domingo, 19 de janeiro de 2014

DEPOIS DA LUTA E DEPOIS DA CONQUISTA (Camilo Pessanha)



  
  
Depois da luta e depois da conquista
Fiquei só! Fora um ato antipático! 
Deserta a Ilha, e no lençol aquático
Tudo verde, verde, ‑ a perder de vista. 

Porque vos fostes, minhas caravelas,
Carregadas de todo o meu tesoiro?
‑ Longas teias de luar de lhama de oiro,
Legendas a diamantes das estrelas! 

Quem vos desfez, formas inconsistentes, 
Por cujo amor escalei a muralha,
‑ Leão armado, uma espada nos dentes?

Felizes vós, ó mortos da batalha!
Sonhais, de costas, nos olhos abertos
Refletindo as estrelas, boquiabertos...
  
Camilo Pessanha
  
  
André Letria, MAR, 2014

  
  
Interessante também é que mesmo o ato heroico da conquista aparece contaminado, nos versos de Pessanha, por uma aura de deceção. É como se entre o desejo e o instante da sua realização houvesse um intervalo intransponível, um toque mágico que transforma em meros dejetos os objetos outrora revestidos de encanto: “Depois da luta e depois da conquista / Fiquei só! Fora um ato antipático! / Deserta a Ilha, e no lençol aquático / Tudo verde, verde, – a perder de vista.”
Trata-se da presença de algo que deforma os objetos em que toca, que retira a consistência das coisas, transformando-as em projeções, meras imagens de sonho. A perceção da precariedade do mundo conduz o poeta a uma série de interrogações: “Porque vos fostes, minhas caravelas, / Carregadas de todo o meu tesoiro?” ou ainda “Quem vos desfez, formas inconsistentes, / Por cujo amor escalei a muralha, / – Leão armado, uma espada nos dentes?” (PESSANHA, 2003, p. 132)
E é justamente aqui, na perceção aguda da inconsistência dos desejos, no intervalo que assinala de forma explícita a presença de uma força que submete tudo o que se encontra no mundo à mudança, é justamente nesse intervalo que enxergamos nitidamente a ação de um tempo destruidor, de um tempo que desgasta e altera todas as coisas à sua volta, e é também aí que se delimita um ponto essencial da poética de Pessanha, pois, para além da decadência da pátria, e portanto da impossibilidade dessa de alimentar com seu húmus o espírito dos poetas, há, em seus versos, uma problemática muito mais ampla, que não se restringe apenas ao solo português, e que foi compartilhada por muitos outros poetas de sua época. A perceção de uma impotência generalizada, que não é somente a lamentação de um sujeito entediado ou insatisfeito, assume a forma da constatação de que não é possível fazer cessar a finitude e a temporalidade.
  
O Naufrágio das Caravelas”, Izabela Guimarães Guerra Leal. 
In: O MARRARE ‑ Periódico do Setor de Literatura Portuguesa da UERJ, Número 7 (2006) - ISSN 1981-870X

