sexta-feira, 7 de fevereiro de 2014

ANTERO DE QUENTAL, UMA TRAJETÓRIA COM DEUS


 ANTERO DE QUENTAL         João de Deus
  
  
A João de Deus
   
Se é lei, que rege o escuro pensamento,
Ser vã toda a pesquisa da verdade,
Em vez da luz achar a escuridade,
Ser uma queda nova cada invento;

É lei também, embora cru tormento,
Buscar, sempre buscar a claridade,
E só ter como certa realidade
O que nos mostra claro o entendimento.

O que há de a alma escolher, em tanto engano?
Se uma hora crê de fé, logo duvida:
Se procura, só acha… o desatino!

Só Deus pode acudir em tanto dano:
Esperemos a luz d'uma outra vida,
Seja a terra degredo, o céu destino.
       
Antero de Quental
  
  
*
  
  
O PENSAMENTO DE DEUS
Deus é alvo de uma conceção dúbia por parte de Antero, já que, mercê da sua educação religiosa, é visto como um meio de evasão: "Só Deus pode acudir em tanto dano:/ Esperemos a luz de uma outra vida, seja a terra degredo, o céu destino" (Op. cit.:174). Mas o que prevalece nesta fase, é sobretudo pensar Deus como inconsciente, numa nítida influência de Hartmann: "Chamam-me deus há mais de dez mil anos.../ Mas eu por mim não sei como me chamo..." (Op. cit: 170).
http://www.citi.pt/cultura/literatura/poesia/quental/opdd.html
              
                
              
*              
                
              
PENSANDO O SENTIMENTO
No Ciclo do Pensamento de Deus (SÉRGIO, 1956, p.231), o soneto “A João de Deus”, escrito entre 1860 e 1862 (CARREIRO, p.135), já nos antecipa a ideia surgida em 1865, quando Antero traça oposições entre seu poema “Luz do Sol, Luz da Razãoe o de João de Deus,“Luz da Fé”:
A minha fé vira-se mais para a terra do que para o céu. O João prefere o céu. Mas quem tem culpa deste desacordo é ele mesmo. Pois, terra digna de ele a pisar e viver nela, não valerá bem um céu, qualquer que ele seja? (CARREIRO, p.139)
A resposta dada por Antero a M. P. da Rocha Viana, em 1865, (CARREIRO, p.139) concretiza a ideia da diferença entre a visão de Deus dos dois poetas: se para Antero a fé precisa ser clara e racionalizada,
É lei também, embora cru tormento,
Buscar, sempre buscar a claridade,
E só ter como certa realidade
O que nos mostra claro o entendimento. (QUENTAL, 1956, p.235)
para João de Deus ela é prenúncio de eternidade e só através dela se chegará à ressurreição: “Seu Deus é compassivo, remunerador, pai, enfim, e a morte não é morte, mas ressurreição”. (BERARDINELLI, p.10)
À necessidade de entendimento e clareza da fé de Antero, toda voltada para a terra, opõe-se a fé incondicional de João de Deus, séria e devotamente voltada para o céu:
Segues-me sempre...e só por ti suspiro!
Vejo-te em tudo...terra e céu te esconde!
Nunca te vi...cada vez mais te admiro! (JOÃO de DEUS, p.75)
No poema anteriano, o primeiro terceto nos mostra a perceção do autor, perdido que está em meio ao sentimento contraditório que se lhe apresenta:
O que há-de a alma escolher, em tanto engano?
Se uma hora crê de fé, logo duvida:
Se procura, só acha ... o desatino! (QUENTAL, 1956, p.235)
Mas ainda persiste a crença latente num Deus maior, é nEle, nas Suas mãos, que repousa a certeza de uma solução para Antero: entre tantas dúvidas, só em Deus estará a resposta:
Só Deus pode acudir em tanto dano:
Esperemos a luz duma outra vida,
Seja a terra degredo, o céu destino. (Ibidem, p.235)
É de se notar o tom de certeza no imperativo do verbo ser do último verso: a ideia do Deus só perdão, ainda está lá.
Antero de Quental: Uma trajetória com Deus, Helen Araujo Mehl.
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, setembro 2003, 
pp. 26-27.
  
