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segunda-feira, 25 de dezembro de 2023

Natal (José Manuel R Barroso)


 

NATAL

 

Porque multiplicaste os pães e os peixes

nas nossas mãos nuas?

Porque deixaste sementes tão fundas

nos nossos corações?

Porque nos deixaste a autoridade tão grande

da Palavra, se somos o homem

que olha o rio e nele não se reconhece?

 

Poema e fotografia de José Manuel R Barroso, disponíveis em https://www.facebook.com/josemanuel.reis.908, 25-12-2023


quinta-feira, 14 de dezembro de 2023

Poética (Manuel Bandeira)


 

Poética

 

Estou farto do lirismo comedido

Do lirismo bem-comportado

Do lirismo funcionário público com livro de ponto expediente protocolo e

[manifestações de apreço ao sr. diretor

 

Estou farto do lirismo que pára e vai averiguar no dicionário o cunho

[vernáculo de um vocábulo

 

Abaixo os puristas

 

Todas as palavras sobretudo os barbarismos universais

Todas as construções sobretudo as sintaxes de exceção

Todos os ritmos sobretudo os inumeráveis

 

Estou farto do lirismo namorador

Político

Raquítico

Sifilítico

De todo lirismo que capitula ao que quer que seja fora de si mesmo

 

De resto não é lirismo

Será contabilidade tabela de co-senos secretário do amante exemplar com

[cem modelos de cartas e as diferentes maneiras de

[agradar às mulheres, etc.

 

Quero antes o lirismo dos loucos

O lirismo dos bêbedos

O lirismo difícil e pungente dos bêbedos

O lirismo dos clowns de Shakespeare

 

— Não quero mais saber do lirismo que não é libertação.

 

BANDEIRA, Manuel, Melhores poemas, 17.ª ed. – São Paulo: Global, 2015, p.64

 



 

Manuel Bandeira e a Metapoesia

Ao longo de sua carreira, Manuel Bandeira escreveu vários poemas que podem ser considerados “poéticas”, ou seja, eles tratam do “fazer poesia”, ora dizendo para quê a poesia serve, ora dizendo como ela deve ser. Este trabalho apresenta um estudo sobre seis destes poemas, procurando verificar as diferenças e semelhanças entre eles e, ainda, se o que o poeta preconiza é o que ele faz nos próprios poemas. […]

“Poética” integra o quarto livro de poemas de Manuel Bandeira, intitulado Libertinagem e publicado em 1930. Podemos perceber que nele o autor expressa como deveria ou não deveria ser a poesia, de acordo com a sua perspectiva, paralela aos preceitos modernistas. Dentre os poemas de Bandeira que podem ser considerados uma ars poética, talvez este seja o mais conhecido e aclamado. Quanto a isto, citamos o crítico Ivan Junqueira, quando afirma que «‘Poética’ não é apenas um dos melhores poemas do autor, mas também um dos mais importantes que escreveu, talvez o mais significativo no que se refere ao discurso metalingüístico e à síntese de seus procedimentos líricos» (2003, p.107).

Quanto ao poema estar de acordo com os preceitos modernistas, vale ressaltar que isto é o que ocorre em todo o livro em que se insere, já que os poemas de Libertinagem foram escritos entre 1924 e 1930, período de muita força do movimento. O próprio Bandeira admite, no Itinerário de Pasárgada, que esses foram « os anos de maior força e calor do movimento modernista. Não admira, pois, que seja entre os meus livros o que está mais dentro da técnica e da estética do modernismo» (1984, p.91).

