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quarta-feira, 8 de dezembro de 2021

Cegarrega para crianças, Mário-Henrique Leiria


 

CEGARREGA PARA CRIANÇAS

 

A Velha dormindo

o rato roendo

a Velha zumbindo

o rato correndo

a Velha rosnando

o rato rapando

a Velha acordando

o rato calando

a Velha em sentido

o rato escondido

a Velha marchando

o rato mirando

a Velha dizendo

o rato escutando

a Velha ordenando

o rato fazendo

a Velha correndo

o rato fugindo

a Velha caindo

o rato parando

a Velha olhando

o rato esperando

a Velha tremendo

o rato avançando

a Velha gritando

o rato comendo

 

Mário Henrique Leiria, Contos do Gin Tonic,

Lisboa, Edições Estampa, 6.ª ed., 2007, p. 129.

 


 

Considere-se preambularmente o jogo de linguagem que se estabelece entre o termo cegarrega, que remete para uma «melodia […] aborrecida por ser repetida muitas vezes no mesmo tom»24 e a presença efetiva de um texto caracterizado pela repetição e alternância dos sons [ando] e [endo], que pode exprimir um quotidiano marcado por uma continuidade monótona de ações. A predominância dos sons [v] e [r] conduz a sucessivas aliterações e a incidência neste tipo de consoantes evoca a onomatopeia correspondente ao som das cigarras, estando de acordo com outro dos significados de cegarrega que pode ser o «instrumento que faz um ruído parecido ao fretenir da cigarra».25 As cegarregas, tal como as lengalengas e as canções de infância constituem meios de aquisição de conhecimentos da linguagem essenciais para as crianças que, desta forma, vão aprendendo os sons, associando-os às imagens, facilitando assim a compreensão do conteúdo e o uso de cada palavra.

No presente texto, assiste-se a uma recriação do jogo infantil do Gato e do Rato, em que a Velha assume a função de Gato, perpetuando o movimento de perseguição do elemento mais fraco, representando-se, em jeito de fábula, um exemplo de um jogo de forças existente em determinada sociedade. A Velha afigura-se enquanto personagem dominadora, quer pelo uso de expressões verbais que evocam uma certa condição autoritária associada, neste contexto, a um ambiente militar, nomeadamente «em sentido / marchando / dizendo / ordenando», quer pelo uso de maiúscula no seu nome, conferindo-se-lhe, por este facto, uma identidade social, pois usamos as maiúsculas para designar nomes próprios; contrariamente à designação do rato que, por se encontrar grafada em minúsculas, associa-se a uma condição de anonimato. A subalternidade do rato exprime-se ainda pelo uso de expressões verbais que se opõem às da Velha, e que correspondem aos actos de obediência e de submissão: «calando / escondido / mirando / escutando / fazendo / fugindo». Atente-se na disposição sintática e à forma como a aposição verbal entre a Velha e o rato expressam dois movimentos distintos: a que ordena e o que obedece, a que fala e o que cala, a que persegue e o que foge, representando um contínuo jogo de poder.

No entanto, é o ato da fuga do rato o que desencadeia a peripécia, refletindo uma postura não conformista perante o poder dominante e impulsionando a criação de uma nova realidade, ato que Gilles Deleuze designa como «penetrar numa outra vida».26 Embora o jogo do gato e do rato se caracterize pelo constante movimento de fuga, transmite-se a ideia de que não se pode deixar de fugir, sob pena de se perder o jogo, existindo sempre uma possibilidade de inverter a situação ou de encontrar uma «nova linha de fuga».27 Deste modo, a circularidade permanente entre opressor e oprimido é interrompida, daí que este ato de evadir-se, que não consiste num ato de cobardia, mas antes num traçar de uma linha de fuga e o encontrar de uma saída alternativa, seja uma característica constante ao longo dos contos de Mário-Henrique.

Assiste-se, assim, a uma focalização de extravasação que consiste no ato de fuga e de superação da realidade através da literatura.

O prazer de poder ser um outro ou de se fazer passar por outro, a que Roger Caillois, tal como anteriormente referido, designou como Mimicry,28 concorre para esse extravasamento, provocando o êxtase e o gozo de liberdade que resultam, no campo da imaginação, da passagem para o exterior do real. A diferença relativamente ao jogo original assenta na criatividade com que nos é apresentada uma nova realidade, uma vez que as relações de força presentes no jogo alteram-se e são «inventados» novos sentidos e novas formas de uso para o mesmo jogo. Quer isto dizer que todos os encontros – neste caso entre a Velha e o rato ou entre palavras e atos – são possíveis no espaço da escrita e todo o possível se torna real, permitindo, consequentemente, alterar a «forma de vida».29 […]

Considere-se, em virtude das semelhanças textuais com a cegarrega em análise, nomeadamente a manutenção da estrutura de poder dominante sob a designação de Velha, um dos curtos poemas incluídos nos Contos, intitulado Rifão quotidiano,30 onde é ilustrado o destino de todos os que se deixam, de modo passivo, conduzir por desígnios superiores. […]



Retome-se a cegarrega para compreender que é a ação que conduz à alteração de comportamentos. Assim, a queda do elemento inicialmente em vantagem, a Velha, tem como consequência a inversão das relações de poder, constituindo o clímax deste texto o momento da confrontação entre as duas fações que se observam, que medem forças antes de agir, como se pode verificar nos verbos utilizados: «a Velha caindo / o rato parando / a Velha olhando / o rato esperando». O dinamismo verbal com que se sucedem as imagens da Velha e do rato assemelha-se a uma partida de damas, onde, em cada jogada, cada jogador avança alternadamente, tendo como objetivo final comer todas as peças do tabuleiro e conseguir assim ser o vencedor da partida.

