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Público, 16-04-1994, p. 21 |
«Em 13 de Março de 1962, eu e mais alguns colegas meus fomos presos pela
PIDE. Foi uma experiência muito amarga. Eu não imaginava, não sabia o que
era uma prisão... Logo na primeira semana, estivemos cinco dias amarrados
dentro da cela, sem alimentação, sem nada, só água... Depois foi a tortura
física, da tortura moral passou à tortura física. Na minha idade, com 15
anos, não pouparam o meu físico, levei muita porrada para desvendar o nome
de elementos do partido. Resisti.»
As palavras são de um
guineense. O massacre de Pidjiquiti, três anos antes, despertara-o para a
política ao PAIGC. A sua pouca idade fizera dele o elemento de ligação
ideal. Mas essa pouca idade não impediu a tortura, o isolamento. Apenas que
fosse, como outros foram, transferido para o Tarrafal: «Depois de um mês de
interrogatórios, passei dois meses na cela de isolamento. Depois desses seis
meses, eu e mais alguns colegas fomos transferidos para o famoso
aquartelamento de Mansoa. Eu estive lá cinco meses, os outros foram
transferidos para a Ilha das Galinhas, e depois para o Tarrafal.»
Foi a primeira de quatro prisões. A segunda ocorreu em Janeiro de 1964:
«Havia momentos que, em cada dia, na cela, morriam cinco ou seis pessoas. E
os presos ficavam lá com os cadáveres, 24, 48 horas. Na nossa cela, um homem
teve um ataque, ficou paralisado de um lado. Passou um ano assim, esse
homem, um lado morto, um lado vivo. Nós é que o assistíamos, lá na cela.
Depois, quando morreu, chamámos. Ninguém foi lá. Ficou sábado, domingo, só
na segunda é que tiraram o cadáver da cela.
«Depois construíram outra cela. Mas , era uma cela que ninguém podia lá
viver, tinha um metro e meio por dois e meio e uma janelinha, uma janelinha
só com dez por dez, com rede. Tinha que se fazer, desculpem, as necessidades
lá dentro. Eu passei lá isolado, sozinho, dois anos. Havia momentos em que
falava sozinho, para ouvir a minha voz.»
Nestas condições, a transferência para a Ilha das Galinhas era quase uma
libertação: «Quando a pessoa era transferida para a Ilha das Galinhas,
sentia-se liberta, porque vivendo na cela uma pessoa não sabia que dia era,
hoje ou amanhã, e podia, passado um minuto, ser levado e fuzilado, ou
torturado outra vez, e a nossa única salvação era ser transferido para a
Ilha das Galinhas. O trabalho era muito duro – nós levantávamo-nos às 5 da
manhã e fazíamos o trabalho até às 4 da tarde, às 4 da tarde é que íamos
comer para depois descansar – mas uma pessoa sentia-se mais liberta,
podia-se contactar com os outros presos...»
Da Ilha das Galinhas sai, amnistiado por Spínola, depois de cinco anos de
prisão. Mas, pouco tempo depois, é preso novamente: 30 dias de
interrogatório mas, depois, a liberdade. Em 1971 é preso pela quarta vez:
«Passei 60 dias de interrogatório e, quando cheguei à cela tinha tá um
colega que olhou para mim e começou a chorar, porque eu sangrava por todos
os lados, nariz, ouvido, boca, as palmas da mão, planta do pé, nádegas,
costas. Ele pensou que eu ia morrer. Mas, felizmente, resisti. Depois houve
30 dias em que fui interrogado dia sim, dia não e levava porrada. Levava, e
tinha que estar de joelhos, com pedras em baixo, com os braços abertos e
ficava assim de manhã até às nove horas da noite, porque tinha havido
rebentamentos em Bissau e eles queriam que eu dissesse quem tinha armas e
explosivos... Resisti.»
«Passada uma semana, voltaram a interrogar-me. Disseram-me que eu só tinha
dito mentiras e recomeçaram. Passei mais 60 dias de interrogatório. Foi
terrível... terrível. Até que tive que fazer greve da fome. Passei seis dias
sem comer – só bebia água. Quando me vieram buscar outra vez, eu não podia
mesmo andar, tiveram de aguentar-me, levaram-me para a PIDE. Mandaram chamar
um major médico. Então esse disse-lhes para não voltarem a bater. Eu já
estava em último estado, bastava um pouco de tortura e eu podia morrer.»
Várias pessoas me tinham falado da história deste homem, das torturas que
sofrera, antes de falar com ele. E enquanto o ouvia não podia deixar de
pensar: «Como é que uma pessoa pode sofrer tudo o que este homem sofreu, ter
assistido aos sofrimentos a que assistiu – e que eram, alguns, piores que os
que tinha sofrido – e continuar vivo, e falar disso, e até sorrir?» (Até
lembrar-me que houvera, também, da parte de portugueses, actos de gentileza,
de quase cumplicidade, nem que fosse o cigarro colocado entre os lábios de
um preso algemado por um furriel com os olhos cheios de lágrimas...)
Lembrei-me naturalmente dele quando ouvi na televisão algo que julgava nunca
ter de ouvir (ao menos sem imediata e veemente contestação) fora das salas
da António Maria Cardoso: um pide a explicar como os presos eram bem
tratados, como até lhes eram oferecidas lautas iguarias, até a troçar de um
ex-preso, dizendo-lho que, apesar da prisão e de todas as queixas sobre o
que a PIDE fazia, o via com um óptimo aspecto, vinte anos depois...
Entendam: nada tenho, antes pelo contrário, contra que se entrevistem
antigos elementos da PIDE/DGS. É urgente fazer a história dos tempos do
fascismo, e eles foram protagonistas desse tempo. Mas tenho tudo contra a
demissão dos entrevistadores, a inexistência de contradição, a leveza da
pesquisa. E tenho, certamente tenho, contra que os jornalistas da democracia
tratem com maior deferência um elemento de uma polícia política que foi um
dos maiores sustentáculos da ditadura do que tratam uma vítima dessa mesma
polícia, dessa mesma ditadura, uma pessoa que, independentemente do acerto
ou desacerto das suas posições, se bateu pela democracia. Por essa
democracia que permite que um torcionário tenha o mesmo direito à palavra
que uma vítima...
Não conheço José Manuel Tengarrinha. Mas chocou-me vê-lo, vinte anos depois
da abolição da PIDE/DGS pela pressão da população, humilhado de novo por um
pide. Mesmo se penso que teve alguma responsabilidade, que não deveria nunca
ter acedido a participar naquele pseudodebate, que nunca deveria ter
aceitado discutir, de igual para igual (igualdade que, ainda para mais, nem
sequer existiu, o pide tendo nitidamente estatuto de estrela convidada), com
um agente da PIDE.
Chocou-me ouvir um jornalista dizer, quando Tengarrinha referiu as vítimas,
«diga lá um ou dois nomes», como se fosse preciso ser Tengarrinha a dar os
nomes, como se os jornalistas não soubessem também ao menos dois ou três de
mortos pela PIDE, nem que fossem apenas Dias Coelho, Humberto Delgado,
Ribeiro Santos...
Chocou-me ouvir de novo, sem contestação, a versão pidesca do assassínio de
Delgado – em absoluto contraste com a confissão dos próprios pides
envolvidos no assassinato... ou com a de outro inspector da PIDE, Pereira de
Carvalho, nas declarações que me prestou para a Geração do 60. Numa carta ao
director há dois dias publicada nosso jornal, Manuel de Brito, editor, dizia
que o programa o tinha humilhado, 3ue as palavras do pide o tinham
humilhado, porque o obrigou a recordar que, vinte anos antes, tinha medo
dele – e ele não tinha agora medo de coisa nenhuma.
Foi outra coisa a que me humilhou: foi o sentir que todos éramos cúmplices
do que ali se passava, porque, em nome de uma distância dita necessária à
história, admitimos que se calasse, tempo de mais, a memória do passado.