  
1425-1450, Tin-glazed earthenware bowl, with lustre; Málaga
       

         […] vou comentar brevemente dois textos nos quais se evidencia a questão da perda e do esvaziamento. E nos quais a metáfora das navegações e o intertexto camoniano têm um lugar central.
São eles o díptico de sonetos intitulado “San Gabriel” – que foi escrito por ocasião do quarto centenário da descoberta da Índia – e o soneto “Depois da luta e depois da conquista”, de data incerta, mas ao que tudo indica escrito em Macau.
Comecemos por este último: Depois da luta e depois da conquista”.
Podemos discernir nesse poema dois registros bem distintos. Por um lado, temos aqui um eu que nos fala, de forma mais ou menos alegórica, da deceção inerente a toda tentativa de realização de um desejo. Por outro, as imagens e os símbolos de que se vale para fazê-lo fazem presente um conteúdo histórico que não é nada neutro em Portugal: conquista, ilha, muralha, caravelas e tesouros refluem para um fundo mítico que percorre toda a cultura moderna portuguesa e teve sua expressão máxima no poema camoniano.
Quero dizer, pela forma como se apresenta, o soneto opera uma forte identificação entre elementos do passado histórico e do passado pessoal. Mas devemos observar a especificidade dessa formulação simbólica, que se encontra também em outros autores do período (António Nobre, principalmente). O que me parece mais notável nesse poema é que não fica claro qual é o ponto de vista principal e qual é o secundário, isto é, qual é o plano alegorizante e qual é o plano alegorizado. Desse procedimento, resulta aquela superposição, muito sensível na poesia do final do século XIX em Portugal, do destino pessoal do poeta e do destino coletivo da nação. Quero dizer: temos aqui mais um exemplo da particular assimilação, em Portugal, dos estilemas do Decadentismo. De facto, todo o estado de espírito décadent tem um sentido muito específico, quando expresso em língua portuguesa no final do século XIX.
Quando Verlaine dizia, instalado no coração da França: “Je suis l’Empire à la fin de la décadence”, ele frisava, pela contraposição de sua forma de sentir ao sentimento geral do homem comum, instalado na sua inabalável crença no progresso contínuo da civilização, que o poeta e a arte estavam mesmo a rebours, nadavam contra a corrente triunfante no tempo, lutavam contra ela, em nome de outros valores que se sentiam ameaçados.
Mas quando Nobre ou Pessanha falavam em decadência, e expressavam aquele estado de espírito desistente e langoroso que se convencionou chamar de Decadentismo, o sentido social de suas palavras era profundamente diferente. Ecoavam eles, ao assumir os estilemas e as formas de sentir do Decadentismo, as mais profundas comoções da inteligência e da sociedade portuguesa, iniciadas com a constatação da decadência nacional nas conferências de 1870, e levadas à potência máxima nos meses que se seguiram ao Ultimatum de 1890. É por isso que Nobre vai poder terminar o “António” – seu poema mais ostensivamente trabalhado nessa direção, em que é insistente o contraponto entre o dentro e o fora, a vida íntima do poeta e a vida geral da nação – com esta estrofe sinistra:
Moço Lusíada! criança!
Porque estás triste, a meditar?
[...] Vês teu país sem esperança
Que todo alui, à semelhança
Dos castelos que ergueste no Ar?
  
