quarta-feira, 21 de fevereiro de 2007

VIAGEM NA FAMÍLIA


a    m e u    p a i
  
Ernesto Carreiro (1923-2006)
  
    
  
FINITUDE

Que nos acontece de tão fatídico
que parece ser eterna a finitude do corpo
como acontece o fim da voz?
  
estarei um pouco ligado à luz
acha que na fogueira arde.
  
José Maria de Aguiar Carreiro
  
  



  
Ponta Delgada, 20 de Fevereiro de 2006.
  
Hoje, quando fui à visita das 20h, encontrei-o amarrado. Tiveram de o imobilizar, pois ele queria retirar os tubos de oxigénio e de soro. Queria vir-se embora, tresvariava, não sabia onde estava, referia factos e pessoas que só ocorreram na sua mente. Meu pai está no fim. Se estivesse consciente, estaria triste com a sua situação; contudo, como está a viver de ilusões mentais, isso liberta-o da tristeza consciente e dá-lhe outras preocupações que só poderiam ocorrer se tivesse uma vida activa.
  
Enquanto fala, coloco, instintivamente, a mão sobre a cabeça. Os cabelos brancos. É meu pai.
  
Que impoder.
  
  
  
Nordeste, 24 de Fevereiro de 2006.
  
A casa estremece de velha aquando da passagem do vento. Dentro em breve serei expulso destas paredes, só eu preencho os espaços com o meu corpo. Acostumara-me à casa repartida por três. Agora que um foco de energia se extinguiu, eu tento pensar no corpo como um objecto cósmico. E, nesse sentido, vejo harmonia – a possível – no mundo que me rodeia, de que faço parte. Por ora, não farei contas ao espírito. Apenas me retenho vagamente na energia irradiante que se extinguiu para se incorporar na terra velha e larga.
  
Com Vergílio Ferreira aprendi a ajeitar-me aos elementos, o fogo, o ar, a água e a terra, tidos outrora como os componentes do Universo. Só assim me apaziguo. Acomodo-me a um poema de Sophia:
  
Em todos os jardins hei-de florir,
em todos beberei a lua cheia,
Quando enfim no meu fim eu possuir
todas as praias onde o mar ondeia.
  
Um dia serei eu o mar e a areia,
a tudo quanto existe me hei-de unir,
e o meu sangue arrasta em cada veia
esse abraço que um dia de há-de abrir.
  
Então receberei no meu desejo
todo fogo que habita na floresta
conhecido por mim como um beijo.
  
Então serei o ritmo das paisagens,
a secreta abundância dessa festa
que eu via prometida nas imagens.
  
Não é hábito deter-me nos bens passados. Prefiro, antes, a fuga para a frente. Confio no devir, na potencialidade do cruzamento dos corpos. Sou apenas o espaço que enformo, aqui e agora.
  
  
  
Ponta Delgada, 8 de Março de 2006.
  
O corpo tem seus próprios cuidados: ora nos faz agarrar à vida, ora nos faz desistir dela, por força do seu próprio peso. Passamos uma vida a dominar o corpo com a mente, mas no fim da nossa história é ele que nos subjuga.
  
  
  
Nordeste, 22 de Abril de 2006.
  
Há um cadáver decompondo-se na terra. Eu sei. Vejo loucamente. O corpo requisitado pelo universo.
  
Como o Tempo, o incrível Tempo nos fez!
  
Tudo é aluído na terra e será conforme a dor.
Nem uma lápide, um livro ou uma oração
perdurarão no tempo.
  
Como vencer a morte da mente? Talvez reproduzindo-a integralmente noutro mecanismo criado pelo Homem. Poderíamos viajar pelo cosmos à velocidade com que pode viajar a informação. Poder-se-ia, até, unir todas as mentes numa só, formando uma supermente que estaria disseminada em muitos pontos do universo.
  
Sem possibilidade de fazer uma cópia da matriz do cérebro, somos, individualmente, seres para a morte.
  
    
  
Ponta Delgada, 15 de Setembro de 2006.
  
Nos anos anteriores, minha irmã telefonava-me a lembrar que hoje nosso pai fazia anos. Dele eu fixara o ano do seu nascimento, 1923. Em redor da casa paterna, lembro alguns marcos no tempo. Não sei ao certo as idades. Minha mãe nasceu a 12 de Dezembro de 1928; minha irmã a 2 de Outubro, cerca de uns dez anos antes de eu nascer, mais coisa menos coisa; e os sobrinhos, com os quais eu cresci e ajudei a crescer, mantêm a idade dos afectos.
  