Porque não exigimos, suficientemente alto, que fossem preservados e
transformados em museu a PIDE ou o Aljube. Porque deixámos praticamente
abandonadas as campas dos mortos no Tarrafal.
Porque admitimos que Lisboa 94 recordasse tão pouco que festejávamos também
os 20 anos do derrube da ditadura e, sobretudo, lembrasse tão pouco a
ditadura. (E lembro-me de ouvir, em Weimar, que será capital europeia da
cultura em 99, um responsável político dizer: «O programa da capital
europeia da cultura não pode esquecer Buchenwald. Porque Weimar é a cidade
de Goethe e de Schiller, mas é também a de Buchenwald. Buchenwald faz também
parte da cultura alemã.») Porque permitimos que o 25 de Abril, em vez de
memória do que existira antes, e do que fora a alegria de todo um povo,
depois, se transformasse numa efeméride comemorada com alguns discursos.
Porque, calando-nos, permitimos que um pide possa insultar-nos, vinte anos
depois.
Diana Andringa, Público, 16-04-1994, p. 21
Síntese do
artigo «A PIDE existiu. E torturou.»
POLÉMICA
-
A 25 de Abril de 1994, comemoraram-se os 20 anos do derrube dos 48
anos de ditadura fascista em Portugal.
-
Como comemoração dessa data importante, levaram à televisão um
ex-pide, para dar o seu testemunho.
-
Durante o debate o ex-pide defendeu-se tão naturalmente que encobriu
todos os maus tratos executados pela PIDE, contradizendo, assim, a
declaração de alguns indivíduos que noutras alturas tinham confirmado as
terríveis torturas.
Este
conjunto de declarações provocou grande polémica levando os
constrangidos a manifestarem-se.
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EXPERIÊNCIA
DE UM GUINEENSE
1.ª prisão
– 13 de Março de 1962:
- cinco dias amarrado dentro da cela, sem alimentação, só água –
tortura física e psicológica;
-
um mês de interrogatório;
-
seis meses de isolamento no Tarrafal, prisão em Cabo Verde,
transferência para a prisão da Ilha das Galinhas, de seguida, nova
transferência para o Tarrafal.
2ª prisão –
Janeiro de 1964:
-
assistia à morte de cinco a seis presos por dia;
-
exposição dos mortos nas celas durante vários dias;
-
isolado durante dois anos – más condições de sobrevivência – ,
transferência para a prisão da Ilha das Galinhas – fazia trabalho pesado;
-
sentimento de alegria por poder conviver com outros presos;
-
passados cinco anos, sai amnistiado por Spínola.
3ª prisão:
-
30 dias de interrogatório.
4ª prisão –
1971:
-
60 dias de interrogatório;
-
muita tortura física durante 30 dias, dia sim, dia não: ponham-no de
joelhos, em cima de pedras, com os braços abertos, de manhã à noite, mas ele
nada revelou.
-
Passados dois meses de interrogatório, decide fazer greve de fome. A
médica que o assiste aconselha os agentes dos serviços prisionais a não lhe
baterem mais porque poderia morrer.
-
É libertado.
Que
pretendiam dele?
Que
desvendasse os nomes dos elementos do partido PAIGC (Guiné) que tinham em
seu poder armas e explosivos.
27 de Janeiro de 1970: Relato de uma
prisão atípica
O que se segue é a narrativa de uma prisão atípica, a
de uma das redactoras deste blogue, há exactamente quarenta anos.
Diana Andringa entrava cedo num emprego distante de casa. Quando a
PIDE a procurou, já tinha saído. Teve pois tempo de se preparar para
a prisão. Foi uma primeira vantagem, mas não a única: histórias de
amigos presos, visitas a Caxias, ajudavam a evitar-lhe o choque do
desconhecido; a sua ligação, mais afectiva do que efectiva, a uma
organização, encaixava mal no quadro mental dos inquiridores; mas,
sobretudo, confiava em que – tendo o director da PIDE a filha em
Cuba – as suas ligações familiares travariam eventuais excessos
policiais. Não tendo que enfrentar as torturas bárbaras que tantos
outros suportaram, pôde verificar algo que a tortura impedia de
observar: que, privada dessa arma, a polícia política se tornava
ineficaz e até, por vezes, caricata. O que, a seus olhos, torna
ainda mais sórdida a utilização da tortura e mais dignos de respeito
aqueles que a sofreram. | Joana Lopes
O carro, um Wolkswagen, passou do outro lado do largo
onde esperava o autocarro. Contornou-o na direcção da rua onde
morava. Pareceu-me reconhecer um dos homens no interior: o chefe de
brigada Inácio Afonso. Avistara-o durante uma ida à PIDE, na António
Maria Cardoso, requerer o direito de visitar o então meu namorado.
O autocarro que chegava ocultou-me da vista dos
passageiros. Entrei, o coração a bater mais rápido que o habitual:
há muito tempo que era notória a vigilância à nossa casa, dez dias
antes fôra preso o Álvaro. Teria chegado a minha vez?
O trajecto até à agência de publicidade onde
trabalhava levava cerca de uma hora. Fui passando em revista as
possibilidades: ir trabalhar, como se nada se passasse, e aguardar o
desenrolar dos acontecimentos? Apear-me a meio do percurso,
ocultar-me durante algum tempo, deixar o país? Mas esconder-me onde,
se aqueles que mais facilmente me acolheriam poderiam estar também
vigiados e ser postos em perigo pelo meu aparecimento? E se a
vigilância sobre nós durava há tanto tempo e era tão ostensiva,
seria possível que os meus dados não estivessem já em todas as
fronteiras? Talvez, no entanto, a PIDE fosse menos eficiente do que
pensávamos… Mas se abandonasse o país e não pudesse mais voltar,
seria isso mais útil do que arriscar a prisão, uma vez que não fazia
parte de nenhuma organização e não tinha qualquer importância, nem
informações que pudessem fazer perigar a segurança de outros? E se o
carro tivesse passado ali por simples coincidência, ou reforço de
vigilância, ou intimidação, fugir não iria piorar a situação dos que
ficassem?
Ao fim de uma hora a pesar prós e contras, acabei por
me apear na paragem do costume. Olhei em volta: não vi nada de
inabitual. Entrei na agência. Estava há poucos minutos no gabinete
quando o telefone tocou. Era a Nita: “A Zé foi presa. A mãe dela foi
a tua casa avisar-te e a PIDE estava lá, prenderam também o Zé.”
As dúvidas voltavam: que fazer? Sabia que vários dos
meus colegas, se não todos, estariam dispostos a ajudar-me, mas
tinha o direito de os pôr em risco? Valeria a pena? Certamente a
PIDE estaria já a vigiar o edifício…
Telefonei ao José Augusto Rocha: “A PIDE está em
minha casa. Devo estar a ser presa. Posso deixar-te uma procuração?”
Surpreendido, talvez ainda ensonado, o Zé Augusto explicou-me o que
fazer. Escrevi a procuração e deixei-a à Maria, com o Bilhete de
Identidade necessário ao reconhecimento da assinatura. Expliquei-lhe
tudo e pedi-lhe que a entregasse depois à minha mãe, a quem deveria
também confirmar a minha prisão. O Plínio, que dividia o gabinete
comigo e era familiar de um dirigente da PIDE, abriu as suas gavetas
aos papéis que, mesmo inócuos, a polícia poderia querer
apreender-me. Desci as escadas e pedi à recepcionista que me
avisasse quando os agentes entrassem à minha procura. Telefonei
então à minha mãe, pedindo-lhe que aguardasse o telefonema de
confirmação da Maria para me levar à sede da PIDE, na António Maria
Cardoso, um pijama e uma escova de dentes. Liguei para o emprego do
meu pai e pedi à secretária que lhe desse a notícia com cuidado,
para evitar um possível problema cardíaco. Sem saber que mais fazer,
arrumei a secretária. O telefone tocou e ouvi a voz soluçada da
recepcionista: “Já entraram. Foram à Secção de Pessoal.”