Memória coletiva e memória individual convergem nessas estrofes: a história de vida do indivíduo e a da nação são símbolos intercambiáveis. Um diz o outro, reflete-se no outro, explica-se por ele no nível imagético.
Também no soneto de Pessanha coincidem os dois níveis de reflexão. E se é verdade que Pessanha nunca é tão clara e minuciosamente confessional quanto Nobre, nem por isso o poema deixa de ter dois registros simultâneos. Por um lado, lê-se o poema perfeitamente numa clave de abstração, como meditação generalizada a partir de uma experiência de deceção: trata ele, nessa chave, do descompasso entre o sonho, que gera a busca, e a realidade conquistada. No intervalo entre a projeção idealizada do desejo e a concretude que pode ser, por fim, apreendida, cresce a frustração, a deceção. A única forma de conservar intacto o ideal, dessa perspectiva, é não realizá-lo, isto é, suspender o desejo, interromper a ação. A frustração prévia decorrente dessa estratégia – quer dizer, a assunção de que é impossível conquistar o ideal buscado – é na verdade uma defesa contra a frustração maior, real e inevitável. Daí o símbolo dos mortos da batalha, considerados felizes por morrerem, por terem paralisada a sua ação no momento em que apenas vislumbravam o objeto irreal de seu desejo.
Lido dessa forma, o poema é uma meditação sobre o descompasso entre os móveis e o resultado da ação dos homens, que termina por aquela paradoxal afirmação da morte como estado de felicidade. Uma felicidade apenas negativa, pois provém apenas da supressão dos motivos da dor, da eliminação da vulnerabilidade do sujeito. Os olhos abertos não retêm o ideal, nem contemplam a sua realização. Apenas o refletem. Desaparece justamente a angústia de apreensão que se encontra magnificamente expressa em outros versos lapidares de um dos sonetos mais célebres do autor: “Imagens que passais pela retina / dos meus olhos, por que não vos fixais?”. Fica apenas o resíduo, o desejo congelado e sem consecução.
O que é notável é a maneira como toda a reflexão de Pessanha vem vazada em símbolos tradicionais da literatura e da história de Portugal. Quero dizer: mesmo lendo o soneto num registro de reflexão íntima, a imagética tradicional está presente, participa do registro da emoção pessoal.
E destaca-se, na leitura, o facto de que uma só palavra é capaz de evocar, inteiro, um universo literário e ideológico que passa a funcionar como um baixo contínuo, a permear todas as demais inflexões do poema. Refiro-me à palavra Ilha, aí grafada com maiúscula, que faz ecoar no soneto a Ilha dos Amores camoniana.
No poema quinhentista, após a descoberta e a conquista, a armada encontra a Ilha, prêmio da alta façanha, onde os argonautas se deleitam com as ninfas e contemplam a máquina do mundo.
No soneto de Pessanha, por outro lado, o prêmio da conquista é também a Ilha. Mas trata-se de uma ilha deserta, e não há afinal prêmio algum, mas apenas perda.
A conquista, ela mesma, recebe uma qualificação forte: um ato de oposição de sentimentos, de antipatia, e não de correspondência, de consonância entre a vontade do homem e a dos deuses, como no poema camoniano. A Ilha de Pessanha, de onde o poeta vê apenas o vasto mar, desabitado a perder de vista, está mais próxima, na geografia espiritual, de uma outra ilha dos amores: o cemitério pedregoso que Baudelaire retratou em “Un voyage à Cythère”.
Entretanto, no poema de Pessanha não há crime, nem castigo violento. Ao ato antipático da conquista sucedem apenas a solidão desabitada, a perda dos tesouros acumulados e o reconhecimento da fatuidade de todos os esforços. O desejo de morte, que comparece no final, não tem qualquer caráter punitivo. É antes evasivo, um anseio pela aniquilação porque ela significa a forma possível de resistência do ideal, preservado do choque com a realidade.
Embora esse soneto não se preste a uma leitura alegórica cerrada, é bastante sensível a forma pela qual nele confluem (por meio da simbólica das navegações), a trajetória nacional e a perceção do destino individual do poeta.
No âmbito das imagens do poema, não parece haver qualquer expectativa da retomada da ação: valoriza-se aqui apenas retrospetivamente o móvel da empresa e invejam-se os que morreram ainda de posse dessa força que, na personagem que nos fala nesse soneto, já não existe senão para lamentar o bem perdido.
Não temos indicação de quando teria sido composto esse soneto. Não podemos, portanto, saber qual a sua posição temporal em relação a outro poema bastante similar na imagética: o díptico de sonetos intitulado “San Gabriel”, publicado em 1898, para celebrar o quarto centenário do descobrimento do caminho marítimo para a Índia.
  
Camilo Pessanha e a gruta de Camões”, texto lido no Colóquio 
“Camilo Pessanha: orientalisme, exil et esthétiques fin-de-siècle”, 
Universidade Paris Oeste/Nanterre, novembro de 2008. Paulo Franchetti
  
 


PODERÁ TAMBÉM GOSTAR DE:

 Vida e obra de Camilo Pessanha: apresentação crítica, seleção, notas e linhas de leitura / análise literária de Clepsidra e outros poemas, por José Carreiro. In: Lusofonia – plataforma de apoio ao estudo da língua portuguesa no mundo, 2021 (3.ª edição).



