sábado, 10 de dezembro de 2011

TROVA AO VENTO QUE PASSA (Manuel Alegre)

          
                           


       

       
Pergunto ao vento que passa
notícias do meu país
e o vento cala a desgraça
o vento nada me diz.
    
Pergunto aos rios que levam
tanto sonho à flor das águas
e os rios não me sossegam
levam sonhos deixam mágoas.
   
Levam sonhos deixam mágoas
ai rios do meu país
minha pátria à flor das águas
para onde vais? Ninguém diz.
   
Se o verde trevo desfolhas
pede notícias e diz
ao trevo de quatro folhas
que morro por meu país.
   
Pergunto à gente que passa
por que vai de olhos no chão.
Silêncio -- é tudo o que tem
quem vive na servidão.
   
Vi florir os verdes ramos
direitos e ao céu voltados.
E a quem gosta de ter amos
vi sempre os ombros curvados.
   
E o vento não me diz nada
ninguém diz nada de novo.
Vi minha pátria pregada
nos braços em cruz do povo.
   
Vi minha pátria na margem
dos rios que vão pró mar
como quem ama a viagem
mas tem sempre de ficar.
   
Vi navios a partir
(minha pátria à flor das águas)
vi minha pátria florir
(verdes folhas verdes mágoas).
   
Há quem te queira ignorada
e fale pátria em teu nome.
Eu vi-te crucificada
nos braços negros da fome.
   
E o vento não me diz nada
só o silêncio persiste.
Vi minha pátria parada
à beira de um rio triste.
   
Ninguém diz nada de novo
se notícias vou pedindo
nas mãos vazias do povo
vi minha pátria florindo.
   
E a noite cresce por dentro
dos homens do meu país.
Peço notícias ao vento
e o vento nada me diz.
   
Quatro folhas tem o trevo
liberdade quatro sílabas.
Não sabem ler é verdade
aqueles pra quem eu escrevo.
   
Mas há sempre uma candeia
dentro da própria desgraça
há sempre alguém que semeia
canções no vento que passa.
   
Mesmo na noite mais triste
em tempo de servidão
há sempre alguém que resiste
há sempre alguém que diz não.
   
Manuel Alegre,
Praça da Canção, 1965.
         


         
         
           
1.      Explique qual o significado simbólico do «vento» (1ª estrofe).

2.      Identifique a figura de estilo presente na primeira estrofe. Justifique.

3.      Substitua o vocábulo «notícias» (1ª estrofe) pelo sinónimo que melhor se ajuste ao sentido do  texto.

4.      Caracterize o estado psicológico do poeta e exemplifique com expressões do texto.

5.      A partir do que leu do poema e tendo em atenção a sua data de publicação, identifique e caracterize a época a que se reporta o poeta.

6.      «Não sabem ler é verdade / Aqueles pra quem eu escrevo.» (14ª estrofe)
Quem são «aqueles» para quem escreve o poeta?

7.      Pelo que sabe do período em causa, diga como é que se resolveu o problema de fazer chegar estes versos «àqueles» analfabetos.

8.      Demonstre que nas duas últimas estrofes Manuel Alegre explicita qual a função e a necessidade  do poeta em comunicar.
        
                 

Texto de apoio

 

 

A canção Trova do Vento que Passa foi retirada de um poema de Manuel Alegre, escrita em 1963 e interpretada e por Adriano Correia de Oliveira no álbum Fados de Coimbra. O poema de Manuel Alegre é mais extenso, contendo quinze quartetos, ao passo que na versão interpretada por Adriano Correia de Oliveira contém apenas três estrofes, que serão trabalhadas aqui72

 

Pergunto ao vento que passa

Notícias do meu país

E o vento cala a desgraça

O vento nada me diz

 

Mas há sempre uma candeia

Dentro da própria desgraça

Há sempre alguém que semeia

Canções no vento que passa

 

Mesmo na noite mais triste

Em tempo de servidão

Há sempre alguém que resiste

Há sempre alguém que diz não

 

