais exclusiva de Lisboa nos anos 50 e princípio de 60, frequentada por ministros e directores-gerais. 
Nasceu às 3 da manhã de 25 de Novembro de 1894 na freguesia de Boidobra (Fundão), filha de um jornaleiro e de uma doméstica, e foi baptizada na véspera de Natal, tendo adoptado os nomes da madrinha, Piedade Calado, que não assinou o assento de baptismo por não saber escrever. 
Fez depois fortuna como meretriz em Lisboa, até a prostituição ser ilegalizada por Salazar em 1963. A partir do dinheiro que acumulava com os negócios do sexo na sua "Pensão" Calado, num primeiro andar da Calçada do Carmo, 25, frente à estação do Rossio, acumulou capital suficiente, por exemplo, para emprestar 550 contos a um comerciante em 1943 (o equivalente a 272 mil euros a preços de hoje). Ele passou-lhe um cheque sem cobertura e ela pôs-lhe um processo, consultado pela SÁBADO na Torre do Tombo.

Analfabeta, mas rica

Mais impressionante ainda, em 1948 era proprietária da Quinta das Águas Livres, que vendeu por 1.800 contos (757 mil euros a preços actuais) a Manuel Santos Sobrinho. O caso deu origem a um novo processo, desta vez porque ela recusou pagar a comissão de 54 contos ao mediador que tratou da venda. Este pôs-lhe um processo a exigir a comissão, onde referia que Maria da Piedade Calado não sabia ler nem escrever, só assinar o nome. Apesar de analfabeta, tinha ainda um prédio na Calçada do Poço dos Mouros, na Penha de França, que arrendava a inquilinos – encarregava um procurador de cobrar as rendas por ela. E vivia num apartamento na Rua Castilho.
A 29 de Abril de 1951, quando tinha 55 anos, casou-se no Santuário de Fátima, com Fernando Filipe Pereira da Silva, do Seixal. Já não tiveram filhos. E separaram-se pouco depois. 


No Fundão, Maria da Piedade Calado era proprietária da Casa do Bico, um palacete com um torreão, um elevador interior para a alimentação, um jardim de inverno no quarto e uma casa de banho toda em louça preta. "Tinha um gosto extraordinário e era de um arrojo tremendo, naquela época", recorda Carlos Couto, que viria a alugar o edifício para gerir a Estalagem da Neve. "Tinha um chauffer, que a conduzia num carro preto muito grande, enquanto ela acenava às pessoas. Na altura havia dez ou 15 carros no Fundão, mas o dela era o mais espampanante".

Massagens a meio da noite

Um jardineiro contratado pela Madame Calado no Fundão despediu-se ao fim de um mês. "É maluca. Acorda-me a meio da noite, pede-me massagens e anda nua pela casa", desabafou na altura a outros patrões da terra, conta uma ex-professora da Misericórdia. Outra residente no Fundão descreve-a como uma mulher "alta, loura, forte, de pele branca e rosadinha e que andava sempre bem apresentada, extravagante até".


Em redor da moradia principal, a madame Calado mandou fazer vários pequenos apartamentos que seriam alegadamente usados pelas prostitutas que trabalhavam para ela. Fernando Nogueira Gonçalves, autor do livro Ilustres e desconhecidos, meio século de memórias do Fundão, dedicou-lhe estas rimas: "A madame Calado, // que a Estalagem construiu // foi uma casa de meninas // algumas esbeltas e divinas // e onde muito rico se divertiu".
Mas ao mesmo tempo que explorava as raparigas, ia praticar caridade a 12 km do Fundão, na Boidobra, a terra onde nasceu e onde era proprietária da Quinta Branca. Um familiar afastado contou à SÁBADO: "Chamavam-lhe a rainha das putas, mas foi uma boa senhora para a malta. Tinha uma cozinha, onde mandava fazer sopa, e toda a gente, trabalhadores e crianças pobres da Boidobra, ia ali almoçar de graça". 
Na adega desta sua quinta, mandou construir um cofre, enterrado na terra, e que foi descoberto depois da sua morte: estava cheio de jóias. 