Recorde-se que, no jogo de damas, quando uma peça atinge a oitava linha do tabuleiro, ou seja, o limite do reduto adversário, e passa a ser dama, adquire, a partir desse instante, a capacidade de se deslocar em todas as direções. É possível estabelecer uma analogia entre este processo de «promoção» existente no jogo de damas e esta cegarrega: uma distração ou mesmo uma falta de destreza, que podem ser responsáveis pela queda da Velha, permitem que ocorra uma reviravolta na situação. Deste modo, em vantagem em relação ao seu adversário e encontrando-se a Velha no seu campo de ação, o rato, de acordo com as regras do jogo de damas, é «obrigado» a comê-la (nas damas a obrigação é efetiva; neste caso, a obrigação é uma questão de sobrevivência, pois se não o fizer, corre o risco da relação de forças se alterar de novo e de vir a ser ele o comido).

A focalização de confrontação do escritor com a autoridade vigente é efetuada pelas analogias que se podem estabelecer entre as figuras do poema e as personagens da vida real. A Velha e o rato podem ser identificados, respetivamente, com o Chefe de Estado vigente, António de Oliveira Salazar, sendo este epíteto frequente em vários textos leirianos – além de surgir nos poemas já citados, aparece ainda em Caso Zoológico31, A Banana32 e A Velha e as coisas33 –, e com o cidadão anónimo, que não possui atrás de si uma máquina institucional de poder. A recriação paródica constrói-se a partir da queda da Velha, acto que ridiculariza a «queda da cadeira» de António de Oliveira Salazar, em 1968, e que, segundo consta, ocorreu por desequilíbrio, tendo-o impossibilitado de permanecer no poder. O cómico, no texto, surge por semelhança, como postula Henri Bergson:

 

[…] para além da coisa que é risível na sua essência e nela mesma, risível em virtude da sua estrutura interna, existe uma multitude de coisas que provocam o riso, sugerindo qualquer vaga semelhança com aquela outra, ou qualquer associação acidental de uma com outra que se assemelhe a essa, e assim de seguida; a evidência do cómico não tem fim, porque gostamos do riso e todos os pretextos servem;34

 

A decifração deste jogo-poema passa ainda pelo seu «aparente» destinatário: as crianças. O facto de esta cegarrega lhes ser dirigida pode indiciar a intencionalidade de recriação, porque o jogo, ao imitar a vida, constitui uma representação cénica da sociedade (a uma escala mais pequena), dando, desse modo, às crianças, a oportunidade de, no ato lúdico, na recreação, libertarem a sua capacidade de criar e de reinventar o mundo, não ficando condicionadas por regras instituídas por determinada tradição.

No entanto, em virtude do carácter político deste texto, as crianças a quem o mesmo se dirige são metaforicamente representativas de todos os adultos que conservam impulsos vitais fortes, necessários para a prossecução de mudanças.

A exaltação dos valores da infância na idade adulta está também presente no 1º manifesto surrealista de André Breton, onde, logo no primeiro parágrafo, surge uma crítica tecida à sociedade materialista que incita o homem a estar dependente de objetos, o que resulta numa existência vazia porque desprovida da capacidade de sonhar e de imaginar. Sustenta Breton que a única forma de reaver uma existência plena é através da experiência surrealista, pois «L’esprit qui plonge dans le surréalisme revit avec exaltation la meilleure part de son enfance».35 Por esta razão, pode entender-se que a imaginação criativa vai progressivamente abandonando o homem a partir do momento em que este abandona a condição de criança e se deixa absorver pelos princípios miméticos da vida adulta, inerentes à sociedade capitalista. Estes princípios, em consonância com o acima exposto, são instilados nas crianças pela educação de Estado, assentando na repetição do mesmo enquanto forma de veiculação do conhecimento, para que este seja continuamente reproduzido sem ser questionado. Uma cegarrega, uma fábula, uma história, um mito, são ininterruptamente contados da mesma forma, de geração em geração, constituindo essas narrativas a estrutura basilar para a formação da consciência e da individualidade humanas. Observe-se que o provérbio surrealista, recriado a partir de máximas e rifões populares, passou a ser uma eficaz «palavra de (des)ordem»,36 tendo como intenção primordial a desconstrução de sentidos gnómicos e o questionamento de «verdades» universais instituídas.

Seguindo a tradição surrealista, Mário-Henrique retoma, enquanto meio de subversão deste tipo de conhecimento repetitivo, a recriação de adágios populares. Apresenta-nos, por exemplo, dois textos que parodiam o provérbio «Cada terra com seu uso, cada roca com o seu fuso», transformando-o em «[…] Cada guerra com seu uso»37 seguido de «[…] Cada broca com seu fuso»,38 assim como se apropria da máxima O silêncio é d’ouro,39 intitulando ironicamente um conto onde é descrito um interrogatório policial que conduziu ao silenciamento – eufemismo para a morte – do interrogado, por este se ter recusado a falar.

Num dos seus textos teóricos inéditos intitulado O mito da família,40 Leiria considera que a família é a principal instituição limitadora de liberdade do indivíduo, logo desde a infância:

 

[…] essa organização, que podemos classificar de tenebrosa, a família, base da supressão do desejo e destruição – verdadeiramente secreta – como se o homem, de facto não existisse.