De acordo com “Poética”, a poesia deve ser “livre”. Livre das formas preestabelecidas, das palavras empertigadas, dos modelos tradicionais. Livre para falar de qualquer tema. Desta forma, “Poética”, assim como “Os sapos”, soa como um grito de libertação. Grito que, na verdade, perpassa todo o livro Libertinagem, desde seu título, pois libertinagem aqui não tem o significado associado à “prática do libertino”, mas sim, a uma “irreverência com relação a dogmas e crenças oficialmente aceitos” (Dicionário Houaiss), uma vez que o próprio Bandeira, ao comentar o seu livro anterior (O ritmo dissoluto), afirma que nele alcançou uma “completa liberdade de movimentos” e complementa: “liberdade de que cheguei a abusar no livro seguinte, a que por isso mesmo chamei Libertinagem” (1984, p.75). Ou, como disse Ribeiro Couto, “libertinagem de temas, de matéria. Total liberdade” (apud JUNQUEIRA, 2003, p.89). Ao comentar Libertinagem na sua História concisa da literatura brasileira, Alfredo Bosi afirma que o livro apresenta “um fortíssimo anseio de liberdade vital e estética” (2006, p.363).

Observamos que há um enunciado no qual um sujeito estava em conjunção com um objeto de valor não desejável (o lirismo comedido, bem-comportado, namorador, etc.) e em disjunção com o objeto de valor desejável (o lirismo dos loucos, dos bêbados, etc.). Os valores não desejados são aqueles que estão de acordo com a “poesia tradicional”. Ao dizer que está farto de determinado tipo de lirismo, o sujeito rompe com o contrato antes estabelecido com tal poesia e passa a querer estar sob o signo da “poesia modernista”. Em termos passionais, temos, numa primeira fase, um sujeito da liberalidade ou do desprendimento, uma vez que ele quer-não-estar em conjunção com o objeto de valor (neste caso, o lirismo comedido), e um sujeito da revolta, ou seja, um sujeito que se volta contra os valores de seu destinador (a poesia “tradicional”). Em seguida, o que figura é um sujeito do desejo, ou seja, aquele que quer-estar em conjunção com o objeto (ou seja, o “lirismo livre”). Assim como em “Os sapos”, o sujeito, ao propor uma ruptura com os valores preestabelecidos e acolher, logo sem seguida, novos valores, está afirmando a descontinuidade. Tal ruptura vai ao encontro de um dos ideais no movimento modernista que, nas palavras de Mário de Andrade, era uma estética renovadora. Segundo ele, «o modernismo no Brasil foi uma ruptura, foi um abandono de princípios e de técnicas conseqüentes, foi uma revolta contra o que era a Inteligência nacional (...)» (2002, p.258).

Constatamos que o tema principal deste texto é, obviamente, o “fazer poesia”, o que fica evidente desde o seu título, dado que poética é “o estudo da criação poética em si mesma” (ARISTÓTELES apud KOSHIYAMA, 1996, p.83). Ao longo do texto o narrador enumera características disfóricas ou eufóricas para a poesia, representada aqui pelo lexema lirismo, que aparece doze vezes. As características disfóricas são introduzidas por expressões como estou farto, abaixo e de resto não é, que “acentuam o caráter contestatório do poema” (BRANDÃO, 1987, p.22). O poema pode ser dividido em blocos, sendo que em cada um deles determinadas figuras se agrupam formando um percurso figurativo. Desta forma, o primeiro percurso figurativo observado é aquele composto por comedido, bem-comportado, funcionário público, livro de ponto, expediente, protocolo e manifestações de apreço ao sr. diretor. Este é o percurso figurativo do “ajustado e rotineiro” (Cf. BRANDÃO, 1992, p.124). Já as figuras dicionário, puristas, barbarismos universais, sintaxes de exceção e ritmos inumeráveis compõem o percurso figurativo do purismo de linguagem. No bloco que se inicia com o verso “Estou farto do lirismo namorador”, os termos namorador, político, raquítico e sifilítico formam o percurso figurativo do lirismo interesseiro. Por fim, o último bloco com características disfóricas é aquele que contém as figuras contabilidade, tabela de co-senos, secretário do amante exemplar, modelos de cartas, que compõem o percurso figurativo da mecanização ou do excesso de rigidez formal, no sentido da utilização de moldes preestabelecidos. Observamos, ainda, que neste último bloco são expandidas tanto a série do “lirismo rotineiro”, quanto a do “lirismo interesseiro”. O poema sugere que há, na poesia disforizada, uma poderosa conexão com a tradição, o que não permite a experimentação de novas formas artísticas.