Viciada em jogo, generosa na missa

Tinha o vício do jogo – organizava jogos a dinheiro em casa – mas era generosa na missa: "No ofertório notava-se logo, dava uma nota", recorda outra familiar. A conversão total de Maria da Piedade Calado sobressaiu quando fez o testamento. "A dada altura no fim da vida arrependeu-se. Pensou que ia morrer e teve medo de ir para o Inferno. Já tinha feito mal a tantas raparigas levadas para a prostituição, passou a querer livrá-las da prostituição", conta uma ex-professora do Fundão. 
Morreu às oito da noite de 9 de Junho de 1964, com um enfarte de miocárdio, no Hospital da Misericórdia do Fundão. Tinha 69 anos. No campo destinado à profissão no assento de óbito, a que a SÁBADO teve acesso, foi identificada como "doméstica". 

"Peço perdão por todos os meus pecados"


Dias depois, foi aberto o testamento, escrito por José Hermano Saraiva, advogado com ligações ao Fundão e que viria a ser ministro da Educação com Salazar, embaixador no Brasil com Marcello Caetano, e apresentador de programas de História na RTP depois da revolução. 
É um texto dactilografado em sete folhas, extraordinário pelo arrependimento e pelo destino dado à fortuna. Arranca assim: "Sou católica e na hora da minha morte o meu pensamento eleva-se para Deus, a quem peço perdão por todos os meus pecados. Àqueles que ofendi e também a todos aqueles a quem fiz mal ou deixei de fazer bem, peço que perdoem todas as minhas faltas (…) Desejo que todos os meus bens possam contribuir para minorar a pobreza e a dureza da vida das crianças pobres da minha região".
E assim destinou a Casa do Bico à Misericórdia do Fundão, para aí instalar a Casa-mãe de Nossa Senhora da Piedade, um lar para 20 raparigas, com idades entre os dez e os 20 anos, escolhidas entre as crianças mais pobres com maior vocação para o estudo – que assim poderiam evitar cair nas malhas da prostituição. 
"Desejo que a casa-mãe não se transforme num asilo. Mas num verdadeiro lar, onde as raparigas possam encontrar o carinho, o respeito e a alegria a que todas as crianças têm direito, mas que infelizmente tantas nunca chegam a conhecer. Por isso não se usará farda, sendo ministrado ensino de costura de forma a que as alunas possam confeccionar o seu próprio vestuário segundo o seu gosto." A casa-mãe ofereceria ainda o vestido de noiva às educandas, uma por ano. Deixou à instituição mais 1.200 contos (416 mil euros a preços actuais) resultantes da venda do prédio em Lisboa, na Calçada do Poço dos Mouros. 

Testamento por cumprir

Havia um prazo de dois anos para a casa começar a funcionar, após o que o legado ficaria sem efeito. Nunca chegou a ser instalada, sob o pretexto de que já havia outras instituições para acolher raparigas nos arredores. O bispo da Guarda ainda terá chamado a atenção para o facto de o testamento não estar a ser cumprido. Mas o testamenteiro, José Hermano Saraiva, terá dado o seu acordo para que a herança fosse usada pela Misericórdia do Fundão para outros fins. 
      