Fui à casa de banho. Quando regressava, vi-os chegar:
o homem do carro e uma mulher, a também chefe de brigada Madalena
Oliveira. Traziam um mandado e tinham avisado a Secção de Pessoal.
Ninguém meu conhecido fora preso com tamanha legalidade.
Pedindo desculpa pelo incómodo ao Plínio, passaram
rapidamente busca à minha secretária, detendo-se a observar alguns
exemplares do Le
Monde diplomatique. A seguir pediram-me que os acompanhasse.
Quando saíamos, recolhi
os olhares solidários dos colegas. Resolvi cumprir as regras e
avisar o meu chefe, Artur Portela. Abri a porta do gabinete:
“Lamento, mas vou ter de sair por um bocado. Estes senhores são da
PIDE e vieram-me buscar…”
A recepcionista tinha lágrimas nos olhos quando
desci. Já na rua, apercebi-me de que tinha poucos cigarros. Disse:
“Antes de chegar à António Maria Cardoso preciso de comprar tabaco.”
Acederam. Dei dinheiro a um dos agentes, que me trouxe dois maços de
Paris.
Na primeira sala onde fui colocada na António Maria
Cardoso travei conhecimento com o Inspector Tinoco. “Com que então,
distribuição de propaganda subversiva em Luanda!”, disparou,
ameaçador. Teve azar: revelou a fragilidade da informação policial.
Eu nunca estivera mais do que alguns dias em Luanda, a última das
quais com onze anos. “Não me lembro – e, se a fiz, o crime já deve
ter prescrito”, respondi. Abandonou a sala.
Pouco depois, levaram-me a outro andar, onde fui
identificada e fotografada. Junto à dactiloscopia, o desenho de um
esqueleto com os dizeres: “Amigo, tenha calma, não se irrite, porque
todos acabamos assim.” Desde então que me irrito sempre que o vejo
numa qualquer repartição.
No regresso fecharam-me noutra sala, com uma agente
que devia andar pela minha idade. Ficámos ali, uma de cada lado de
uma pequena secretária, a ouvir uma gota caindo repetidamente do
aquecimento, a um canto. Que, aliás, não aquecia. Um truque mais
para criar mal-estar no preso?
Perguntou-me qual a razão da minha prisão.
Respondi-lhe que não fazia a mínima ideia, presumia que se tratava
de um erro e daí a pouco me libertariam. Lamentava, aliás, o tempo
que estava a perder: no dia seguinte devia apresentar a um cliente
uma proposta de campanha, devia estar a trabalhar. Era uma nova
gabardina, de um tecido totalmente impermeável… “Tornado”
parecer-lhe-ia um bom nome? E “ciclone”? Demasiado óbvio, talvez?
Nunca a publicidade me terá sido tão útil…
Entusiasmada, a agente entrou no jogo e foi discutindo comigo nomes
e, até, pequenos scripts para
um filme publicitário. Excelente modo de evitar pensar no que me
podia esperar – ou, pior, no que poderia estar a acontecer aos Zés.
Ao almoço trazem-me caldo verde e um bife: “Vê? Dizem
que tratamos mal os presos. Fomos buscar-lhe um bife à Brasileira!”
Penso que, caso ponham drogas na comida, será mais fácil fazerem-no
nos líquidos. Evito a sopa e afasto todo o molho do bife, o que
provoca piadas diversas dos agentes que metem a cabeça pela porta
entreaberta.
Estou prevenida: o Luís explicou-me que um dos
maiores perigos para a resistência de um preso é a sensação de
ridículo. Decidi, portanto, que nada do que qualquer agente da PIDE
disser poderá tocar-me. Mais tarde poderei discutir os riscos éticos
desse pressuposto (“Quando me apercebi de que não chorava quando um
morto era do exército alemão, percebi que eu próprio poderia
tornar-me um nazi”, disse-me, muitos anos depois, um dos judeus
salvos por Sousa Mendes): neste momento, não lhes reconheço
dignidade humana.
Depois do almoço, continuo a trabalhar no lançamento
da gabardina. A intervalos, canto. A agente revela-se apreciadora de
Paco Ibañez. Recito-lhe a versão do cantor de La
poesia es una arma cargada de futuro, de Gabriel Celaya (1). A
poesia vem dar-me novas forças: obrigada, Celaya, obrigada, Paco
Ibañez, por me lembrarem que ali, naquela sala – e parafraseando um
outro poeta – sou mais do que eu: sou um dos muitos que recusam
lavar as mãos do que se passa em seu redor, dos que escolhem tomar o
partido dos que sofrem.
Mas é demasiado para a polícia: a agente é retirada e
substituída por outra, igualmente jovem, mais sofisticada, que mal
se senta começa a fazer ruídos enervantes em minha intenção. “Um
pouco cedo de mais”, penso, “dormi perfeitamente toda a noite.”
Em momento que já não recordo, regressou o inspector,
acompanhado pelo agente Benedito Pereira André, que servia de
escrivão. Travei então conhecimento com a estranha linguagem dos
Autos de Perguntas – e, deduzi, com as razões que determinavam a
minha prisão.
“ Aos vinte e sete dias do mês de Janeiro de mil
novecentos e setenta, nesta cidade de Lisboa e Direcção de
Serviços de Investigação e Contencioso da Direcção-Geral de
Segurança, onde se encontra o Excelentíssimo Senhor Inspector
Adelino da Silva Tinoco, comigo, Benedito Pereira André, agente
servindo de escrivão, ambos da referida Direcção-Geral,
compareceu Diana Marina Dias Andringa, casada, redactora de
publicidade da firma “CIESA”, nascida a vinte e um de Agosto de
mil novecentos e quarenta e sete, em Dundo-Chitato,
Lunda-Angola, filha de —– e de ——, residente em ——, a fim de ser
interrogada. ——————————————————————–
PERGUNTADA se já esteve presa mais alguma vez, onde quando e
porquê, se foi julgada e condenada e, em caso afirmativo, se
cumpriu a respectiva pena, respondeu: -Que, nunca esteve presa
nem respondeu em Juízo. ——————————————–
À MATÉRIA DOS AUTOS e interrogada no sentido de explicar todas
as actividades atentatórias da segurança do Estado que tem
desenvolvido como “membro” da “organização” secreta, subversiva
e terrorista que denominam por “frente de acção popular”,
vulgarmente conhecida por “FAP” e do seu “organismo doutrinário”
que é o chamado “comité marxista-leninista português”, em
ligação com o “movimento popular de libertação de Angola” também
conhecido por “MPLA”, responde: – Que, não pertence a nenhuma
organização secreta, subversiva e terrorista, nem tem
desenvolvido qualquer actividade atentatória da segurança do
Estado.—————————————
E SENDO-LHE perguntado que ligações ou contactos de natureza
partidária e subversiva vem mantendo com ———-, hoje detido na
sua residência, onde pernoitou, respondeu: – Que, não tem
quaisquer ligações ou contactos de natureza partidária e
subversiva com o indivíduo referido na pergunta. ———————————————
E SENDO-LHE perguntado como obteve e a que fins destinava a
diversa propaganda de natureza partidária e subversiva
encontrada e apreendida na sua residência, nomeadamente o
documento copiografado com o título “VIVA A LUTA DA CLASSE
OPERÁRIA”, composto de duas folhas e editado pelo “comité de
propaganda marxista-leninista”, e dois exemplares, um
do número um, respeitante ao mês de Outubro, digo, um do
número três, respeitante ao mês de Outubro e outro com os
números quatro e cinco e respeitante aos meses de Novembro e
Dezembro, todos de mil novecentos e sessenta e sete do panfleto
clandestino e subversivo intitulado “o proletário”- “órgão do
comité marxista-leninista português”, respondeu: – Que, os
recebeu pelo correio, ignorando a sua procedência, e guardava-os
a título de informação pessoal. —————
E SENDO-LHE também perguntado que ligações ou contactos de
ordem partidária e subversiva vem mantendo com um indivíduo que
se julga chmar-se D.T., nome constante do remetente duma carta a
si dirigida, manuscrita, igualmente encontrada e apreendida na
sua residência, a qual se inicia “DIANA ANDRINGA – lá estarei as
21H, no canto…” e termina “abraço fraternalmente
revolucionário”, devendo indicar quem é essa pessoa, respondeu:
– Que, como atrás afirmou não mantém ligações ou contactos de
ordem partidária e subversiva e nem nunca os teve com ninguém.