  


 

  
  


OS SONETOS DE ANTERO DE QUENTAL
[…]
O movimento como elemento característico destes Sonetos relaciona-se com o antitetismo que, de acordo com a estrutura deste género64, está também na origem daqueles em que o movimento se manifesta menos acentuado por interrogações e exclamações.
São característicos a esse respeito títulos tais como Diálogo, Tese e Antítese, Disputa em Família e Luta, e igualmente a palinódia de A um Crucifixo de 1862 pelo soneto do mesmo título, de 1874. Os monólogos Amor vivo, Mea Culpa, Voz do Outono, Estoicismo, Comunhão, Solemnia Verba são expressões da luta interior do Poeta; Ignoto Deo, Divina Comédia, Ignotus e Logos, do seu conflito com Deus; os grupos de A Ideia I-VIII, Espiritualismo I-II e Elogio da Morte I-VI, têm estrutura dialética. Em trinta e nove dos cento e nove sonetos do volume, o antagonismo é marcado por «mas» (ao lado de «contudo», «entanto», «porém»), em quatro, por «e» adversativo, em sessenta e sete por outros meios: contra-afirmações, imperativos ou meras antíteses. Mesmo o último soneto do volume, Na Mão de Deus, no intuito do Poeta o seu termo estética e filosoficamente conciliador, é, nesta sua função, determinado pelo antagonismo que nele aparece reconciliado.
As noções de Antero são impregnadas de antagonismos intrínsecos. Deus, procurado, acreditado e suplicado, é ao mesmo tempo o Ser que se oculta no infinito, que se esquiva, insondável e eternamente silencioso, que estabelece a lei da busca da Verdade e igualmente a contrária, que torna vã toda a sua pesquisa:
É lei de Deus este aspirar imenso...
E contudo a ilusão impôs à vida,
E manda buscar luz e dá-nos treva! (A Santos Valente),
e
Se é lei, que rege o escuro pensamento, 
Ser vã toda a pesquisa da Verdade, 
Em vez de luz achar a escuridade, 
Ser uma queda nova cada invento,

É lei também, embora cru tormento, 
Buscar, sempre buscar a claridade, 
E só ter como certa realidade 
O que nos mostra claro o entendimento. (A João de Deus)
  
Assim, aparece como «fantasma» odiado e amado (O Inconsciente), como «tirano», «grande», «forte», «terrível», potência receada, inimigo da liberdade que busca a Verdade, e todavia como vã banalidade» (Disputa em Família), ser que a si próprio ainda não se «encontrou» (Ignotus). A síntese deste conceito de Deus invisível, mas presente, que domina no íntimo da alma, que está na origem dos sentimentos e das noções, apenas Imaginado e todavia receado, invocado e silencioso, inexorável e todavia adorado, aparece no soneto
LOGOS

Tu que eu não vejo, e estás ao pé de mim,
E, o que é mais, dentro em mim — que me rodeias
Com um nimbo de afetos e de ideias,
Que são o meu princípio, meo e fim...

……………………………………………
……………………………………………
……………………………………………
……………………………………………

És um reflexo apenas da minha alma,
E em vez de te encontrar com fronte calma
Sobressalto-me ao ver-te, e tremo e exoro-te...

Falo-te, calas... calo, e vens atento...
És um pai, um irmão, e um tormento
Ter-te a meu lado… és um tirano, e adoro-te!
  
Cristo ficou privado da imortalidade, definitivamente humilhado e aniquilado, «morto», pela divinização (Palavras dum certo Morto). Por outro lado, o triunfo da Razão extática ao proclamar que Deus morreu, é apenas a expressão da«(eterna, trágica ironia» de Deus (Quia ӕternus).
O Homem, por sua vez, submetido à lei que lhe impõe buscar a verdade e daquela que torna vã esta mesma aspiração, é dilacerado pela fé e pela dúvida, pela confiança e pela revolta. As suas interrogações perdem-se, inatendidas, no vácuo, respondem-lhe apenas o eco das próprias dúvidas e tristezas e o silêncio impassível, e em vez de encontrar a luz da Verdade, o espírito ansioso perde-se na escuridão impenetrável. Já num dos primeiros dos seus Sonetos, em Ad Amicos, escrevia
(...) nossa alma é como um hino
À luz, à liberdade, ao bem fecundo,
Prece e clamor dum pressentir divino,

Mas num deserto só, ávido e fundo,
Ecoam nossas vozes, que o Destino
Paira mudo e impassível sobre o Mundo.
  
No Palácio da Ventura, dirá:
Sonho que sou um cavaleiro andante.
Por desertos, por sóis, por noite escura,
Paladino do amor, busco anelante
O palácio encantado da Ventura!

……………………………………………
……………………………………………
……………………………………………
……………………………………………

Com grandes golpes bato à porta e brado:
……………………………………………
Abri-vos, portas de ouro, ante meus ais!

Abrem-se as portas d’ouro com fragor...
Mas dentro encontro só cheio de dor
Silêncio e escuridão—e nada mais!
  