[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2014/01/19/depois.da.luta.aspx]

sábado, 18 de janeiro de 2014

EM UM RETRATO (Camilo Pessanha)


dedicatória de EM UM RETRATO (Camilo Pessanha)  
      
    
    
EM UM RETRATO

De sob o cômoro quadrangular
Da terra fresca que me há de inumar,

E depois de já muito ter chovido, 
Quando a erva alastrar com o olvido,

Ainda, amigo, o mesmo meu olhar 
há de ir humilde, atravessando o mar,

Envolver-te de preito enternecido, 
Como o de um pobre cão agradecido.
  
Camilo Pessanha
  
    
    
  
Autógrafo de 1916, que se conserva no espólio da Biblioteca Nacional de Lisboa.
  
  
      
    
«Em um retrato» ‑ como em «Porque o melhor, enfim», o poeta projeta-se no post mortem, mas aqui, sem qualquer ponta de ironia ou revolta e, sim, numa afirmação de amizade agradecida. Como imagina, aqui, antecipadamente o que será odepois, também vive a dor antes de a sofrer, a dor do que não terá ou será (e recordamos Álvaro de Campos em vários momentos, em especial ‑ Pecado Original ‑«Ah, quem escreverá a história do que poderia ter sido?» e Tabacaria) e por isso é um isolado, um vencido. Esta dor perante o sonho fracassado ou se exterioriza passivamente como em «No Claustro de Celas», e «Voz débil que passas», ora levemente revoltado (a lembrar algumas vezes Pessoa) ‑ «O meu coração desce, / um balão apagado... / Melhor fora que ardesse, Nas trevas, incendiado. /…/». E em ‑ «Na cadeia os bandidos presos!», a serenidade é forçada, ele está inibido, aniquilado, como os presos ‑ serenos, porque entre grades – eles a quem os soldados e as algemas assustam. Também procura acalmar a ânsia que nasce do «Campo florido das saudades» que tenta rebentar tumultuário. A serenidade é imposta por ele próprio para conseguir sossegar.
  
Lilás Carriço, Literatura Prática 11º Ano. Porto, Porto Editora1986 (4ª ed.) (1ª ed. 1977), p. 352.
  
  

EM UM RETRATO (Camilo Pessanha)
     
     
  