Da remota organização tribal e totémica, ainda hoje se mantêm os aspetos mais convenientes à sustentação duma organização que tem por fim único e exclusivo limitar o indivíduo a simples objeto coletivo sem vontade própria, que tem como objetivo o controle rigoroso do desejo e cuja finalidade é sempre o domínio e a tirania sobre os que dela direta ou indiretamente dependem.

 

De acordo com a nossa leitura desta perspetiva leiriana, há uma intencionalidade política por detrás da educação da criança, que se inicia logo no seio familiar, pretendendo direcionar-se a criança – indivíduo em processo de formação de valores dos quais dependerá na sua vida adulta – para a obediência cega. A criança passa assim a ser um simples corpo sem desejos próprios, um autómato, que não questiona e que se limita a executar ordens e a repetir funções. Isto é conseguido através do medo que é instigado à criança pela família por via da moralidade, tornando-a permissiva e cooperante com todo o tipo de atos de tirania dos seus superiores, sob pena de ser castigada e culpabilizada. É esta a denúncia do autor no excerto seguinte do mesmo ensaio:

 

Nessa organização tudo se passa num ritmo já previamente estabelecido, formado por séculos e séculos de experiência na prática do medo. Para o controle dos que dela dependem, é-lhe posta a serviço uma legislação de respeito obrigatório inexplicável, criando-se na criança, logo que ela começa a ter possibilidades de raciocínio, um receio constante de transgredir aquilo que lhe afirmam – com que bases? – ser o «bom» e de nunca praticar o que lhe dizem ser o «mau». No próprio conceito familiar de «bom-mau» existe uma eficiente e perfeita manobra de assegurar a detenção do indivíduo dentro dum campo de inofensividade; é evidente que uma forte personalidade não era conveniente e há portanto que aboli-la cercando-a de tabus de várias ordens, intransponíveis para a maioria: respeito pelos pais, amor pelos filhos e irmãos, etc, conceitos estes com milénios de obrigatoriedade de aceitação sem discussão. A noção de responsabilidade é abolida e substituída por uma noção de submissão.41


 


Voltando ao texto em análise, o ato de transgressão ao recriar, sem repetição, o jogo do Gato e do Rato, constitui o gesto de insubordinação tão característico da infância, parodiando uma história popular e canónica. Subvertem-se assim as normas que regem a língua e que servem também para conservar o Estado, uma vez que este impõe o que se deve dizer às instituições familiares e escolares, que por sua vez fazem o mesmo com as crianças, veiculando uma forma de educação maquínica que se efetua primordialmente através da linguagem: o que não se pode dizer, também não se pode fazer, constituindo a transgressão da linguagem um ato de mau comportamento.

A rebelião infantil revela-se, de forma geral e instintiva, de numerosas maneiras, constituindo um livre exercício de imaginação e de liberdade a renomeação de referentes da realidade. Observe-se, durante instantes, um simples jogo entre crianças, e facilmente detectamos a alteração de regras, de nomes de personagens e de brinquedos. É inerente à criança a capacidade imaginativa, livre de constrangimentos sociais, o que lhe permite construir a realidade de acordo com os seus sonhos e intentos, e é essa capacidade que se torna perigosa perante o poder autoritário.

Tome-se como exemplo de exequibilidade desta capacidade criadora o conto O menino e o caixote,42 cuja imaginação infantil permite o devir de um simples objeto inanimado, um caixote de cartão, num ser vivo, neste caso específico, num leão. O devir animal corresponde ao desejo infantil de assassinar o adulto que censura o seu ato imaginativo. Este é manifestamente um conto com conotações políticas, cuja repressão, nomeadamente sobre a ação dos intelectuais e artistas, é veiculada através do pai, figura de autoridade da sociedade. A imaginação e liberdade criativas são representadas pela criança, na sua inocência percetiva do Mundo, na sua capacidade de recriar novos mundos e novas possibilidades de realidade. Perante a impossibilidade de lhe ser concedido o desejo de ter um leão no tempo presente, a criança converte essa impossibilidade em possibilidade através da imaginação, pois, a partir do momento em que cria a imagem na sua mente, miscigenando-a com a realidade, está a validá-la enquanto referente real, presentificando-a. Recordem-se, a este propósito, as palavras de Georges Bataille, quando, em A Literatura e o Mal, refere que:

 

Na educação das crianças, a preferência pelo instante presente é a comum definição do Mal. Os adultos proíbem aos que vão chegar à «maturidade» o reino divino da infância. Mas a condenação do instante presente em proveito do futuro, se inevitável, é uma aberração quando extrema. Não menos que proibir o seu acesso fácil, e perigoso, é necessário encontrar o domínio do instante (o reino da infância), e isso exige a transgressão temporária do proibido.43

 

A presença da criança na obra leiriana não opera enquanto tentativa de retrocesso a nenhum passado concreto, nem pretende tão-pouco apelar a uma nostalgia pura do vivido, servindo essencialmente de trampolim para uma fuga abstrata do presente concreto da humanidade estritamente adulta em direção a um tempo presente na criatividade infantil.

