quarta-feira, 25 de julho de 2012

LEVOU-S'A LOUÇANA, LEVOU-S'A VELIDA (PERO MEOGO)



      


      


[Levou-s’a louçana], levou-s’a velida:


vai lavar cabelos, na fontana fria.


Leda dos amores, dos amores leda.


     


Levou-se: levantou-se


Louçana/velida: bela, formosa



    


    


[levou-s’a velida], Levou-s’a louçana:


vai lavar cabelos, na fria fontana.


Leda dos amores, dos amores leda.


    


    


Fontana: fonte


    


    


Vai lavar cabelos, na fontana fria:


passou seu amigo, que lhi bem queria.


Leda dos amores, dos amores leda.


    










Vai lavar cabelos, na fria fontana:


passa seu amigo, que a muit’amava.


Leda dos amores, dos amores leda.


    










Passa seu amigo, que lhi bem queria:


o cervo do monte a augua volvia.


Leda dos amores, dos amores leda.


    










Passa seu amigo, que a muit’amava:


o cervo do monte volvia a augua.


Leda dos amores, dos amores leda








    


Pero Meogo, CBN 1188/ CV 793

      

ANÁLISE DE UM POEMA MEDIEVAL

Esta cantiga de amigo, paralelística perfeita, constituída por três pares de dísticos hendecassilábicos graves, monórrimos (a última palavra é grave) e refrão monóstico, é, ao mesmo tempo, uma alba, alva ou alvorada («Levou-se», isto é, «levantou-se») que canta o momento do levantar, ao nascer do sol, e um ritual protalâmico, ou de noivado.
          As três sequências narrativas (o levantar, o caminhar para a fonte, onde a donzela lavará os cabelos, e o encontro amoroso com o amigo) da cantiga são portadoras de uma carga afetiva sedutora e fascinante que o refrão veicula e inculca insistentemente, numa feliz aliança entre modo narrativo e lírico: «leda dos amores, dos amores leda».
          Fascina-nos, de facto, como num ecrã mágico, a beleza da jovem: «louçana», «velida», erguendo o seu corpo, levantando-se. Fascina-nos o gesto lento e ritual da lavagem dos cabelos, elemento erótico fundamental do corpo feminino, ritual de purificação, exigido não apenas por necessidades higiénicas e cosméticas, mas também por costumes ancestrais. Fascina-nos, em contraste com este calor do corpo, o frio da água, a «fria fontana», extremos térmicos que conotam o pulsar de uma paixão. Fascina-nos a caracterização interior, ou psicológica, da donzela, na alegria pura do seu primeiro amor: «leda dos amores». Fascina-nos, mesmo, a sua virgindade, simbolizada pela água que vai ser revolvida, suja, pelos cervos do monte, símbolo masculino, responsável pelo brusco quebrar dessa virgindade.
Por um lado, como que se perde o encanto mágico de um mito. Por outro, mais não acontece do que um simples rito de iniciação que inaugura a passagem a uma nova condição:

«Passa seu amigo, que lhi ben queria»;
«Passa seu amigo que a muito amava».

O quadro pintado, num cenário natural, diríamos hoje ecológico, é uma representação intemporal da união sexual entre homem e mulher, na delicadeza poética de quem canta a transcendência idealista dos gestos e dos sentimentos mais simples e, ao mesmo tempo, mais profundos, do ser humano.
                
(Análise de um poema medieval por António Moniz e Olegário Paz,
Ler para ser – percursos em português B, Lisboa, Editorial Presença, 1994, p. 105)
       


QUESTIONÁRIO

1. Compare a cantiga com outras já estudadas, no que diz respeito ao sujeito de enunciação. 

2. Saliente a estrutura narrativa do poema, atentando nos tempos verbais utilizados e na sequência das acções.

3. Explique a simbologia de «fontana», «água», «lavar cabelos» e «cervo».

4. Indique de que modo o penúltimo verso pode ser considerado o desfecho da pequena narrativa que o poema integra.
     



PROPOSTA DE RESOLUÇÃO DE QUESTIONÁRIO

1. Nesta cantiga o sujeito de enunciação é um narrador de 3ª pessoa; nas outras cantigas é uma donzela ou a mãe.

2. O poema tem estrutura narrativa, por causa da abundância de verbos de acção, isto é, ligados a gestos e movimentos que provocam uma visão dinâmica e actuante da realidade.
O presente do indicativo é um tempo cujo modo é o da realidade, do que acontece (presente histórico).
A perifrástica IR + INFINITIVO tem o valor aspectual de realização futura da acção, que pode se imediata ou não (e pode ter também o valor aspectual de realização gradual da acção).
Há também uma sequência de acções própria da narrativa: 1.ª) a donzela levantou-se, 2.ª) vai lavar cabelos, 3.ª) passa seu amigo, 4.ª) o cervo do monte volvia a água.

