terça-feira, 28 de agosto de 2012

SEMÂNTICA ELECTRÓNICA (Vitorino Nemésio)


           
        

SEMÂNTICA ELECTRÓNICA     ¯
          
Ordeno ao ordenador que me ordene o ordenado
Ordeno ao ordenhador que me ordenhe o ordenhado
Ordinalmente
Ordenadamente
Ordeiramente.
Mas o desordeiro
Quebrou o ordenador
E eu já não dou ordens
Coordenadas
Seja a quem for.
Então resolvo tomar ordens
Menores, maiores.
E sou ordenado,
Enfim ‑ o ordenado
Que tentei ordenhar ao ordenador quebrado.
‑ Mas ‑ diz-me a ordenança ‑
Você não pode ordenhar uma máquina:
Uma máquina é que pode ordenhar uma vaca.
De mais a mais, você agora é padre,
E fica mal a um padre ordenhar, mesmo uma ovelha.
Velhaca, mesmo uma ovelha velha,
Quanto mais uma vaca!
Pois uma máquina é vicária (você é vigário?):
Vaca (em vacância) à vaca.
São ordens...
Eu então, ordinalmente ordeiro, ordenado, ordenhado,
Às ordens da ordenança em ordem unida e dispersa
(Para acabar a conversa
Como aprendi na Infantaria),
Ordenhado chorei meu triste fado.
Mas tristeza ordenhada é nata de alegria:
E chorei leite condensado,
Leite em pó, leite céptico asséptico,
Oh, milagre ordinal de um mundo cibernético!
        
Vitorino Nemésio, Limite de Idade (1972)
        


       
TEXTOS DE APOIO
        
Na última fase da produção poética de Vitorino Nemésio, o autor reserva-nos uma surpresa: Limite de Idade, 1972. Com efeito, o poeta que tantas vezes pensou a morte, o pecado, a culpa e o possível perdão, transpondo para a linguagem artística as inquietações metafísicas e a reflexão dos filósofos, apresenta-nos, por volta de 1971, prestes a atingir o "limite de idade" estipulado para os funcionários públicos, uma série de poemas percorridos pela meditação acerca da Ciência do nosso tempo. [...]
Limite de Idade é um título que se deve obviamente a um momento da carreira do autor, quiçá o momento mais triste da existência: a passagem à situação de reformado. Doeu a Vitorino Nemésio essa mudança. Sentiu-se como que usado, abusado e remetido à prateleira dos objectos velhos. Contra esse facto protestou. «O homem exerce enquanto vive». Mas a imagem do fim era-lhe inarredável.
        
José Martins Garcia, Vitorino Nemésio, a obra e o homem, Lisboa, Editora Arcádia, 1978)
        
        
[As várias associações fonéticas, morfo lógicas e estilísticas das palavras] levam à produção de sentidos implícitos, mais velados uns que outros, de forma a proporcionarem ao texto tom parodístico que nele é dominante. Com e feito, através de uma ironia risonha, que não deixa, por isso, de ser condenatória, desenha-se uma imbrincada rede de intertextos, dos quais ressalta como mais premente da situação de aposentado do sujeito de enunciação.
        