Com efeito, algumas das observações de Giorgio Agamben, constantes em Infância e Memória, corroboram igualmente a ideia da presentificação e abrem novas linhas de leitura para o conceito de brinquedo, contribuindo para uma melhor explicitação da nossa interpretação. Observe-se que Agamben considera que os brinquedos, enquanto miniaturas de referentes da realidade adulta, são «[…] como aquilo que permite colher e gozar a pura temporalidade contida no objeto»:

 

O brinquedo é uma materialização da historicidade contida nos objetos, que ele consegue extrair por meio de uma manipulação particular. Enquanto, na verdade, o valor e o significado do objeto antigo ou do documento é função da sua antiguidade, ou seja, do seu presentificar e tornar tangível um passado mais ou menos remoto, o brinquedo, desmembrando e distorcendo o passado ou miniaturizando o presente – jogando, pois, tanto com a diacronia quanto com a sincronia – presentifica e torna tangível a temporalidade humana em si, o puro resíduo diferencial entre o «uma vez» e o «agora não mais».44

 

Neste caso, poder-se-á compreender que os jogos das crianças permitem, através da criatividade, ultrapassar os diferentes tempos enunciados, inaugurando um outro tempo que visa contextualizar novas relações histórico-temporais entre os homens e o mundo. Assim libertadas dos padrões espácio-temporais estritamente lógicos da humanidade adulta, os homens-crianças jogam com o improvável e o inverosímil como forma de reelaborar o seu mundo e reinventar a sua liberdade.

 

O jogo na literatura de Mário-Henrique Leiria”, Marta Braga. In: O Jogo do Mundo, coord. Margarida Alpalhão, Carlos Carreto e Isabel Dias. Lisboa, IELT - NOVA FCSH, 2017, pp. 145-168.





CARREIRO, José. “Cegarrega para crianças, Mário-Henrique Leiria”. Portugal, Folha de Poesia, 08-12-2021. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2021/12/cegarrega-para-criancas-mario-henrique.html



terça-feira, 7 de dezembro de 2021

Green god, Eugénio de Andrade


Green man inspired, upload by ingrid newman



Green god

 

Trazia consigo a graça

das fontes, quando anoitece.

Era o corpo como um rio

em sereno desafio

com as margens, quando desce.

 

Andava como quem passa,

sem ter tempo de parar.

Ervas nasciam dos passos,

cresciam troncos dos braços

quando os erguia do ar.

 

Sorria como quem dança.

E desfolhava ao dançar

o corpo, que lhe tremia

num ritmo que ele sabia

que os deuses devem usar.

 

E seguia o seu caminho,

porque era um deus que passava.

Alheio a tudo o que via,

enleado na melodia

de uma flauta que tocava.


Eugénio de Andrade, As mãos e os frutos (1948)

 




Textos de apoio

 

Ake Art


Correntes neomodernistas em Portugal - Eugénio de Andrade

 

Neste [primeiro] ciclo, em que aquisições neorrealistas e surrealistas, ou heranças de cancioneiro ancestral e de neobarrorroquismo hispânico, se sobrepõem aos influxos estéticos do Modernismo, emergem os veios fundamentais da poesia de Eugénio de Andrade: o amor e o desejo, a sensibilidade à terra, sua configuração e seus frutos, o metaforismo produzido a partir dos motivos elementais, sobretudo os da água e do ar, a limpidez de uma expressão que se articula com a perfeição imagística e com o apurado sentido da musicalidade, a euforia de uma vivência das coisas e dos seres em termos vibrantemente sensuais. Sublinhe-se, todavia, que esse ciclo lírico já combinava o potencial insurgente com o aprofundamento estético do trabalho na linguagem, remodernizada pela imbricação de ritmo e metáfora. Com sua extraordinária unidade poemática, As Mãos e os Frutos permanecerá o livro mais emblemático - pela forma de exaltação do corpo amoroso e do desejo e pela transfusão da comunhão erótica para todo o entorno natural, qual «Green God» justamente celebrizado, mas também pela derrogação de costumeiros escapismos («Não canto porque sonho. Canto porque és real.») e pela consequente tensão da euforia libidinal com fatores disfóricos figurados em «noite», em «sombra», em «morte», geradores de melancolia e de tonalidades elegíacas do canto.

José Carlos Seabra Pereira, As Literaturas em Língua Portuguesa (Das origens aos nossos dias). Lisboa, Gradiva, dezembro de 2019 (1.ª edição), pp. 427-429.

 


Fauno dançante, jardim do Museu Sorolla, Madrid


Uma leitura de As Mãos e os Frutos

 

O deus ― Green God, que passa sorrindo e dançando, que se vem aproximando mas ―alheio a tudo o que o rodeia, divino no seu andar musical, na vida que emana e que gera, passos fazem nascer a erva e saem-lhe troncos dos braços, é essencialmente ritmo e dança. O deus passa pelo meio das coisas e, tal como o ser amado ou o próprio amor, altera aquilo que toca.

Graciosidade, vida, dança ou música emergem deste melodioso poema em que o jovem deus, personagem principal e única, faz parte integrante do cenário que transforma à sua passagem. […]

Torna-se aqui particularmente visível a articulação dos planos semântico e formal na construção da mensagem poética. Este é o único poema que apresenta uma métrica (quatro quintilhas heptassilábicas) e rima (abccb) regulares, o que contribui para o seu ritmo ―dançante e musical, ao que se alia o campo semântico evocativo da arte dos sons: dança, dançar, ritmo, melodia, flauta, tocava. Também o aspecto fónico, com a recorrência às consoantes líquidas e sibilantes, introduz no poema uma sensação de fluidez, de melodia que acompanha o dançar do jovem deus e que sugere o som da flauta que tocava.