Contudo, o testamento da Madame Calado não terminava ali. Deu instruções para que fossem entregues "uma esmola de cem escudos em dinheiro [34 euros] e um cobertor bem quente a todos os pobres da freguesia da Boidobra", escolhidos pelo padre da freguesia. Este receberia ainda 20 contos (6941 euros), para rezar dois trintanários gregorianos de santas missas pela alma da madame Calado, mais uma missa perpétua no aniversário da sua morte e ainda para lançar sobre a sua campa, em cada dia de finados, flores brancas. 250 contos (86.750 euros a preços actuais) seriam para a Igreja da sua terra, a Boidobra. E outros 250 contos seriam entregues ao Ministério da Educação, para construir uma cantina escolar na aldeia. 
Por fim, nomeava testamenteiros José Hermano Saraiva, o padre Alfredo Ferraz, do Fundão, e António Paulouro, director do Jornal do Fundão: "Confio em que todos os três, que toda a sua vida têm amado os humildes e os infelizes, me ajudem depois da minha morte a realizar esta obra, que em vida não pude realizar".
Joaquim Nunes das Neves, o ex-funcionário da Misericórdia que guardou este testamento e o facultou à SÁBADO, despediu-se assim no fim da conversa: "Se no seu texto puder dar a entender que ela foi mais do que uma puta, já valeu a pena." Foi. E valeu.
Pedro Jorge Castro, Revista Sábado, 2016-12-16

    


Como eram os bordéis de Lisboa antiga 
O lápis azul da censura tinha um vizinho que lhe fazia a vida negra. Luiz Pacheco. Um dos seus autores, Mário Cesariny, entregara-lhe o poema, ‘A Pastelaria’, que ainda chegava a horas para ser incluído num livro.

Uma palavra adivinhava a praxe de descer as escadas. “Veja lá! disse-me o gajo”. Para que constasse ‘Madame Blanche’ o artista teria de mudar o sentido da frase. “Ele não ligava a bordéis de matulonas”; Cesariny fez de conta que a tal madame era um cinema.
Os bordéis de outrora merecem um filme. João, fotógrafo aposentado, adianta que, talvez, tenha sido “ali” – no prédio vizinho do cabaré Ritz Club, traseiras com a Praça da Alegria – que nos anos 60 alegrou o ego a muita alma. Ali. No primeiro andar do número 63 da rua da Glória onde moram criaturas que não imaginam a reminiscência do local. Com a garantia da Cannon não disparar, afinal, por duas, ou quatro tardes foi cliente da ‘Madame Blanche’ – bordel perito em prazeres capazes de ressuscitar impotentes.
Em dias de frágil imunidade, também punha homens a caminho da farmácia para comprar frascos da descoberta de Alexander Fleming. Salazar, que não entendia de penicilina, obrigava as prostitutas a irem ao Governo Civil para testar a saúde. Em vão. Os antibióticos só matam os micróbios.
Pressionado pela Igreja, a 19 de Setembro de 1962, o decreto-lei 44579 proíbe a prostituição. “Nunca saiu do papel”. Teve efeito contrário: o fruto proibido ainda se tornou mais cobiçado. No fundo, o Antigo Regime considerava a depravação útil para escudar a moral. A bem da nação, um homem que ia às meninas não andava a desonrar donzelas e não desviava casadas para o travesseiro do alheio.
António Variações, muito superior à visão do beirão, simplifica as consequências dos banquetes carnais: quando a cabeça não tem juízo, o corpo é que paga. “Esquentamentos”. Cancros moles. Pediculose púbica. “Mas isso nunca matou ninguém!” Nem o conde de Vimioso morreu, em vez da coitada da Severa que, em 1846, partiu aos 26 anos de tuberculose, num prostíbulo na rua do Capelão.
Os olhos do João contemplaram algumas rameiras de peito avantajado e traseiro considerável. Contudo, sempre que queria ir às nuvens, na horizontal, vertical, dependia do ânimo, pagava cinquenta escudos. Esteve com uma muda, outra que falava pelos cotovelos, gordas, magras, coxas, menos com Madame Blanche. Nem sabe se ela existiu. “Quem deve saber é o Fernando” – um garanhão para quem, durante largos anos, a noite acabava às oito da manhã. Mas a andropausa mudou-lhe o horário. Além da próstata insuficiente, a companheira de bodas de platina bebe uma gasosa ao seu lado. “Volte outro dia”. Volto? Sem promessa.

