quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

escrever em caixa baixa

              
Coisas escusadas ou cuja necessidade se não vislumbra logo geram consequências cuja perversidade por sua vez se não vislumbra logo.
Já as necessárias ou assim convertidas por retroação nem por isso produzem efeitos notórios ou ainda visíveis. Quem terá notado, por exemplo, que o mais importante acontecimento do jazz contemporâneo foi a criação da Italian lnstabile Orchestra em 1990? Causa a maior admiração o número de pessoas que ignora este dado essencial da nossa contemporaneidade.
Admira mais que se perca tempo com coisas escusadas como haver escritores que, depois de as terem banido, restabelecem as maiúsculas para conforto dos leitores.
Entendo que Valter Hugo Mãe – é dele que falo ‑ achasse imprescindível assinar sem maiúsculas, posto entenda menos que escrevesse os livros desse jeito.
O que porém sempre me pareceu escusado foi a rotina dos outros, que faziam o mesmo quando tinham de mencionar-lhe o nome, como se também assinassem ou estivessem obrigados a respeitar as idiossincrasias do mencionado.
Mas realmente escusado era eu ficar a saber que também para o próprio Mãe o exclusivo das minúsculas era afinal prescindível: e, de novo, o que importa não é só que tenha reposto as maiúsculas no seu recente romance, é também que a reposição logo fosse acolhida por outros como autorização ou convite para fazerem o mesmo.
Mas então agora é que se exigia recusar as maiúsculas!
Se tivesse havido razão para estar com ele escrevendo-lhe o nome em minúsculas por ter ele razão para escrever sem maiúsculas, havia de ser imprescindível reclamarmo-nos de tal razão, fazê-la nossa, e continuar a mencioná-lo na forma minusculada, ou, quando menos, designá-lo como «o escritor até aqui conhecido em minúsculas»...
Se não havia razão para banir as maiúsculas, também não há nenhuma para as trazer de volta.

Confesso que estas coisas me afligem, embora apenas pelo grau de capricho que sugerem. São escusadas, demais em altura de austeridade.
Imaginem escritor a quem ocorresse a excentricidade de adotar como assinatura a transcrição fonética do nome próprio... Seria inédito, embora proveitoso, caso servisse de treino a quem tenha dificuldades em reconhecer os clássicos russos nas traduções dos Guerra.
Mas maiúsculas ou minúsculas, que importa isso? Justamente porque nada, em rigor nada, é que mais vale usar umas e outras em vez de aspirar ao lugar de primeiro escritor que aboliu o ponto e vírgula. As maiúsculas, os parágrafos, o ponto final, as reticências, as aspas, sobretudo as aspas, são um enorme progresso precisamente porque não há razão que as defenda, são sempre desnecessárias, ou dispensáveis, ou escusadas ‑ e no entanto lá estão.
Lembro-me de há uns anos receber mensagens de um amigo que terminava as frases com reticências, opção bizarra, não sendo gago, nem pretendendo simular tom reticente, ele que era assertivo ao ponto do incómodo: era a feição ortográfica que o identificava.
                
A legibilidade agradece a ordem, e a ordem ganha com a clarificação dos sinais no espaço.
As pessoas que escrevem prescindindo de um ou outro sinal por este ou aquele motivo fútil deviam ser desafiadas, em nome da coerência, a ir além e escrevercomonotempoemquenamsissonhavacomortografiaeaspalavrazeramtodasescritas-seguidaseatehcumeRosecoisasplomeiosamseparaçamdecapitolozmuntomenupara-grafosucomas.
      
       
Coisas escusadas dão rédea solta ao disparate.
Li há pouco, acho que num blogue, o argumento decisivo nesta pendência das minúsculas: quando conversamos, não usamos maiúsculas nem minúsculas e não deixamos por isso de nos entender uns aos outros. Dir-se-ia uma defesa primitiva da cacografia libertária... Mas quem isto diz nem chega a ter noção de ortografia. Depois de tanta manifestação pública e privada à custa do acordo ortográfico, seria de esperar outro esclarecimento. Acontece que era da natureza do acordo ortográfico levar a que se falasse muito de ortografia sem difundir nenhuma noção de ortografia. E que podemos nós contra a natureza, digo, a Natureza das coisas escusadas?
           