Os quatro percursos figurativos apontados estão, na verdade, interligados, remetendo a um único tema que é o da opressão. Todas as figuras remetem, de alguma forma, a um tipo de aprisionamento. O lirismo associado a tais figuras é um lirismo oprimido, preso a comportamentos, formas, modelos, convenções, etc. De acordo com Brandão (1987, p.23), este poema “recusa as manifestações líricas que se caracterizam seja pela contenção, pela disciplina ou por estarem a serviço exclusivo de interesses outros”. Por outro lado, na penúltima estrofe, as figuras loucos, bêbedos e clowns de Shakespeare formam o percurso figurativo da liberdade – corroborado pelo último verso: Não quero mais saber do lirismo que não é libertação –, uma vez que estes papéis não estão presos às convenções sociais. Basta lembrar que os bêbados e loucos usufruem de certa licença para fazer qualquer coisa sem censura. Temos, pois, dois percursos figurativos em oposição, dados que eles recobrem dois temas antagônicos: a opressão e a liberdade do “fazer poético”.

Diante do que foi exposto até aqui, percebemos que o poema euforiza um lirismo livre, uma poesia “livre das amarras” e propõe uma ruptura (conforme comentamos quando da análise do nível narrativo) com a poesia dita tradicional. A crítica de “Poética” se dirige mais especificamente à poesia parnasiana e pós-parnasiana (cujos preceitos principais eram o purismo, a supervalorização das formas, a perfeição) e à poesia romântica, visto que «o lirismo namorador / raquítico / sifilítico compõe um conjunto que tem sua referência na temática romântica. O poeta questiona aqui alguns dos motivos mais utilizados por nossos românticos, o amor inconseqüente, o patriotismo, o estado doentio» (BRANDÃO, 1987, p.24).

Com relação ao plano da expressão, salta aos olhos que o poema é composto com uma “liberdade de formas”, isto é, com divisão entre estrofes irregular, versos livres, ritmo irregular, versos “muito longos”, etc.

 

Dayane Celestino de Almeida, Revista Eutomia Ano I – Nº 01 (215-247) 227. Disponível em: https://periodicos.ufpe.br/revistas/EUTOMIA/article/view/1984

 




Questionário sobre “Poética”, de Manuel Bandeira

1. Com base na leitura do poema, podemos afirmar corretamente que o poeta:

A) Critica o lirismo louco do movimento modernista.

B) Critica todo e qualquer lirismo na literatura.

C) Propõe o retorno ao lirismo do movimento clássico.

D) Propõe o retorno do movimento romântico.

E) Propõe a criação de um novo lirismo.

 

Resposta: Alínea E.

Ao nos atermos aos pressupostos ideológicos que demarcaram a estética modernista, todas as proposições, exceto a letra “E”, consideram-se como incoerentes, uma vez que um dos posicionamentos de Manuel Bandeira era de extrair poesia das coisas mais banais da realidade, renegando assim o sentimentalismo exacerbado dos românticos (por isso, ele não retoma ao movimento), bem como repudiando quaisquer traços formais em termos de estética, razão pela qual se pautava, sobretudo, pelo uso do verso livre (por isso, não retomou ao movimento clássico).

Dessa forma, o porquê de a letra “E” ser considerada correta deve-se ao fato de que a nova proposta não era a de abominar a poesia, tanto é que, como expresso anteriormente, a temática por ele explorada se originava das coisas corriqueiras da vida.