FELICIDADE NO BAIRRO ALTO
Subindo a rua, duas viradas à direita, a rota prometida é o Bairro Alto, aliás, o “Bairro do Bife”, antigo epicentro do milho. O número 142 da Rua do Diário de Notícias, o 5 da Rua da Barroca ou o 8 da Travessa da Água da Flor, entre a década de 50 e finais dos anos 70, metamorfosearam tansos em potentes felizes. Dessa felicidade nem sobrou um tijolo.
O mesmo não se diz do famoso 100 da vetusta rua do Mundo, atual rua da Misericórdia. Um edifício em obras garante um empreendimento de luxo. No tempo do Sr. Manuel, dono de uma leitaria que, por ter vendido vinho, conseguiu comprar um terreno em Tomar, a fama do algarismo da centena até provocava água nas beiças dos moribundos. “Eu também lá fui”. Ao terceiro andar – a repartição mais barata, vinte e cinco escudos. O preço no segundo piso subia para o dobro. Quem pudesse despender cem paus só precisava de galgar um par de escadas.
“Tive que juntar dinheiro”, graceja Jorge, reformado do comércio. Perdeu a virgindade em 1961 com um “Monumento”. No cardápio, que era um molho de fotografias, elegeu uma sardenta fértil de peitos e de ancas. Exigir um engano entre a foto e o original estava fora de questão.
A mínima tentativa de impingir gato por lebre significava perder o cliente. Nos meses em que não conseguia amealhar, dobrava a esquina, e recorria ao prédio adjacente da Igreja de São Roque. Não ia rezar. “Ia à Eva”, um bordel baratucho que, apesar de não ter salamaleques, tinha o essencial: raparigas disponíveis. Mal o patrão o promoveu, “Fui à Madame Calado” – casa fina e cara onde iam ministros e diretores gerais.
Situada numa rampa de feição da estação do Rossio, um primeiro andar de um prédio, já demolido, era propriedade da Calado, madama do Norte, que após ter amealhado um pé-de-meia na prostituição, montou um bordel no Porto e outro em Lisboa. “Ela vivia na casa do Rossio”, mas nunca abria a porta. A criada dava as honras ao cliente, e se ele fosse visita rotineira, “Ui, ui!” parecia que tinha chegado o rei. Embora amplo de inovações, o menu não variava: “Tudo o que eu não fazia com a minha mulher, fazia com elas”.

TRUQUES PARA ENTRAR NUM BORDEL
Alfredo, 67 anos, que trabalhou meio século num cabaré perito no forrobodó, fazia com elas e com todas. Conheceu quilos de fruta madura e verde feminina, embora fosse um frequentador pontual do sexo a pagantes.
“Uma coisa era certinha”: A porta do prédio de um bordel só tinha uma disposição. Aberta. A da entrada só abria após o check feito, através do ralo, pequeno, mas de tamanho perfeito para tirar a prova dos nove. Se fosse persona nunca vista no sítio, havia o risco do sexo ficar com o regozijo adiado.
A melhor artimanha para passar a fronteira consistia em carregar no corpo o mostruário do saldo bancário: Anéis, pulseiras, qualquer objeto que brilhasse servia para enfatizar a credibilidade. “Nas primeiras vezes, coloquei tudo o que tinha”, no dedo anelar levava um cachucho, no mindinho outro, e os quatro botões desapertados da camisa favoreciam a vista de um fio de ouro.
Quando o cliente era habitual, a tranca do ádito corria depressa. A responsável recebia-o de sorriso na face. Dava-lhe as boas tardes, as boas noites, ou, em horas de maior otimismo orgânico, os bons dias. Depois, encaminhavam-no para uma sala de tons acastanhados, de ar asseado. As cadeiras serviam para esperar. Às vezes, calhava estarem outros espertos. Entretinham a espera a mastigar pastilhas elásticas, a limar unhas, a puxar a franja do cabelo para trás. O que importava era o baque que vinha das mãos e da voz da patroa.
O bater das palmas e a frase “Meninas à sala” anunciava o momento imperial: O desfile. E lá vinham elas. Coxas livres de celulite, peles cuidadas com óleo de amêndoas, seios firmes de vários tamanhos, lábios com bâton candente. Enquanto as fêmeas faziam poses para empolgar a freguesia, a matrona das palmas elogiava os dotes das afilhadas. Finda a passarela, o mulherio recolhia em fila indiana e aguardava pela opção. “Escolhi-as pelas pernas e pela roupa”. No quarto, as pernas faziam mais falta do que a roupa, “Mas havia respeito”.
Nunca lá foi, mas ouviu falar da mansão da madame Azacovt, na rua Carlos Mardel, numa porta que nunca descobriu. O preço único de 500 escudos afastava muitos e atraía outros. “Era assim”.