IMAGENS E IDENTIDADE
[…] o estudo a que me proponho é pautado pela temática da Imagem do Corpo enquanto forma de reconhecimento da Identidade de um sujeito. Sabemos que um dos momentos fulcrais da criação da nossa identidade passa por uma secundarização da nossa própria imagem e pelo reconhecimento da imagem do outro: assim, o momento em que descobrimos que os nossos simulacros imagéticos (sombra e reflexo) são parte de nós é um momento de construção de identidade e quando apreendemos visualmente o corpo do outro, tomamo-lo como identidade alheia.
O que é que há, então, nas obras em questão que sirva de veículo à temática da Imagem e Identidade? Encontramos, em “Em Um Retrato” de Pessanha, o que poderia ser um discurso ecfrástico sobre um retrato ou autorretrato, que na verdade não passa de uma objectificação artística da imagem de um sujeito e assim, da parte física e visualmente apreensível da sua identidade.
[…]
As Imagens do Simbolismo em “Em Um Retrato”
A estética do simbolismo é formulada através de híbridos de palavras e imagens que contaminam o processo de leitura com o da imaginação (no sentido da criação de imagens). Pessanha, expoente máximo do simbolismo português, cria, em Clepsidra, um mundo onde procura espelhar a sua subjetividade através da virtualidade e visibilidade do seu discurso poético-simbólico: “O visualismo de Pessanha, o seu poder de associação, levam-no a conceber sob formas sensíveis as realidades interiores, abstratas e a encontrar analogias entre os próprios objetos concretos” (Lemos, 1981: 125).
Os poemas simbolistas são descritos como quadros e esculpidos como estátuas, são passíveis de diversas interpretações devido ao caráter fluído dos seus símbolos que são tomados como puros significantes “libertadores de imagens”. A fluidez semântica destes símbolos afasta a estética simbolista de uma ordem da representação para a aproximar de uma ordem de pura figuração (Guimarães, 2004: 20). Estes símbolos são demarcados por um devir-múltiplo, tão semanticamente discutíveis que apontam para o vago, uma característica do Simbolismo que se aproveita do caráter diferido da linguagem, criando perturbações semânticas e levando a situações de exegese aleatória, ilibadas pela ambiguidade significacional, pela sugestão ou pelo vago (Guimarães, 2003: 524). Os símbolos de Camilo Pessanha vivem de uma autonomia representacional e não visam confundir signo com referente mas criar uma virtualidade independente.
A poética simbolista cruza diversos regimes sensoriais, como podemos notar em “Em Um Retrato”, onde o adjetivo atribuído à palavra «terra» é «fresca», remetendo para uma sensação táctil e no mesmo poema temos sensações visuais e metáforas que apelam à subjetividade do sujeito poético que descreve o quadro e que provocam no leitor sensações sinestésicas. A sinestesia é outra das características da poética simbolista e, como protótipo, posso referir “Correspondances” de Charles Baudelaire onde é enunciado “Les parfums, les couleurs et les sons se répondent”. Relativamente a este caráter sinestésico do signo, podemos dizer que estas imagens do simbolismo se aproximam da ideia de metáfora, no sentido em que ambos têm ou aparentam ter uma parte sensível e uma parte significacional, quais signos. A metáfora movimenta o significado para um outro veículo significante e joga com um “coletivo de binómios – sensível/inteligível; próprio/figurado – (...) [elegendo] um em detrimento do outro” (Babo, 2011:30)
Assim, apesar de usarmos o termo “imagens” para descrever uma poética de predomínio visual, o que ocorre no Simbolismo é, deveras, um desdobramento sinestésico dos símbolos que, na sua maioria, apela a mais do que uma ordem sensorial.
  
Tema
No poema “Em Um Retrato”, primeira instância comparativa deste trabalho, um sujeito poético trata de prometer que o seu olhar irá navegar pela transcendência do tempo, dirigindo-se a cada novo observador e atualizando-se a cada momento em que é observado.
Em “Olhando o Olhar no Retrato”, Maria Augusta Babo escreve que “o punctumdo retrato é o olhar” (Babo, 2003: 96); em “Em Um Retrato”, o olhar é duplamente opunctum do poema: não só é um elemento fulcral do poema, sendo seu sujeito, como também é o ponto focal de acesso do leitor ao poema e da mimesis de observar um retrato: o olhar de que se fala no poema pode ser o olhar do referente do retrato, que está “De sob o cômoro quadrangular”, que pretende eternizá-lo através do seu duplo registo literário e, hipoteticamente, pictórico. Lendo “Em Um Retrato” tornamo-nos duplos observadores pelos regimes de leitura e imaginação a que somos apelados pela sinestesia do simbolismo.
  
  
EM UM RETRATO (Camilo Pessanha)  
  
                
         
Forma de Conteúdo
A preposição do título do poema aponta para um topos dicotómico: “Em Um Retrato” pode ser tanto o tema sobre o qual o poema é escrito, como também o local onde o poema está escrito. Referindo-se a um retrato, o próprio poema apresenta-se como o sujeito emoldurado, primeiro pelo incipit (já referido) e em segundo lugar pela mancha textual quase “quadrangular”, apenas obstruída pelos cortes estróficos. Os símbolos utilizados por Pessanha contribuem para a projeção da sua subjetividade na criação de uma natureza virtualizada; esta é uma característica da sua poética, como explica Esther de Lemos:
Uma imagem não é geralmente em Pessanha uma representação direta, fantasia a substituir uma realidade. É o ponto de partida para um sem número de construções fantasiosas, é uma visão que deslumbra por si mesma, é, às vezes uma realidade tão real como aquela que vai substituir. (Esther de Lemos, A «Clepsidra» de Camilo Pessanha2.ª ed., Lisboa, Ed. Verbo, 1981, pp. 126-127 (1ª edição: Porto, Livraria Tavares Martins, 1956)