Esta naturalidade musical anuncia-se logo nos versos iniciais, associando o corpo à ―graça/ das fontes quando anoitece e ao rio que, serenamente, segue o seu curso. É significativa a referência temporal, já que a beleza das fontes sobressai no momento em que a vida se silencia e adormece. E, tal como uma flor, o corpo, tremendo ao ritmo dos deuses, desfolha-se graciosamente na sua passagem.

 

‘As Mãos e os Frutos’ de Eugénio de Andrade e de Lopes-Graça, Ana Oliveira. Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, 2010

 

Fauno dançante, Pompeia, casa do Fauno (100 a. C.)


 

Eugénio de Andrade - um eu lírico entre o uno e múltiplo

 

Já sobre «Green God», Eduardo Prado Coelho notara que «O amor é ator: o que faz crescer» (COELHO, E. P., 2006: 34); e, ainda em «Green God», esse deus que passa pelo meio das coisas e as fecunda à sua passagem é para esse autor um aspeto nuclear da poesia de Eugénio de Andrade: «Essa ideia de que é preciso ir pelo meio das coisas é nuclear.

Aquele que vai pelo meio das coisas pertence às próprias coisas. As coisas estão dentro dele» (ibid.). O sujeito passa pelo meio das coisas para as poder contagiar e se deixar contagiar por elas, o que de certa forma define a maneira como a sensação de plenitude é elaborada na poesia de Eugénio.

 

Eugénio de Andrade: uma proposta de plenitude, Maria de Fátima Cordeiro. Universidade Aberta, 2010, pp. 41-42

 

Chris Hemsworth, Ego Rodriguez Illustration, 2020


 

Eugénio de Andrade: um dizer rente à turbulência

 

Algumas reflexões sobre a presença do corpo, a ambiguidade sexual e o afeto na produção poética de Eugênio de Andrade.

 

A construção de um corpo masculino sedutor e atraente, movendo-se entre o dinamismo e a fluidez, o natural e o ideal, realidades aparentemente dispersas, articula-se a uma ideologia de valorização do masculino na sociedade ocidental desde o século XIX.

A novidade para a cena portuguesa era, sem dúvida, falar do corpo masculino com uma desenvoltura erótica inusitada, realçando de forma agressiva uma certa fixação em elementos fálicos (no caso, a “flauta que tocava”, em outros poemas, os braços (do parceiro) “deslumbrados”, “nus e suados”; em Obscuro domínio, alude-se à “sombra de um lírio entre as pernas”). A fortuna crítica deste poema é notável. Jorge de Sena refere-se, entre outras coisas, à última estrofe:

 

Note-se que o ele ir “enleado na melodia/ de uma flauta que tocava” pode aludir falicamente, de uma maneira notavelmente transposta, à sexualidade não-disponível da jovem personagem masculina deificada no poema: vai embebido em tocar-se o sexo (...), sem que isso signifique que o faz deliberadamente para atrair a atenção dos circunstantes para a sua virilidade.2

 

Eduardo Lourenço, fundamentado em convicções filosóficas e essencialistas, preferiu ver no poema a “imersão do divino no natural e do natural no divino”.3 Convincente como elaboração filosófica, a análise de Lourenço hoje cheira a mofo, tendo em vista o crescente desenvolvimento dos estudos de homocultura, ainda mais em face de um texto paradigmático de uma concepção vincadamente gay. A comparação do corpo do outro (o parceiro) a um rio retorna no poema XVIII, acentuando a idéia de integração de dois corpos:

“Impetuoso, o teu corpo é como um rio/ onde o meu se perde. / Se escuto, só oiço o teu rumor. / De mim, nem o sinal mais breve”. Símbolo antigo da fertilidade, o rio relaciona-se a música, sugerindo não apenas a união de dois rios (os dois corpos), mas a união harmoniosa. Alexandre Pinheiro Torres comenta:

 

Curioso é verificar que ambos os corpos são comparados a rios, pelo que haverá que concluir que um rio desaguará noutro rio. Este ponto não é tão irrelevante como poderá parecer. Recordem-se que os rios em Lorca não vão dar ao mar. Acabam em tanques. E o tanque é, por sua vez, símbolo da esterilidade.4 (grifos do autor)

 

A idéia de esterilidade, em As mãos e os frutos, inscreve-se na metáfora da folha, se relacionada a flor e fruto. No poema 24, num cenário de “silêncio e solidão”, somos comparados a “folhas breves”, uma vez que frágil e passageira é toda vida; somos ainda identificados a folhas “incapazes de ser flor”, portanto estéreis:

 

Somos folhas breves onde dormem

aves de silêncio e solidão.

Somos só folhas ou o seu rumor.

Inseguros, incapazes de ser flor,

até a brisa nos perturba e faz tremer.