Essa canção contesta o regime ditatorial em Portugal ao falar da "desgraça" que o país vive. Quando fez estes versos, Manuel Alegre estava com Adriano Correia de Oliveira, e desabafou "mesmo na noite mais triste, em tempo de servidão, há sempre alguém que resiste, há sempre alguém que diz não". Ao ouvi-los, Adriano Correia de Oliveira profetizou que tais versos durariam para sempre (RAPOSO, 2014) e Manuel Alegre logo finalizou o poema e tentaram musicá-lo, com ajuda de António Portugal (músico e compositor que trabalhou com cantores como Adriano Correria de Oliveira e Zeca Afonso). O sucesso dessa canção foi percebido três dias depois, quando cantaram em uma festa de Calouros da Faculdade de Medicina: "foi um delírio, [Adriano Correia de Oliveira] teve que repetir três ou quatro vezes, [ ... ] Saímos todos para a rua a cantar. A "Trova do Vento Que Passa" passou a ser um hino para aquele malta" (RAPOSO, 2014, p.194)

 

Ao analisar a canção - veremos aqui apenas os três versos utilizados por Adriano Correia de Oliveira - percebe-se que há uma regularidade em termos de métrica e rima. Todos os versos são classificados como redondilha maior, e as rimas intercaladas em ABAB CACA DEDE. Na primeira e terceira estrofes do poema, as rimas também são intercaladas em agudas (terminadas em oxítonas) e graves (paroxítonas), ao passo que na segunda estrofe, há apenas rimas graves. A maioria das rimas são consoantes, enquanto há apenas duas toantes, vistas em cadeia/semeia e servidão/não. Outra característica do poema que chama a atenção é a questão da sonoridade, com as repetições de vogais com sons parecidos, causando uma assonância, além de poderem ser consideradas rimas internas e toantes, como se pode ver nos substantivos "vento", "tempo", nos advérbios "sempre" e "dentro" e do pronome "alguém'', repetindo os sons "em":

 

Pergunto ao vento que passa

 

Mas há sempre uma candeia

 

Mesmo na noite mais triste

 

Notícias do meu país

 

Dentro da própria desgraça

 

Em tempo de servidão

 

E o vento cala a desgraça

 

sempre alguém que semeia

 

sempre alguém que resiste

 

O vento nada me diz

 

 Canções no vento que passa

 

sempre alguém que diz não

 

 

Destaca-se também no poema a prosopopeia, ao haver a personificação dos substantivos "vento" - em que o sujeito faz uma "pergunta ao vento" - e da "noite" em que é qualificada como "triste'', adjetivo comumente utilizado para seres vivos. Há também casos de anáfora - muito comuns em canções, na repetição "Há sempre", podendo ser vistas no primeiro e terceiro versos da segunda estrofe e nos dois últimos versos da terceira estrofe.

 

Essa canção revela a situação drástica de Portugal por causa do regime ditatorial, em que a censura ainda agia com muita repressão e violência e o país ainda continuava lutando contra as dificuldades - desemprego, onda de protestos, Guerra Colonial. A primeira quadra, mesmo sendo criada por Manuel Alegre enquanto ele já estava em Portugal [ficou preso em Angola por um período], poderia claramente ter sido escrito por alguém que estivesse fora e precisasse de notícias do que estaria ocorrendo no país. Ao fazer a pergunta ao vento, o cantor sabe que não haverá resposta, dando a ideia de que as coisas continuariam à sombra da ditadura. O vento também poderia se referir a algo ou alguém que "escondesse" os fatos que estejam ocorrendo no país. O vento "varre" a sujeira (desgraça) que lá ocorre, mas não a tira do local. A primeira estrofe é totalmente pessimista em relação aos fatos que vinham ocorrendo em Portugal, mostrando ser uma situação que ocorre há muito tempo e que virou rotina, ao utilizar os verbos apenas no presente do indicativo nesta primeira estrofe ''pergunto ao vento que passa e o vento cala a desgraça/ o vento nada me diz ".