Não se recorda da carta em referência e no tempo em que era
jornalista recebia com frequência cartas de estudantes referindo
problemas universitários, admitindo, por isso, que esta seja uma
dessas.————————————————————————————–
E mais não respondeu. Lidas as perguntas que lhe foram feitas e
as respostas por si dadas, as achou conformes, ratifica e vai
assinar.———————————————–
Para constar se lavrou o presente auto, que vai ser também
assinado pelo Excelentíssimo Inspector e por agente, que o
dactilografei e revi.————————–”
A inquirição reforça a ideia de que é muito frágil a
informação policial. A menos que se trate de um esquema preparado
para me fazer ganhar confiança e depois me confrontar com uma
acusação realmente séria?
Para o fim da tarde, nova substituição de agente. A
que entra é mais velha e aparenta origem mais humilde. Diz-me, logo
à chegada, não pertencer aos serviços de investigação, mas aos
administrativos, tendo sido chamada por excesso de trabalho das
agentes do sector. Será ela a acompanhar-me a Caxias. Tendo ouvido
dizer que eu mal tocara no almoço e antevendo a possibilidade de
chegarmos a Caxias já passada a hora de jantar, no Cais do Sodré
manda parar a carrinha, sai e ao voltar estende-me um bolo de arroz.
Será o velho truque do pide mau e do pide bom, ou contradições no
seio da polícia? Recordo Álvaro de Campos e como o bolo, rejeitando
a metafísica.
Chegamos a Caxias. Habituada a entrar para o
parlatório, como visita, vou desta vez subir os dois andares até às
celas de isolamento – e, também, ao pavilhão das mulheres.
Logo à entrada, sou saudada pelo chefe Palma. As
primeiras palavras são surpreendentes: “Também está cá? E agora quem
é que visita o Alexandre?” ”Terá de pôr a pergunta ao major Silva
Pais”, respondo. Mas já a agente que me acompanha o insta a
servir-me o jantar. A discussão que se estabelece insinua
contradições entre a polícia política e os guardas prisionais, com o
chefe Palma a sublinhar que na António Maria Cardoso conhecem os
horários de Caxias e deviam, por isso, prestar mais atenção à hora
de envio dos detidos. Mas a agente não desiste e deixa-me com uma
garantia: “Esteja descansada que lhe vão servir o jantar.”
Subo finamente as escadas, acompanhada pelo chefe
Palma e um guarda prisional. Deposito, numa mesa colocada no
corredor, a mala de mão, o relógio, os óculos. No bloco que me
estendem para anotar o meu espólio, vejo, em decalque, a letra e a
assinatura da Zé. Alguém escreveu: “Quarto 62, 2º Dtº Frente”. A mim
destinam-me o Quarto 60, 2º Dtº Frente. Óptimo, somos vizinhas,
poderemos talvez comunicar. Levanto a voz, na esperança de que me
oiça.
Entro na cela: do lado esquerdo, uma cama de ferro,
uma mesa de pedra presa à parede, uma cadeira; do lado direito um
armário e a casa de banho. Ao fundo, a janela, de grades duplas.
Nada que se compare ao exíguo espaço dos curros do Aljube, onde
passaram diversos amigos meus.
A guarda traz-me a roupa da cama, encardida e áspera.
Aguardo que me deixe sózinha. Lembro-me de um texto de Manuel
Alegre, na Praça da Canção, “Rosas Vermelhas” (2), “em Maio
de 1963, eu estava na cadeia, isto é, de certo modo, eu estava no
meu posto” – e , por um estranho momento, sinto-me em casa,
como se estar ali fosse perfeitamente natural. Então aproximo-me das
grades e, alto, desejo boa-noite a todos os presos que conheço e
calculo estarem nessa noite em Caxias.
É nessa altura que chega o peixe. Um peixe de boca
aberta e olhos que me fixam esbogalhadamente, equilibrado num prato
de metal cheio de arroz argamassa, um peixe que irá manter-se longos
anos nos meus pesadelos, como a aranha prensada transformada em
mancha no lençol. Pouco como do jantar em que a agente tanto
insistiu.
De novo só, bato na parede uma mensagem para a Zé –
“uma pancada é a,
duas pancadas b”
– mas, talvez desconfiada, ela não responde.
Não há espelho na casa de banho – como é nua uma casa
de banho que não nos devolve o rosto! – o pijama ainda não chegou,
nem a escova de dentes, a roupa da cama não impede o frio, tremo sem
parar (e talvez não apenas de frio, virei a ter febre todas as vezes
que volto de interrogatórios, como se a tensão acumulada reclamasse
o direito a libertar-se). Mas há um muro de palavras a proteger-me,
Daniel Filipe (“Ó meu amor resiste/Resiste os olhos secos/Sem
lágrimas Sem medo Só talhada/no sílex da ira” (3)), Roger Vailland,
Jorge Semprun, Jacques Prévert, João Cabral de Melo Neto, Jorge de
Sena, Herberto Helder.
Convoco os seus textos, adormeço a recitá-los. Mal
sabe o pequeno inspector Tinoco que a literatura me inspirou muito
mais do que a “diversa propaganda de natureza partidária e
subversiva encontrada e apreendida na (minha) residência”.
Durante a noite, por mais de uma vez, o postigo
abriu-se e houve uma lanterna apontada na minha direcção. A polícia
não gosta que os seus presos se evadam pela via do suicídio.
Passei em Caxias os 20 meses seguintes. Se recordo
muitos aspectos caricatos – graças aos conselhos do Luís, foi sempre
no outro lado que encontrei o ridículo – e não sofri as torturas que
tantos sofreram, houve naturalmente dias difíceis. Os de
interrogatórios, desde logo, mas não só: todos os de nevoeiro, por
exemplo, quando o Tejo desaparecia e a vista do exterior não ia além
da guarita da GNR. A vez em que a minha mãe veio visitar-me e lhe
recusaram a visita, com o pretexto de que eu deveria ir ao Hospital.
Aquele em que chegou a primeira nota de culpa, pedindo para nós
penas de vinte a vinte e quatro anos de prisão. (Tinha então 23
anos.) À Fernanda Tomás, à Zé, à minha família, ao Alexandre, ao meu
advogado, devo ter conseguido resistir a esses dias.
No julgamento, catorze meses depois desse 27 de
Janeiro, os juízes condenaram-me a 20 meses de prisão. Pena
justificada assim no “douto” acórdão, proferido a 30 de Março de
1971 pelos juízes do Tribunal Plenário de Lisboa, Fernando António
Morgado Florindo, Bernardino Rodrigues de Sousa e João de Sá Alves
Cortês:
“A ré é simpatizante da linha política de acção
violenta do MPLA, concordando com a formação de actuação do
mesmo, cujos estatutos e programa aprova. Partidária da
independência da província ultramarina de Angola, tem procurado
doutrinar, quer por palavras quer por documentação panfletária,
os indivíduos com quem tem contactado, sobretudo ultramarinos,
e, para a consecução dos fins do MPLA, com plena consciência dos
mesmos, promoveu o encontro entre os réus Álvaro e Maria José,
nesta cidade, para que aquele fizesse seguir por esta, para o
estrangeiro, uma carta-mensagem destinada ao comité-director do
movimento, encontro efectuado depois de de 15 de Agosto de 1969.
Prestou ao réu Rui não só apoio mas colaboração e auxílio nas
actividades a favor do MPLA, fornecendo-lhe algumas fotografias
de líderes revolucionários e literatura de carácter
revolucionário e acompanhando-o na escolha e compra de outra em
diversas livrarias, tudo para a consecução dos fins do
movimento.