 

Importa observar que nesse mundo de esterilidade passa o amado “entre as folhas”, operando uma geral transformação, fazendo tudo nascer ou renascer: “Quando em silêncio passas entre as folhas, / uma ave renasce da sua morte/ e agita as asas de repente”. Um atributo, entretanto, é próprio da folha, a sensibilidade. De acordo com Torres: “A folha simboliza certamente, na sua fragilidade, na facilidade com que estremece, a capacidade humana para a emoção, talvez para o terror, qualquer coisa que apenas uma brisa bastará para perturbar”.5

Desde então esta poesia, aparentemente frágil em termos de militância gay, instaura-se como espaço de ambigüidade sexual, na medida em que intersecciona a celebração de uma experiência erótica interdita à melancólica expressão desta interdição. Ao construir uma escrita poética visceralmente ligada ao corpo, o sujeito de enunciação tem-se marcado por insistir nos traços reveladores “da melancolia face às repressões”, de acordo com a análise de Joaquim Manuel Magalhães,6 uma melancolia quase sempre articulada a uma luminosa perspectiva de desejo e de prazer. Desde esse livro de fulgurantes claridades, entretanto, os olhos surgem “carregados de sombra”, para um sujeito consciente de que “Só as tuas mãos trazem os frutos”, como se afirma num dos poemas, sugerindo a idéia de que a produção e a fertilidade (as mãos e os frutos) são atributos do outro, aquele que impedirá a desertificação do corpo. A tônica dos poemas constitui a idéia de que a existência é transformada pela oferta simbólica dos frutos realizada pelo outro. As palavras interditas (1951) é um livro marcado pela experiência da guerra, o que não significa afastamento da temática amorosa:

(...)

As palavras que te envio são interditas

até, meu amor, pelo halo das searas;

se alguma regressasse, nem já reconhecia

o teu nome nas suas curvas claras.

 

Dói-me esta água, este ar que se respira,

dói-me esta solidão de pedra escura,

estas mãos nocturnas onde aperto

os meus dias quebrados na cintura.

 

E a noite cresce apaixonadamente.

Nas suas margens nuas, desoladas,

cada homem tem apenas para dar

um horizonte de cidades bombardeadas.7

 

As marcas da guerra (“este ar que se respira”, “cidades bombardeadas”) não conseguem eliminar a rigorosa articulação entre poesia (“as palavras que te envio”) e vivência amorosa (“a noite cresce apaixonadamente”).

Tem sido muito debatida a rasura da nomeação explícita do referente amoroso na poesia de Eugênio de Andrade. A ocultação do gênero sexual do parceiro é uma constante nesta poesia. As inspiradas relações amorosas se ressentem de uma explicitação da opção sexual, ou o parceiro é referido através de uma zona vazia ou um pronome neutro. A excessiva cobrança de uma visibilidade homoerótica nem sempre leva em conta, entretanto, o contexto repressivo da sociedade portuguesa dos anos 50 aos 70. Joaquim Manuel Magalhães tem discutido essa rasura da visibilidade homoerótica com argumentos que variam da irritação à tentativa de inserção da poesia de Eugênio de Andrade num projeto político.

 

....[os livros subseqüentes a Limiar dos pássaros] afirmam uma linha de tristeza, mesmo que face a circundantes esplendores, que é simultaneamente pessoal e política. E política não apenas por se inscrever numa história colectiva de quotidiano reprimido pela organização totalitária do Estado, mas por ter de calar uma história pessoal reprimida pela moral maioritária: “As palavras que te envio são interditas”.8

 

Um aspecto decisivo nesta poesia é sua gradual evolução no sentido de incorporar a inclinação homoerótica. Além de se tornarem mais constantes, as alusões à cultura gay revestem-se por vezes de um tom sombrio e negativo, como possibilitam alterações lexicais ou de imagens. Um dos poemas de As mãos e os frutos sofreu importantes modificações na edição subseqüente. Para acompanhar o que se segue, é necessário uma remissão ao poema VIII daquele livro:

 

Foi para ti que criei as rosas.

Foi para ti que lhes dei perfume.

Para ti rasguei ribeiros

e dei às romãs a cor do lume.

 

Foi para ti que pus no céu a lua

e o verde mais verde nos pinhais.

Foi para ti que deitei no chão

um corpo aberto como os animais.

 

O último verso na edição de 1948 dizia: “uma mulher pura como os animais”. Esta variante – “um corpo aberto como os animais” - passa a circular a partir de 1968 (Poemas) quando cinco poemas sofrem profundas modificações. Mesmo reconhecendo que nenhuma delas tenha afetado “o arranjo estrófico dos versos”, Jorge de Sena considera-as reveladoras de mudanças da “personalidade do poeta”,9 complementando algumas observações sobre a “curiosíssima” alteração:

 

Na primeira forma, “mulher pura” era uma sugestão violenta mas corrente (a violência vinha do contraste com “animais”, antes de o leitor se aperceber de que “pura” significava “livre de pecado”, logo não-humana, ou seja não restringida pelas convenções morais e sexuais que limitam e deformam o humano, ou o impedem de ser, sem pecado, natural, um natural em que se inclui qualquer “contra-natura”, definida por aquelas convenções). “Corpo aberto”, na experiência, é-o muito menos [violento], mas implica generalidade e ambigüidade quanto ao sexo da personagem que o poeta declara haver deitado no chão para a pessoa desejada; e é sem dúvida uma imagem (ou metáfora) mais incisiva.10

 

Mais do que curiosíssima, a variante definitiva afasta-se de juízos morais presentes em “mulher pura”, eliminando também a notação de gênero (mulher), ainda que mantenha a “generalidade” referida por Sena (um corpo aberto tanto pode ser de homem como de mulher). Não deixa também de ser enriquecedora a nota de rodapé no texto de Jorge de Sena:

 

Corpo aberto significará ou sugerirá “corpo que se abre”, “corpo que se entrega”, “corpo que não resiste à posse”, “corpo sensualmente apaixonado” - o que é reforçado por como os animais: “corpo sem inibições de ordem moral”, “corpo de que nenhuma parte se fecha ou retrai ante as mais diversas formas do contacto erótico”.11 (grifos do autor)

 

Sena reclamava no mesmo texto da “irregularidade lógica” da variante “corpo aberto como os animais” (para ele, deveria ser “corpo aberto como os dos animais”). Não seria ocioso mencionar a aliança homem/natureza como retificadora da fórmula preferida pelo poeta, destacando o fato de o corpo aberto e desejante ser incapturável pelo pensamento lógico. A variante evidencia ainda as intensidades e as desproporções que assolam as sensações do corpo – esse grande ausente dos debates filosóficos do Ocidente.