O poema organiza-se em torno da expressão de uma promessa: “(...) o mesmo meu olhar / Há de ir humilde, atravessando o mar, / Envolver-te de preito enternecido, / Como o de um pobre cão agradecido” (Pessanha, 1997: 74). Tomando o mar (e toda a água na poética de Pessanha4) como símbolo do tempo, esta promessa parece-me análoga ao devir-fantasmático da imagem, que tende a confundir presença com ausência, visando eternizar o sujeito. No poema, o sujeito poético promete que o seu olhar (desde o outro lado do retrato) “há de ir, (...) atravessando o mar”, eternizando-se. Deste modo, a imagem retratada sobrevive às chuvas do tempo e ao olvido, e reencontra-se com cada novo leitor ou espectador.
Recordo o caráter sinestésico da poética simbolista: deparamo-nos aqui com uma tensão entre os regimes semióticos textual e pictórico, analisamos um poema que no seu estar-escrito, constantemente se reatualiza em memória5 e simultaneamente se refere a uma imagem que tensionaliza presença e ausência.

Forma de Expressão
O poema está construído numa só frase dividida em quatro grupos sintáticos que correspondem quase perfeitamente à divisão estrófica. Os primeiros dois dísticos são complementos circunstanciais, o primeiro de espaço (“De sob o cômoro”, “Da terra”) e o segundo de tempo (“E depois de”, “Quando a erva”).
Na terceira estrofe surgem os intervenientes do poema: um recetor demarcado pelo vocativo “amigo” a quem o poema é dirigido6, retomado na quarta estrofe mediante uma marca de segunda pessoa sobre a qual o verbo flexiona; e um emissor, um sujeito sintático em função do qual surgem os predicados: “o meu olhar”; este olhar surge subordinado ao sujeito poético mediante o uso do pronome possessivo “meu”.
É também na terceira estrofe que surge uma primeira predicação que remete para o futuro mediante a conjugação perifrástica “há de ir”, primeiramente conjugada com “atravessando”, que utiliza o gerúndio para implicar a continuidade da ação: o seu olhar há de ir atravessando o mar do tempo.
A quarta estrofe trata da efetivação discursiva da promessa, revelando o verbo principal da frase no infinitivo, com flexão na segunda pessoa: “envolver-te”; conjugado com o auxiliar da terceira estrofe; esta ação é relegada para o futuro, cristalizando-se numa promessa enquanto ato performativo da linguagem. A promessa realiza-se na sua enunciação e registo escrito, corporizando no poema as tensões da representação, presença/ausência e presente/memória, eternizando o olhar.
A conjugação perifrástica do futuro é predominante no poema, colocando a ação numa situação de afastamento temporal mas, simultaneamente, com a certeza de que será concluída. Esta ação é a promessa que parece jogar com o poder das palavras; o sujeito poético visa imortalizar o seu olhar, quer no texto, quer no retrato, através desta promessa de que irá transcender o mar-tempo e envolver cada novo observador “de preito enternecido”.

Substância da Expressão
O poema “Em Um Retrato” é composto por quatro dísticos. Em cada verso está presente a métrica decassilábica e a sua musicalidade advém do ritmo concedido pelas pausas das vírgulas e pela rimática emparelhada de cada dístico.

Algumas Contaminações entre “Em Um Retrato” e “Metamorfoses de
Narciso”
[…]
“Em Um Retrato” indicia através do registo escrito a existência de um retrato sobre o qual o sujeito poético discorre. Neste poema também são evidenciadas algumas das propriedades inquietantes da representação como a fantasmagoria da imagem e a sua distorção tensional entre presença e ausência e, do lado da escrita, presente e memória para com o olhar que é eternizado pelo registo.
  