"Coisas escusadas", Abel Barros Baptista (Portugal)
LER nº 107, Novembro 2011, p. 13

[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2011/12/22/minusculas.aspx]

quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

SER SOLIDÁRIO | SER SOLITÁRIO (José Mário Branco)

  
     
      
Nunca, até “Ser Solidário”, um cantor se expusera desta maneira.
      
Quem assiste mais do que uma vez ao espetáculo vê a cena repetir-se, como um ritual, noite após noite. Num crescendo, a música vai conquistando espaço por entre a plateia, rendida em aplausos. Quase duas horas após o início, já num "estado de aquecimento emocional" (como lhe chamou José Mário Branco), o público exige o regresso do cantor ao palco.
      
É então que ele apresenta o tão ansiado "FMI".
        

     




          
“Um texto que eu escrevi de um só jorro, numa noite de Fevereiro de 1979”.

           
Começa irónico, mordaz, a provocar sorrisos de autocomplacência ou assentimento. Mas depressa imprime um pesado silêncio pelo tropel das palavras, o desafio, o insulto.

Partindo de um tema que no discurso musical lembra "Talking Union", de Pete Seeger, José Mário Branco evolui para algo muito próximo das invetivas radicais de Ferré ou da ironia provocatória de Almada Negreiros na "Cena do ódio".  Mas vai mais longe: como numa espiral, a raiva acumulada cede lugar ao choro, ao sussurro, ao desencanto. Não pode haver razão para tanto sofrimento, diz, em voz velada, exausto, passada a violenta tempestade de sentimentos contraditórios que o leva a gritar bem alto o seu ódio ao vazio: "Mãe, ó mãe!!/ Eu quero ficar sozinho/ Eu não quero pensar mais./ Mãe, eu quero  morrer, mãe/ Quero... desnascer/ Ir-me embora/ sem sequer ter de me ir embora...”

Mas a esperança subsiste para lá de todas as tempestades do espírito. E o deserto consente a miragem redentora, a vitória da luz sobre as trevas, o "d" de solidário a afastar o "t" de solitário (trocadilho presente na capa do disco e inspirado num conto de Camus) num abrir de braços para um futuro sem tempo, algures no cosmos: “O meu sonho é a luz que vem do fim do mundo, dos vossos antepassados que ainda não nasceram” Assim, “para lá da vida”. “Por sobre a morte”. Para concluir, na simplicidade da paz reencontrada: “Diz lá, valeu a pena a travessia?... Valeu, pois.”
     
Nascido na ressaca do processo de expulsão da Comuna, com retroativos por ter sido expulso do PCP(R) em 1979, o “FMI” surge para José Mário Branco da “necessidade de encontrar um sentido para a vida fora dos clichés ideológicos". E é, tal como a primeira peça do Teatro do Mundo ("A Secreta Família", estreada em Julho de 1979), uma espécie “de vómito” emotivo. “Um texto profundamente confessional e catártico, uma conversa que me é permitida exclusivamente com a gente da minha geração... E na qual as outras gerações (a de antes e a de depois) são só atingidas por tabela” (Expresso, 09-04-1982). Daí que, em 1982, o “FMI” surgisse num disco à parte, em maxi-single, e selado com a seguinte indicação: “Por determinação expressa do autor fica proibida a audição pública, total ou integral, deste disco”.
          
Eu Vim de Longe, eu Vou p’ra Longe (Chulinha)”: composta já no contexto do Teatro do Mundo, em 1979, é uma espécie de retrato pragmático do percurso político do cantor, das suas crenças e desilusões; um dos temas mais retidos à data da edição do LP, em concertos ou na rádio.
             
Nuno Pacheco, «O deserto e a miragem», apresentação do álbum, 1996.
      
      
      
      
      
EU VIM DE LONGE, EU VOU P’RA LONGE (CHULINHA)
Letra e música de José Mário Branco.
        
