"Quem adormece em democracia acorda em ditadura" Grupo Antifascista Miguel Torga, https://www.facebook.com/grupoantifa.migueltorga, 2021-01-17 |
Coimbra, 16 de dezembro de
1952
MEMORANDO
Senhor,
Se
o meu tempo é de campos de concentração,
De
bombas de hidrogénio e de maldição,
E
de cruéis tiranos
Com
pelos nos ouvidos e no coração,
Que
ando eu a fazer aqui,
Funâmbulo
de angústia
Com
miragens de esperança?
Pois
que não há lugar neste universo imundo
Para
bucólicos prados de trigo e calhandras,
E
foguetes festivos,
E
chefes que eu eleja e destitua,
Corta
lá no canhenho do destino
A
humana condição de ser poeta!
Sinto
em nome de todos que se calam
As
vergastadas de absurdo e medo
Que
consentes na alma dos mortais.
E
como nada posso, senão isto:
Protestar,
protestar,
Desta
maneira inútil que tu vês
E
o rebanho pressente,
Risco
na ardósia dos obreiros laicos,
Que
procuram sentido à tua obra,
O
sagrado condão de dedilhar
Nas
grades da gaiola que fizeste
Quando
eras rapaz
E
mal sonhavas quanto mal fazias.
Jovem
deus criador,
Assombrado
de cada imperfeição
Do
barro da olaria,
Ias
doirando esses desenganos
Com
milagres gratuitos e originais.
Saía-te
das mãos, cercada de incertezas,
A
redonda amargura deste mundo;
Que
remédio senão alguns harpistas
A
entoar harmonias ideais!
Mas
o tempo passou. Envelheceste.
Morreu-te
a fantasia.
E
queres a repressão dos que te negam
Ou
te corrigem.
Eu
e outros, perdidos neste inferno
Onde
nenhum Plutão nos ouve ou nos tolera,
Somos
a consciência atormentada
Pelos
anjos da guarda que te servem,
A
trair os irmãos, tão condenados
Como
eles.
Por
caridade, pois,
E
divina lisura,
Apaga
lá no céu
A
luz que representa
A
vida destas pobres criaturas
Cuja
missão traíste, por decrepitude.
Bardos
da luz que punham nos teus olhos
E
da graça do mágico universo
Que
generosamente
Como
um pomo irreal viam na tua mão,
Rangem
agora os dentes de revolta
A
falar de justiça,
De
igualdade,
E
de amor,
Coisas
que já nem tu
Sabes
que valores são.
Risca!
Risca no livro etéreo
O
infeliz e belo
Nome
de Orfeu!
Miguel Torga, Diário VI
Silenciar
Deus para ouvir o Poeta – e o homem
Ao primeiro verso, sabemos que ele
dirige uma mensagem ao Senhor. O poeta questiona a Deus sobre os tempos
difíceis e destaca o seu papel de homem esperançoso no meio de tanta tragédia.
Se ele o está a questionar sobre isso, é porque acusa Deus de permitir que
momentos cruéis desesperem a humanidade e pergunta-se por que, em meio a toda desgraça
permitida por Ele, ainda assim mantém esperanças de modificar um quadro
fatalista. Deus torna-se culpado por permitir que exista no mundo o que faz
sofrer um coração humano e, então, o poeta culpa a
um “Jovem deus criador, / Assombrado de cada imperfeição” de que ele
na verdade tem medo de que conheçam sua imperfeição e não mais acreditem nele.
Mas é o que acontece, inevitavelmente, em algum momento da vida do ser humano.
Este cresce, evolui no tempo, começa a pensar e questionar e, não
surpreendentemente, questiona também quem ou o que seja Deus. Isso não O não
agrada muito e então reage: “Morreu-te
a fantasia. / E queres a repressão dos que te negam / Ou
te corrigem.”. Diante de tal impasse entre Deus e o homem
consciente da imperfeição da divindade, o poeta pede a este que se esqueça dele
e que não mais faça parte do mundo da fantasia divina:
“Risca! Risca no livro etéreo / O infeliz e belo / Nome de Orfeu!”.
A mensagem não é dirigida a Deus, mas
para quem nele crê e quem tem olhos de ver. Miguel Torga, ao começar aos poucos
a desacreditar do divino até tornar-se descrente dos métodos que levam ao
sagrado, não faz disso um alarde e tampouco tenta convencer a todos os outros
de que também não devam acreditar. Seu humanismo é verdadeiro e respeita quaisquer
escolhas que se façam que não fira a integridade humana no seu sentido pleno.