  
  
Nordeste, 21 de Fevereiro de 2007
  11:50:36
  
  
No deserto de Itabira
a sombra de meu pai
tomou-me pela mão.
Tanto tempo perdido.
Porém nada dizia.
Não era dia nem noite.
Suspiro? Voo de pássaro?
Porém nada dizia.
  
Longamente caminhamos.
Aqui havia uma casa.
A montanha era maior.
Tantos mortos amontoados,
o tempo roendo os mortos.
E nas casas em ruína,
desprezo frio, humidade.
Porém nada dizia.
  
A rua que atravessava
a cavalo, de galope.
Seu relógio. Sua roupa.
Seus papéis de circunstância.
Suas histórias de amor.
Há um abrir de baús
e de lembranças violentas.
Porém nada dizia.
  
No deserto de Itabira
as coisas voltam a existir,
irrespiráveis e súbitas.
O mercado de desejos
expõe seus tristes tesouros;
meu anseio de fugir;
mulheres nuas; remorso.
Porém nada dizia.
  
Pisando livros e cartas,
viajamos na família.
Casamentos; hipotecas;
os primos tuberculosos;
a tia louca; minha avó
traída com as escravas,
rangendo sedas na alcova.
Porém nada dizia.
  
Que cruel, obscuro instinto
movia sua mão pálida
subtilmente nos empurrando
pelo tempo e pelos lugares
defendidos?
Olhei-o nos olhos brancos.
Gritei-lhe: Fala! Minha voz
vibrou no ar um momento,
bateu nas pedras. A sombra
prosseguia devagar
aquela viagem patética
através do reino perdido.
Porém nada dizia.
  
Vi mágoa, incompreensão
e mais de uma velha revolta
a dividir-nos no escuro.
A mão que eu não quis beijar,
o prato que me negaram,
recusa em pedir perdão.
Orgulho. Terror nocturno.
Porém nada dizia.
  
Fala fala fala fala.
Puxava pelo casaco
que se desfazia em barro.
Pelas mãos, pelas botinas
prendia a sombra severa
e a sombra se desprendia
sem fuga nem reacção.
Porém ficava calada.
  
E eram distintos silêncios
que se entranhavam no seu.
Era meu avô já surdo
querendo escutar as aves
pintadas no céu da igreja;
a minha falta de amigos;
a sua falta de beijos;
eram nossas difíceis vidas
e uma grande separação
na pequena área do quarto.
  
A pequena área da vida
me aperta contra o seu vulto,
e nesse abraço diáfano
é como se eu me queimasse
todo, de pungente amor.
Só hoje nos conhecermos!
Óculos, memórias, retratos
fluem no rio do sangue.
As águas já não permitem
distinguir seu rosto longe,
para lá de setenta anos...
Senti que me perdoava
porém nada dizia.
  
As águas cobrem o bigode,
a família, Itabira, tudo.
  
Carlos Drummond de Andrade (1902-1987)
  
  
  
  
.

  
Paula Rego, The Cadet and his Sister [O cadete e a irmã], 1988.
Acrílico em papel sobre tela, 213.4x213.4




CARREIRO, José. “Viagem na família”. Portugal, Folha de Poesia: artes, ideias e o sentimento de si, 21-02-2007. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2007/02/viagem-na-familia.html (2.ª edição) (1.ª edição: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2007/02/21/pai.aspx)



quinta-feira, 8 de fevereiro de 2007

NO BAIRRO DO AMOR

  
    “A ti! ai, a ti só os meus sentidos” (Almeida Garrett)
  
    “O bairro do amor é uma zona marginal” (Jorge Palma)
    

  
   
         
  
  
RAPTO
  
Conheço a viagem absoluta ao festim soado,
as lousas, as eras que fizeste comportar,
a fiança ateada com que absorvias.
  
Sou as vezes que disseste que me amavas,
os passeios de mãos dadas. Os beijos.
Os abraços apertados de que gostavas.
Sou as omissões pressentidas, as dúvidas instaladas,
a observância das atitudes.
Sou o diálogo requerido, a incapacidade de te fazer falar.
  
Por vezes incido o olhar sobre a tua ausência.
Por vezes regressas dela.
E eu fundo-me na linha irreflectida
no suposto ardor da romã.
  
Por vezes, atravessas-me como um corte, um traço na garganta.
E eu sou o despojo de mim
trapo no chão do amor.
  
(Fui soro e carne para tua terapia
lama para te besuntar
poesia.)
  