1.
Quando o avião aqui chegou
Quando o mês de Maio começou
Eu olhei p’ra ti
E então eu entendi
Foi um sonho mau que já passou
Foi um mau bocado que acabou
      
Tinha esta viola numa mão
Uma flor vermelha noutra mão
Tinha um grande amor
Marcado pela dor
E quando a fronteira me abraçou
Foi esta bagagem que encontrou
        
Refrão
        
  Eu vim de longe, de muito longe
  O que eu andei p’raqui chegar
  Eu vou p’ra longe, p’ra muito longe
  Onde nos vamos encontrar
  Com que temos p’ra nos dar
     
E então olhei à minha volta
Vi tanta esperança andar à solta
Que não hesitei
E os hinos que cantei
Foram frutos do meu coração
Feitos de alegria e de paixão
        
Refrão
       
2.
Quando a nossa festa se estragou
E o mês de Novembro se vingou
Eu olhei p’ra ti
E então eu entendi
Foi um indo sonho que acabou
Houve aqui alguém que se enganou
      
Tinha esta viola numa mão
Coisas começadas noutra mão
Tinha um grande amor
Marcado pela dor
E quando a espingarda se virou
Foi p’ra esta força que apontou
      
Refrão
      
E então olhei à minha volta
Vi tanta mentira andar à solta
Que me perguntei
Se os hinos que cantei
Eram só promessas e ilusões
Que nunca passaram de canções
      
Refrão
      
3.
Quando finalmente eu quis saber
Se inda vale a pena tanto q’rer
Eu olhei p’ra ti
E então eu entendi
É um lindo sonho p’ra viver
Quando toda a gente assim quiser
      
Tenho esta viola numa mão
Tenho minha vida noutra mão
Tenho um grande amor
Marcado pela dor
E sempre que Abril aqui passar
Dou-lhe este farnel p’ró ajudar
      
Refrão
      
E agora eu olho à minha volta
Vejo tanta raiva andar à solta
Que já não hesito
E os hinos que repito
São a parte que eu posso prever
Do que a minha gente vai fazer
      
Refrão (final)
      
      
         
      
ORIENTAÇÃO DE LEITURA 
    
Em Ser Solidário J.M.B. revela um desencanto relativamente a uma «travessia». Comente a posição do cantor.

Destaque expressões da letra da canção «Eu vim de longe...» que aludam a essa «travessia» e interprete-as.
          

          
Poderá também gostar de:
   
 Poesia útil e literatura de resistência” (A literatura como arma contra a ditadura e a guerra colonial portuguesas), José Carreiro

   
                

[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2011/12/14/FMI.aspx]

sábado, 10 de dezembro de 2011

TROVA AO VENTO QUE PASSA (Manuel Alegre)

          
                           


       

       
Pergunto ao vento que passa
notícias do meu país
e o vento cala a desgraça
o vento nada me diz.
    
Pergunto aos rios que levam
tanto sonho à flor das águas
e os rios não me sossegam
levam sonhos deixam mágoas.
   
Levam sonhos deixam mágoas
ai rios do meu país
minha pátria à flor das águas
para onde vais? Ninguém diz.
   
Se o verde trevo desfolhas
pede notícias e diz
ao trevo de quatro folhas
que morro por meu país.
   
Pergunto à gente que passa
por que vai de olhos no chão.
Silêncio -- é tudo o que tem
quem vive na servidão.
   
Vi florir os verdes ramos
direitos e ao céu voltados.
E a quem gosta de ter amos
vi sempre os ombros curvados.
   
E o vento não me diz nada
ninguém diz nada de novo.
Vi minha pátria pregada
nos braços em cruz do povo.
   
Vi minha pátria na margem
dos rios que vão pró mar
como quem ama a viagem
mas tem sempre de ficar.
   
Vi navios a partir
(minha pátria à flor das águas)
vi minha pátria florir
(verdes folhas verdes mágoas).
   
Há quem te queira ignorada
e fale pátria em teu nome.
Eu vi-te crucificada
nos braços negros da fome.
   
E o vento não me diz nada
só o silêncio persiste.
Vi minha pátria parada
à beira de um rio triste.
   
Ninguém diz nada de novo
se notícias vou pedindo
nas mãos vazias do povo
vi minha pátria florindo.
   
E a noite cresce por dentro
dos homens do meu país.
Peço notícias ao vento
e o vento nada me diz.
   
Quatro folhas tem o trevo
liberdade quatro sílabas.
Não sabem ler é verdade
aqueles pra quem eu escrevo.
   
Mas há sempre uma candeia
dentro da própria desgraça
há sempre alguém que semeia
canções no vento que passa.
   
Mesmo na noite mais triste
em tempo de servidão
há sempre alguém que resiste
há sempre alguém que diz não.
   
Manuel Alegre,
Praça da Canção, 1965.
         