Entregou ainda ao Rui uma caixa de folhas de papel stencyl que
tinha em sua casa e fê-lo com pleno conhecimento de que o mesmo
ia ser utilizado para policopiar propaganda clandestina.”
Pareceu-me uma honra imerecida para tão pouca acção.
Só muitos anos depois, em entrevistas a alguns dos que, do meu
processo, foram deportados sem julgamento para o Tarrafal, vim a
entender melhor essa pena, bem como a primeira nota de culpa, depois
modificada, e algumas perguntas que então me pareceram completamente
descabidas.
Envelheci muito nesses vinte meses. Mas nem tudo foi
negativo. Como recordou, há alguns meses, um antigo preso político
cabo-verdiano que passou três anos no Tarrafal, na cadeia
aprendíamos a conhecer-nos e a conhecer melhor as razões da nossa
luta. Ou, pedindo de novo ajuda às palavras de outros, a saber para
sempre que os nossos cantares não podem ser sem pecado um adorno, e
que lutar é apenas ter uma fiel dedicação à honra de estar vivo (4).
_______________________________________
(1)
Cuando ya nada se espera
personalmente/ exaltante/, más se palpita y se sigue más acá de la
consciencia,/ fieramente existiendo, ciegamente afirmando,/ como un
pulso que golpea las tinieblas,/ que golpea las tinieblas.// Cuando
se miran de frente / los vertiginosos ojos claros de la muerte,/se
dicen las verdades;/las bárbaras, terribles, amorosas crueldades,/
amorosas crueldades.// Poesía para el pobre, poesía necesaria / como
el pan de cada día,/ como el aire que exigimos trece veces por
minuto/ para ser y tanto somos, dar un sí que glorifica,/ dar un sí
que glorifica.// Porque vivimos a golpes, porque apenas si nos
dejan/ decir que somos quien somos,/ nuestros cantares no pueden ser
sin pecado un adorno, / Estamos tocando el fondo,/ estamos tocando
el fondo.// Maldigo la poesía concebida como un lujo/ cultural para
los neutrales / que lavándose las manos, se desentienden y evaden./
Maldigo la poesía de quien no toma partido,/ partido hasta
mancharse. // Hago mías las faltas. Siento en mi a cuantos sufren/ y
canto respirando./ Canto y canto y cantando más allá de mis penas/
de mis penas personales,/ me ensancho, me ensancho. // Quiero dar
vos vida, provocar nuevos actos,/ y calculo por eso, con técnica que
puedo./ Me siento un ingeniero del verso y un obrero/ que trabaja
con otros a España, / a España a sus aceros. // No es una poesía
gota a gota pensada,/ No es un bello producto. No es un fruto/
perfecto,/ es lo más necesario: lo que no tiene nombre. /Son gritos
en el cielo, y en la tierra son actos.
Gabriel Celaya, La
poesia es una arma cargada de futuro (Versão
de Paco Ibañez)
(2)
Nasci em Maio, o mês das rosas,
diz-se. Talvez por isso eu fiz da rosa a minha flor, um símbolo, uma
espécie de bandeira para mim mesmo.
E todos os anos, quando chegava o mês de Maio, ou mais exactamente,
no dia 12 de Maio, às dez e um quarto da manhã (que foi a hora em
que eu nasci), a minha mãe abria a porta do meu quarto, acordava-me
com um beijo e colocava numa jarra um ramo de rosas vermelhas, sem
palavras. Só as suas mãos, compondo as rosas, oficiavam nesse
estranho silêncio cheio de ritos e ternura.
Nesse tempo o Sol nascia exactamente no meu quarto. Eu abria a
janela. Em frente era o largo, a velha árvore do largo dos ciganos.
Quando chegava o mês de Maio, eu abria a janela e ficava bêbado
desse cheiro a fogueiras, carroças e ciganos. E respirava o ar de
todas as viagens, da minha janela, capital do mundo, debruçado sobre
o largo onde começavam todos os caminhos.
E tudo estava certo, nesse tempo, ou, pelo menos, nada tinha o sabor
do irremediável. Nem mesmo a morte da minha tia. Por muito tempo ela
ficou nos retratos e no jardim, bordando à sombra das magnólias,
andando pela casa nos pequenos ruídos do dia-a-dia, até que, pouco a
pouco, se foi confundindo com as muitas ausências que vinham
sentar-se na cadeira, onde, dantes, minha tia se sentava.
E eu dormia poisado sobre a eternidade, como se tudo estivesse certo
para sempre, eu dormia com muitos olhos, muitos gestos vigilantes
sobre o meu sono. Por vezes tinha pesadelos, acordava, inquieto, a
meio da noite, qualquer coisa parecia querer despedaçar-se e então
exclamava:
- Mãe!
E logo essa voz, tão calma, entrava dentro de mim, mandava embora os
fantasmas, e era de novo o meu quarto, a doce quentura da minha casa
no cimo da ternura.
Não havia polícia nesse tempo. Ninguém roubaria a tranquilidade do
meu sono, ninguém viria a meio da noite para me levar, porque
bastava eu chamar:
- Mãe!
E logo uma voz, tão calma, mandava embora os fantasmas. E era a paz,
nesse tempo, em que todos os anos, quando chegava o mês de Maio, ou
mais exactamente, o dia 12 de Maio, às dez e um quarto da manhã, a
minha mãe abria a porta do meu quarto e colocava, religiosamente, um
ramo de rosas vermelhas sobre a minha vida, nesse tempo, em que
dormir, acordar, nascer, crescer, viver, morrer, eram um rito no
rito das estações.
Em Maio de 1963 eu estava na cadeia. Por vezes, a meio da noite, um
grito abalava as traves da minha cabeça, direi mesmo da minha vida,
e eu acordava suado, dolorido, como se um rato (talvez o medo?) me
roesse o estômago. E era inútil chamar. Onde ficara essa voz que
dantes vinha repor o sono no seu lugar, repondo a paz dentro de mim?
E as manhãs penduradas no mês de Maio, onde acordar era uma festa?
Onde ficara a ternura? Onde ficara a minha vida?
Em Maio de 1963 eu estava na cadeia. Dormia – como direi? – acordado
sobre cada minuto. Tinha aprendido o irremediável. Alguma coisa,
dentro de mim, se despedaçara para sempre (para sempre? Que quer
dizer para sempre?). Era inútil chamar. Tinha aprendido,
fisicamente, a solidão. Embora na cela do lado, alguém, batendo com
os dedos na parede, me dissesse, como se fosse a voz longínqua do
meu povo:
- Coragem!
Eu estava, pela primeira vez, fisicamente só, dentro do meu sono
povoado por esse grito que estalava por vezes as traves da minha
cabeça (onde essa voz que mandava embora os fantasmas?).
E era terrível essa manhã sem manhã, essa realidade branca e gelada,
toda feita de paredes, grades, perguntas, gritos. Mesmo que na cela
do lado, alguém, batendo com os dedos na parede, me dissesse:
- Bom dia!
era terrível acordar nessa estreita paisagem com sete passos de
comprimento por sete de largura, tão hostil, tão dolorosa como as
regiões dos pesadelos. Porque acordar era ter a certeza de que a
realidade não desmentiria o pesadelo.
Mesmo que os meus dedos batendo na parede transmitissem notícias dum
homem que podia responder:
- Bom dia!
de cabeça erguida era terrível acordar no mês de Maio, com a certeza
de que no dia 12 a minha mãe não entraria pelo meu quarto,
deixando-me na fronte um beijo, e rosas vermelhas sobre os meus
vinte e sete anos.