JOSÉ VILHENA E AS MADAMES
Chama à prostituição “exploração do amor”. José Vilhena, autor da revista ‘Gaiola Aberta’, antigo dono da boîte Nigth and Day foi frequentador de bordéis. “Com gosto”. Bastante.
Na altura em que estudou na Escola de Belas Artes do Porto, à noite edificava outra arte. Sexo. É na cidade Invicta que conhece a Madame Calado, que ao contrário do nome, adorava falar. Quando vem para Lisboa, a coincidência persegue-o: “O meu atelier no Bairro Alto já tinha sido um bordel”. A avidez pelo sexo tinha pressa, mas não tanta. Passou tardes a ler o jornal à espera que aparecesse a rapariga que queria.
“Passaram dez anos, desde a última vez que a vi”. Madame Blanche, francesa que, nos anos 30 trocou Paris pelo Fundão. Até ser quarentona exercia a profissão. De uma pousada fez uma pensão de águas correntes. Faz sucesso.
“Abre uma sucursal na capital. Ela escolhia muito bem o material”. Miúdas que vinham da província servir mas que às vezes serviam os patrões de outra maneira.
Outras, entravam na senda pelas mãos de um padrinho rico ou do namorado teso. A proibição de 1962 em nada alterou na borga libidinosa. A Polícia sabia que em bordéis não se rezava. Mesmo se estivessem fardados, a autoridade não tinha autoridade. O séquito salazarista adorava a corte prostituta.
Ministros, secretários, conselheiros, eram senhores de comer sopa ao pequeno-almoço para irem fazer a digestão à Madame Calado. “Vi muitas vezes o Dr. Correio de Oliveira, secretário de Estado das Finanças”.
O regabofe finda com o 25 de Abril de 1974. As casas fecham. Muitas transformaram-se em pensões de sexo rápido, onde as meninas já não vão à sala e ninguém bate palmas por elas.

MEMÓRIA PERDIDA OU PRATICAMENTE DEGRADADA
Os bordéis do antigamente fecharam as portas em finais dos anos setenta. À parte da memória daqueles que eram frequentadores dessas casas de sexo pago, pouco ou nada sobrou para contar a história. Alguns edifícios foram demolidos, outros encontram-se em franco estado de degradação, a esmagadora maioria dos prédios na capital, que fizeram muito homem feliz da vida, tornou-se ruína. Rua da Glória, rua do Mundo, Travessa da Água da Flor, rua da Barroca, todas tinham uma segunda vida, para lá da noite.