         
         
           
1.      Explique qual o significado simbólico do «vento» (1ª estrofe).

2.      Identifique a figura de estilo presente na primeira estrofe. Justifique.

3.      Substitua o vocábulo «notícias» (1ª estrofe) pelo sinónimo que melhor se ajuste ao sentido do  texto.

4.      Caracterize o estado psicológico do poeta e exemplifique com expressões do texto.

5.      A partir do que leu do poema e tendo em atenção a sua data de publicação, identifique e caracterize a época a que se reporta o poeta.

6.      «Não sabem ler é verdade / Aqueles pra quem eu escrevo.» (14ª estrofe)
Quem são «aqueles» para quem escreve o poeta?

7.      Pelo que sabe do período em causa, diga como é que se resolveu o problema de fazer chegar estes versos «àqueles» analfabetos.

8.      Demonstre que nas duas últimas estrofes Manuel Alegre explicita qual a função e a necessidade  do poeta em comunicar.
        
                 

Texto de apoio

 

 

A canção Trova do Vento que Passa foi retirada de um poema de Manuel Alegre, escrita em 1963 e interpretada e por Adriano Correia de Oliveira no álbum Fados de Coimbra. O poema de Manuel Alegre é mais extenso, contendo quinze quartetos, ao passo que na versão interpretada por Adriano Correia de Oliveira contém apenas três estrofes, que serão trabalhadas aqui72

 

Pergunto ao vento que passa

Notícias do meu país

E o vento cala a desgraça

O vento nada me diz

 

Mas há sempre uma candeia

Dentro da própria desgraça

Há sempre alguém que semeia

Canções no vento que passa

 

Mesmo na noite mais triste

Em tempo de servidão

Há sempre alguém que resiste

Há sempre alguém que diz não

 

Essa canção contesta o regime ditatorial em Portugal ao falar da "desgraça" que o país vive. Quando fez estes versos, Manuel Alegre estava com Adriano Correia de Oliveira, e desabafou "mesmo na noite mais triste, em tempo de servidão, há sempre alguém que resiste, há sempre alguém que diz não". Ao ouvi-los, Adriano Correia de Oliveira profetizou que tais versos durariam para sempre (RAPOSO, 2014) e Manuel Alegre logo finalizou o poema e tentaram musicá-lo, com ajuda de António Portugal (músico e compositor que trabalhou com cantores como Adriano Correria de Oliveira e Zeca Afonso). O sucesso dessa canção foi percebido três dias depois, quando cantaram em uma festa de Calouros da Faculdade de Medicina: "foi um delírio, [Adriano Correia de Oliveira] teve que repetir três ou quatro vezes, [ ... ] Saímos todos para a rua a cantar. A "Trova do Vento Que Passa" passou a ser um hino para aquele malta" (RAPOSO, 2014, p.194)

 

Ao analisar a canção - veremos aqui apenas os três versos utilizados por Adriano Correia de Oliveira - percebe-se que há uma regularidade em termos de métrica e rima. Todos os versos são classificados como redondilha maior, e as rimas intercaladas em ABAB CACA DEDE. Na primeira e terceira estrofes do poema, as rimas também são intercaladas em agudas (terminadas em oxítonas) e graves (paroxítonas), ao passo que na segunda estrofe, há apenas rimas graves. A maioria das rimas são consoantes, enquanto há apenas duas toantes, vistas em cadeia/semeia e servidão/não. Outra característica do poema que chama a atenção é a questão da sonoridade, com as repetições de vogais com sons parecidos, causando uma assonância, além de poderem ser consideradas rimas internas e toantes, como se pode ver nos substantivos "vento", "tempo", nos advérbios "sempre" e "dentro" e do pronome "alguém'', repetindo os sons "em":

 

Pergunto ao vento que passa

 

Mas há sempre uma candeia

 

Mesmo na noite mais triste

 

Notícias do meu país

 

Dentro da própria desgraça

 

Em tempo de servidão

 

E o vento cala a desgraça

 

sempre alguém que semeia

 

sempre alguém que resiste

 

O vento nada me diz

 

 Canções no vento que passa

 

sempre alguém que diz não

 

 

Destaca-se também no poema a prosopopeia, ao haver a personificação dos substantivos "vento" - em que o sujeito faz uma "pergunta ao vento" - e da "noite" em que é qualificada como "triste'', adjetivo comumente utilizado para seres vivos. Há também casos de anáfora - muito comuns em canções, na repetição "Há sempre", podendo ser vistas no primeiro e terceiro versos da segunda estrofe e nos dois últimos versos da terceira estrofe.