Maria Madalena Gonçalves, Poesias de Vitorino Nemésio
        

VITORINO NEMESIO
        
O poema seguinte intitula-se «Semântica Electrónica», representando a tentativa de encontrar sentido em circuitos comutativos que galvanizam o caminho crítico do pensamento mecanizado. A «Semântica Electrónica» é: jogo aleatório e lírico, com recorrências de incerteza na estrutura do pensamento mecanizado, às voltas com desvios, perturbações e ruídos. O que o poeta captou foi transformado na mensagem em que o coeficiente entrópico de incerteza é eliminado através dos processos reiterativos de redundância.
Trata-se de poema cibernético, cuja ordem se baseia no ruído como se verifica nos sistemas auto-organizadores. O poema em debate integra-se, sem remanescentes, no contexto formalístico da Informática, como tentativa realizada de introduzir nos versos o principio comunicativo de ordem a partir da desordem produzida pelo ruído. Os sistemas auto-organizadores, estudados por Von Foerster («On Self – Organizing Systems and Their Envitonments» ‑ em Self-Oganizing Systems, Edictors: Yovitz and Cambron, Pergamon, 1960), reduzidos a poemas aleatórios, transformariam a desordem em nível de prosa na ordem em nível de poesia. É inquestionável que o poema satisfaz condições de sistema auto-organizador: os desvios da ordem prosaica funcionam, na experiência poética, como expressão de tendências, impulsos, irrupções do inconsciente na actividade mental consciente. As irrupções, com carga érgica até o ponto de saturação, deflagram a carga das imagens que expulsa do texto das mensagens poéticas o que é racionalmente inteligível. A inteligibilidade racional do poema, através de mensagens sem ruídos ou desvios, elimina de seu contexto toda força criativa, proveniente da desordem.
Existe desordem fecunda e seminal em «Semântica Electrónica», imantada no seu contexto pelas estruturai redundantes que amplificam a sua forma, intensificando-a até quase o ponto de ruptura interna:
Ordeno ao ordenador que me ordene o ordenado
Ordeno ao ordenhador que me ordenhe o ordenhado
Ordinalmente
Ordenadamente
Ordeiramente.
      
E nesta ordenação, semanticamente desordenada, surgem os ruídos que suscitam a ordem no caos e na entropia. A estratégia de decisão nemesiana extrai a ordem do caos, compelindo a Caixa Negra do poema a transformar as suas trevas em pura luminosidade.
As decisões do poeta incidem sobre o paralelismo isomórfico entre ordenador eordenhador, entre ordene e ordenhe, entre ordenado e ordenhado ‑ tudo isso sob a égide da ordem. Nos versos finais do poema, a temática da ordenação e da ordenha cristaliza·se em
Mas tristeza ordenhada é nata de alegria:
E chorei leite condensado,
Leite em pó, leite céptico asséptico,
Oh, milagre ordinal de um mundo cibernético!
        
Nestes últimos versos, tristeza ordenhada ‑ nata de alegria ‑ leite condensado ‑ Leite em pó, leite céptico asséptico, ‑ milagre ordinal e mundo cibernético congregam-se para enfatizar a redundância do pensamento poético-electrónico, na desordem ordenadora dos ruídos, com ressonância plástico-verbal polivalente. Em «Padre-Nosso Nuclear», entretanto, a expansão da forma impregna-se de intensidade plástico-descritiva: o verso final exacerba a expressividade temática do poema, amplificando-a:
        
PADRE-NOSSO NUCLEAR
                                  
O Senhor teve pena do seu servo
E ele rezou, agradeceu
Com um rosário de electrões muito bonitos nos seus círculos,
Ave-Marias em eclipse:
Padre nosso que estais nos céus
E nos deste o escudo do ozone
E o fósforo nas ondas domar
E em nós a água e o carbone

O Senhor teve pena do seu servo
E guiou a mão de Becquerel
E pôs um raminho de polónio
Ao peito de Madame Curie,
Mas veio o Diabo e queimou tudo
Num cogumelo venenoso
E imitou o chumbo no plutónio
Em honra de Plutão, já se vê…
Cobrem-se todos com a mesma manta,
O Diabo atómico pinta a manta.

Padre nosso que estais nos céus,
Diz o servo de Deus molecular,
Seja feira a vossa vontade
No computador e no radar,
Na ribose entre as proteínas,
No café sem açúcar da manhã

Sem planta nem margarinas
Quando os pobres se erguem da enxerga
Para a serapilheira dos sacos
Dizendo à vida: Rai’s te parto!
Mas Deus perdoa a quem tem o ozone
E o bem-aventurado de Franklin
Ousado no tecto dos ricos
Como a cegonha nas almearas.
Qual raio! O quê! Se esta manhã
Os Carregadores de Pernambuco
Têm uma partida a despachar,
E quem é que há-de alombar
Se um raio mesmo os fulminar?