(ENEM. Disponível em: https://exercicios.brasilescola.uol.com.br/exercicios-literatura/exercicios-sobre-modernismo-no-brasil.htm)

 

2. Assinale a alternativa incorreta em relação à obra Melhores poemas, Manuel Bandeira, e ao poema intitulado “Poética”.

A) No poema, o poeta faz uso do verso livre e de uma pontuação não tão usual na língua culta, estas características associam o poema a correntes de vanguarda.

B) Nos versos “Todas as palavras sobretudo os barbarismos universais” (8) e “Todas as construções sobretudo as sintaxes de exceção” (9) o poeta faz uso da função metalinguística, embora haja no poema a predominância da função poética.

C) No poema, o autor ressalta como temas a precariedade de sentimentos, a transitoriedade de afetos, revelando um eu–lírico desiludido, destituído de sentimentos.

D) A leitura dos versos da quinta estrofe, reforçados pelo uso de adjetivos, leva o leitor a inferir que o poeta Manuel Bandeira, ironicamente, faz crítica aos aspetos abordados pelos poetas românticos.

E) No poema, Manuel Bandeira faz uso do verso livre, não utiliza as regras convencionais tanto na escrita quanto na métrica – versificação – caracterizando o versilibrismo, deixando à mostra a rutura com a poética e com a língua tradicionais, caracterizando um poema pertencente à estética Moderna.

Resposta: alínea C.

 

3. Analise as proposições em relação à obra Melhores poemas, Manuel Bandeira, e ao poema acima transcrito, e assinale (V) para verdadeira e (F) para falsa.

(   ) A leitura da estrofe sete leva o leitor a inferir que o poeta dá preferência ao lirismo mais autêntico, dos loucos, dos bêbedos e dos clowns, não preso a valores sociais, em detrimento de um lirismo tradicional.

(   ) Nos versos “Quero antes o lirismo dos loucos” (20) e “O lirismo difícil e pungente dos bêbedos” (22) se os vocábulos destacados forem substituídos por pelos, não há prejuízo quanto ao sentido original do texto e quanto à regência.

(   ) Nos versos “Será contabilidade tabela de cossenos secretário do amante exemplar com” (17) e “cem modelos de cartas e as diferentes maneiras de” (18) os vocábulos assinalados, embora possuam classificação gramatical diferente, não se flexionam para indicar o gênero masculino ou feminino, sendo que a indicação de gênero ocorre por meio de modificadores.

(   ) O sinal gráfico ( [ ) nos versos 4, 6, 18 e 19, usado para intercalar as estruturas poéticas – versos, assume uma outra função, a de reforçar o descomprometimento com as regras gramaticais, conferindo à nova forma de escrever também um novo valor poético e literário.

(   ) No verso “Quero antes o lirismo dos loucos” (20) o verbo, quanto à transitividade, é bitransitivo, pois tem como complementos verbais objeto direto – lirismo, e objeto indireto dos loucos.

 

Assinale a alternativa correta, de cima para baixo.

A) F – F – F – V – F

B) V – V – V – F – F

C) V – V – F – V – F

D) V – F – V – V – F

E) F – F – V – F – F

Resposta: alínea D.

(Universidade do Estado de Santa Catarina/UDESC. Questões 38 e 39 do vestibular 2018.1, de 26 de novembro, disponível em https://www.udesc.br/arquivos/udesc/id_cpmenu/5978/CADERNO_MANH__COM_GABARITO_15117379179292_5978.pdf; gabarito disponível em https://arquivos.qconcursos.com/prova/arquivo_gabarito/58486/udesc-2017-udesc-vestibular-primeiro-semestre-manha-gabarito.pdf?_ga=2.69263824.1987684596.1702589541-1009661154.1702589541)





Proposta de escrita criativa

Já estudamos a construção e o objetivo de um manifesto. A proposta de produção será: vamos reescrever o “Poema-manifesto” de Manuel Bandeira. Sabemos que o poeta, quando escreveu o poema, estava farto das propostas que representam o pensamento estético predominante na época. E, hoje, o que nos deixam fartos, quais situações de nossa época estamos condenando. Considere a estrutura do poema, a nossa realidade, faça as suas críticas e adaptações no poema.

