CHICO BUARQUE É O GRANDE VENCEDOR DO PRÊMIO CAMÕES 2019
O músico, dramaturgo, escritor e autor
brasileiro Chico Buarque de Hollanda é o grande vencedor da 31ª edição do
Prêmio Camões. O anúncio foi feito nesta terça-feira, 21 de maio, às 16h, no
prédio sede da Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro, pelos membros do júri
composto por seis integrantes após reunião que durou pouco mais de uma hora.
A ata redigida pelos
integrantes do júri expressa os motivos que levaram à escolha do autor: “O Júri
decidiu, por unanimidade, atribuir o Prémio Camões a CHICO BUARQUE DE HOLLANDA
pela qualidade e transversalidade da sua obra, tanto através de gêneros e formas,
quanto pela sua contribuição para a formação cultural de diferentes gerações em
todos os países onde se fala a língua portuguesa. O Júri reconheceu o valor e o
alcance de uma obra multifacetada, repartida entre poesia, drama e romance. O
seu trabalho atravessou fronteiras e mantém-se como uma referência fundamental
da cultura do mundo contemporâneo”.
Nesta edição 2019,
o júri foi formado pelos brasileiros Antonio Carlos Hohlfeldt e Antonio Cicero
Correia Lima; pelo moçambicano Nataniel Ngomane; pelos portugueses Clara
Rowland e Manuel Frias Martins; e pela angolana Ana Paula Tavares.
O Prêmio Camões
foi criado em 1988 por um protocolo Adicional ao Acordo Cultural entre a
República Portuguesa e a República Federativa do Brasil com o objetivo de
eleger anualmente um autor de língua portuguesa que tenha contribuído para o
enriquecimento do patrimônio literário e cultural da língua comum. O prêmio
busca estreitar os laços culturais entre os vários países lusófonos. Os
governos dos dois países conferem ao |Prêmio distinção máxima a um escritor de
literatura lusófona, acontecimento de grande relevância política e cultural
para as duas partes.
Comentários dos jurados
O jurado
brasileiro Antonio Hohlfeldt – doutor em letras, com pós-doutorado em
Jornalismo pela Universidade do Porto – esclareceu que o nome de Chico
Buarque de Hollanda foi consensual para os integrantes do júri que se reuniu
na tarde desta terça-feira. Segundo ele, a indicação surgiu naturalmente e
obteve respaldo de todos. “A diversidade da obra de Chico Buarque em temos de
música, romance e dramaturgia é inigualável. Também pesaram na escolha do nome
fatores como a difusão e circulação do nome do autor nos países de língua
portuguesa”. Antonio Hohlfeldt termina indagando: “Quem não escutou Chico Buarque?”
Para o acadêmico, o Prêmio Camões é o principal reconhecimento que um autor de
língua portuguesa pode alcançar na carreira. “Consulte uma relação dos
escritores já reconhecidos com o Prêmio para entender sua dimensão. Cada um
desses autores tem uma importância específica, cada um enriquece a língua
portuguesa à sua maneira. Isso se confirma mais uma vez agora com a indicação
do Chico Buarque”.
O jurado
moçambicano Nataniel Ngomane, doutor em Letras pela Universidade de São Paulo
(USP) afirma que “o Prêmio é importante para a valorização da língua e suas
diversas culturas, contemplando autores de diversos países de língua
portuguesa. Nomes como Raduan Nassar, Mia Couto e João Cabral de Mello Neto
atestam a elevada qualidade desse reconhecimento”.
A portuguesa Clara
Rowland, professora associada no Departamento de Estudos Portugueses da
Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa declara
que “a transversalidade de Chico Buarque expande as próprias fronteiras
estritamente literárias do Prêmio Camões”.
Para o autor e
compositor brasileiro Antonio Cicero – desde 2017, membro da Academia
Brasileira de Letras –, “a obra do Chico Buarque de Hollanda é conhecida no
Brasil e em Portugal, uma obra de alto nível. Sem dúvida, é um nome que
atravessa fronteiras, e a ata da reunião transmite isso”.
Biblioteca Nacional, 2019-05-21
CHICO BUARQUE ENSINOU O QUÊ?
Quando
recebi no telemóvel o alerta "Chico Buarque ganha o Prémio Camões"
senti-me no direito de comemorar uma vitória: "ganhei eu, caramba, ganhei
eu!".
Fui
ler a notícia. Os seis membros do júri explicavam a razão desta atribuição do
galardão literário pela "contribuição para a formação cultural de
diferentes gerações em todos os países onde se fala a língua portuguesa".
E
o que é que este português, de 55 anos, que escreve estas linhas, aprendeu com
Chico Buarque?
Aos
cinco anos de idade o meu corpo saltitava sempre que no rádio grande do meu pai
soava "A Banda", a música que, quando passava, diz o verso final do
refrão, ia "cantando coisas de amor". Chico Buarque impulsionou-me a
dança.