Mas isto não o impede de escrever em forma de contos, poesia ou até mesmo em
relatos intimistas nos Diários sobre
o que vê e pensa. E o que vê é uma humanidade sofredora e o que pensa é que não
se trata de punições ou avisos celestes.
Ainda no cenário introduzido pelo
poema, vemos uma guerra em que os direitos humanos foram violados em todas as
suas instâncias e das formas mais cruéis e dolorosas. Arbitrariamente a
dignidade humana foi levada ao chão e a vida de um ser humano passava arrastada
em humilhação sem motivos. A torpeza mostrou-se num nível que jamais se havia visto
e jamais imagina-se que possa repetir-se igual ou pior. No comando de toda essa
atrocidade, estava um “líder” intolerante,
justificando suas ações de domínio com algumas razões ditas religiosas.
Mas antes mesmo de considerar a origem
ou a motivação de tal barbárie – que
certamente não foi apenas religiosa – o
que choca e admira é o facto de haver homens a destruir outros homens, em tudo
iguais: mesmos direitos de viver, dividindo o mesmo espaço, com capacidade de
pensar suas escolhas antes de agir. Segundo a filosofia existencialista, todo
homem faz as suas escolhas individual e livremente, mas tudo reflete-se na
coletividade. Por existirmos, somos livres para
dar o real valor às coisas, ou melhor, “Se a existência, por outro
lado, precede a essência e se quisermos existir, ao mesmo tempo que construímos
nossa imagem, esta imagem é válida para
todos e para toda nossa época.” (SARTE,
1973, p. 13) Portanto, se a humanidade passou por esse e tantos outros tempos
tormentosos, é porque, a começar pela escolha de um homem, acabou por levar
outros para a mesma escolha, e então acabou por criar tais épocas sofredoras à
humanidade.
O modo como Torga escolhe demonstrar o
que pensa é utilizando em sua literatura através da representação do imaginário
do sagrado dominante, afinal, não adiantaria remar contra uma maré muito mais
forte. O escritor pode nos emocionar em seus contos com narrativas tocantes de
gente humilde, como as da sua terra, que, por vezes, acaba por agir mal com o
próximo. Também pode ser irónico, como no poema “Memorando”,
e de alguma forma também em Nihil
Sibi, numa breve narrativa quase mítica.
Mas a mensagem do poeta transmontano sobre a relação de Deus com o homem busca
ser sempre a mesma: a de não se deixar inutilizar a sua liberdade natural,
posto que o homem é o único ser que existe antes de tudo. E, principalmente,
não permitir isso em nome de uma essência externa, que advém de um produto do
imaginário, formulado posteriormente à sua existência, e não anterior a ela.
Juliana
Morais, Humanamente divino: o poeta transcendido e transfigurado em Nihil Sibi (1948),
de Miguel Torga. Viçosa, MG, 2015.
"P'ra cá no Marão fachos não entrarão" https://www.facebook.com/grupoantifa.migueltorga, 2021-01-17 |
Orfeu
e Plutão
Orfeu, que desceu ao mundo
de Plutão, surge agora a seu lado no longo poema “Memorando”, espécie de prece
num mundo aterrador e incompreensível, que não é digno de poesia.
Ao longo deste poema, Torga regista
disforicamente as características dos nossos tempos, como se vivêssemos na era de
Plutão. Neste século infernal, tempo de campos de concentração, de
bombas de hidrogénio, de cruéis tiranos com pelos no coração (note-se
a grande expressividade do disfemismo), não há espaço para a beleza (bucólicos
prados de trigo), para a alegria (foguetes festivos), para a
democracia (chefes que eu eleja e destitua), em suma, não há espaço para
a coexistência da Poesia. O deus a quem se ora, ou a quem se dirige o
lamento, outrora foi jovem e, quando criou a humanidade (barro da olaria),
era capaz de milagres gratuitos e originais. Contudo, o ideal, o
sonho, a fantasia, morreram. A utopia deu lugar à repressão e
à censura. Os Orfeus deste mundo, poetas rebeldes e revoltados, são a
consciência atormentada da humanidade. Os que já foram fonte da luminosidade
apolínea (luz, bardos de luz, graça, mágico universo,
generosamente, justiça, igualdade, amor), rangem
agora os dentes de revolta, pois o deus criador esqueceu e apagou os valores.