ESCALÕES SOCIAIS REUNIDOS
Doutores, operários, ministros, mangas de alpaca, todos se cruzavam na mesma noite. Entravam nos mesmos prédios. Deleitavam-se com as mesmas mulheres. Desde 25 escudos a 500, os prazeres do sexo tinham sempre um custo.
Correio da Manhã, 2007-08-26



Carreira 1960 "Que vida boa era a de Lisboa" (Capítulo III )

Bordel de luxo Madame Blanche 
(Continuação)
Depois da tempestade a bonança,Lisboa fervilha de novas emoções, a Feira Popular abre portas em 1962,  para contentamento das suas gentes,serão os concursos de mini-saia, as rainhas da rádio, os combates de boxe , onde Belarmino seria o rei, iriam ser o tema de todas as conversas dos alfacinhas . Também a outra Lisboa boémia marginal e escondida, continuava em ascensão. Carreira 1960 destino a Lisboa do pecado !!
Esquinas becos e ruelas 

Não , não eram praxes , à época ,o ritual de iniciação na vida adulta, passava pelo baptismo, a que a rapaziada, mais nova era sujeita pelos amigos , familiares mais velhos, numa só frase a ida" ás meninas "..Assim um dos destinos era o primeiro andar do número 63 da Rua da Glória, onde moram criaturas que nem imaginam a reminiscência do local.O bordel da Madame Blanche com fama de ser perito em prazeres capazes de ressuscitar impotentes. Todavia, em dias de frágil imunidade, também punha homens a caminho da farmácia para comprar frascos da descoberta de Fleming, que vida boa era de Lisboa .

Salazar que não entendia de penicilina, obrigava as "meninas"a ir ao governo civil para testar a saúde .
Pressionado, pela igreja pelos brandos costumes,a 19 de Dezembro de 1962 o decreto de lei nº 44579 proíbe a prostituição .escusado será dizer que "Nunca saiu do papel ", pelo contrário teve o efeito inverso, pois como diz o aforismo "fruto proibido é mais apetecido".
No fundo o Antigo Regime, considerava a depravação útil para escudar a moral . Sempre a bem da Nação, um homem que ia às "meninas" não andava a desonrar donzelas, e não desviava casada para o travesseiro alheio. Sempre assim foi, quando a cabeça não tem juízo o corpo é que paga,"esquentamentos", cancros moles, pediculose pública, sífilis, mas para a frente," é que é Lisboa" e isso nunca matou ninguém .

A bem da moral

Felicidade no Bairro Alto, um destino, a rota prometida, o chamado na gíria "Bairro do Bife " antigo epicentro da depravação e prazer.O nª 142 da Rua do Diário de Noticias, e o nª 5 da rua da Barroca ou o 8 da Travessa Água Flor, entre a década de 60 e finais do anos 70, metamorfosearam  tansos em potentes felizes, que vida boa era a de Lisboa. Dessa felicidade não sobrou um tijolo,já o mesmo não se poderá dizer do famoso 100 da vetusta rua do Mundo , hoje Rua da Misericórdia.

O séquito Salazarista adorava a corte prostituta.Ministros , secretários conselheiros de estado, eram personagens assíduas, no bordel mais afamado da capital "Madame Calado", casa fina e afamada , situada numa rampa ao lado da estação do Rossio, oferecia moçoilas da província (Beiras e Norte) sem vícios e com muito amor para dar, apregoava a madrinha Calado,como cabeça de cartaz pela primeira vez em Portugal, Bia uma açoreana de cara redonda, cabelo ruivo, peitos cheios, pernas torneadas e traseiro avantajado, um sucesso , um Monumento!!!
Mas enganem-se os mais cépticos, o mercado era diversificado, para os de menos posses , havia sempre a possibilidade de uma visita à casa da Ilda, bordel baratucho que apesar de não ter grandes monumentos , tinha mulheres disponíveis, também ele de bom acesso , paredes meias com a Igreja de São Roque, que vida boa era de Lisboa . Para aquelas que já tinham atingido a emancipação, as esquinas, ruelas e becos eram o cenário, desde a parte sul da Avenida da Liberdade, Cais Sodré , Técnico , Intendente ,Rua da Betesga etc,,,  eram mercados em ascensão .

