domingo, 23 de agosto de 2009

A CAPACIDADE CEREBRAL QUE NOS SOBRA



  
  
[…]
— Julgava que isso do eu era coisa que não existia.
  
— E não existe mesmo tal coisa, se está a referir-se a uma entidade bem determinada e distinta. Mas claro que há vários eus. Estamos sempre a inventá-los… como você inventa as suas histórias.
   
— Está a dizer que as nossas vidas são meras ficções?
   
— De certa forma. Essa é uma das coisas que fazemos com a capacidade cerebral que nos sobra. Inventamos histórias a respeito de nós próprios.
[…]
Após uma pausa Helen pergunta: — O que quis dizer com aquilo da capacidade cerebral que nos sobra?
  
— Ora bem, o cérebro humano é muito maior do que o de qualquer outro animal do planeta. O nosso ADN é apenas diferente em um por cento do dos chimpanzés, os nossos parentes mais próximos, mas o nosso cérebro é três vezes maior. Como é óbvio isso deu aos nossos antepassados primitivos uma enorme vantagem na escala evolutiva. Aprendemos a fazer armas e ferramentas, a comunicar através da linguagem, a resolver problemas através do processamento de várias opções pelo nosso computador mental em vez de nos limitarmos a reagir instintivamente. Fomos capazes de ir além dos quatro Cês. Combater, comer, copular e... defecar.
  
— Ah... — Helen deixou escapar uma risadinha.
  
— Mas as potencialidades do cérebro humano excedem muitíssimo o avanço que temos em termos evolutivos sobre as outras espécies. E isso que eu quero dizer com a capacidade que nos sobra. O homem primitivo era como um tipo a quem deram o último modelo em computadores e se limita a usá-lo para simples operações aritméticas. Mais tarde ou mais cedo vai começar a brincar com ele e acabará por descobrir que pode fazer também muitíssimas outras coisas. Foi o que, com o tempo, acabámos por fazer com o nosso cérebro. Desenvolvemos a linguagem. Começámos a reflectir sobre a nossa própria existência. Tomámos consciência de nós próprios como criaturas com um passado e um futuro, com histórias individuais e colectivas. Desenvolvemos a cultura: a religião, a arte, a literatura, o direito... a ciência. Mas existe a outra face da autoconsciência. Sabemos que vamos morrer. Imagine o choque que isso deve ter sido para o Homem de Neandertal ou para o Homem de Cro-Magnon ou para quem quer que tenha sido o primeiro a descobrir a terrível verdade: que um dia seria apenas carne. Os leões e os tigres não sabem disso. Os macacos não sabem disso. Mas nós sabemos.
  
— Os elefantes devem saber — interpõe Helen. — Têm cemitérios.
  
— Receio que isso seja um mito — diz Ralph. — O homo sapiens foi o primeiro e o único ser vivo na história da evolução a descobrir que era mortal. E depois como é que ele reage? Inventa histórias para explicar como se meteu nesta embrulhada e como poderá sair dela. Inventa a religião, desenvolve ritos funerários, inventa histórias sobre a vida para além da morte e a imortalidade da alma. Com o passar do tempo estas histórias vão-se tornando cada vez mais elaboradas. Mas na etapa mais recente do desenvolvimento cultural, apenas há uns segundos atrás em termos da história da evolução, a ciência desabrocha repentinamente e começa a contar uma história bem diferente acerca do modo como viemos aqui parar, uma história muito mais credível que ganha de longe à religiosa. Hoje em dia já são muito poucas as pessoas inteligentes que acreditam na história contada pela religião, embora continuem a agarrar-se a ela e a procurar consolo em alguns dos seus conceitos, tais como a alma, a vida para além da morte, e por aí fora.
  
— Penso que é precisamente isso que o incomoda, não é? — diz Helen. — Que a maior parte das pessoas continue teimosamente a acreditar que existe um espírito dentro da máquina por mais que os cientistas e os filósofos lhes digam que não.
  