Aos
10 anos de idade percebi como um indivíduo sozinho nada pode contra o cerco
violento da indiferença. Bastou-me ouvir a história circular do operário de
"Construção", que "morreu na contramão atrapalhando o
sábado". Chico Buarque ensinou-me a identificar a injustiça social.
Aos
11 anos de idade percebi a inutilidade da divindade quando o coro masculino
MPB4 repetia, em Partido Alto, "Diz que Deus dará/ Não vou duvidar, ô
nega/E se Deus não dá?/Como é que vai ficar, ô nega?". Chico Buarque
deu-me razões para ser ateu.
Aos
12 anos de idade intui, com os versos de Fado Tropical, como a brutalidade da
colonização sangrou a pele dos povos e como as cicatrizes prevalecentes demoram
séculos a fechar: "E o rio Amazonas/Que corre Trás-os-montes/E numa
pororoca/Desagua no Tejo/Ai, esta terra ainda vai cumprir seu ideal/Ainda vai
tornar-se um Império Colonial". Chico Buarque ofereceu-me uma identidade,
um medo e uma esperança na Lusofonia.
Aos
13 anos de idade percebi, pela letra do pseudónimo Julinho da Adelaide (um
autor inventado, usado para ludibriar a censura da ditadura brasileira, que até
falsas entrevistas deu aos jornais...), que confiar na polícia pode ser
perigoso, como constata Acorda Amor: "Tem gente já no vão de
escada/Fazendo confusão, que aflição/São os homens/E eu aqui parado de
pijama/Eu não gosto de passar vexame/Chame, chame, chame, chame o ladrão, chame
o ladrão". Com Chico Buarque descobri que, às vezes, está tudo certo se se
ficar do lado errado.
Aos
14 anos de idade conspirei o sentido da canção O Que Será (À Flor da Pele):
"Será, que será?/O que não tem decência nem nunca terá/O que não tem
censura nem nunca terá/O que não faz sentido..." Chico Buarque revelou-me
o secreto significado da palavra "liberdade".
Aos
15 anos de idade compreendi, ao ouvir Mulheres de Atenas, que a minha mãe, a
minha irmã e a minha namorada viviam num mundo pior do que o meu:
"Mirem-se no exemplo daquelas mulheres de Atenas/Geram pro seus maridos os
novos filhos de Atenas/Elas não têm gosto ou vontade/Nem defeito nem
qualidade/Têm medo apenas". Chico Buarque justificou-me o feminismo.
Aos
16 anos de idade espantei-me com o atrevimento de O Meu Amor. "Eu sou sua
menina, viu?/E ele é o meu rapaz/Meu corpo é testemunha/Do bem que ele me
faz". Chico Buarque fez-me entender como o sexo pode, ou não, fazer um par
com a palavra afeto.
Aos
17 anos comovi-me com Geni, a prostituta que salva a cidade mas que a cidade
despreza: "Joga pedra na Geni!/Joga bosta na Geni!/Ela é feita pra
apanhar!/Ela é boa de cuspir!/Ela dá pra qualquer um/Maldita Geni!". Chico
Buarque confrontou-me com a dignidade dos indignos.
Aos
18 anos de idade a história de O Malandro exemplificou-me como é sempre o
mexilhão que se lixa: um tipo que foge de um tasco sem pagar a cachaça que
bebeu provoca uma crise mundial. Mas, no final das crises, há sempre um bode
expiatório: "O garçom vê/Um malandro/Sai gritando/Pega ladrão/E o
malandro/Autuado/É julgado e condenado culpado/Pela situação". Chico
Buarque antecipou-me a globalização e fez de mim um comunista.
Aqueles
anos foram os tempos do meu caminho até à chegada à idade adulta, uma época
anterior aos romances que Chico Buarque escreveu e que completam, com a
verdadeira poesia de muitas das suas canções, um currículo mais do que
suficiente para a atribuição do mais importante prémio literário em Língua
Portuguesa.
Aqueles
anos foram os tempos que moldaram o meu carácter.
Aqueles
foram os tempos que moldaram o carácter de tantos outros e de tantas outras
que, como eu, cresceram a ouvir estas canções mas que entenderam nelas tantas
coisas que eu não entendi, que compreenderam nelas tantas coisas que eu não
percebi, que tiraram conclusões destes textos muito diferentes das que eu
tirei.
Mas,
tenho a certeza, apesar de pensarem e sentirem de maneiras tão diferentes da
minha, ontem, milhões de vós, ao saberem da notícia do Prémio Camões atribuído
a Chico Buarque, tiveram o mesmo impulso que eu e comemoram: "ganhei eu,
caramba, ganhei eu!".
Pedro Tadeu, Diário de Notícias, 2019-05-22
“Chico Buarque” in Folha de Poesia, José Carreiro. Portugal, 25-05-2019. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2019/05/chico-buarque.html