Imagens e Identidade - Camilo Pessanha e Salvador Dalí”. Trabalho académico realizado por Tiago Filipe Clariano para a cadeira de Literatura Portuguesa e Artes, Universidade de Évora – Escola de Ciências Sociais Línguas, Literaturas e Culturas, 2013.
  
____________________
(4) Sobre a simbologia da água em Camilo Pessanha, conferir O Simbolismo na Obra de Camilo Pessanhade Barbara Spaggiari ou Dicionário dos Símbolos de Jean Chevalier e Alain Gheerbant (este último transversal à generalidade da Literatura). Também o termo Clepsidra que titula a única obra deste poema refere-se a um instrumento de medição do tempo do discurso político utilizado desde os tempos do Egito Antigo.
(5) Sobre a escrita enquanto memória conferir Fedro de Platão ou “A Memória Arquival e Memória Figural” de Herman Parret in Revista de Comunicação e Linguagens n.º 40 – Escrita, Memória, Arquivo, organização de Maria Augusta Babo e José Augusto Mourão.
(6) Não podemos saber ao certo a quem se refere Pessanha neste poema; a minha interpretação, no entanto é de que se dirige diretamente ao leitor, numa aproximação mediada pelo uso da segunda pessoa do singular e pelo vocativo “amigo”.
  
  
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[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2014/01/18/em.um.retrato.aspx]

sexta-feira, 17 de janeiro de 2014

VIOLA CHINESA (Camilo Pessanha)


                                        
  
  
VIOLA CHINESA

Vai adormecendo a parlenda 
Sem que amadornado eu atenda 
A lengalenga fastidiosa.
Sem que o meu coração se prenda,

Enquanto, nasal, minuciosa, 
Ao longo da viola morosa, 
Vai adormecendo a parlenda.
Mas que cicatriz melindrosa 

Há nele, que essa viola ofenda 
E faz que as asitas distenda 
Numa agitação dolorosa?
Ao longo da viola, morosa...

Ao longo da viola morosa  
Camilo Pessanha
  
  
*
  
  
Nota bibliográfica coligida por J.G. Elzenga:
Autógrafo pertencente ao espólio de Carlos Amaro, atualmente perdido. Fonte: cópia manuscrita do poema, enviada a Castro Osório por José Benedito de Almeida Pessanha.
Publicações anteriores à segunda edição de Clepsidra:
Recorte de jornal não identificado, no Caderno de Macau: o poema traz o título Rondel (riscado e substituído por Viola chineza), a dedicatória "(A Wenceslau de Moraes)", a menção de "inédito", a data "Macau, julho de 1898", e a assinatura.
O Mundo Português, (Janeiro de 1934), com o título Viola chinesa e a dedicatória;
Revista de Portugal, (Novembro de 1940), com a indicação de "Inédito".
  
  
  QUESTIONÁRIO SOBRE O POEMA «VIOLA CHINESA»  
1. Considerando as duas primeiras estrofes, percebemos que o poeta explora bastante certos fonemas, produzindo uma musicalidade que se espalha por todos esse versos. Explique esse trabalho de linguagem, apontando a ocorrência desse efeito sonoro.               
2. Em que estado se encontra o eu lírico enquanto ouve a "viola morosa"?


3.O poeta simbolista está sempre aberto aos estímulos sensoriais, que lhe despertam sugestões, emoções indefinidas e vagas. repare que, à medida que a conversa morre, fica no ar apenas o som da viola. Em que versos da terceira estrofe revela o eu lírico a inquietação que o som da vida produz em seu interior?