— Não me «incomoda» propriamente — diz Ralph.
  
— Incomoda, sim — diz Helen. — É como se estivesse apostado em eliminá-lo da face da terra. Que nem um inquisidor determinado a pôr fim às heresias.
  
— Só acho que não devemos confundir aquilo que gostaríamos que fosse com aquilo que realmente é — diz Ralph.
  
— Mas admite que temos pensamentos que são privados, secretos, conhecidos apenas de nós próprios.
  
— Sim, claro.
  
— Admite que a minha experiência deste momento, estar aqui refastelada na água quente a contemplar as estrelas, não é exactamente a mesma que a sua?
  
— Estou a ver aonde quer chegar — diz ele. — Está a dizer que existe algo que lhe pertence só a si, ou a mim, uma certa qualidade da experiência que é exclusivamente sua ou minha, que não pode ser descrita com objectividade nem explicada em termos puramente físicos. Aquilo a que poderíamos chamar um eu imaterial ou alma.
  
— Sim, penso que sim.
  
— Pois eu digo que continua a ser uma máquina. Uma máquina virtual dentro de uma máquina biológica.
  
— Então é tudo uma máquina?
  
— Tudo o que processa informação é, sim.
  
— Acho essa ideia aterradora.
  
Ele encolhe os ombros e sorri. — Você é uma máquina que foi programada pela cultura para não reconhecer que é uma máquina. […]
  
  
In Pensamentos Secretos, David Lodge, Porto, Ed. Asa, 2002, pp. 114-116
tradução do original inglês (Thinks…, 2001) por Ana Maria Chaves e Rita Pires.
  

  
  [Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2009/08/23/autoconsciencia.aspx]

terça-feira, 18 de agosto de 2009

CONSCIENCIA





  
  
[…] a investigação da consciência é uma investigação àquilo que nos torna humanos, à forma como sabemos aquilo que sabemos. Ou pensamos que sabemos. Seremos nós animais ou máquinas, ou uma combinação das duas coisas, ou alguma coisa diferente de cada uma delas? Compreender a consciência, ocorreu-me este fim-de-semana, é para a ciência moderna o que a pedra filosofal foi para a alquimia: a última maravilha na demanda do saber.
  
A busca de uma substância capaz de transformar em ouro o vil metal era, claro está, uma busca vã, porque não existe um tal composto, nem pode ser fabricado; mas, no decurso do processo experimental, muitas descobertas genuínas foram feitas — da porcelana à pólvora. Talvez nunca cheguemos a compreender cabalmente a consciência — sei que há especialistas que têm esta perspectiva, e devo dizer que a acho intuitivamente apelativa — mas o esforço para o conseguir já deu azo a muitas descobertas fascinantes sobre o cérebro e a mente […].
  
Foram, porém, muito poucas as referências feitas à literatura durante os trabalhos. O que me surpreende, porque a literatura é um registo escrito da consciência humana, porventura o mais rico que possuímos. Vou radicar as minha observações num pequeno texto literário, um poema — ou, para ser mais exacta, três estâncias do meio de um poema. O poema chama-se O Jardim, foi escrito por Andrew Marvell, um poeta inglês do século XVII, e é uma espécie de ode extasiada à alegria de se experimentar a natureza cultivada. A primeira dessas três estâncias descreve os prazeres sensuais de um jardim ideal. […]
  
  
Que doce Vida levo aqui neste lugar!
Maduros Pomos me cercam a balouçar;
Voluptuosos cachos, qual miragem,
Na minha boca em vinho se desfazem;
Os damascos e os pêssegos, curiosos,
Para as minhas mãos se estendem, ansiosos;
Tropeço nos melões, meu passo erra,
Enleado em flores caio por terra.
What wondrous life is this I lead! 
Ripe apples drop about my head ; 
The luscious clusters of the vine 
Upon my mouth do crush their wine ; 
The nectarine and curious peach 
Into my hands themselves do reach ; 
Stumbling on melons as I pass, 
Insnared with flowers, I fall on grass.
  