Padre nosso que estais nos céus…
O meu rosário é tão bonito
Com os seus bugalhos de França
E a Ave-Maria da Polónia,
Rezado nos encontros Solvay:
Pai Nosso, diz Niels em Copenhagen
Para dizer Amen em Cavendish,
Santa Maria da Polónia
Já Notre Dame no Pasteur:
Tudo terras cristãs como Portugal, oh douler!
      
"«Limite de Idade» : a imagética" / Euryalo Cannabrava. 
In: Revista Colóquio/Letras. Ensaio, n.º 24, Mar. 1975, p. 41-44.
     
    
                        
LEITURA ORIENTADA DO POEMA “SEMÂNTICA ELECTRÓNICA”
        
1. O texto constrói-se com uma profusão de ideias, de imagens, e os campos de sentidos deslocam-se e variam a cada passo (domínio da pecuária, religioso, militar, científico…).
Atente nos diversos sentidos que servem de base ao jogo de associações:
ordem: sucessão, seriação cronológica ou numérica; imposição; sacramento.
ordenança: mandado, lei; soldado às ordens de um oficial.
ordenador: calculadora, cérebro electrónico (computador, máquina); aquele que ordena.
ordenhar: mungir, tirar leite.
ordenado: salário; aquele que executa ordens; organizado; numerado; feito padre.
vaca; vaca-leiteira: fonte de proventos; à vaca: à mama.
vacância: vagatura, lazer.

1.1. Agrupe as palavras que, no poema, se associam em termos semânticos.

1.2. Faça o levantamento dos vocábulos que apenas se associam por sonoridade.

2. Identifique o estado de espírito do sujeito poético nos versos 6 a 10.

3. De que forma o texto de José Martins Garcia se aplica ao conteúdo do poema?

4. Justifique o título do poema.
         
Ser em Português 12, coord. A. Veríssimo, Porto, Areal Editores, 1999.
       
       

SUGESTÕES DE LEITURA
      


[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2012/08/28/semantica.eletronica.aspx]

segunda-feira, 27 de agosto de 2012

EU, COMOVIDO A OESTE, poema 30 (Vitorino Nemésio)

          





        
POEMA 30
     
Na ave que passou
Recolhi o quê?
Deus a levou.
Minha saudade, não:
Essa
Traz de longe e de anos
Uma palha,
Sinal de triste e de sujo
Que ainda uma lágrima valha,
Lá onde a alma começa.
Assim os cães que muito amam
Voltam a casa do dono.
Que perdidos!
O seu amor vagabundo
Os enrosca naquele sono
Cheio do cabo do mundo.
Triste, me sinto ir
Entre a ave e a saudade,
Sem saber preferir.
Tudo largo de mão!
Creio até que perdi a minha idade
E o instinto e silêncio do meu cão.
    

Vitorino Nemésio, Eu, Comovido a Oeste (1940)
          
         



LINHAS DE LEITURA
      
Considere as seguintes linhas de leitura do poema:

• a ave que passou ‑ o tempo fugaz;

• a saudade que ficou ‑ tristeza e mancha;

• o cão ‑ motivo doméstico da fidelidade do dono (à casa de onde partiu);

• entre a partida e o regresso do filho pródigo ‑ o dilema, o nada.

        
Plural 12, E. Costa, V. Baptista, A. Gomes, Lisboa Editora, 1999.

       
       

SUGESTÕES DE LEITURA
     

[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2012/08/27/poema30.aspx]

domingo, 26 de agosto de 2012

EU, COMOVIDO A OESTE, poema 18 (Vitorino Nemésio)






     
POEMA 18
    
Sombra, leva mais longe a tua linha,
Que a tarde vai-se e levanta
A sua roupa de horas,
‑ Tudo o que a tarde tinha.

Quando a água do tanque é mais profunda,
Olhar ‑ e ser mais velho!
Como num mar, no tempo entramos;
Ele é que nos inunda
A casa até ao espelho.

Já tudo retira as tendas
Para outra água e verde;
Os camelos vão sem unhas;
Só diante de nós o que se perde,
Alma, já não é vida.

Tu, nem a morte supunhas.
            