Ainda nos posteriores e últimos sonetos leem-se versos semelhantes:
Penetrando, com fronte no enxuta,
No sacrário do templo da Ilusão,
Só encontrei, com dor e confusão
Trevas e pó, uma matéria bruta... (Transcendentalismo);

É tudo, em torno a mim, dúvida e luto,
E, perdido num sonho imenso, escuto
O suspiro das coisas tenebrosas... (Lacrimae rerum);

(...) na imensa extensão, onde se esconde
O Inconsciente imortal, só me responde
Um bramido, um queixume, e nada mais... (Oceano Nox).
  
As ideias que agitam e atormentam o Poeta, brotadas do seu próprio íntimo, incompreensíveis a ele mesmo, são invocadas simultaneamente como «irmãos» e «algozes», «visões misérrimas e atrozes» (No Turbilhão). Do ideal que na sua consciência existe e que procura atingir, sabe ao mesmo tempo que é inatingível, e a inteligência e o anseio transformam-se em sonho e tormento:
Conheci a Beleza que não morre
E fiquei triste (...)
……………………………………………
……………………………………………

……………………………………………
……………………………………………
……………………………………………
……………………………………………

Pedindo à forma, em vão, a ideia pura,
Tropeço, em sombras, na matéria dura,
E encontro a imperfeição de quanto existe.

Recebi o batismo dos poetas,
E assentado entre as formas incompletas
Para sempre fiquei pálido e triste (Tormento do Ideal).
Do sonho em que se perdeu ou no qual se recolheu, é acordado para voltar a sofrer tormentos e dores:
Em sonho, às vezes, se o sonhar quebranta
Este meu vão sofrer, esta agonia,
Como sobe cantando a cotovia,
Para o céu a minh'alma sobe e canta.

Canta a luz, a alvorada, a estrela santa,
Que ao mundo traz piedosa mais um dia...
Canta o enlevo das coisas, a alegria
Que as penetra de amor e as alevanta...

Mas, de repente, um vento húmido e frio
Sopra sobre o meu sonho: um calafrio
Me acorda - A noite é negra e muda: a dor

Cá vela, como dantes, a meu lado...
……………………………………………
…………………………………………… (Acordando)
   
A morte aparece como Mors Liberatrix sob a imagem da espada resplandecente que rasga a escuridão, e, na duplicidade de Mors-Amor, como cavaleiro vestido de armadura reluzente, cavalgando um «negro corcel».
Os antagonismos penetram nos próprios pormenores da expressão e das imagens.
Assim, Deus é caracterizado como «gota de mel em taça de venenos» (Ignoto Deo); leva através de «regiões inominadas, cheias/De encanto e de pavor..., de não e sim» (Logos); «manda buscar luz e dá-nos trevas» (A Santos Valente); impõe à humanidade a lei de ser «vã toda a pesquisa da verdade, / Em vez da luz achar a escuridade., calei de embora em tormento,/Buscar, buscar sempre a claridade» (A João de Deus). A Ideia com tanto fervor solicitada recusa-se-lhe como «virgem desdenhosa (A Ideia V), mas não deixa de ser o único conforto que ao Homem resta:—«não há na vida/Sombra a cobrir melhor nossa cabeça, / Nem balsamo mais doce que adormeça / Em nós a antiga, a secular ferida» (A Ideia VI), e é encontrada, «onde a noite tem mais luz que o nosso dia» (A ideia VII). O Céu aparece como imenso e estreitos (Consulta), o Homem, como «mixto infeliz de trevas e de brilho» (Homo), as almas pairam entre luz e horrores» (Velut Umbra). «Cruel e delirante, é o turbilhão de dor, pecado, ilusão e luta, que envolve a Humanidade (Divina Comédia); nos seus excessos blasfemos, os ímpios e ateus gemem sob o peso da tristeza e da impotência que sentem e da sua ânsia de infinito, e no seu rir não vibra a alegria da serenidade superior, —é «um rir feito de fel e de impureza» (O Convertido). A zona da Morte é constituída por regiões sagradas / E terríveis», a própria Morte apresenta-se como vulto Tenebroso e sublime, / Formidável, mas plácido» (Mors-Amor), que derruba e consola, aniquila e redime — «Firo, mas salvo...», «Prostro e desbarato / Mas consolo... Subverto, mas resgato» (Mors Liberatrix)—, como funérea Beatriz de mão gelada… / Mas única Beatriz consolador» (Elogio da Morte III); a sua ironia é «Sinistramente estranha, atroz e calma» (Anima mea), e
Verbo velado
Silencioso intérprete sagrado
Das coisas invisíveis, muda e fria,

E, na sua mudez, mais retumbante
Que o clamoroso mar, mais rutilante,
Na sua noite, do que a luz do dia (O que diz a Morte).
  