  
Ouvimos falar muito dos qualia […]. Vejo que as opiniões se dividem quanto a serem uma proeza do cérebro ou uma proeza da mente, fenómenos na primeira pessoa, eternamente inacessíveis ao discurso científico na terceira pessoa, ou padrões regulares da actividade neurológica que apenas se tornam problemáticos quando os traduzimos para a linguagem verbal. Não sou competente para arbitrar neste assunto. Mas deixem-me chamar a vossa atenção para um paradoxo contido na estância de Marvell, o qual se aplica à poesia lírica em geral. Embora fale na primeira pessoa, Marvell não está a falar apenas em seu nome. Ao lermos esta estância extrapolamos para a nossa experiência dos qualia de fruto e de fruição. Vemos o fruto, sentimos-lhe o gosto e o perfume, e saboreamo-lo com aquilo que foi designado por a excitação do reconhecimento, embora o fruto não esteja presente, embora seja apenas a realidade virtual de um fruto invocada pelos qualia do próprio poema, uma combinação única e subtil de sons, ritmos e significados, que eu poderia tentar analisar se houvesse mundo e tempo que chegassem, para citar um outro poema de Marvell — mas não há.
  
Na próxima estância Marvell volta-se para a natureza privada, subjectiva, da consciência. […]
  
  
Enquanto isto, a Mente, de Prazer esgotada,
Recolhe-se à Felicidade encontrada:
A Mente, esse Oceano onde cada ente
Logo encontra o seu equivalente,
Cria porém, transcendendo todos,
Outros Mundos e outros Mares a rodos;
Reduzindo tudo o que foi criado
A um conceito verde em verde sombra olhado.
Meanwhile the mind, from pleasure less, 
Withdraws into its happiness : 
The mind, that ocean where each kind 
Does straight its own resemblance find ; 
Yet it creates, transcending these, 
Far other worlds, and other seas ; 
Annihilating all that's made 
To a green thought in a green shade.
  
  
Há uma alusão no quarto verso a uma crença bizarra, mas muito comum na época, de que todas as criaturas tinham os seus correlativos no mar, o que coloca o poema numa era pré-científica. Mas isto não passa de um tropo, o que não afecta, creio eu, a validade da proposição central da estância: que a consciência humana é a única capaz de imaginar aquilo que não é fisicamente apreensível pelos sentidos, capaz de imaginar coisas que não existem, capaz de criar mundos imaginários (como os romances) e capaz de ter pensamentos abstractos — de distinguir por exemplo a ideia de cor (um conceito verde) da sensação de cor (em verde sombra olhado).
  
É isto dualismo? Bem, se qualquer distinção entre mente e corpo é dualismo, então suponho que é, se bem que me pareça difícil evitá-lo, tão profundamente enraizado está na linguagem e hábitos de pensamento. Mesmo os mais tenazes opositores da teoria do espírito dentro da máquina acabariam, contrariados embora, por nos deixarem usar os termos, mente e corpo, desde que ficasse entendido que a primeira é uma função do segundo e dele inseparável.
  
Todavia, Marvell, como todos os homens da sua época, era dualista num sentido muito mais forte do que esse, o que se torna evidente na estância seguinte. […]
  
  
Aqui, nas Fontes de pedra escorregadia,
Ou entre as Arvores que o musgo acaricia,
Do Corpo a Veste enfim despindo
Minha Alma para os ramos vai subindo:
Neles pousa, como um Pássaro e, trinando,
As argentinas Asas com o bico vai alisando;
E, até estar preparado para voo mais alongado,
Reflecte em suas Plumas os Matizes variegados.
Here at the fountain's sliding foot, 
Or at some fruit-tree's mossy root, 
Casting the body's vest aside, 
My soul into the boughs does glide : 
There like a bird it sits and sings, 
Then whets and combs its silver wings ; 
And, till prepared for longer flight, 
Waves in its plumes the various light.
  