A vida por um gesto
um rapto, um beijo.
  
José Maria de Aguiar Carreiro
  
  
   



“Le Baiser de l'Hotel de Ville”, Paris, 1950, Robert Doisneau





Esta fotografia de Doisneau deu a volta ao mundo e transformou-se num símbolo do amor e da vida quotidiana na capital francesa.
  
Françoise Bornet estudava artes dramáticas no Curso Simon com seu namorado, Jacques Carteaud, quando Doisneau buscava material para uma reportagem da revista americanaAmerica's Life sobre os apaixonados de Paris.
  
O artista descobriu o casal num café parisiense e pediu para que os dois servissem de modelo e posassem na rua dando um beijo apaixonado.
  
No decurso deste post, encontram-se variações artísticas de "O Beijo do Hotel de Ville”. Imagens para celebrar o dia de namorados (14 de Fevereiro). Pois é, a sociedade tem destas coisas: a consignação no calendário do que gostaríamos que fosse o dia-a-dia dos namorados.
  

  
  
“Le Baiser de l’Hôtel de Ville”, Paris, Janeiro de 2002 (in troude.com/Voeux2002)  
 “Le Baiser de l’Hôtel de Ville”, Paris, Janeiro de 2002
  
  
  
  
  
  
  
  
  
A Casa dos Beijos
  
Iam os dois pela rua, de mãos dadas. Dir-se-ia que não pisavam o chão. Dir-se-ia que deslizavam, que vogavam, que voavam. A felicidade estava-lhes cunhada nos rostos; e também nos gestos, nos sorrisos, no olhar. Iam de mãos dadas pela rua e iam muito felizes.
  
Ela tinha os cabelos longos e soltos, o tronco alto. Os seios puxados para a frente, as pernas esbeltas e livres, saias curtas. Ele era um pouco mais alto, um pouco apenas, camisa aberta, calças de ganga, uma pequena mala, daquelas malas dos antigos guarda-freios da Carris, a tiracolo. Isso: a mala estava a tiracolo, e eles iam muito felizes, os dois, de mãos dadas.
  
Nem sequer reparavam que muitas pessoas os observavam. Algumas pessoas com a conivência de um sorriso. Outras pessoas com um ressaibo de inveja, no olhar de esguelha. Pararam um pouco em frente à Pastelaria Suíça, no Rossio, ele disse qualquer coisa a ela, ela encolheu os ombros. Não deixavam de sorrir enquanto conversavam. Depois entraram e beberam café.
  
A esplanada da Suíça estava cheia de sol e de estrangeiros. Um vendedor de lotaria ofereceu jogo. Um rapaz sujo pediu algum dinheiro. Dois homens encontraram-se e abraçaram-se com efusão. Uma mulher apressada deu um encontrão num cego. Um cigano tentava vender relógios. Um polícia contemplava as coisas com evidente indiferença.
  
O rapaz e a rapariga decidiram, depois de tomar café, passear pelo Rossio. Estavam muito felizes. E é bom que se repita isto, porque as pessoas, habitualmente, andam para aí cheias de infelicidade, ao menos que haja alguém feliz, mesmo que seja uma ou duas pessoas.
  
Passeavam pelo Rossio e, de vez em quando, davam beijos, sempre sorrindo um para o outro, como se estivessem a sorrir para todo o mundo, e todo o mundo experimentava uma grande sensação de espanto e de júbilo. Paravam junto às montras do Rossio, olhavam, claro, mas não fixavam nada do que nas montras se expunha, só sabiam um do outro, só estavam ali juntos para apenas estar um com o outro, juntos e assim mesmo: de mãos dadas e aos beijos.
  
Foi numa dessas ocasiões. Beijavam-se tão felizes, tão um do outro, que essa felicidade molestou uma senhora obesa e flácida. A senhora obesa e flácida estacou, indignada, a fuzilá-los com as balas do ódio. E gritou:
  
— Não podiam fazer isso em casa?
  
A rapariga dos longos cabelos e seios puxados para a frente deixou o beijo a meio. O rapaz experimentou uma estranha sensação de pasmo. Olharam-se. E foi então que a rapariga respondeu, indicando tudo em derredor:
  
— Esta é a nossa casa!
  
Nesse instante trémulo, o mundo feliz, começou a aplaudir.

  
Baptista-Bastos, Lisboa contada pelos dedos (2001)
  
  
  
Baptista-Bastos ganhou com o livro Lisboa Contada pelos Dedos o Grande Prémio de Crónica da Associação Portuguesa de Escritores. O júri – composto por Vergílio Alberto Vieira, Ernesto Rodrigues, Maria Augusta Silva e Luísa Mellid-Franco – foi unânime na atribuição do prémio.
  