 

Essa canção revela a situação drástica de Portugal por causa do regime ditatorial, em que a censura ainda agia com muita repressão e violência e o país ainda continuava lutando contra as dificuldades - desemprego, onda de protestos, Guerra Colonial. A primeira quadra, mesmo sendo criada por Manuel Alegre enquanto ele já estava em Portugal [ficou preso em Angola por um período], poderia claramente ter sido escrito por alguém que estivesse fora e precisasse de notícias do que estaria ocorrendo no país. Ao fazer a pergunta ao vento, o cantor sabe que não haverá resposta, dando a ideia de que as coisas continuariam à sombra da ditadura. O vento também poderia se referir a algo ou alguém que "escondesse" os fatos que estejam ocorrendo no país. O vento "varre" a sujeira (desgraça) que lá ocorre, mas não a tira do local. A primeira estrofe é totalmente pessimista em relação aos fatos que vinham ocorrendo em Portugal, mostrando ser uma situação que ocorre há muito tempo e que virou rotina, ao utilizar os verbos apenas no presente do indicativo nesta primeira estrofe ''pergunto ao vento que passa e o vento cala a desgraça/ o vento nada me diz ".

 

Na segunda estrofe, altera-se o rumo da letra, indicando um otimismo ao utilizar a conjunção adversativa "mas", em "Mas há sempre uma candeia", referindo-se às pequenas coisas boas que ocorrem dentro dessa "desgraça": a utilização do substantivo "candeia", traz urna conotação de "luz", "inspiração", e ainda que "fraca" e "passageira" (como sugere urna luz de candeia), o texto diz respeito às canções "semeadas" por alguém. O verbo "semear" implica o ato de "plantar" ou "lançar", e as pessoas farão com que as "canções" sejam 'divulgadas' . Nesses versos cabem o provérbio bíblico "Quem semeia vento, colhe tempestade"73, trazendo para esse contexto, um sentido oposto ao pretendido pela Bíblia: enquanto biblicamente, aquele que semeia vento, colhe resultados improdutivos, aos que "semeiam canções no vento", esperam colher bons frutos:

 

Há sempre alguém que semeia

Canções no vento que passa

 

Se o "vento que passa" pode levar notícias, aos que semeiam canções no vento podem ter suas canções "levadas" por ele, isto é, divulgadas especialmente pela própria população, alcançando popularidade. Ao mesmo tempo, o vento, por estar sempre em movimento, pode também fazer com que a canção "semeada" nele passe e se distancie rapidamente, pois sendo ela muitas vezes censurada pela PIDE, as pessoas poderiam perder o acesso à essas canções.

 

Na terceira estrofe, novamente, o poeta utiliza outra conjunção para contornar a situação de tristeza: "mesmo", suavizando todo o restante da estrofe, assim corno ocorrido na quadra anterior. Nessa última estrofe o autor enfatiza a existência de pessoas que resistem ao que lhes é imposto, sendo, nesse caso, todos aqueles que combatem a ditadura que está em vigor no país, seja ela por meio de canções, da literatura, seja por meio daqueles que utilizam sua influência para motivar o ativismo.

 

A principal mensagem desse poema diz respeito à esperança que esses poetas e cantores sentem quando percebem que suas obras estão sendo divulgadas e bem recebidas pelo público. É esse público que faz essa luta continuar, apesar de todo o clima opressor e angustiante vividos.

 

Canto de intervenção em Portugal: "O povo é quem mais ordena", Ludmila Arruda.

São Paulo, Universidade Presbiteriana Mackenzie, 2016

 

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Notas:

72 A cantora Amália Rodrigues também interpretou a canção em 1970, lançada no álbum "Com que Voz". Na versão dela, a única estrofe igual à versão de Adriano Correia de Oliveira foi a primeira; no restante, ela seguiu a segunda e terceira estrofes da ordem correta do poema de Manuel Alegre.

73 Conferir Oseias 8. 7, Bíblia versão JF A.

             

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[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2011/12/10/trovaaoventoquepassa.aspx]