O Nirvana abre-se como «vácuo tenebroso» para além do ir universo luminoso» que, sobre o fundo do Nada, se revela como ilusão e vazio. (Nirvana), e o Não-Serrevela-se como o único Ser verdadeiro, absoluto (Elogio da Morte VI).
Sobretudo é o antagonismo entre luz e trevas que domina na imaginação de Antero. A luz aparece relacionada com o Divino e o Sublime, a Verdade e a Beleza, a Fé e a Ideia, o Amor puro e o Pensamento puro, a Liberdade e o Heroísmo, mas também com a inquietude de ansias febris, lutas absurdas e torturantes, revelações aniquiladoras e inexoráveis; a escuridão aparece relacionada com o terrestre e a imperfeição, a ilusão e a aparência, a descrença e a incerteza, a dúvida e a angústia, o abismo e o vácuo, mas também com o sossego e o esquecimento, a harmonia e a paz do Nirvana e do Não-Ser da Morte que, oposto ao Ser inquieto, perturbador da Vida, apenas aparente, ilusória e dolorosamente desenganadora, é o Ser absoluto, sempre o mesmo, imóvel e Imutável.
Tão pouco como o antagonismo dos sonetos Tese e Antítese aparece reconciliado num terceiro soneto que devia intitular-se Síntese, tao pouco aparecem reconciliados os antagonismos que na Obra de Antero surgem.
Contudo, não se trata de antagonismos estáticos e absolutos, mas dinâmicos, e entre os quais os fenómenos como que pairam e se extinguem, correm e discorrem, se revelam e se ocultam, se perdem e se confundem. Deus aparece como visão sonhada que se reflete na alma do Poeta «como sobre o mar o Sol se espelha» (Ignoto Deo); ainda em Logos lê-se: «És um reflexo apenas da minha alma». O Supremo Ideal também é «visão / Que ora amostra ora esconde o meu destino...» e «Nuvem, sonho impalpável, do desejo» (Ideal). O Universo repleto de vultos e forças, vida e movimento, aparece sob a imagem do mar tumultuoso e tempestuoso (Nirvana e Voz interior), o Mundo, a perder a cor à luz da Beleza imortal, «bem como a nuvem que erra / No pôr do Sol e sobre o mar discorre» (Tormento do Ideal)65 ou como «fumo ondeando, / Visões sem ser, fragmentos de existência... / Uma névoa de enganos e Impotências / Sobre vácuo insondável rastejando...» (Contemplação). Outras imagens do género são as do tempo que corre incessante e «num turbilhão cruel e delirante», «só gera, inextinguíveis, / Dor, pecado, ilusão, lutas horríveis (Divina Comédia), da glória, «fumo que sobre o abismo anda suspenso» (A Alberto Sampaio), ou clarão de extinta chama», «Foco incerto, que a luz já mal derrama», «eco perdido» e «miragem em nuvem ilusória» (A M. C.), do Belo e do Sublime que como nuvens acasteladas, em fumo se vão (Velut umbra), do Pensamento como «vapor que se esvai e se dissolve», e a Vontade como onda que «entre rochedos se espedaça» (Ad Amicos), a Ideia como «encoberta peregrina», «Pálida imagem que a água de algum rio, / Refletindo, levou... incerta e fina / Luz, que mal bruxuleia pequenina... / Nuvem, que trouxe o ar, e o ar sumiu.... (A Ideia V). «Incerta peregrina, a alma oscila entre a imortal beleza, que a prende, e a «eterna pátria que aspira...» (Aspiração), entre fé e dúvida, entre esperança e desengano—«Se uma hora crê de fé, logo duvida; / Se procura, só acha... o desatino!» (A João de Deus) —,envolvida pela «névoa baça» da «incerteza das cousas», «nas suas próprias redes se embaraça» (Ad Amicos). Descrente, triste e desesperado, Antero apresenta-a, em todo o seu abandono e em toda a sua solidão, sob a imagem da ave impiedosamente desterrada e de asas partidas, e da vela pelos tufões arrojada pelo mar (Despondency). Como «vago peregrino, apresenta também o Homem (A Ideia II), abandonado à incerteza: — «O que procuro, / Se me foge, é miragem enganosa, / Se me espera, pior, espectro impuro... / Assim a vida passa vagarosa: / O presente, a aspirar sempre ao futuro: / O futuro, uma sombra mentirosa» (A Felix dos Santos). Ainda num dos sonetos do último ciclo, refere-se ao Homem que «vaga desolado / E em vão busca a certeza que o conforte) (Lacrimae rerum). Até no último soneto composto, em Com os Mortos, evoca a imagem da fuga e disperso contínuas:
Os que amei, onde estão? idos, dispersos, 
Arrastados no giro dos tufões, 
Levados, como em sonho, entre visões, 
Na fuga, no ruir dos universos... 