“Fiquei satisfeito e muito lisonjeado. Este prémio é importante porque legitima uma velha batalha da literatura portuguesa. A crónica é um género superior da literatura, que em Portugal só pode ser publicada em jornais”, sublinhou Baptista-Bastos.
  
Lisboa Contada pelos Dedos reúne cerca de oitenta crónicas publicadas em jornais e revistas como o Diário PopularRepúblicaJornal de NotíciasPúblicoTempo Livre e Bola, sempre em torno de Lisboa, personagem sempre presente na escrita de Baptista-Bastos.
  
Como dizia certo libertino de nome Luiz Pacheco"Leiam o livro todo. São trabalhos jornalísticos exemplares. Há talento, há verve, há ousadia, há um homem, há um escritor".
  

  
                 
Fui à praia, e vi nos limos 
a nossa vida enredada:
ó meu amor, se fugimos,
ninguém saberá de nada.

Na esquina de cada rua,
uma sombra nos espreita,
e nos olhares se insinua,
de repente uma suspeita.

Fui ao campo, e vi os ramos
decepados e torcidos:
ó meu amor, se ficamos,
pobres dos nossos sentidos.

Hão-de transformar o mar
deste amor numa lagoa:
e de lodo hão-de a cercar,
porque o mundo não perdoa.

Em tudo vejo fronteiras,
fronteiras ao nosso amor.
Longe daquí,onde queiras,
a vida será maior.

Nem as esp'ranças do céu
me conseguem demover
Este amor é teu e meu:
só na terra o queremos ter.

                                       David Mourão-Ferreira, À guitarra e à viola, 1960

  
“Bouquet of jonquils” (1950), Robert Doisneau
  
  

NÃO POSSO ADIAR O AMOR PARA OUTRO SÉCULO
  
Não posso adiar o amor para outro século
não posso
ainda que o grito sufoque na garganta
ainda que o ódio estale e crepite e arda
sob montanhas cinzentas
e montanhas cinzentas
  
Não posso adiar este abraço
que é uma arma de dois gumes
amor e ódio
  
Não posso adiar
ainda que a noite pese séculos sobre as costas
e a aurora indecisa demore.
não posso adiar para outro século a minha vida
nem o meu amor
nem o meu grito de libertação.
  
Não posso adiar o coração.
  

António Ramos Rosa, Viagem através de uma nebulosa (1960)
  
  

  
“Beijo” (1907/08), de Gustav Klimt, num mural da Síria
Tammam Azzam. Syrian Museum - Gustav Klimt's The Kiss (Freedom Graffiti), 2013

  
  
Gustav Klimt (1862-1918) em “O Beijo” baseia-se em si mesmo e na sua amante Emilie, retratada como mulher fatal que aparece submissa e comunica uma sexualidade latente. “O Beijo” constitui o auge do período dourado e torna-se o emblema da Secessão.
  
  

  
  
O meu amor
  
Teresinha:
O meu amor
Tem um jeito manso que é só seu
E que me deixa louca
Quando me beija a boca
A minha pele toda fica arrepiada
E me beija com calma e fundo
Até minh'alma se sentir beijada, ai
  
Lúcia:
O meu amor
Tem um jeito manso que é só seu
Que rouba os meus sentidos
Viola os meus ouvidos
Com tantos segredos lindos e indecentes
Depois brinca comigo
Ri do meu umbigo
E me crava os dentes, ai
  
As duas:
Eu sou sua menina, viu?
E ele é o meu rapaz
Meu corpo é testemunha
Do bem que ele me faz
  
Lúcia:
O meu amor
Tem um jeito manso que é só seu
De me deixar maluca
Quando me roça a nuca
E quase me machuca com a barba malfeita
E de pousar as coxas entre as minhas coxas
Quando ele se deita, ai
  
Teresinha:
O meu amor
Tem um jeito manso que é só seu
De me fazer rodeios
De me beijar os seios
Me beijar o ventre
E me deixar em brasa
Desfruta do meu corpo
Como se o meu corpo fosse a sua casa, ai
  
As duas:
Eu sou sua menina, viu?
E ele é o meu rapaz
Meu corpo é testemunha
Do bem que ele me faz
  

Para a peça Ópera do malandro, de Chico Buarque
  
    
“O Beijo” (1910), Constantin Brancusi
  
  
Uma linha mediana, interrompida pela cintura infinita dos braços que se entrelaçam, formando um duplo quadro, separa os corpos colados. Das duas figuras vêem-se apenas os olhos, a boca (reduzida a um minúsculo traço de união) e os cabelos, sugeridos em algumas incisões curvadas, enquadrando os rostos amorosos entrelaçados.
  