 

Na segunda estrofe, altera-se o rumo da letra, indicando um otimismo ao utilizar a conjunção adversativa "mas", em "Mas há sempre uma candeia", referindo-se às pequenas coisas boas que ocorrem dentro dessa "desgraça": a utilização do substantivo "candeia", traz urna conotação de "luz", "inspiração", e ainda que "fraca" e "passageira" (como sugere urna luz de candeia), o texto diz respeito às canções "semeadas" por alguém. O verbo "semear" implica o ato de "plantar" ou "lançar", e as pessoas farão com que as "canções" sejam 'divulgadas' . Nesses versos cabem o provérbio bíblico "Quem semeia vento, colhe tempestade"73, trazendo para esse contexto, um sentido oposto ao pretendido pela Bíblia: enquanto biblicamente, aquele que semeia vento, colhe resultados improdutivos, aos que "semeiam canções no vento", esperam colher bons frutos:

 

Há sempre alguém que semeia

Canções no vento que passa

 

Se o "vento que passa" pode levar notícias, aos que semeiam canções no vento podem ter suas canções "levadas" por ele, isto é, divulgadas especialmente pela própria população, alcançando popularidade. Ao mesmo tempo, o vento, por estar sempre em movimento, pode também fazer com que a canção "semeada" nele passe e se distancie rapidamente, pois sendo ela muitas vezes censurada pela PIDE, as pessoas poderiam perder o acesso à essas canções.

 

Na terceira estrofe, novamente, o poeta utiliza outra conjunção para contornar a situação de tristeza: "mesmo", suavizando todo o restante da estrofe, assim corno ocorrido na quadra anterior. Nessa última estrofe o autor enfatiza a existência de pessoas que resistem ao que lhes é imposto, sendo, nesse caso, todos aqueles que combatem a ditadura que está em vigor no país, seja ela por meio de canções, da literatura, seja por meio daqueles que utilizam sua influência para motivar o ativismo.

 

A principal mensagem desse poema diz respeito à esperança que esses poetas e cantores sentem quando percebem que suas obras estão sendo divulgadas e bem recebidas pelo público. É esse público que faz essa luta continuar, apesar de todo o clima opressor e angustiante vividos.

 

Canto de intervenção em Portugal: "O povo é quem mais ordena", Ludmila Arruda.

São Paulo, Universidade Presbiteriana Mackenzie, 2016

 

____________

Notas:

72 A cantora Amália Rodrigues também interpretou a canção em 1970, lançada no álbum "Com que Voz". Na versão dela, a única estrofe igual à versão de Adriano Correia de Oliveira foi a primeira; no restante, ela seguiu a segunda e terceira estrofes da ordem correta do poema de Manuel Alegre.

73 Conferir Oseias 8. 7, Bíblia versão JF A.

             

PODERÁ TAMBÉM GOSTAR DE:
          

 Poesia útil e literatura de resistência” (A literatura como arma contra a ditadura e a guerra colonial portuguesas), José Carreiro

   
                

[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2011/12/10/trovaaoventoquepassa.aspx]

segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

Primavera, Primavera, és linda como haver morte (Alberto Lacerda)

          
          
Como pássaros chegam junto a mim dois versos já antigos de Alberto de Lacerda: Primavera, Primavera, / és linda como haver morte. Afinal, que quer isto dizer verdadeiramente? Se o visse, perguntava-lhe. | Eduardo Prado Coelho
                    
          
          
Diotima
          
És linda como haver Morte
depois da morte dos dias.
Solene timbre do fundo
de outra idade se liberta
nos teus lábios, nos teus gestos.
          
Quem te criou destruiu
qualquer coisa para sempre,
ó aguda até à luz
sombra do céu sobre a terra,
          
libertadora mulher,
amor pressago e terrível,
          
Primavera, Primavera!
          