E eu mesmo, com os pés também imersos 
Na corrente e à mercê dos turbilhões, 
Só vejo espuma lívida, em cachões, 
E entre ela, aqui e ali, vultos submersos...
  
A esse respeito é também notável a frequência e variedade de termos que exprimem a busca e a aspiração, o errar e a oscilação, a transição e a extinção, o correr e o pairar, ou que se referem ao vago e indefinido, à perturbação, à ilusão e ao engano:—ao lado de buscar, procurar, pesquisar, aspirar, ansiar: lutar, disputar e pedir; ao lado de ânsia, anseio, ansiedade, ansiedade, ansioso: lutas, desejo e febre do Ideal; ao lado de errar, vagar, divagar: peregrino e peregrina, vacilar e duvidar, trémulo e vacilante; ao lado de passar e fugir: correr, perder-se e perdido, sumir, sumir-se e sumido, fundir-se e fundido, desmaiar, dissipar e dissipar-se, morrer e desfalecer, murchar, consumir-se, dissolver-se, espedaçar-se, desfazer, ir-se em fumo, desvanecer-se, desaparecer e esvair-se, descer, baixar, varrer, dispersar e disperso, agonia e transitório; ao lado de flutuar, vogar, pairar e esvoaçar: onda e nuvem, fumo, vapor e suspenso; ao lado de incerto e incerteza, vago e vagante, imensidade e imensidão: duvidoso, vaporoso e escuro, trevas e escuridão, vácuo e abismo; ao lado de tormento, tormenta e tormentoso: tumultuar e tumultuoso, desatino e confusão, e turbilhão ou turbilhões; ao lado de ilusão e ilusório, engano, enganar e enganoso: miragem e sombra mentirosa.
António Sérgio, na análise dos sonetos Idílio e Palácio da Ventura, mostrou que os contrastes se estendem até aos pormenores da fonação, da rima e do ritmo, opondo, na de Idílio, o «ritmo vivo, matinal, fresquíssimo» das quadras com a sua estridula rapidez de ascenso e suas rimas em i» aos nasais de ao longe, no horizonte, amontoado, e a amplitude a súbitas quebrada, com o verso «quantas vezes, de súbito, emudeces!» ao afrouxar do movimento, seu ensurdecer em ua, e nos baixos das rimas em ua, nos tercetos, e aponta, em O Palácio da Ventura, para o contraste entre o «ritmo martelado» do verso «Sonho que sou um cavaleiro andante», e a «ondulação» do segundo, «Por desertos, por sois, por noite escura», evocando aquele o galopar do cavalo, e este, a amplidão da jornada, que parece sem fim»65.
  
“Os Sonetos de Antero de Quental” in Estudos Vol. II, Albin Eduard Beau. Acta Universitatis Conimbrigensis, Coimbra Editora, 1964, pp. 286-296. (Tradução de Die Sonette von Antero de Quental,publicado em «Portugiesiche Forschungen der Görresgesellschaft, Erste Reihe: Auísätze zur portugiesischen Kulturgeschichte», II. Münster, 1961)
  
______________________
(64) V. W. MÖNCH, l. c. 33 e sgs.
(65) Cf. a imagem da «luz baça (...) igual à do sol posto, / Quando só nuvem lívida esvoaça» (Das Unnennbare).
(65) L. c., 96 e 134, resp. 70 e 90.



   SUGESTÃO DE LEITURA:

à Apresentação crítica, seleção, notas e sugestões para análise literária de textos de Antero de Quental, por José Carreiro. In: Lusofonia – plataforma de apoio ao estudo da língua portuguesa no mundo, 2021 (3.ª edição) <https://sites.google.com/site/ciberlusofonia/PT/Lit-Acoriana/antero-de-quental>
                
[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2014/02/07/se.e.lei.que.rege.o.escuro.pensamento.aspx]

quinta-feira, 6 de fevereiro de 2014

OCEANO NOX (Antero de Quental)


José Carreiro, Ribeira Grande, ilha de São Miguel, Açores, 2011-10-16
             





OCEANO NOX 
A A. de Azevedo Castelo Branco
   
Junto do mar, que erguia gravemente
A trágica voz rouca, enquanto o vento
Passava como o voo dum pensamento
Que busca e hesita, inquieto e intermitente,

Junto do mar sentei-me tristemente,
Olhando o céu pesado e nevoento,
E interroguei, cismando, esse lamento
Que saía das coisas, vagamente...