Bordel Madame Calado 

Desde doutores, ministros, operários, mangas de alpaca, todos se cruzavam na mesma noite , nos mesmos lugares,deleitavam-se com as mesmas mulheres,e todos estavam conscientes, que os prazeres do sexo tinham um custo , que poderiam ir dos vinte cinco escudos aos quinhentos escudos .

Pastelaria Suiça-Rossio
No que à homossexualidade dizia respeito,oficialmente não se podia ser . No discurso nem existia .Mas na prática era comum. Quer para o povo,assíduo nos urinóis, estações e docas, preso e humilhado pela policia : quer para as elites sociais e culturais que viviam a sua sexualidade numa tolerância envergonhada.
Além do mundo dos salões da classe alta, os intelectuais, no inicio dos anos 60,começam a viver a sua homossexualidade com mais naturalidade. São pontos de encontro, a cervejaria Reimar na  Rua do Telhal onde se misturava a elite e o povo homossexual .Também cafés como o Monte Carlo , Monumental,o Tony dos Bifes a Pastelaria Paraíso, na Avenida Alexandre Herculano, a Suiça , Brasileira no Chiado são locais de encontro.
Príncipe Real -Lisboa 
Quanto a lugares mais recatados, e de encontro nocturno,mais frequentados são o Bar Z no Príncipe Real onde hoje é o Harry`s, O Barbarella na Rua da Atalaia , o Insólito o Antiquário, e as célebres matinés para lésbicas do Gato Preto Gato verde, hoje Memorial , um pouco mais tarde abria o Bric a Brac, a catedral dos homossexuais, que rica vida era a de Lisboa .
É da época o denominado pelas gentes do norte, o Passarinho do Rio, a Bernardete para os alfacinhas , aristocrata com lugar seguro na Avenida da Liberdade, com fama de ter dormido com o maior numero de homens que havia memória, personagem frequente nos urinóis do Rossio.
Cais Sodré -Lisboa 1960
    
Carlos Fernandes, http://skywaterland.blogspot.pt/2014/03/carreira-1960-que-vida-boa-era-de_29.html



segunda-feira, 9 de janeiro de 2017

Más Leituras


     Partindo de dois versos sugestivos de um dos poemas da obra Chuva de Época, «Escrever e ler/é escrever mal e ler mal», o título do projeto Más Leituras corresponde a uma subversão provocatória do significado de «mal»/«má»: aqui, uma «má leitura» consiste numa proposta de recriação apolínea de itinerários possíveis, suscitados pela receção de cada um dos seis textos selecionados. No conjunto, as «más leituras» deste projeto são experiências de apreensão daquilo que o poeta José Maria de Aguiar Carreiro designa por “riqueza multiplicada/ que sai esbaforida” dos textos e que se constitui como reduto privilegiado do/a leitor(a).

Eduarda Maria da Silva Ribeiro Mota, Más Leituras - Projeto Final do Seminário de Materialidades da Literatura II, Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, julho de 2011.




DA RETICÊNCIA AO FACTO

Da reticência ao facto
tudo é repetição, segmento deposto,
correcção.

Escrever e ler
é escrever mal e ler mal.

O facto é sempre o que se vê:
letras de lua e de sol
gavião que sai de feridas e se interpreta

o primor da fala, a sabedoria poética.

Chuva de Época, Ponta Delgada, 2005.


praia da Ribeira Quente, ilha de São Miguel, Açores, 2006. José Carreiro



AUSÊNCIA 

À luz gelada do amanhecer
ele toma a direção da praia
a força do mar arrima-o um pouco
ao imo prestado pelos elementos
observa a fúria da areia que voa
açoita a cara empurrando-o
a procurar abrigo.
Sim, que ausência.

Rolam tumultuosas mas lentamente
as letras para sua própria ordem
por imposição incendiária de montanhas
de rios e de cidades.
Sim, muitos deixam as ilhas
areias cristais e buscam continuamente
forma onde repousar.