Perdidos neste inferno / onde nenhum Plutão os ouve ou os tolera,
subversão da tradição ovidiana e vergiliana do mito, os poetas querem tornar-se
umbra, recusando pactuar com a degradação das aetates (recuperação
de Hesíodo e de Ovídio). O poeta quer deixar registada esta prece, para que
seja recordada pelos vindouros (não é por acaso que este memorandum surge
inscrito num Diário, com todas as implicações simbólicas que tal possa
acarretar). A sua prece é também um manifesto – o Poeta prefere ver extinta a
sua voz, a vê-la subjugada pelos horrores de um deus envelhecido e sem ideais.
Assim, grita das profundezas do seu ser: Risca! Risca no livro etéreo / o
infeliz e belo / nome de Orfeu, porque este é permanente e eterno, porque é
portador da Beleza e dos Valores, e não quer ver-se amesquinhado pela
degradação dos tempora e dos mores, no dizer ciceroniano.
Uma vez mais, Orfeu metaforiza o Poeta e
a Poesia, que, embora portadores da mensagem e da Beleza apolíneas, são
empurrados, qual Eurídice puxada para o abismo pelas forças infernais, para as
sombras, não possuindo já a capacidade de serem o farol, o facho de luz que
orienta e guia a escuridão da humanidade.
Em dois diferentes discursos, registados no
Diário, um proferido em Roma, em 1952, e o outro em Bruxelas, em 1977, o
poeta associou a poesia à liberdade e à oposição aos poderes obscuros que
tentam controlar (ou até silenciar) as vozes dos filhos de Orfeu.
Transcrevemos os excertos de ambos os discursos por ordem cronológica:
“A poesia aproxima-se das Catacumbas! O
espaço social reduz-se de tal maneira à sua volta, que será no subsolo dos
impérios que a pequena família dos crentes manterá aceso o seu culto, vivendo e
morrendo na graça duma fidelidade sem quebras, à espera do grande dia em que a
luz do sol seja de novo o resplendor de Apolo. Os Césares do transitório
decretaram-lhe o fim, temerosos da sua radiante inutilidade, homens de má
consciência que são votados a um arranjo do mundo onde só consentiriam o
cântico dos próprios crimes que ninguém canta. E como fora da lei só há o
recurso à clandestinidade, eis os iluminados de agora, os filhos de Orfeu, em
vésperas duma comunhão secreta nas galerias subterrâneas do mundo. (…)” (Diário
VI)
“Ao mesmo
tempo incómoda e sedutora, a poesia foi sempre um pesadelo e uma fascinação
para os poderosos. Em todas as épocas os césares pretenderam simplesmente
aniquilá-la ou, mais argutamente, utilizá-la, até ao ponto de usurpar-lhe os
méritos. Confusamente conscientes de que para cada verso existe um eco, que o
verbo se faz carne em cada poema, que onde esteja um poeta e haja quem saiba
ouvi-lo se gera uma corrente de comunicação a partir da qual já nenhuma
inquietação se deixa iludir de boa fé, nada mais natural do que o desejo de
mobilizar essa força em proveito próprio, arremedando-lhe os processos
encantatórios ou prestigiando os vates oficiais, promovidos a príncipes da
rima.” (Diário XII).
A poesia, à semelhança do
que sucede no poema “Ariane”, adquire o estatuto de anti-poder. Embora
forjada por vezes nas catacumbas, na sombra, reveste-se de luz e
ilumina os homens. Tal como em “Memorando”, não é compatível com os horrores
cometidos pelos Césares do transitório. Pertencente ao reino de resplendor
de Apolo, sucessivamente tem sofrido tentativas de aniquilamento.
Contudo, não sucumbe nunca aos poderes instituídos pelo nigri fera regia Ditis
(Ovídio, Metamorfoses, IV, 438. Tradução (op. cit., 117): “selvagem
palácio do negro Dite [Plutão]”).
Ana
Aguilar, A influência clássica na obra poética de Miguel Torga: o caso
particular do Diário. Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa,
2010.
"E em qualquer fresta estava a Liberdade", Miguel Torga, |
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- “A poética torguiana”, Apresentação crítica, seleção, notas e sugestões para análise literária da poesia de Miguel Torga, por José Carreiro. In Folha de Poesia, 09-08-2013
- “A Criação do Mundo (1937-1981), Miguel Torga”, José Carreiro. In Lusofonia - Plataforma de apoio ao estudo da língua portuguesa no mundo, 2021 (3.ª ed.).
“Memorando,
Miguel Torga”, José Carreiro. Folha de Poesia, 2022-09-30. Disponível em:
https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/09/memorando-miguel-torga.html