 

O corpo (...) perdurou “ausente” nos pares categoriais (morais e disciplinares) das ficções do humano e da animalidade, da cultura e da barbárie, do real e do simbólico, e assim sucessivamente na história das filosofias e nas crenças humanas e sociais.12

 

O corpo passa a ser visto na moderna masculinidade como elemento aglutinador de valores extraídos pela classe média de vários estratos socioeconômicos (a ética do trabalho e da família, herança da burguesia; a solidez, a coragem e a generosidade, herança da aristocracia; a beleza e a harmonia de formas, herança da antiguidade clássica). Nomeando o corpo desejante, dionisíaco, aquele que não se deixa domesticar pela filosofia e pelos aparelhos de controle ou de vigilância estatal, o poema de Eugênio de Andrade distancia-se ainda do senso de culpa e de qualquer contaminação edipiana, apagando as ressonâncias e formas de tirania e opressão, mesmo as pequenas, de que nem nos damos conta, de tal forma a elas nos habituamos. O “corpo aberto como os animais”, corpo sem cérebro e à deriva, sela o poema com uma chave alegre e inusitada, sugerindo a fruição do prazer vivido intensamente, em direção a uma experiência e a uma tecnologia do desejo não mais freudiana e sim de tendência deleuziana. Além das formas colossais de fascismo, existem as “formas pequenas que fazem a amarga tirania de nossas vidas cotidianas”,13 de que fala Foucault a respeito do livro O anti-Édipo, de Gilles Deleuze. Nesse mesmo texto, Foucault afirma que o livro referido “não concebe oposição entre o homem e a natureza, a natureza e a indústria, mas simbiose e aliança”, tal como ocorre em “corpo aberto como os animais”.

 

É desagradável ter que dizer coisas tão rudimentares: o desejo não ameaça uma sociedade porque é desejo de deitar com a mãe, mas porque é revolucionário. E isto quer dizer, não que o desejo é outra coisa diferente da sexualidade, mas que a sexualidade e o amor não vivem no quarto de dormir de Édipo, eles sonham mais com uma grande amplidão, e fazem passar estranhos fluxos que não se deixam estocar em uma ordem estabelecida. O desejo não “quer” a revolução, ele é revolucionário por si mesmo e como que involuntariamente, querendo o que quer.14

 

Data de fins do séc. XIX, mais precisamente do processo de Wilde (1885), a crise em torno do masculino, com o deslizamento semântico (ou melhor, confusão) provocado pelas identidades de gênero e identidades sexuais (heterossexual e efeminado, homossexual e efeminado, homossexual e viril) com profundas conseqüências no pensamento e ciência modernos.

 

...muitas das mais importantes articulações do pensamento e do conhecimento na cultura ocidental do séc. XX como um todo estão estruturadas – na realidade, fraturadas, – por uma crise crônica, agora endêmica, de definição homo/heterossexual, nomeadamente masculina, que data do fim do séc. XIX.15

 

A partir da primeira década do século XX começa-se a falar de homossexualidade para definir a sexualidade das pessoas cujo objeto de amor preferencial era uma pessoa do mesmo sexo. A psicanálise freudiana revela dificuldade em reconhecer a opção sexual calcada na diferença, corroborando uma milenar exclusão moral. Vista como exceção ao desenvolvimento paradigmático da libido, a homossexualidade é tratada como patologia no romance realista. Até meados do século XX, em geral, as relações homossexuais aparecem na literatura de forma sombria e carregadas de senso de culpa (Proust, Gide, Wilde, Thomas Mann), quase sempre como o amor que não ousa declarar-se. A partir dos anos 70 do século passado, o homoerotismo passa a ser visto como uma vertente específica de uma cultura minoritária, diante de um grupo heterossexual majoritário, mais ou menos opressivo.

Uma evidência se impõe, o controle da sociedade burguesa patriarcal sobre grupos minoritários, o que leva Georges Chauncey a afirmar que “o controle da homossexualidade não é senão um aspecto do controle da heterossexualidade”.16 Outra evidência incontornável: o papel destacado que o homoerotismo masculino ocupa no cânone literário ocidental. Os gay and lesbian studies tentam provar que as opções sexuais seriam conseqüências de uma construção cultural, implicando escolhas e estratégias diferentes.