Que inquieto desejo vos tortura,
Seres elementares, força obscura?
Em volta de que ideia gravitais?

Mas na imensa extensão, onde se esconde
O Inconsciente imortal, só me responde
Um bramido, um queixume, e nada mais... 

Antero de Quental
        




          
Antero indaga o Céu em busca de resposta, e só encontra o Nada. Ao sentimento dilacerante de que o equilíbrio é já impossível, soma-se agora o duma catastrófica solidão íntima ecoando a profunda mudez cósmica, como se pode ver no "Oceano Nox".
Massaud Moisés, A Literatura Portuguesa, São Paulo, Editora Cultrix, 1985 (21.ª ed.)
        
*
          
[…] a falta de resposta, isto é, de sentido (do mundo), que se patenteia no último terceto de "Oceano Nox", tem também um perfeito paralelo em Camões:
OCEANO NOX:
Mas na imensa extensão, onde se esconde
O Inconsciente imortal, só me responde
Um bramido, um queixume, e nada mais...
  
CAMÕES:
Ninguém lhe fala; o mar de longe bate;
Move-se brandamente o arvoredo;
Leva-lhe o vento a voz, que ao vento deita.
  
São topoi muito gerais da ordem lírica, do estado de consciência poético, são a enunciação da própria situação poética no seu status nascendi, são ordenação estética do caos silencioso para que o homem encontrou uma falaciosa arrumação semântica. E por isso este discurso poético não é niilista, apenas questiona o sentido do sentido trivial, e quem lê nele niilismo lê apenas a falta do seu querido sentido trivial pré-estabelecido.
Fariam bem os autores destas interpretações em procurar nesta poesia todos os elementos que não só não vieram reduzir o mundo a nada, nem torná-lo mera abstração, mas, pelo contrário, vieram acrescentá-lo com a sua presença. Algo que não existia passou a existir.
Num artigo de 1861, Antero tematiza tudo isto, fala dum "sentimento confuso" que vem do "fundo da alma" e se eleva até tornar-se ideia, "ideia de sentimento": é um modo de descrever o processo de seleção e organização dos elementos do caos, não dentro da sua semantização pré-estabelecida, mas numa unidade superior a que Antero chama "Forma", e a qual para ele tem a sua manifestação mais pura no soneto. […]
Antero de Quental: Método paradoxal, pontual”, Alberto Pimenta. 
Revista de Guimarães, n.º 102, 1992, pp. 249-266.
        