3. Simbologia:
FONTANA, fonte, local de encontro, símbolo de pureza (nitidez do amor); símbolo de maternidade; nas culturas tradicionais simboliza a origem da vida, do génio, do poder, da graça e da felicidade. Para os gauleses, as fontes eram as divindades que tinham como propriedades curar as feridas e reanimar os guerreiros mortos (cf. Dicionário de Símbolos).
ÁGUA, pureza, inocência; harmonia amorosa entre os dois amados.
LAVAR CABELOS, prefigura o banho nupcial e simboliza a expectativa íntima da moça. Lavar cabelo (ou camisas) em água é uma manifestação da sensualidade feminina, assim como desatar os cabelos tem uma conotação afrodisíaca.
CERVO, veado, símbolo do ardor amoroso, da potência viril e da fecundidade é uma referência ao amigo.

4. O cervo ao volver a água turva-a. Simbolicamente é o amigo que ao passar e ao demorar-se (a conversar?) deixa perturbada até ao fundo a límpida sensualidade inexperiente da amiga.
    
         
          
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[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2012/07/25/PeroMeogo.aspx]

sexta-feira, 6 de julho de 2012

COMO NÃO ESCREVER UM ROMANCE

         
Howard Mittelmark e Sandra Newman, autores e críticos literários com muita experiência em leitura de manuscritos inéditos, revelam-lhe, com muitíssimo humor e perspicácia, precisamente o que não deve fazer se quiser escrever um romance elegante, equilibrado e eloquente.             

   
            
            
Teste
            
A PERSONAGEM
            
Qual destas opções se adequa melhor à personagem do vosso romance?
            
I. «Amiga, esse corte de cabelo fica-te a matar!», disse
A. Bruce, o estilista, que falava com um ceceio.
B. Oprah.
C. a criança que faz pose diante do espelho depois de ter calçado os sapatos da mãe.
D. ZORM, o computador da nave.
            
II. Quando revelou o seu plano maquiavélico, o vilão
A. falou com um sotaque alemão.
B. falou em alemão.
C. falou à maneira alemã.
D. dirigiu-se a Popo, a sua marioneta.
            
III. Quando chegou a casa, vindo da universidade, a mãe
A. esperava-o com um prato de biscoitos de chocolate acabados de fazer.
B. mantivera o seu quarto tal como ele o deixara.
C. mudara-se sem o avisar.
D. transformara-se numa planta carnívora.
            
IV. O adolescente
A. comeu o nosso hambúrguer.
B. tomou uma droga leve.
C. sentiu-se ofendido com as afirmações do professor sobre a situação nos Balcãs.
D. esquartejou o gigante.
            
V. A bonita secretária
A. pestanejou.
B. afastou a mão do executivo atrevido.
C. marcou um golo de meio campo.
D. afugentou, em vão, o velho libidinoso.
            
VI. A criança de oito anos chora
A. sempre que ouve os pais discutirem no andar inferior.
B. quando o padre goza do seu momento de prazer infame.
C. quando lhe arrancam o comando da mão peganhenta.
D. durante os cinco anos seguintes, parando apenas de vez em quando para recobrar o fôlego.
            
VII. A velhota soltou um grito
A. ao ouvir a linguagem grosseira e ofensiva dos homens.
B. de alegria quando soube do armistício.
C. de prazer quando ele passou à ação.
D. e exclamou: «ZORM, seu mentiroso!»
            
VIII. O robusto presidente do conselho de administração
A. fez amor com a secretária.
B. ganhou 10 milhões de dólares em ações.
C. fez panquecas.
D. fez chorar as pedras da calçada com a beleza da sua voz.
            
IX. Veio a descobrir-se que o jovem cabeleireiro
A. era homossexual, tal como Bruce!
B. era um tagarela.
C. era o homem certo para quem queria saber tudo sobre botânica.
D. era cego como uma toupeira.
            
X. A empresária nunca tivera tempo para
A. os filhos,
B. ter filhos.
C. dar um enterro condigno aos filhos.
D. comprar um telemóvel, o que veio a lamentar quando a criatura alienígena em forma de lagarto a trancou na casa de banho.
            
XI. Em criança, a lésbica
A. foi vítima de abuso sexual.
B. gostava de brincar com camiões e não com bonecas.
C. teve uma paixoneta pela sua bonita tia.
D. fez chorar as pedras da calçada com a beleza do seu tricô.
            
PONTUAÇÃO
A. 5 pontos
B. 4 pontos
C. 2 pontos
D. 0 pontos
            
40-55 pontos: Todas as suas personagens são estereótipos desprovidos de imaginação. Serão certamente recebidas como um insulto por todos os que se revejam no grupo que representam e não são inspiradas em pessoas da vida real, baseando-se antes em obras de ficção de fraca qualidade que, por sua vez, se baseiam noutras obras de ficção de qualidade um pouco menos fraca.
            