4. O eu lírico define essa inquietação ou apenas a registra? Justifique.

5. Em resumo: que características tipicamente simbolistas você reconhece nesse texto?

http://anagabrielavieira.blogspot.pt/2009/09/simbolismo.html



                          CLEPSYDRA de Camilo Pessanha vista por Pedro Barreiros, Macau, Fundação Oriente e Instituto Cultural de Macau, outubro de 1990.
  
  
  
AO LONGO DA VIOLA MOROSA
  
Nesta sugestão de rondel é subtil a transposição do eu de Pessanha ‑sucessivamente apresentado (eu atenda, meu coração, nele ‑ coração ‑) objetivado no passarito na gaiola (porque «as asitas distende» que se agita dolorosamente ao som da viola morosa e plangente (vejam-se as nasais e sons fechados a fazer-nos pensar nas cordas) e, porque o é, fá-lo sofrer ‑ eu / coração ‑ sede de sentimentos // passarito /gaiola → sofrimento para os dois limitados no espaço ‑ sugerido no som o e no arrastado do verso que abre e fecha a composição, mais arrastado ainda no fecho pela pausa e pelas reticências.
  
Lilás Carriço, Literatura Prática 11º Ano. Porto, Porto Editora1986 (4ª ed.) (1ª ed. 1977), PP. 353-354.
  
  
*
  
  
CAMINHO
  
O poema evolui sob a captação onomatopaica do som desse instrumento — aqui recriado pela monótona insistência nos sons nasais. Em dois tempos recorta-se uma paisagem interior: a princípio, o sujeito “amadornado” diz-se insensível à música; mas, depois, já envolvido, a música vem a ofender uma “cicatriz melindrosa” a ponto de lhe provocar uma “agitação dolorosa”. Ou seja, num universo simbolista, impossível ficar alheio ao apelo da música, qualquer música.
  
Camilo Pessanha em dois temposGilda Santos e Izabela Leal, Rio de Janeiro, 7Letras, 2007, p. 42.
  
  
*
  
  
O “EU” REVELADO E AS MÁSCARAS DO “EU”
  
[…] Partindo-se dessa conclusão e da feita com a leitura de Violoncelo, vemos que os poemas que remetem a instrumentos musicais tendem a ser mais imprecisos na caracterização do “eu”. Vejamos, no entanto, um caso em que a sugestão gerada por um instrumento musical deixa entrever, de forma um pouco mais nítida (e só um pouco) como se faz esse “eu”.
Embora seja bastante rica a musicalidade do poema e o estado do sujeito também ser sugerido pelo som de um instrumento musical (caso dos dois últimos poemas analisados), o “eu” aparece explicitamente citado — já na primeira estrofe — pelo pronome pessoal (ao contrário dos dois poemas que o sujeito não vinha sequer aludido). Essa identificação do “eu” com a “viola morosa” é parecida com a do “eu” com a “flauta flébil” do poema anterior: “eu” e “mundo” são incompatíveis. Neste poema, no entanto, podemos não só adivinhar uma cena que se desenrola, mas observá-la bastante claramente.
A leitura desse poema permite que ele, na construção de sua imagem final, seja associado ao “Ao longe os barcos de flores”: outra vez podemos ler que, para o eu lírico camiliano, o contato que se faz com as coisas de mundo se dá via um sentimento de exílio e não pertencimento. O que interessa, no entanto, para a nossa leitura, é que o “eu” passa a ser explicitamente construído.
  
São Paulo: Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, 2011. 
Dissertação de Mestrado em Literatura Portuguesa, pp. 66-67.



                     

  
PODERÁ TAMBÉM GOSTAR DE:

Ouça Lavra da palavra - Camilo Pessanha, "Viola Chinesa".

 Vida e obra de Camilo Pessanha: apresentação crítica, seleção, notas e linhas de leitura / análise literária de Clepsidra e outros poemas, por José Carreiro. In: Lusofonia – plataforma de apoio ao estudo da língua portuguesa no mundo, 2021 (3.ª edição).




[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2014/01/17/viola.chinesa.aspx]