– Sim, dir-me-ás tudo isso
mas eu não sei o que quero nem o que faço

para que tudo se represente igual sempre igual a si mesmo.

Chuva de Época, Ponta Delgada, 2005.



“Má Leitura” como processo (in)voluntário de colagem.


Pretende-se realçar que cada leitor(a) encerra em si mesmo(a) um conjunto quase infinito de potenciais atualizações de um arquivo individual em devir. Aqui a leitura é construída por meio da convergência de duas componentes do arquivo do/a leitor(a): a biblioteca e a música popular açoriana pós-autonomia.


INSULARIDADES

“Mãe-Ilha”, de Natália Correia
“Ilhas de Bruma”, de Manuel Medeiros Ferreira

à luz gelada do amanhecer
da ilha que me deram e eu não quis

toma a direção da praia
a tosca ilhoa
seu gesto, cãibra de garça interrompida

só o vento ecoa mundos na lonjura

sim, muitos deixam as ilhas
de bruma
onde as gaivotas vão beijar a terra

e buscam continuamente
forma onde repousar

parti p’rás índias do meu estranho caso
mas trago o mar imenso no meu peito

nas veias corre-me basalto negro
ao pasto e à onda me unirei sincera
para que tudo se represente igual
sempre igual a si mesmo


Eduarda Maria da Silva Ribeiro Mota, Más Leituras - Projeto Final do Seminário de Materialidades da Literatura II, Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, julho de 2011.



praia do Porto Formoso, ilha de São Miguel, Açores, 2009. José Carreiro.



MÃE ILHA

I

Limão aceso na meia-noite ilhada,
O relógio na torre da Matriz
Põe o ponteiro na hora atraiçoada
Da ilha que me deram e eu não quis.

Mas, ó de alvos umbrais Ponta Delgada!
Meu prefixo de pastos, a raiz
É de calhau e de onda encabritada:
Um triz de hortênsia e estala-me o verniz.

Atamancada em fama a tosca ilhoa,
Só na praça e no prelo é de Lisboa,
Seu gesto, cãibra de garça interrompida.

No mais, o osso campesino e duro
É fervor, é fogo e fé que juro
Ao lume e às flores da Graça recebida.

II

No coração da ilha está um vaso
Cheio das pérolas que p’ra mim sonhaste,
Ó mãe completa da manhã ao ocaso,
Pastora dos meus sonhos, minha haste.

Parti p’rás Índias do meu estranho caso
– ó danos que dos versos sois o engaste! –
E com maus fados se entendem ao acaso
Lírios e feras do meu vão contraste.

Ave exausta, o retorno quem me dera,
Vou no canto dos órfãos soletrando
O âmbar da manhã que ali me espera.

Feridas asas, enfim ali fechando
Ao pasto e à onda me unirei sincera,
Ilha no manso azul de mãe esperando.

Natália Correia, Sonetos Românticos, 1990


Fotografia de José Carreiro. Ribeira Grande, 2014-01-04

ILHAS DE BRUMA

Ainda sinto os pés no terreiro
Que os meus avós bailavam o pezinho
É que nas veias corre-me basalto negro
E na lembrança vulcões e terramotos

Se no falar trago a dolência das ondas
O olhar é a doçura das lagoas
É que trago a ternura das hortênsias
E no coração a ardência das caldeiras

Trago o roxo a saudade esta amargura
Só o vento ecoa mundos na lonjura
Mas trago o mar imenso no meu peito
E tanto verde a indicar-me a esperança

É que nas veias corre-me basalto negro
No coração a ardência das caldeiras
O mar imenso me enche a alma
E tenho verde, tanto verde a indicar-me a esperança

Por isso é que eu sou das ilhas de bruma
Onde as gaivotas vão beijar a terra (Refrão)

Letra de Manuel Medeiros Ferreira