  
Descartes, segundo tenho ouvido dizer, acreditava na imortalidade da alma, porque era capaz de imaginar a sua mente a existir separada do corpo. Marvell expressa essa ideia na belíssima imagem do pássaro. Ele imagina a sua alma a deixar temporariamente o corpo para se empoleirar no ramo de uma árvore, onde alisa as penas e se prepara para o voo final até ao céu. Não estou à espera de vos levar com ele até lá. Uma tal ideia da alma seria hoje fantasiosa, mesmo para os cristãos mais crentes. Mas a ideia cristã da alma está ligada à ideia humanista do eu, isto é, o sentimento de identidade pessoal, o sentimento de que a vida mental e emocional tem uma unidade, uma extensão no tempo e uma responsabilidade ética por vezes denominada consciência.
  
A ideia do eu está hoje debaixo de fogo, não só em grande parte do debate científico sobre a consciência, mas também nas humanidades. Dizem-nos que é uma ficção, uma construção, uma ilusão, um mito. Que cada um de nós não passa de um saco de neurónios, ou de uma encruzilhada de discursos convergentes, ou de um computador a funcionar sozinho em paralelo, sem operador. Como ser humano e como escritora, considero essa visão da consciência abominável — e intuitivamente nada convincente. Quero continuar agarrada à ideia tradicional de um eu autónomo e individual. Tanto do que prezamos na civilização parece depender dela — a lei, por exemplo, e os direitos humanos — incluindo os direitos de autor. Marvell escreveu O Jardim antes de ter surgido o conceito de direitos de autor, mas uma coisa é certa, mais ninguém o poderia ter escrito e mais ninguém voltará a escrevê-lo — excepto na acepção trivial de o copiar palavra por palavra.
  
O poema é uma celebração, centra-se na consciência como um estado de felicidade. É um poema acerca da felicidade plena. Há, porém, uma dimensão trágica na consciência que também quase não foi aflorada nesta conferência. Há a loucura, a depressão, a culpa e o pavor. Há o medo da morte — e, mais estranho que tudo o resto, o medo da vida. Se os seres humanos são as únicas criaturas vivas que realmente sabem que vão morrer, são também as únicas que, conscientemente, põem termo à vida. Para certas pessoas, em certas circunstâncias, a consciência torna-se tão insuportável que se suicidam para lhe pôr fim. Ser ou não ser? é uma pergunta peculiarmente humana. A Literatura também nos pode ajudar a compreender o lado negro da consciência.
  
  
In Pensamentos Secretos, David Lodge, Porto, Ed. Asa, 2002, pp. 339-343
tradução do original inglês (Thinks…, 2001) por Ana Maria Chaves e Rita Pires.
  
  
[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2009/08/18/CONSCIENCIA.aspx]



PODERÁ TAMBÉM GOSTAR DE:

. "Sobre a alma", por Frederico Lourenço.
  

domingo, 14 de junho de 2009

o amor aparece assim de repente (José Carreiro)

   
   
   
   
   
“o amor, afinal, aparece assim de repente (como a chuva)”

(in Grande Reportagem, “O Sexo e a Cidália”, 28/8/2004)
   
   
   



   
assim de repente como o amor a chuva afinal
parece sexo
como a chuva de repente o amor é sexo, aparece
parece chuva de repente como amor

José Maria de Aguiar Carreiro  
   
   
   
   
[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2009/06/14/o-amor-aparece-assim-de-repente.aspx]
   

Análise literária solicitada ao ChatGPT, em 2023-02-15:

O poema "Chuva de Época" de José Maria de Aguiar Carreiro é um texto poético de curta extensão, mas que traz em si uma série de reflexões acerca da natureza do amor e da chuva. A primeira leitura pode parecer bastante simples, mas a partir de uma análise mais atenta, percebe-se que há uma complexidade na construção do poema que propõe uma reflexão profunda sobre os conceitos de amor, sexo e chuva.