Talvez seja preciso renunciar à felicidade para conquistar a
felicidade. Eu estava na cadeia em Maio de 1963. Tinha aprendido a
solidão. Tinha aprendido que se pode gritar com todas as nossas
forças quando se acorda a meio da noite com um grito na cabeça e um
rato (talvez o medo?), roendo-nos o estômago, que ninguém, ninguém
virá repor a paz dentro de nós. E, então, é a altura de saber se as
traves mestras dum homem resistirão. Pois só a tua voz, amigo,
responderá ao teu apelo torturado na noite. E, nessa hora (a mais
solitária das horas), se conseguires cerrar os dentes, dar um murro
na parede, acender um cigarro, se conseguires vencer esse encontro
com a solidão no mais fundo de ti próprio, com que alegria, com que
estranha alegria, na manhã seguinte, tu responderás:
- Bom dia!,
mesmo que seja terrível acordar no mês de Maio, nessa estreita
paisagem, gelada e branca, com sete passos de comprimento por sete
de largura.
É certo que se podem escolher outros caminhos. Mas poderia eu ter
escolhido outro caminho? Acaso poderia dormir descansado, onde quer
que estivesse, sabendo que algures, na noite, há homens que batem,
há homens que gritam?
Os fantasmas tinham entrado no meu sono, invadiram a minha casa no
cimo da ternura; os fantasmas eram donos do País. E se eles viessem
de repente, a meio da noite, e eu chamasse:
- Mãe!
A voz (tão calma) de minha mãe já nada poderia contra eles. Era um
trabalho para mim, uma tarefa para todos aqueles que não podem
suportar a sujeição. Eu nunca pude suportar a sujeição. Acaso
poderia ter escolhido outro caminho?
Por isso, em Maio de 1963, eu estava na cadeia, isto é, de certo
modo, eu estava no meu posto. No dia 12 não acordei com o beijo de
minha mãe.
Porém, nessa manhã (não posso dizer ao certo porque não tinha
relógio, mas talvez – quem sabe? – às dez e um quarto, que foi a
hora em que eu nasci), o carcereiro abriu a porta e entregou-me, já
aberta, uma carta de minha mãe. E ao desdobrar as folhas que vinham
dentro do sobrescrito violado, a pétala vermelha, duma rosa
vermelha, caiu, como uma lágrima de sangue, no chão da minha cela.
Manuel Alegre, Rosas
Vermelhas (in Praça da
Canção)
(3)
Como lobos de súbito
irrompem na planície citadina
carregados de morte
Seu nome é violência
Trazem nas mãos mortíferos sinais
e de órbitas vazias
caminham em silêncio
envoltos na terrível solidão
do crime encomendado
Marginam as esquinas
escondem o rosto sob aço liso
dos negros capacetes
e anónimos ocultos
pela espessa cortina de ódio e névoa
como robots avançam
A morte engatilhada
espera o momento de partir Agora
Cumpra-se o ritual
Uma voz grita Viva
a liberdade O coro lhe responde
pontuados de tiros
Canalhas Temos fome
Arranquemos as pedras da calçada
Ó meu amor resiste
Resiste os olhos secos
Sem lágrimas Sem medo Só talhada
no sílex da ira
Pronta a dar corpo ao sonho
e entanto testemunha do martírio
companheira e amante
De mãos dadas cantando
abrimos flores às balas assassinas
merecemos a vida
Daniel Filipe, Como
lobos de súbito ( In Pátria
Lugar de Exílio)
(4)
Não sei, meus filhos, que mundo será o
vosso.
É possível, porque tudo é possível, que ele seja
aquele que eu desejo para vós. Um simples mundo,
onde tudo tenha apenas a dificuldade que advém
de nada haver que não seja simples e natural.
Um mundo em que tudo seja permitido,
conforme o vosso gosto, o vosso anseio, o vosso prazer,
o vosso respeito pelos outros, o respeito dos outros por vós.
E é possível que não seja isto, nem seja sequer isto
o que vos interesse para viver. Tudo é possível,
ainda quando lutemos, como devemos lutar,
por quanto nos pareça a liberdade e a justiça,
ou mais que qualquer delas uma fiel
dedicação à honra de estar vivo.
Um dia sabereis que mais que a humanidade
não tem conta o número dos que pensaram assim,
amaram o seu semelhante no que ele tinha de único,
de insólito, de livre, de diferente,
e foram sacrificados, torturados, espancados,
e entregues hipocritamente â secular justiça,
para que os liquidasse «com suma piedade e sem efusão de sangue.»
Por serem fiéis a um deus, a um pensamento,
a uma pátria, uma esperança, ou muito apenas
à fome irrespondível que lhes roía as entranhas,
foram estripados, esfolados, queimados, gaseados,
e os seus corpos amontoados tão anonimamente quanto haviam vivido,
ou suas cinzas dispersas para que delas não restasse memória.
Às vezes, por serem de uma raça, outras
por serem de urna classe, expiaram todos
os erros que não tinham cometido ou não tinham consciência
de haver cometido. Mas também aconteceu
e acontece que não foram mortos.
Houve sempre infinitas maneiras de prevalecer,
aniquilando mansamente, delicadamente,
por ínvios caminhos quais se diz que são ínvios os de Deus.
Estes fuzilamentos, este heroísmo, este horror,
foi uma coisa, entre mil, acontecida em Espanha
há mais de um século e que por violenta e injusta
ofendeu o coração de um pintor chamado Goya,
que tinha um coração muito grande, cheio de fúria
e de amor. Mas isto nada é, meus filhos.
Apenas um episódio, um episódio breve,
nesta cadeia de que sois um elo (ou não sereis)
de ferro e de suor e sangue e algum sémen
a caminho do mundo que vos sonho.
Acreditai que nenhum mundo, que nada nem ninguém
vale mais que uma vida ou a alegria de té-1a.
É isto o que mais importa – essa alegria.
Acreditai que a dignidade em que hão-de falar-vos tanto
não é senão essa alegria que vem
de estar-se vivo e sabendo que nenhuma vez alguém
está menos vivo ou sofre ou morre
para que um só de vós resista um pouco mais
à morte que é de todos e virá.
Que tudo isto sabereis serenamente,
sem culpas a ninguém, sem terror, sem ambição,
e sobretudo sem desapego ou indiferença,
ardentemente espero. Tanto sangue,
tanta dor, tanta angústia, um dia
- mesmo que o tédio de um mundo feliz vos persiga -
não hão-de ser em vão. Confesso que
multas vezes, pensando no horror de tantos séculos
de opressão e crueldade, hesito por momentos
e uma amargura me submerge inconsolável.
Serão ou não em vão? Mas, mesmo que o não sejam,
quem ressuscita esses milhões, quem restitui
não só a vida, mas tudo o que lhes foi tirado?
Nenhum Juízo Final, meus filhos, pode dar-lhes
aquele instante que não viveram, aquele objecto
que não fruíram, aquele gesto
de amor, que fariam «amanhã».
E. por isso, o mesmo mundo que criemos
nos cumpre tê-lo com cuidado, como coisa
que não é nossa, que nos é cedida
para a guardarmos respeitosamente
em memória do sangue que nos corre nas veias,
da nossa carne que foi outra, do amor que
outros não amaram porque lho roubaram.
Jorge de Sena, Carta
a meus filhos sobre os fuzilamentos de Goya
Antiga
sede da PIDE/DGS vai ser museu da Resistência ao Colonialismo em Maputo
Lusa,
15 de Janeiro de 2013.
A "Vila Algarve", antiga prisão da PIDE/DGS em Lourenço Marques, hoje
Maputo, capital de Moçambique, vai ser transformada em Museu da
Resistência ao Colonialismo Português, anunciou o Ministério dos
Combatentes moçambicano.
O ministério abriu um concurso público para um projeto de restauro do
edifício, situado na zona central da capital moçambicana, que se
encontra abandonado há várias décadas, prevendo transformá-lo em museu.
Por aquela cadeia passaram inúmeros nacionalistas, na maioria membros da
Frente de Libertação de Moçambique (Frelimo) que, entre 1962 e 1974,
desencadeou uma guerra de libertação contra o colonialismo português.
Entre os detidos mais famosos, contam-se o pintor Malangatana Valente e
o poeta José Craveirinha, ambos já falecidos.
***
J.