          
Alberto Lacerda (1928-2007)
          

Alberto de Lacerda por Arpad         
          
          
Saímos de Paris com um céu límpido e uma serenidade de início de Primavera. Como pássaros chegam junto a mim dois versos já antigos de Alberto de Lacerda: “Primavera, Primavera, / és linda como haver morte”. Afinal, que quer isto dizer verdadeiramente? Se o visse, perguntava-lhe. Tive mesmo a impressão de que passou junto a mim. Mas os funerais estão sempre cheios de poetas, anjos e outras presenças diáfanas.
O pequeno cemitério onde o corpo repousará pertence a um lugar mítico na biografia de Vieira da Silva. Aí tinha o seu grande atelier e a sua casa. A aldeia tem o estranho ar de um cenário de cinema: lindíssima, quase desabitada, varrida pelo vento. Os mais belos funerais a que assisti foram no cinema, e tinham sempre o vento ou a chuva — emblemas do destino. Este não foge à regra.
A marca definitivamente romântica é dada pelas ruínas que se infiltram por estas ruas pensativas. Entramos aqui, não no passado, mas no átrio de outra coisa: uma forma de existir no limite do tempo, num risco litoral, na fronteira do pensamento, do que não pode deixar de ser da ordem do pressentimento (como a pintura de Vieira da Silva). Este local é amável e acolhedor, mas recusa toda a forma de kitsch. Bem pelo contrário: poderíamos imaginar no empedrado tosco destes caminhos, na sombra destas muralhas, no silêncio ainda cintilante desta lareira, a violência, o drama, o inabitável da paixão. Mas tudo isso existe ciciadamente, numa figura da reconciliação, devolvido sob a forma de música, Bach de preferência, de tempo em estado incandescente, de beleza incorruptível.
No atelier, além de Bach, vemos álbuns confundidos sobre Rembrandt, Georges de la Tour (que vai bem com o sítio), Jaspers Johns, Henry Moore, Bracque, Turner, e transpomos a cerimónia digna desta morte serena como quem passa sob o arco em ruínas ao som de Monteverdi — tudo está certo com o lugar e a tarde, a morte pode ser bela como o vento e a Primavera, Alberto de Lacerda passou por aqui e cada um de nós trouxe um fruto trincado da árvore que escolheu. […]
           
Eduardo Prado Coelho, Paris, 10.03.1992
Tudo o que não escrevi. Diário II (1992)
Porto, Edições Asa, Abril de 1994 (1ª edição), pp. 44-45.
          
          

          
          
Acontece também que tinha assistido a um bizarro duelo de amores platónicos pela imaterial Sophia entre o Alberto de Lacerda e o Ruy Cinatti, numa tarde em Londres, poucos meses antes.
Lembro-me de o Ruy Cinatti ter dito, porventura como suprema prova de amor, que escrevia longas cartas à Sophia para se manter em contacto consigo próprio. E de o Alberto ter depois comentado com saboreada malícia, a sós comigo, que não era nada à Sophia que o Cinatti escrevia essas cartas, que era ao próprio Cinatti.
Se assim era, presumo que teria sido um caso extremo de transforma-se o amador na cousa amada.
Mas o Alberto revelou-me então, em prova definitiva do seu inquestionavelmente superior amor pela Sophia, que o poema Diotima tinha sido escrito para ela: “És linda como  haver Morte  /  depois  da morte  dos  dias  [...]  / libertadora mulher, amor pressago e terrível [...]  / primavera, primavera!“.
          
Sophia de Mello Breyner Andresen
          
E deu-me a ler outro seu poema (ao tempo ainda inédito) intitulado O Eterno Retorno de Diotima em que a visionava como uma eternamente inacessível “rosa dos ventos agudos” suspensa na “noite dos tempos”. Não mencionei esses poemas a Sophia, é claro, fui mais discreto do que agora não preciso de ser. São dois dos melhores poemas do Alberto de Lacerda e creio que ele só ganha em saber-se quem os inspirou.
          
Helder Macedo
Colóquio internacional Sophia de Mello Breyner Andresen
Fundação Calouste Gulbenkian, 27 e 28 de Janeiro de 2011
          



[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2011/12/05/lacerda.aspx]