30-40 pontos: São um caso sério de previsibilidade. Embora as vossas personagens não sejam propriamente de papelão, andam lá muito perto. Poderão ser de madeira de balsa, se preferirem. Esta, porém, tem diversos e melhores usos.
            
20-30 pontos: Alcançaram um equilíbrio razoável nas formas mais comuns da ficção comercial. Ainda que vagamente familiares, as vossas personagens são suficientemente interessantes para captarem a atenção do leitor sem que ele dê por si a interrogar-se sobre o que os pais do autor lhe terão feito. Não desistam, grandes crânios!
            
10-20 pontos: Se estão a escrever uma obra de grande complexidade psicológica, uma comédia disparatada, ou uma história de possessão diabólica por seres alienígenas, estão no bom caminho. Caso contrário, tentem ser menos criativos.
            
0-10 pontos: Confundiram ser inteligente com ser enfadonho. Os vossos amigos irresponsáveis dir-lhes-ão que têm graça e são ousados, levando-vos a acreditar que todas as cartas de rejeição que receberam de editores se devem à vossa «chocante» «originalidade».
            
Como não escrever um romance ‑ 200 erros clássicos e como evitá-los
Howard Mittelmark e Sandra Newman
Lisboa, Editora Pergaminho, 2012
Tradução de Susana Silva
            
[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2012/07/06/romance.aspx]

terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

O QUE FAZ UM ESCRITOR, SEGUNDO RUBEM FONSECA

           
No Correntes d'Escritas de 2012 Rubem Fonseca apresentou os seus cinco mandamentos para se fazer um escritor: loucura, alfabetização, paciência, motivação e imaginação.
           
          
loucura
          
"É preciso ser louco", disse ele, glosando o escritor norte-americano E. L. Doctorow, para quem escrever é uma forma socialmente aceite de esquizofrenia. E acrescentou: "Nessa mesa somos todos loucos. Cada um à sua maneira". Têm dúvidas? "Então leiam o texto do Foucault sobre as relações entre a loucura e a escrita literária".
          

alfabetização
          
"Basta ser louco?", questionou-se Rubem Fonseca. "Não. É preciso ser alfabetizado". Ajuda, de facto. "Mas não precisa de ser muito", brincou o autor de Bufo & Spallanzani. "Só existe um exemplo de um escritor analfabeto e foi no século XIV. Catarina de Siena". Mas esta era santa. Por isso: "Só podia ser milagre". Mas atenção, frisou Rubem Fonseca: "Como santa ela era louca, porque todos os santos são loucos". Não há dúvida.
          
Adiante, que um terceiro mandamento se seguiu. Antes, uma ideia retirada de Conrad. "Todo o escritor deve fazer um leitor sentir e, acima de tudo, ver. Eis o que é mais importante. Ver para poder entender". E isso envolve inteligência? Nem por isso, basta lembrar o que dizia Somerset Maugham: "Ele conheceu centenas e centenas de escritores e poucos, muito poucos eram inteligentes. Eu concordo com ele, sabiam?".
          

motivação
          
Então o que é preciso? O terceiro mandamento: "O escritor tem de ser motivado". Sem ela, nada faz. O mesmo dizia Rubem Fonseca no livro de crónicas José, em que recorda a sua infância: "Se o aspirante a escritor não tiver uma motivação forte escreverá quando muito alguns poemas de dor de cotovelo, alguns contos, talvez mesmo um romance, mas logo desistirá".
          
Não se pense, contudo, que a motivação é coisa de outro mundo. Qualquer uma é válida. Veja-se o caso de Manuel Vázquez Montalbán, lembrou Rubem Fonseca: "Ele escrevia para poder ser alto e bonito", pois era "baixinho" e um "pouco feio".
          

paciência
                
Já íamos com três características dos escritores. Faltavam duas, percebemos à medida que o show continuava. "É tudo? Não. Ele, o escritor, tem de ter paciência." Não uma paciência qualquer, mas a que o imperador romano Augusto cultivava, segundo Suetónio: Festina lente. "Apressa-te devagar". Nunca parar de fazer, mas fazê-lo devagarinho, como diria um bom alentejano. Todos os dias. Escrever, mas procurar sempre "le mot juste" de que falava Flaubert. "Ele, sim, sabia que não havia sinónimos. Ouviram, não existem sinónimos". Para esta intervenção também não. Um espectáculo. Que ainda não estava acabado.
          

imaginação
          
"Muito bem", continuou Rubem Fonseca, com a nossa concordância. "Acabou?", acrescentou, com a plateia a responder por ele: "Não". Pois é. Faltava uma coisa. "Ele, o escritor, tem de ser imaginativo. Tem de ter imaginação." A mesma que encontramos nos seus livros.
             
Ler mais: https://visao.sapo.pt/jornaldeletras/2012-02-24-o-que-faz-um-escritor-segundo-rubem-fonsecaf648336/ 
            Texto de Luís Ricardo Duarte , 24 de Fevereiro de 2012.
          
[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2012/02/28/escritor.aspx]