V. R.
http://umgajoperdido.e-adn.org/2012/09/vila-algarve-mocambique.html
O meu pai escreveu este texto há já muitos anos atrás. Partilho-o aqui, na
íntegra, palavra por palavra, sem medos de gente que já morreu e das
verdades que tanta gente — como ele — guardou só para si.
—
Também nós portugueses, possuímos na nossa História de tortura e medo, uma
Vila... no Chile de Pinochet era a Vila Grimaldi e no Portugal Colonialista
de Salazar e Caetano era a Vila Algarve em Lourenço Marques, Moçambique.
E é necessário não esquecer.
A responsabilidade para com os nossos contemporâneos e as gerações vindouras
força-nos a recorrer à memória, à materialização do passado. A memória
condiciona os nossos actos presentes constituindo aprendizagem e
experiência, assegurando assim a continuidade de um povo enquanto comunidade
social e política.
Em Portugal, tal como no Chile, tem sido feito, muito lenta e subtilmente o
branqueamento ou o olvido de momentos importantes da nossa história. E no
entanto os povos necessitam recordar e conhecer os erros cometidos para que
não se repitam.
Talvez outros "altos valores" se levantem para que se justifique o olvido,
talvez as ideologias tenham morrido —, e a moral também.
Mas a PIDE existiu e torturou e seviciou e matou.
No dia 18 de Dezembro de 1961, tinha então 19 anos, fui preso pela PIDE e
conheci então a Vila Algarve. No rés-do-chão muitas secretárias e agentes
escrevendo à máquina e, num canto escondido, um pequeno compartimento com 11
ladrilhos de um lado e 18 de outro, e uma janela pequena que dava para um
jardim, para as vivendas vizinhas na Av. Fernandes Tomaz. E não creio que os
vizinhos da Vivenda Algarve não ouvissem os gritos de dor contida (porque
cada grito era uma vitória da PIDE).
Aí comecei a conhecer a tortura da estátua sem dormir. Conheci a pancadaria,
as toalhas encharcadas e enroladas, chicoteando-me. Os insultos à família,
aos amigos, e a mim próprio, dos quais o menor não foi o de traidor à
Pátria, anti-português, etc. Os calcanhares rebentaram pelo inchaço dos pés
devido à acumulação de sangue por estar de pé. Mas também me deixavam sentar
para comer. E também para me mimosearem com gotas de água quente e fria
alternadamente na cabeça. Porque durante esses dias chegou ao conhecimento
dos PIDES a confirmação da queda da GOA, a Índia Portuguesa, imaginem, o seu
furor redobrou de intensidade.
Talvez porque quisessem passar um Natal em paz com as suas consciências,
interromperam este período de interrogatório em 24 de Dezembro, véspera de
Natal. Enviaram-me para uma cadeia da qual não recordo o nome (sei apenas
que ficava próxima do Bairro Sommerchild).
Recordo: a Maria João Seixas que recentemente algures numa entrevista disse
que não era uma mulher de coragem foi a primeira pessoa que me procurou na
cadeia e enfrentou os guardas prisionais para que me entregassem 1 bolo (era
dia de Natal) e algumas revistas. Mais tarde, observei no exterior da cadeia
quem me procurava: o Fernando Carneiro (ex-jornalista de "A Capital", creio
que agora funcionário do ICEP) e o Jorge Pais (já falecido); e o Sebastião
"Cozinheiro", o Afonso Muxira, o Salomão Manjate e tantos outros, até que o
privilégio de ter uma cela com vista para a rua me foi cortado por vias de
novo interrogatório ou "visita" à Vila Algarve.
No dia 1 de Janeiro de 1962 recomeçaram as sevícias. Foram mais oito dias de
tortura. Sem dormir. Com alucinações. Paredes que opavam. Que surgiam
longínquas. Plenas de insectos. E pancada. Insultos. Traidor à Pátria.
Simulacros de morte com uma pistola cujo percutir batia em seco. Pés
inchados. Testículos quadruplicados de volume devido aos pontapés que me
davam por detrás quando me encontravam no chão, enroscado sobre mim mesmo,
na posição fetal. Durou oito dias este tormento.
Ainda em Janeiro, mas no fim do mês — não recordo a data — voltei a visitar
a Vila Algarve. E tudo se repetiu. Mais oito dias. Cair no chão por sono,
era punido com mais pancada. Encostar-me à parede, por cansaço, sono ou
inconsciência, era punido com mais pancada. Cenas que se repetiam. O corpo
já não me doía. Deixei de ouvir do ouvido esquerdo. Finalmente desistiram.
E que pretendia a PIDE obter com os seus interrogatórios?
Quem tinha sovado um informador (negro) deles no dia 16 de Dezembro. Fui eu,
o Fevereiro e o Rui Nogar.
Quem me tinha escrito um discurso que pronunciei na Associação Africana em
Novembro de 1961 em que advoguei a independência de Moçambique? Insistiam
que tinha sido o José Craveirinha quando na realidade ninguém o escreveu...
foi espontâneo.
Quem tinha escrito e divulgado vários panfletos na zona do porto de L.M. e
na cidade de Carriço? Fui eu, Nogar, Jorge Pais, Fernando Cordeiro,
Craveirinha.
Quem tinha "pinchado" o exterior e o interior do Liceu Salazar com palavras
de ordem sobre a independência? Quem pertencia ao MODEMO (Movimento
Democrático de Moçambique)? Qual a influência do Partido Comunista Português
no Modemo? Que relações tinha eu com o MODEMO, o PCP e o COREMO (Comité
Revolucionário de Moçambique)? Ainda não sei como me relacionaram com o
COREMO pois éramos apenas 10 pessoas. Tínhamos assaltado (não matámos;
apenas uma surra) duas patrulhas da PSP e roubado duas pistolas. E espalhado
(poucos) panfletos em língua ronga na cidade de Carriço, que passei no
copiógrafo do Cine-Clube de Lourenço Marques, do qual era sócio e
colaborador com chave, o que me permitia acesso à noite.
Queriam saber as actividades políticas ou influências do MODEMO no Núcleo de
Arte (de que era sócio) e no Cine Clube. Queriam saber quem me abrira as
portas do jornal "A Voz de Moçambique" para que eu pudesse lá escrever.
Queriam saber quem coordenava numa página no jornal "Notícias" escrita pela
juventude denominada "O Despertar", sub-titulada "O Despertar da Juventude
de Moçambique". Queriam saber, enfim, quais os meus contactos com o PCP e a
Juventude Comunista quando ainda estava em Portugal.
Historiando um pouco, direi que o COREMO foi fundado por mim, pelo
Cozinheiro Sebastião, por dois ex meus serventes, o Muvira e o Manjabe, ao
qual se juntou depois um outro negro que trabalhava na Rádio Naval, natural
de Manjacaze e que adoptou como pseudónimo. Tudo começou quando o meu patrão
chamou preto ao cozinheiro Sebastião e ele respondeu: "Não me chame isso
porque preto é carvão e carvão é uma coisa; eu não sou uma coisa, sou
negro". Depois disso conversámos mais e avançámos. Depois da minha expulsão
pouco mais sei. Que cresceu. Que se refugiou na então chamada Rodésia, hoje
Zimbabwé. Não sei se conservou o núcleo original. Sei que mais tarde
integrou a FRELIMO assim como outros movimentos; a FRELIMO era um
aglutinador de vários partidos daí se chamar Frente de Libertação de
Moçambique. Devido, porém, à demasiada sujeição da FRELIMO aos interesses
soviéticos, a COREMO abandonou a frente; foi considerada traidora pela
Frente mas a COREMO abriu uma nova zona de combate às tropas portuguesas na
região de Tete enquanto a FRELIMO estava restrita ao Norte, província de
Cabo Delgado. Quando estava na Bélgica em 1967, soube da morada deles,
escrevi colocando-me ao dispor deles para o que fosse necessário, inclusive
combater ou mesmo ser instrutor militar. Responderam-me com muita
consideração mas objectavam que outros que não a direcção veriam mal um
branco a combater ao lado deles, e que instrutores tinham chineses que eram
suficientes. Mas que lhes podia ser útil na Europa para prestar apoio
diplomático (de que estavam muito carenciados porque era enorme o peso da
FRELIMO) e logístico (para auxiliar qualquer dirigente ou estudante de
passagem pela Europa). Respondi imediatamente (duas vezes até) pedindo
credenciais e notícias sobre o núcleo inicial e fiquei sem resposta. Hoje,
ao que me consta, o COREMO não, ou pelo menos não concorreu às eleições que
houve entretanto em Moçambique.