O poema começa com uma comparação inusitada entre a chuva e o amor. O primeiro  verso apresenta a ideia de que, assim como a chuva, o amor pode surgir de repente. A chuva é um fenómeno natural que pode acontecer a qualquer momento, sem aviso prévio, assim como o amor pode surgir inesperadamente. Essa comparação inicial entre a chuva e o amor sugere que ambos são fenómenos que escapam ao controle humano, e que podem ter um efeito arrebatador.

No segundo e terceiro versos, a comparação entre a chuva e o amor é ampliada para incluir a noção de sexo. O sujeito poético sugere que, assim como a chuva pode parecer um ato sexual, o amor pode ter uma conotação sexual também. A ideia de que a chuva é uma espécie de metáfora para o sexo é interessante, pois ambas as coisas têm uma carga de intensidade, urgência e prazer. A imagem que se constrói é de um ato sexual que é tão intenso quanto a chuva, que cai de forma abundante e impetuosa.

O último verso do poema retoma a ideia de que a chuva e o amor podem parecer a mesma coisa. O verso "parece chuva de repente como amor" sugere que a intensidade da chuva pode ser vista como uma expressão do amor, e vice-versa. O poema termina com uma afirmação que sugere que a experiência do amor é algo que deve ser vivido e sentido de forma intensa, e que cabe ao leitor fazer a sua própria interpretação.

O uso de metáforas e comparações é uma característica marcante do poema. O poeta utiliza a imagem da chuva para evocar a intensidade do amor e do sexo, e ao mesmo tempo, sugere que a chuva pode ser vista como uma expressão do amor. Além disso, a escolha das palavras é simples e direta, o que dá ao poema uma sensação de fluidez e naturalidade.

Em suma, o poema "Chuva de Época" é uma reflexão profunda sobre a natureza do amor e da chuva. A comparação inusitada entre os dois elementos é usada para evocar a intensidade do amor e do sexo, e para sugerir que esses fenómenos têm uma relação intrínseca com a natureza. O poema é um convite à reflexão sobre a experiência humana e suas múltiplas manifestações.

ChatGPT (Feb 13 Version). Disponível em https://chat.openai.com/chat, 2023-02-15 (revisto e adaptado)


segunda-feira, 4 de maio de 2009

O SONETO É UMA CASA POÉTICA


«Falemos de casas

[…]

pensamentos nas pedras de alguma coisa

celeste como fogo exemplar.»  


Herberto Hélder, "Prefácio" in A Colher na Boca
Apud Poesia TodaLisboa, Assírio & Alvim, 1990

     
    
    
     
«O soneto é uma casa poética. Em nenhuma outra forma fixa o lirismo sabe conter-se tão amoldado, tão justo na medida que o veste e tão livre nos movimentos de respiração e de gesto que lhe apontam o exterior de que é abrigo e olhar. Medidas e casas são gosto e desejo de cada um, mas sempre se pode determinar o maior ou menor espaço que delimita o canto habitável e a maior ou menor folga que define a propriedade ou o empréstimo. Formas de rigor no estar livre, em suma. Com as adaptações subjectivas que sempre condicionam a liberdade dos outros (a do género) pela nossa e lhe conferem o rigor do exacto momento que vivemos. Assim o soneto, depois da grande fortuna clássica e simbolista que soube conquistar, se preterido pelas formas anárquicas da des-“ocupação do espaçocontemporâneo, num sistema de substituições[…]».

Mª Alzira Seixo, Discursos do Texto,
Amadora, Livraria Bertrand, 1977, pp. 283-284.
     
*

«[…] o soneto é uma estrutura e é uma unidade de tratamento da linguagem poética, constituindo uma descida vertical na pesquisa e na construção do poema considerado como um objecto.»               