A poesia de Eugênio de Andrade, visceralmente ligada ao corpo, ele próprio atravessado pelas astúcias da sedução e do desejo, apresenta uma evolução no trato com o homoerotismo, Se nos damos ao cuidado de verificar que As mãos e os frutos é de 1948, em pleno contexto de repressão moral e política, cumpre reconhecer as estratégias de ocultação de uma sensibilidade gay, apesar de jamais apagadas. As variantes aplicadas aos poemas apontam não limitações de linguagem, mas estratégias mediadoras de visibilidade homoerótica, a se revelar entre o sinal de mais e o de menos. Cumpre mencionar, noutra modificação efetuada em outro poema à edição original, cujo universo semântico se aproxima ao do verso que se está comentando (corpo aberto/ corpo que se abre; mulher pura, madrugada pura), que a variante dada como definitiva (de 1968) representa um retrocesso em termos de visibilidade homoerótica. Trata-se do verso “O teu corpo, completo, abre na madrugada”, modificado para “Que palavra/ abre a noite à mais pura madrugada?” Diante dessa variante empobrecedora insurge-se, perplexo, Jorge de Sena:

 

Mas qual a razão, por certo fortíssima, de ser substituído um verso lindíssimo como O teu corpo completo, abre na madrugada, com a sua sugestão de corpo que se abre, para a entrega amorosa, e se abre completo, dando-se inteiro, tal como as flores que abrem no amanhecer?17

 

Desde As mãos e os frutos (1948), Os amantes sem dinheiro (1950), As palavras interditas (1951), Mar de setembro (1961), Véspera da água (1973), Limiar dos pássaros (1976), Rente ao dizer (1992), entre muitos outros títulos, Eugênio de Andrade vem construindo uma obra densa de alusões a Eros na vida cotidiana. A simplicidade dos recursos, a proximidade do afeto, a descrição maliciosa, a integração com os elementos naturais, o discurso ciciado nas margens e fronteiras da fruição amorosa, a ambigüidade sexual transparecem nos seus poemas. Referência tutelar na expressão mítica do homoerotismo, quase sempre caudatária de um grito libertário, mais sugerido que enunciado, sua poesia influencia sobremaneira uma sensibilidade poética que vai surgir nos anos setenta, com a celebração do corpo e de uma sexualidade terrivelmente dispersa.

Para concluir esta incursão por alguma poesia de Eugênio de Andrade, como subsídio, trago depoimentos do próprio poeta, em vários momentos manifestando circunstâncias ligadas à sexualidade em sua aproximação com a Espanha. Os testemunhos, de grande valia biográfica para a compreensão da sexualidade nesta poesia, dispensam comentários. O primeiro depoimento vem em Os afluentes do silêncio: “aconteceu-me o que tinha que acontecer para que Espanha se tornasse em mito: o amor e a poesia iam encontrar-se e reconhecer-se”. (“Com Angel Crespo por vários caminhos”). Outro depoimento aparece em Rosto precário: “(...) por razões que quero calar, a partir de 1961, após umas férias no País Basco, onde escrevi em grande parte Mar de setembro (eis a dívida maior com a Espanha: uma paixão e um livro)”. O terceiro depoimento é uma entrevista escrita pelo poeta a Joaquim Manuel Magalhães. À pergunta: Como foi sua relação com Espanha?, responde Eugênio de Andrade:

 

Foi, antes de mais, afectiva. E ligação de juventude, que atingiu o seu zênite nos anos 50. Mas começa com uma avó materna, de Valverde del Fresno (eu nasci perto da fronteira), e com idas freqüentes, ainda menino de colo, a Cória, onde meu avô se encarregava de obras de construção civil. Em casa dizia-se que foi em Espanha que me nasceram os primeiros dentes. A relação afectiva prossegue em Lisboa, teria eu onze/ doze anos, com um rapazito das bandas de Compostela, três ou quatro anos mais velho, que se hospedara na nossa casa. Além de uns rudimentos de sexualidade, devo-lhe a leitura do Quixote, coisas ambas que tiveram para mim a sua importância.18

 

Notas:

1 ANDRADE. Antologia breve, p.19.

2 SENA. Observações sobre As mãos e os frutos, p. 273-274.

3 LOURENÇO. AAVV. 21 ensaios sobre Eugênio de Andrade.

4 TORRES. O conflito entre o instinto e a sociedade em As mãos e os frutos de Eugênio de Andrade, p. 6.

5 TORRES. O conflito entre o instinto e a sociedade em As mãos e os frutos de Eugênio de Andrade, p. 8.

6 MAGALHÃES. Os dois crepúsculos, p. 107.

7 ANDRADE. Antologia breve, p. 39-40.

8 MAGALHÃES. Os dois crepúsculos, p. 109-110.

9 SENA. Observações sobre As mãos e os frutos, p. 251.

10 SENA. Observações sobre As mãos e os frutos, p. 272-273.

11 SENA. Observações sobre As mãos e os frutos, p. 273.

12 ESCOBAR. Dossier Deleuze, p. 151.

13 ESCOBAR. Dossier Deleuze, p. 84.

14 DELEUZE e GUATTARI. O anti-Édipo, p. 151-152.

15 SEDGWICK. Epistemology of the Closet, p. 1.

16 CHAUNCEY. Genres, identités sexuelles et conscience homosexuelle dans l’Amérique du XX siècle, p. 107.

17 SENA. Observações sobre As mãos e os frutos, p. 281-282.

18 MAGALHÃES. Rima pobre - poesia portuguesa de agora, p. 284-285.

 

Eugênio de Andrade: um dizer rente à turbulência”, Edgard Pereira. Aletria: Revista De Estudos De Literatura, n.º 9, 2002, pp. 117–125



Pan, Joe Phillips, 2021

 


Outros textos de apoio

 

 

 

 

  



Il Fauno, Vilela Valentin, 2017






Fauno, Gianpiero Averna



CARREIRO, José. “Green god, Eugénio de Andrade”. Portugal, Folha de Poesia, 07-12-2021. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2021/12/green-god-eugenio-de-andrade.html