*
          
Direi algo obscuro: o mar, na experiência do poeta, é — em razão da força organizadora dos advérbios de modo, soando a tristeza conexa entre a criatura e a criação — projeção de uma perda dramática. A situação do poeta, sentei-me, busca ouvir tal dano no lamento que saía das coisas, vagamente. Nessa audição, Antero de Quental requer do ato poético um sacrifício. Explico: a palavra “nox”, qualificando o substantivo “Oceano”, está ali a anunciar onde a morte dorme, enquanto as palavras como ondas esfacelam na praia o inquieto desejo.
As perguntas estão no poema a promover um ethos de alienação, capaz de dar ao poeta a alegação de que o fracasso em entender o que murmura tem um significado superior. Ou seja: a alienação da audição está na poesia como colapso das relações significativas; quer dizer, o algo que está constantemente para acontecer, a fala do Inconsciente imortal, é o queixume do homem uno em si mesmo que, por conseguinte, deve considerar a estória que se conta, à beira das ondas, pelo que sabe estar além da história.
Melhor: o tipo de alienação existencial que Antero de Quental cria possui tal sanção teológica que é difícil percebê-lo como ideologia; antes, a derradeira ficção da sublimidade do ego em se identificar com aquela vastidão significante, o mar, requer instrução e repouso na fé. Contudo, o espectro do conhecimento que parece adquirir pronúncia a cada estalo das águas, sendo adquirido pela perda do poder do eu, assedia a ética para que ela persiga a sua maturidade até o ponto de não-retorno à identificação — que sempre é possível.
O ato poético de Antero de Quental, que da desordem espiritual de uma paisagem originária retira, por seus sons, o Inconsciente imortal — como ética de qualquer natureza, incluindo aí o caos torpe da história humana — apresenta o saber que diz que as melhores coisas são tremendamente sigilosas. Ou seja: se a relação entre o poeta e o expansivo significante for abstraída, fica o primeiro com a independência que, surpreendentemente, coincide com o puro conceito da liberdade ética.
Nesse sentido, quando a razão do poeta se põe em escura, postula a própria frustração de maneira que a imaginação descubra-se, inusitadamente, numa atitude de admiração. Se os murmúrios deixam registros do Inconsciente imortal que na natureza há de queixar-se e nada mais, o ato de contemplação do oceano ilimitado, onde dorme a morte, permite ao poeta sentir que tudo está simultaneamente ali, coexistindo com ele; num domínio de existência no qual o homem é incapaz de conhecer.
Assim sendo, o ato poético da compreensão de Antero de Quental, seu puro conceito de liberdade ética, toma aquilo que insiste como desconhecimento —Inconsciente imortal —, a partir da alienação existencial; que aponta para o íntimo destino antológico do homem; manifesto somente quanto ao aspeto ou condição de sua inatingibilidade. Ou seja: só na grandeza da derrota o ritmo da visão é quebrado na conjuntura que se anuncia, e nada mais...; que, não obstante, leva o poeta para além da segurança da audição.
O abismo do idealismo da escuta, “Oceano Nox”, está no nome do soneto como se fosse a forma daquele mistério; melhor: a poesia é que se torna ameaça quando se debruça sobre a audição do nada mais; pois comporta-se profeticamente, reivindicando o direito de preencher literalmente o silêncio que ainda perdura no lamento que sai datrágica voz rouca. Desse lamento, sentado tristemente, Antero de Quental contempla a face da eternidade; falantes, as ondas pronunciam vagamente sua linguagem cuja significação não pode ser lida em termos fenomenológicos.
Por não poder ler dessa forma, Antero de Quental abre os ouvidos para se perceber mais distante de si, mantendo ainda o silêncio do nada mais preenchido pela impossibilidade de atribuir um sentido positivo à existência. A ação do mar que o fez deter-se na escuta é absorvida no soneto como momento contingente do destino; o que significa dizer que não é construído a partir de uma ideia; pois a impossibilidade da objetividade do sentido faz a poética cumprir a tarefa de tornar o eu gramatical do soneto um eu espiritual da escuta supra-sensível.
Ou seja: o soneto “Oceano Nox”, mediante a sua participação imediata na linguagem dos murmúrios que as ondas ressoam, da qual não se liberta, refere-se a um “nós”, envolto num processo de completa subjetivação; cujo estado histórico de impossível objetividade de sentido é juízo ético sobre a improcedência do próprio ato de conhecer o contínuo nada mais que o Inconsciente imortal pronuncia derradeiramente. Dessa maneira, o “nós” se instala na medida em que qualquer homem tende à escuta das palavras pronunciadas nos estalos das águas; mais, quando os respingos sugerem discursos que só o íntimo de cada um encontra ao traduzir toda e qualquer justiça para a humanidade.
A febre ética de Antero de Quental desfralda o puro poder do indizível que, por não se revelar, mostra as palavras do soneto a manter uma proximidade radical entre a natureza cm excessivo significante e o precário real de seu significado. Já que isso concerne ao acontecimento primeiro do soneto — passava como o voo dum pensamento que busca e hesita, inquieto e intermitente — a febre ética toma o intermitente para expor o que ocorre enquanto sucede.
Mas o que tal quer dizer, se faço existir a presença de um “nós”? Ninguém pode se negar a admitir que na proximidade de uma vastidão contemplada, a adivinhação apareça como o único caminho da mente entre o íntimo abismo que se abre enquanto os olhos buscam pontos de fuga na imensidade; ao mesmo tempo em que ela, na audição, se põe ao ouvir um nada mais. Assim, adivinhação consubstancia a poética de Antero na medida em que funda a sua ética — a justiça pretendida responde ao enigma do futuro como se fosse por ele interpelado.
Sendo, o soneto de Antero de Quental imprime através de um eu espiritual, que escuta supra-sensivelmente, algo que deve escapar à necessidade de sentido para afirmar o fatal ético de qualquer sentido em suas poesias. Nesse ato, o “nós” envolto num processo de completa subjetivação afirma a medida da humanidade, que, ao ser pensada, encontra nos ruídos da natureza a pronúncia de uma linguagem desejada e inexecutável de ser conhecida. Sem ela, porém, o eu poético não escuta o silêncio que a justiça almeja.
Se assim pode ser, recuo e postulo uma treliça para separar e, mentirosamente, concluir. Se no início do texto admiti um corte, devo agora retomá-lo. Há algo que não se realiza quando se pretende observar as ações do ego poético na cultura portuguesa — segundo a presença do romantismo, sem lhe dar momento temporal. A sua demonização ao falar, conforme o deslocamento que difunde o seu poder à medida em que subverte os parâmetros poéticos, parece sempre encontrar um particularismo que corresponde à presença, algo utilitária, da Natureza (mesmo urbana, e no sentido de uma paisagem que lhe dá possibilidade de abstração).
Esse fato de cultura cunha o sublime egotista, romântico e para além dele, através da estrutura da alienação que, dos colapsos das relações significativas, regentes da expectativa poética, faz da alma uma lacuna; cuja extensão é descoberta à medida que é preenchida por escape comum à viagem de um eu; golfos, praias, enseadas e cabos para um pouso da subjetividade — o que chamo de particularismo português, ou, então, cordato risco lusitano. Explico: os três poetas, cada qual na singularidade que os revela, têm o espaço interior, expressão da infinitude do espírito romântico, nascido sem a marca de um vazio maciço e mais ou menos inconsciente, segundo a forma da poesia moderna; o que significa que a sublimidade centrada nas emoções do sujeito é objeto — o que é o mesmo que dizer que a primitiva psicologia associacionista tem ainda lastro.
Ou seja: num ou noutro, a consciência poética ativa-se na medida em que a essência da alma do poeta expressa um tipo de reflexão capaz de erguer sensações em tom familiar, consigo mesma e conhecendo as suas faculdades. Assim, objetos vastos provocam sensações vastas; e estas dão ao espírito do poema uma ideia superior dos próprios limites. Logo, a alma do poeta é ainda o espaço em que as sublimações ocorrem, mas sem qualquer efeito constitutivo do problema da relação entre sensação e reflexão na poesia.
Essa relação é motivada por um apego naturalista, como se fosse um ato moral da metáfora; o que é o mesmo que dizer: não há associação que seja capaz de, mesmo em tom ínfimo, enfraquecer a garantia que a linguagem corrobora ao reiterar a relação entre sensação e reflexão. A consciência poética, então, é disposta sobre e contra qualquer ordem formal — no sentido de concreta abstração, como um fato plástico —; antes, afirma-se espectadora que não tem nenhuma ação e não pode interferir e, ao mesmo tempo, não possui autoconhecimento fora dessa ordem. Se as sensações são retiradas, a consciência só percebe a reiteração da linguagem.
É isto que torna possível uma convenção não examinada na cultura portuguesa; o significado das palavras está unicamente na maneira como são usadas, pois em princípio um apelo à Natureza além da linguagem não tem fundamento familiar no particularismo de um eu português. E é dessa forma que o voo da liberdade de Camilo Pessanha pressupõe o deserto e clama a morte como um personagem íntimo ao facto poético; e é assim que o corpo de Cesário Verde se oferece como contraponto à paisagem onde ele deposita sua tristeza, recolhendo num eu-recetáculo as sensações naturalizadas nas próprias reflexões de paisagem; como também, é assim em Antero de Quental, ao ouvir e medir a mística, a razoável intimidade entre a justiça e o que desconhece ao se pôr palavras como se colocasse velas nas sensações, para de imediato evitar o risco da viagem e encontrar, rapidamente, um canto para profetizar o quanto de justiça o esperava se o navegar tivesse delírios em remos.
Desempenho da leitura: sete ensaios de literatura portuguesa,
Marcus Alexandre Motta. Editora 7Letras, 2004
        