E. Melo e Castro, depoimento a O Tempo e o Modo, 59, p. 383.

*

O que há no soneto? Uma unidade perfeita: desenha-se cada ideia parcial deper si, mas não tão independente das outras que não haja entre elas relação, até que afinal, juntando tudo num só se apresenta por todos os lados simultaneamente como em resumo, o fecho – chave de ouro! Dai, a unidade. E simplicidade? Toda: as partes conservam estreito laço entre si, é só um sentimento, só uma ideia; não são várias, mas vários lados: a unidade final funde-os num todo.

Antero de Quental, «Prefácio à Edição dos Sonetos de 1861». In: Antero de Quental, Sonetos, Organização, introdução e notas de Nuno Júdice, Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2002, p. 230.







1988

Observem que o poema de Avelino de Araújo só usou palavras no título. O texto, em si, é construído na associação visual da imagem que compõe o corpo do poema com as duas palavras do título. Analisando esta combinação temos o desenho de uma cerca de arame farpado, a palavra apartheid e a palavra soneto. E a indicação do contexto histórico da produção do texto remonta ao ano de 1988. A leitura mais imediata que o texto provoca  – entre outras possíveis – é a que relembra o significado de apartheid, o regime político de segregação racial que imperou na África do Sul até os anos 90. No apartheid eram determinadas as áreas das cidades em que os negros poderiam viver e em quais eles poderia circular. Se ultrapassassem os limites estabelecidos eram violentamente reprimidos pela polícia. A palavra soneto, por sua vez, evoca a forma fixa mais clássica de poesia: o poema com 14 versos, distribuídos em duas estrofes de 4 versos (dois quartetos) e duas estrofes de 3 versos (dois tercetos). É a forma em que estão distribuídas as linhas que formam a imagem do corpo do texto. Linhas que são fios de arame farpado, objeto usado para fazer cercas que delimitam propriedades… ou que formam cercados para animais.
Com a associação da imagem do arame farpado disposto numa cerca de quatro-quatro-três-três às palavras apartheid soneto Avelino de Araújo nos diz muito sobre o regime doapartheid: esse regime segregacionista, ao confinar seres humanos a áreas restritas, trata-os como animais. Três palavras e uma imagem foram suficientes para construir este sentido.
https://literarizando.wordpress.com/2009/03/08/gabaritos-2009-ficha-2/



PROPOSTA DE ESCRITA RECREATIVA, EXPRESSIVA E LÚDICA:

O soneto seguinte foi escrito por Florbela Espanca, mas encontra-se incompleto.
Completa-o de forma lógica, mantendo o tom poético (linguagem conotativa) e respeitando as seguintes características:

Os versos são decassilábicos;
O esquema rimático é ABAB BABA CCD EED;
Os versos encontram-se agrupados em quatro estrofes (duas quadras e dois tercetos);
O último terceto termina com chave de ouro.



Vaidade

Sonho que sou a Poetisa eleita,
Aquela que _________________,
Que tem a inspiração _________________,
Que reúne num _________________ a imensidade!

Sonho que um verso meu tem claridade
Para encher _________________! E que de leita
Mesmo aqueles que morrem de _________________!
Mesmo os de alma profunda e _________________!

_________________ que sou Alguém cá neste mundo...
Aquela de _________________ vasto e profundo,
Aos pés de quem _________________ anda curvada!

E quando mais no céu eu vou _________________,
E quando mais no alto ando _________________,
Acordo do _________________... E não sou _________________...
Florbela Espanca


(Para)Textos. Caderno de AtividadesLíngua Portuguesa 8.º Ano. Ana Miguel de Paiva, Gabriela Barroso de Almeida, Noémia Jorge, Sónia Gonçalves Junqueira. Porto Editora, 2012, p. 71.




PODERÁ TAMBÉM GOSTAR DE:


Como escrever um soneto, criado por Jack.aw, revisões wikiHow.

Sonetário brasileiro, Elson Fróes.

Poesia lúdica barroca, Folha de Poesia, José Carreiro, 2010-11-04.

Soneto, recurso didático da Areal Editores
           

    
[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2009/05/04/soneto.aspx]