Finalmente recebi a visita de meus familiares. Não podia explicar-lhes a
razão das crostas de feridas que tinha no rosto. Minha mãe, que em Novembro
me tinha negado autorização para fumar, levou-me cigarros. Enquanto tive
sinais de violência no corpo permaneci numa cela sozinho. Era grande a cela
(4x4). Sabia que o Vergílio de Lemos estava também solitário na cela mas
esta mais pequena (creio que 2x4). O Drº Agostinho Ilunga, que a polícia
sul-africana prendeu em Durban a mando da PIDE, estava também solitário.
Depois (Fevereiro/Março de 1962), chegou uma grande vaga de prisioneiros
naturais da região de Mocímboa da Praia, Palma, Montepuez, Ibo. Para
resumir: de toda a região da etnia "muârm". Foram presos porque se juntaram
na praia, a "coberto" de uma cerimónia religiosa maometana para festejarem a
independência do então chamado Tanganica (creio que a 7 ou 9 de Dezembro de
1961). E, na prisão, se dormíamos quatro em cada cela de 4x4 metros,
passámos a dormir 16, sem camas, no chão, sobre esteiras.
Com 16 pessoas na mesma cela era raro o dia em que um de nós não fizesse uma
viagem até à Vila Algarve. O horror era o regresso quando víamos o estado
físico e mental em que eles regressavam.
Ainda voltei mais vezes à Vila Algarve. Primeiro, para me obrigarem a
assinar três depoimentos que eu teria feito durante os interrogatórios:
ligavam-me ao José Craveirinha que me teria dado o discurso que
espontaneamente pronunciara na Associação Africana; ligavam-me ao P.C.P.
porque receberia ordens de Wagner Russel, ex-membro do Comité Central do
P.C. então residente em Lourenço Marques, para imprimir certas directivas
nas associações a que estava ligado ("Cine-Clube" e "Núcleo de Arte") e na
página literária publicada no "Notícias", o "Despertar"; ligavam-me também
ao Drº Almeida Santos (Oposição Democrática) por vias de uma entrevista que
lhe fiz a propósito das eleições de Novembro de 1961 e da abolição do
Estatuto do Indigenato que terá sido ou não publicada no jornal "República".
Recusei assinar qualquer um dos depoimentos. E houveram mais socos e
pontapés. Mantive-me firme. Visitei outra vez a Vila Algarve para me
encontrar com o meu advogado Drº Carlos Adrião Rodrigues. Era uma sala plena
de sofás. Acolhedora. Repousante. Mas pouco ou nada falei com ele com receio
de que estivessem à escuta. Ele é que pagou as despesas da conversação. Em
resumo, disse-me que devido ao facto de estar preso há mais de 180 dias iria
fazer um "habeas corpus"; que era a única coisa possível.
Dias depois, nova visita à Vila Algarve. Agora ao 1º andar. Que luxo.
Tapetes. Porcelanas. Que luxo. Fui informado com toda a delicadeza que o Srº
Sub-Director queria falar comigo. Mandaram-me enterrar num sofá. Esperei um
pouco. Entrei num gabinete amplo, atapetado e muitas janelas. Aperto de mão
que me foi difícil recusar e difícil aceitar — estava estupefacto.
E então, com palavras melodiosas, cativantes, surgiu o convite para que eu
aceitasse integrar o quadro de informadores da PIDE.
Que me pagariam bem. O dobro do meu salário.
Que me arranjariam uma história plausível para apresentar aos meus amigos.
Que mais ninguém, na PIDE, teria conhecimento que eu era informador.
Que me arranjaria um pseudónimo.
Que só assinaria os recibos do meu trabalho com o meu pseudónimo.
Que só me encontraria com ele.
Que...
Que...
Enfim, todas as garantias de que poderia trair os meus amigos, e trair-me a
mim próprio com a maior segurança.
Quando o primeiro enunciado da conversa foi feito, respondi logo que não...
"mas espere, deixe-me acabar".
— "Porque se não aceitar esta proposta irá ser expulso de Moçambique e será
entregue em Lisboa ao Tribunal de Aplicação de Penas onde é condenado pelo
menos a 3 anos."
— "Abandonará a sua família. Não gosta da sua família? Sei que gosta
bastante da sua irmã."
Enfim. Como os factores pecuniários e da segurança não funcionaram, o Srº
Sub-Director dedicou-se à mais reles e baixa chantagem emocional e afectiva.
Mantive a recusa e o "homenzinho" verdadeiramente agastado reenviou-me para
a prisão para eu pensar e que só me dava 8 dias. Na prisão fiquei 1 semana
na solitária: "talvez para pensar melhor", sem a presença dos outros presos.
Inevitável. Mais uma visita à Vila Algarve. Na mesma sala atapetada do andar
superior mas não tive direito ao aperto de mão nem convite para me sentar.
— "A minha posição continua a mesma. A resposta é não."
Talvez não tenha sequer pronunciado a palavra não. As bofetadas
impediram-me. Socos. Pontapés. Os tapetes amorteceram-me a queda. O Srº
Sub-Director não delegava noutros a tarefa de me bater. O Srº Sub-Director
que na primeira conversa se mostrara tão humanitário e tão preocupado com a
situação em que ficaria a minha família, deixou cair a máscara com uma
simples palavra: "NÃO".
Depois de mais uma sessão de pancadaria desta vez infligida pelo Srº
Sub-Director, regressei à prisão e nunca mais voltei à Vila Algarve.
Umas semanas depois fui expulso de Moçambique com a assinatura do Comandante
Sarmento Rodrigues. Ainda tentei fugir no aeroporto. Impossível. Estava
algemado e corri meia dúzia de passos. Os PIDES que me transportaram ao
avião da Força Aérea Portuguesa queriam que eu fosse algemado no avião.
Impô-se, porém, veementemente o Oficial que comandava o avião. Fui
excepcionalmente bem tratado pela tripulação do avião mas, durante a escala
em Luanda, a PIDE esperava-me e lá fiquei nas suas instalações um pouco mais
de 24 horas incomunicável. Embarquei em Luanda e o avião fez nova escala
técnica na Ilha do Sal. Também ali a PIDE me esperava e queria prender-me
enquanto o avião lá estivesse (2 horas pelo menos). O Comandante da Força
Aérea mais uma vez intercedeu por mim respondendo, obstinado, aos PIDE de
que eu não teria hipóteses de fugir de uma ilha.
Chegando a Lisboa, na António Maria Cardoso, limitaram-se a assinar um auto
em que me fixava a residência ao Concelho de Almada. Afinal, a entrega ao
Tribunal de Aplicação de Penas e posterior condenação de 3 anos de prisão
revelou-se um "bluff" do Srº Sub-Director da Vila Algarve.
Desde 1962 portanto que não visitei a Vila Algarve. Milhares de outros o
fizeram. Milhares de outros ali foram torturados.
Milhares de outros ali perderam a sua condição humana. E foi em nome do Povo
Português que o fizeram. E foi em nome do Povo Português que se torturou
José Craveirinha que escolheu precisamente o Português para literariamente
se exprimir.
A Vila Algarve é uma vivenda que certamente muitos moçambicanos não
esquecerão.
Mas bom seria que a Vila Algarve e o que lá dentro se passou chegue ao
conhecimento dos portugueses e não caia no esquecimento.
PODERÁ TAMBÉM SER DO SEU INTERESSE LER:
“A PIDE existiu. E
torturou.” in Folha de Poesia, José Carreiro.
Portugal, 29-04-2018. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2018/04/a-pide-existiu-e-torturou.html