*
          
Para Antero de Quental, acreditar num Deus supremo foi o alicerce onde firmou todo o seu projeto de vida. A perda desse fundamento transformou o poeta num ser angustiado, pessimista e cheio de dúvidas. Esses sentimentos permaneceram ao longo de toda a sua trajetória de vida, levando-o à busca de Deus pelos caminhos da Filosofia. Percorrendo-os, foi atribuindo novos nomes a Deus - Bem, Justiça, Verdade, Absoluto, Ideia, Ignotus, Inconsciente -, na tentativa de conciliação entre o seu novo ser e o que fora em sua juventude. Nesta busca de um impossível, conseguiu apenas um simulacro de solução: a evasão pela morte. Como um romântico - que, no fundo, sempre foi - matou-se na sua Ilha de São Miguel, sentado em um banco de praça, diante de um muro onde se lia a palavra cujo sentido perdera: Esperança.
Antero de Quental: Uma trajetória com DeusHelen Araujo Mehl. 
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, setembro 2003.
   

   SUGESTÃO DE LEITURA:

Apresentação crítica, seleção, notas e sugestões para análise literária de textos de Antero de Quental, por José Carreiro. In: Lusofonia – plataforma de apoio ao estudo da língua portuguesa no mundo, 2021 (3.ª edição) <https://sites.google.com/site/ciberlusofonia/PT/Lit-Acoriana/antero-de-quental>


[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2014/02/06/oceano.nox.aspx]