 

Poética ou ____________

Estou farto ____________

Do(da) ____________

Do (da) ____________

Estou ____________

Abaixo os(as) ____________

[...]

Quero ____________

O(a) ____________

O(a) ____________

O (a) ____________

- Não quero mais saber do(da) ____________

 

(Josely Cristiane Telles, Formação continuada – SEEDUC. Disponível em https://canal.cecierj.edu.br/012016/47e2af0d48886eb3d1feff02a52356e8.pdf)

 



quarta-feira, 6 de dezembro de 2023

Problema de expressão (Clã)


Problema de expressão

Só pra dizer que te Amo,
Nem sempre encontro o melhor termo,
Nem sempre escolho o melhor modo.

Devia ser como no cinema,
A língua inglesa fica sempre bem
E nunca atraiçoa ninguém.

O teu mundo está tão perto do meu
E o que digo está tão longe,
Como o mar está do céu.

Só pra dizer que te Amo
Não sei porquê este embaraço
Que mais parece que só te estimo.

E até nos momentos em que digo que não quero
E o que sinto por ti são coisas confusas
E até parece que estou a mentir,
As palavras custam a sair,
Não digo o que estou a sentir,
Digo o contrário do que estou a sentir.

O teu mundo está tão perto do meu
E o que digo está tão longe,
Como o mar está do céu.

E é tão difícil dizer amor,
É bem melhor dizê-lo a cantar.
Por isso esta noite, fiz esta canção,
Para resolver o meu problema de expressão,
Pra ficar mais perto, bem mais de perto.
Ficar mais perto, bem mais de perto.

 

Clã, Kazoo, 1997

Composição: Hélder Gonçalves / Carlos Tê

 

Clã na foto da capa do álbum Kazoo, de 1997

 

Problema de expressão

Os Clã não escreveram só canções. Escreveram-nos canções. Para cantarmos de olhos fechados uma letra (de Carlos Tê) que revolvia a nossa timidez na hora de dizer ‘Amo-te’. Na língua inglesa, qualquer patetice fica mesmo sempre bem; em português, qualquer exteriorização de intimidade assume-se como extravagante (afinal, todas as cartas de amor são mesmo ridículas). A Carlos Tê reconhece-se o dom para simplificar conceitos complexos e para complexificar conceitos simples. Mas a Carlos Tê reconhece-se sobretudo o mérito de as suas letras nos fazerem vibrar como cordas. E foi ‘O Problema de Expressão’, do álbum “Kazoo”, que nos fez começar a vibrar como cordas com os Clã. É uma canção intimista, envolvente, delicada e viciante, fazendo-nos sentir parte do elenco em que foi composta. Há vizinhança entre a letra de ‘Problema de Expressão’ e a nossa sensibilidade.

“101 canções que marcaram Portugal #83: ‘O Problema de Expressão’, pelos Clã (1997)”. Ler mais: https://expresso.pt/blitz/2022-03-06-101-cancoes-que-marcaram-portugal-83-o-problema-de-expressao-pelos-cla--1997-

***

Depois de se descobrir o amor, nem sempre é fácil dizer ao outro que o amamos.

O sujeito de enunciação afirma ter um problema de expressão para dizer que ama alguém, porque não encontra o melhor termo ou modo.

Não entende o embaraço que o leva a achar que só tem estima por ele. Em muitos momentos, sente coisas confusas, não dizendo o que sente, mas sim o contrário.

Como é muito difícil dizer “amor”, e, uma vez que é bem melhor dizê-lo a cantar, o sujeito poético fez uma canção. Desta forma, resolveu o problema de expressão e conseguiu ficar mais perto, bem mais perto…

Contos & Recontos 7, Carla Marques e Inês Silva. Lisboa, ASA2013, p. 152

 


terça-feira, 5 de dezembro de 2023

Havia muito sol do outro lado (Crónica de José Eduardo Agualusa)

https://pixabay.com/


     Havia muito sol do outro lado

Aquilo tornara-se um vício. Ele ouvia um telefone a tocar e logo estendia o braço e levantava o auscultador.