"O Beijo" é uma escultura realizada por Constantin Brancusi (1876-1957), artista romeno, que abriu novas vias à escultura, no início do século XX, no momento em que a cena artística europeia vivia com frenesim a aventura da investigação de novas linguagens formais e expressivas. Com esta escultura, manifestou a sua convicção segundo a qual a escultura deve ser sobretudo de uma exigência total sobre as formas e sobre o sentido.
  
Constantin Brancusi realizou uma primeira versão do “Beijo” em 1907, depois simplificou-a e transformou-a em monumento fúnebre no cemitério de Montparnasse, em 1910, dedicando-a a uma amiga que se suicidou por amor. (www.amour.ro)
  
 Picasso, “O Beijo” (1969)
 Picasso, “O Beijo” (1969)
  
  
A ousadia de Picasso fez com que, no final da vida, recebesse críticas negativas. Ao lançar “O Beijo”, em 1969, a crítica conservadora ficou indignada. Como podia um homem "velho" ainda se interessar por assuntos ligados à sexualidade? De 1925 a 1972, a sua obra tornou-se, mais do que nunca, pessoal. A sua inspiração girava em torno dos seus amores, amizades, prazeres, mulheres e desejos. Sem esse pensamento, nada valeria a pena, na vida ou na arte.
  
  
“O Beijo” (26-10-1969), Picasso, Museu Picasso, Paris

The Kiss
Pablo PicassoThe Kiss (Le baiser), Mas Notre-Dame-de-Vie, Mougins,1969
  

  
  
Todas as cartas de amor são
Ridículas.
Não seriam cartas de amor se não fossem
Ridículas.
  
Também escrevi em meu tempo cartas de amor,
Como as outras,
Ridículas.
  
As cartas de amor, se há amor,
Têm de ser
Ridículas.
  
Mas, afinal,
Só as criaturas que nunca escreveram
Cartas de amor
É que são
Ridículos.
  
Quem me dera no tempo em que escrevia
Sem dar por isso
Cartas de amor
Ridículas.
  
A verdade é que hoje
As minhas memórias
Dessas cartas de amor
É que são
Ridículas.
  
(Todas as palavras esdrúxulas,
Como os sentimentos esdrúxulos,
São naturalmente
Ridículas.)
  
Álvaro de Campos (21-10-1935)
       
       

O poema "Todas as cartas de amor são ridículas" de Álvaro de Campos é uma reflexão sobre a natureza das cartas de amor e a forma como são percebidas pelas pessoas. O poema apresenta uma estrutura bastante organizada, com o sujeito lírico a desenvolver a sua argumentação através de sete estrofes de métrica irregular.

Através da repetição da ideia principal, o sujeito lírico procura provar a tese de que as cartas de amor são ridículas. No entanto, ao longo do poema, vamos percebendo que essa opinião não é tão linear como parece à primeira vista. Na verdade, o sujeito lírico reconhece que, quando há amor verdadeiro e autêntico, as cartas de amor têm de ser caracterizadas por um tom exageradamente sentimental.

A crítica do poema não é dirigida às cartas de amor em si, mas sim às pessoas que nunca expressaram os seus sentimentos de forma tão simples, sincera e sem barreiras. O sujeito lírico assume mesmo que sente saudades do passado inocente e esperançoso em que escrevia cartas de amor.

No entanto, o poema também revela uma certa amargura do sujeito lírico em relação ao seu passado e à forma como viveu o sentimento amoroso. O poema sugere que, com o tempo, a forma como encara e vive o sentimento amoroso mudou, e ele próprio foi-se tornando mais fechado e incapaz de se expressar de um modo tão intenso e genuíno.

No final, o poema apresenta uma estrofe parentética que pode ser interpretada como uma explicação de toda a argumentação do sujeito lírico. Todas as palavras e os sentimentos presentes numa carta de amor são ridículos, mas essa é a única forma de expressar o amor e os sentimentos mais profundos.

        





     

CARREIRO, José. “No bairro do amor”. Portugal, Folha de Poesia: artes, ideias e o sentimento de si, 08-02-2007. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2007/02/no-bairro-do-amor.html (2.ª edição) (1.ª edição: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2007/02/08/amor.aspx)