Vitorino Nemésio, Eu, Comovido a Oeste (1940)
          



         
LINHAS DE LEITURA
      
Procure, no poema, linhas de significado, considerando:

• o apelo à sombra, o apelo à distância;

• a água do tanque da infância tornada espelho da velhice;

• a caminhada, os signos da errância: «tendas, camelos»;

• o tempo: o sentimento de perda;

• o tempo: a morte.

        
Plural 12, E. Costa, V. Baptista, A. Gomes, Lisboa Editora, 1999.


       
       
SUGESTÕES DE LEITURA
 

[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2012/08/26/poema18.aspx]

sábado, 25 de agosto de 2012

EU, COMOVIDO A OESTE, poema 17 (Vitorino Nemésio)

Vitorino Nemésio, Desenho de Emanuel Félix (2012)
           

        
POEMA 17
  
Pus-me a contar os alciões
*
 chegados
(Minha memória era água, água...).
Fez-me mal aquela alta tristeza
De bicos vagabundos,
Mas não chorei os alciões desterrados.

Sempre gostei de aves e de lágrimas.
Lágrimas, agora, não podia,
Mas podia os alciões
‑ E dei-lhes meus olhos para ovos
(Que as fêmeas estavam cansadas
E vinham de terra fria).

Firme e condescendente,
Fechei as pálpebras pesadas
De contradição e de poesia.
‑ E um mundo novo, de alciões novos,
Esse era o meu quando as abria.
        

Vitorino Nemésio, Eu, Comovido a Oeste (1940)
       
________________
* Alcião: ave marinha, gaivota
         
         


        
TEXTO DE APOIO
         
Na terceira estrofe do “Poema 17”, “o Poeta tem consciência do seu devaneio; num descer de pálpebras, se revê no passado; ergue-as, vê-se num mundo novo: são as novas associações que·se estabelecem em sua imaginação criadora, de antigas imagens que lhe povoaram a infância”.

“É neste «fechar as pálpebras», quando «um mundo novo, de alciões novos» se descortina, que o Poeta seja, talvez, mais ele, uma vez que, no estado de criação poética, tanta coisa do inconsciente aflora, incontrolada, à superfície do consciente.

Vistos esses depoimentos, além de tantos outros que poderíamos ainda arrolar, atendamos para este outro mais, em que Vitorino Nemésio, manifestamente, declara seu desejo de que o procuremos em sua obra poética:

«O poema não "é" absolutamente na figura gráfica, discursiva, a que consideramos vinculado: está lá virtualmente, como algo latente ou potencial. O seu texto concreto é o pretexto de sua realidade.» (Última Lição in Críticas sobre Vitorino Nemésio, coord. António Lucas, Lisboa, Bertrand, 1974, p. 58)
    
Em outra passagem de seus escritos, Nemésio, numa ironia parentética, diz:
«(E quem não entender os meus
Versos, pergunte ao psiquiatra).» (Sapateia Açoriana, Lisboa, Arcádia, 1976, p. 81)
   

Lúcia Cechin, A Imagem Poética em Vitorino Nemésio, Angra do Heroísmo, Secretaria Regional da Educação e Cultura, 1983, p. 81.
      
        


LEITURA ORIENTADA
         
1. «Pus-me a contar os alciões»
    • Que sentimentos a chegada das aves suscita no poeta? Porquê?

2. «Sempre gostei de aves de lágrimas»
    • Em que sequência surge esta afirmação?

3. «E dei-lhe meus olhos para ovos»
    • Interprete esta surrealista e inesperada metáfora.
(Tenha em conta o valor simbólico de ovo e relacione esta passagem com o poema «O Ovo»)

4. «Fechei as pálpebras pesadas»
    • Que mundo se formou na interioridade do sujeito poético?

5. Mostre que este é mais um poema que se constrói em torno da memória, do mar, da interioridade do sujeito lírico.

6. Comente a musicalidade da linguagem: as rimas, as repetições diversas, as aliterações.
        
Plural 12, E. Costa, V. Baptista, A. Gomes, Lisboa Editora, 1999.
       


       
SUGESTÕES DE LEITURA
      


[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2012/08/25/poema17.aspx]