– E se fosse para mim?

Os amigos faziam troça:

– No consultório do teu dentista?

Uma noite estava sozinho, no Rossio, à espera de um táxi, quando o telefone tocou numa cabina ao lado. Era no fim da noite e chovia: uma água mole, desesperançada, tão leve que parecia emergir do próprio chão. Ruben enfiou as mãos nos bolsos do casaco.

– É claro que não vou atender – disse alto. – Não pode ser para mim. Se atender este telefone é porque estou a enlouquecer.

O telefone voltou a tocar. Não chegou a tocar cinco vezes. Ele correu para a cabina e atendeu.

– Está?

Estava muito sol do outro lado. Era, tinha de ser, uma tarde de sol.

– Posso falar com o Gustavo?

A voz dela iluminou a cabina. Ruben pensou em dizer que era o Gustavo. Estava ali, àquela hora absurda, abandonado como um náufrago na mais triste noite do mundo. Tinha direito de ser o Gustavo (fosse ele quem fosse).

– Você não vai acreditar, mas a sua chamada foi parar a uma cabina telefónica.

Ela riu-se. Meus Deus – pensou Ruben – era como beber sol pelos ouvidos.

– Não brinques! És tu, Gustavo, não és?…

Sim ele tinha o direito de ser o Gustavo:

– Infelizmente não. Você ligou para uma cabina telefónica, no Rossio, eu estava à espera de um táxi e atendi.

Quase acrescentou: "pensei que pudesse ser para mim". Felizmente não disse nada. Ela voltou a rir:

– Tenho a sensação de que esta chamada vai ficar-me cara. Sabe onde estou?


Pulau Penang


Estava em Pulau Penang, na Malásia, e dali, do seu quarto, num hotel chamado Paradise, podia ver todo o esplendor do mar.

– Nunca vi nada com esta cor – sussurrou – só espero que Deus me dê a alegria de morrer no mar.

Ele ficou em silêncio. Aquilo parecia a letra de um samba. Ela começou a chorar:

– Desculpe que vergonha… Nem sequer sei como se chama.

Ruben apresentou-se: – Ruben, 34 anos, trabalho em publicidade.

Pediu-lhe o número de telefone e ligou utilizando o cartão de crédito. Aquela chamada ficou-lhe cara. Casaram oito meses depois. Ele diz a toda a gente que foi o destino. Ela, pelo sim pelo não, proibiu-o de atender telefones.

José Eduardo Agualusa, A substância do amor e outras crónicas. 3.ª edição, Lisboa, Publicações D. Quixote, 2009, pp. 53-54

 ***


Escreve um pequeno comentário, entre 80 e 100 palavras, sobre o sentido global do texto de José Eduardo Agualusa, atentando na caracterização de Ruben, nas atitudes perante o telefonema oriundo de Pulau Penang e na importância do destino na vida das pessoas.

(Proposta de escrita por Carla Marques e Inês Silva, em Contos & Recontos 7. Lisboa, ASA2013, p. 152)

 

       Sugestão de resposta:

O sentido global do texto é mostrar como o destino pode intervir na vida das pessoas, de forma surpreendente e maravilhosa.

Ruben é uma personagem solitária, que tem o hábito de atender telefones alheios, na esperança de encontrar alguém que lhe fale.

As atitudes perante o telefonema de Pulau Penang são de curiosidade, encantamento e coragem. Ruben decide arriscar-se a conhecer a mulher que lhe ligou por engano, e acaba por se apaixonar e casar com ela.

O destino é a força que une as duas personagens, que vivem em lugares tão distantes e diferentes.

O texto é uma celebração do amor e da magia do acaso.